Resumo
Objetivou-se avaliar o estado nutricional de crianças menores de 5 anos no Brasil no ano de 2009, o associando aos fatores sociais e demográficos. Utilizou-se dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF 2008/2009), cujo perfil nutricional foi avaliado segundo os índices Peso-para-idade, Estatura-para-idade e Peso-para-estatura (n = 14.569). A associação foi estimada aplicando-se o teste de associação de Pearson, regressões logísticas e análises de correspondência. A análise de correspondência revelou maior associação da magreza com as crianças das regiões Norte e Nordeste, em famílias com menores níveis de renda e de cor/raça preta. O sobrepeso e a obesidade demonstraram maior relação com as crianças residentes nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, do sexo masculino, da zona urbana, de cor/raça branca, com 3 anos de idade e de famílias com faixas de renda intermediárias. O sobrepeso e a obesidade demonstraram distribuição heterogênea quanto a sua espacialização dentre as Unidades da Federação. Aponta-se para uma polarização epidemiológica nutricional, sendo um grande desafio para a saúde coletiva reduzir as carências nutricionais e promover hábitos alimentares saudáveis desde a infância.
Criança; Estado nutricional; Epidemiologia nutricional; Inquéritos demográficos
Introdução
A partir da segunda metade do século XX, o Brasil vivenciou mudanças significativas em seu cenário demográfico11. Carvalho JAM, Wong LLR. A transição da estrutura etária da população brasileira na primeira metade do século XXI. Cad Saude Publica 2008; 24(3):597-605., bem como no perfil de morbimortalidade e invalidez da população. Contudo, diferentemente do ocorrido em países desenvolvidos, a transição epidemiológica brasileira vem sendo marcada pela existência simultânea de elevadas taxas de morbidade e mortalidade por doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) com a permanência ou o recrudescimento das doenças infecciosas e parasitárias22. Araújo JD. Polarização epidemiológica no Brasil. Epidemiol Serv Saúde 2012; 21(4):533-538..
Em consonância às mudanças nos perfis demográfico e epidemiológico da população brasileira, pôde-se observar o declínio da prevalência de desnutrição e a ocorrência expressiva de sobrepeso/obesidade, caracterizando a progressão da chamada transição nutricional33. Guimarães LV, Barros MBA. As diferenças de estado nutricional em pré-escolares de rede pública e a transição nutricional. J Pediatr 2001; 77(5):381-386.. Entre os anos de 1974 e 2003, o panorama epidemiológico nutricional no Brasil apresentou mudanças marcantes, destacando-se o declínio cumulativo de 72% no déficit estatural de crianças menores de 5 anos44. Batista Filho M, Rissin A. A transição nutricional no Brasil: tendências regionais e temporais. Cad Saude Publica 2003; 19(Supl. 1):181-191.. Já a obesidade infantil apresentou-se estável entre o período de 1974-1975 e 2006-2007, com percentuais em torno de 6 a 7%. Contudo, esta tendência não diz respeito aos demais grupos etários da população, como os adolescentes e adultos, cuja prevalência de obesidade aumentou substancialmente durante o mesmo período55. Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet 2011; 377(9780):1863-1876..
Considerando o panorama mundial, em 2011 cerca de 101 milhões de crianças menores de 5 anos de idade apresentavam baixo peso, ao passo que, em 2013, estimou-se que 42 milhões de crianças no mundo (6,3%), nessa mesma faixa etária, estavam acima do peso. A desnutrição está relacionada a mais de um terço de todas as mortes de crianças no mundo, embora raramente seja listada como a causa direta. Por outro lado, a obesidade é considerada como um dos quatro principais fatores de risco para as DCNT, sendo mais agravante quanto mais precoce a sua ocorrência. Em razão disso, torna-se importante o estudo do estado nutricional de crianças, haja vista a comprovada associação das condições de nutrição na fase infanto-juvenil com os níveis de saúde na idade adulta66. World Health Organization (WHO). Essential nutrition actions: improving maternal, newborn, infant and young child health and nutrition. Geneva: WHO; 2013,77. World Health Organization (WHO). Global status report on noncommunicable diseases 2014. Geneva: WHO; 2014..
O estado nutricional de crianças é considerado um instrumento importante na aferição das condições de saúde e qualidade de vida de uma população88. United Nations Children´s Fund. Tracking progress on child and maternal nutrition: a survival and development priority. New York: Unicef; 2009.. Considerando o seu complexo caráter multifatorial99. Jesus GM, Castelão ES, Vieira TO, Gomes DR, Vieira GO. Déficit nutricional em crianças de uma cidade de grande porte do interior da Bahia, Brasil. Cien Saude Colet 2014; 19(5):1581-1588., o estado nutricional infantil é conhecidamente determinado pelas condições de vida da população, principalmente no que concerne aos aspectos sociais e econômicos1010. Martins IS, Marinho SP, Oliveira DC, Araújo EAC. Pobreza, desnutrição e obesidade: inter-relação de estados nutricionais de indivíduos de uma mesma família. Cien Saude Colet 2007; 12(6):1553-1565.,1111. Monteiro CA, Benicio MHDA, Conde WL, Konno S, Lovadino AL, Barros AJD, Victora CG. Narrowing socioeconomic inequality in child stunting: the Brazilian experience, 1974-2007. Bull World Health Organ 2010; 88(4):305-311..
Em contrapartida, as condições de nutrição de crianças estão associadas a consequências individuais e coletivas de curto e longo prazo, incluindo menor altura da idade adulta, inferior desempenho escolar, maior morbidade e mortalidade, redução da produtividade na idade adulta e risco de desenvolvimento de doenças crônicas. Padrões de crescimento infantil são, portanto, fortes preditores do futuro capital humano, do progresso social e da saúde das futuras gerações1212. Black RE, Allen LH, Bhutta ZA, Caulfield LE, Onis M, Ezzati M, Mathers C, Rivera J. Maternal and child undernutrition: global and regional exposures and health consequences. Lancet 2008; 371(9608):243-260.,1313. Victora CG, Adair L, Fall C, Hallal PC, Martorell R, Richter L, Sachdev HS. Maternal and child undernutrition: consequences for adult health and human capital. Lancet 2008; 371(9609):340-357..
Torna-se essencial o conhecimento das diferentes maneiras como a desnutrição e a obesidade e os seus fatores intervenientes podem trazer implicações às populações, de modo que assim possam ser desenvolvidos modelos de atenção à saúde pautados na integralidade do indivíduo e do meio ao qual está inserido. Nesta perspectiva, o presente trabalho tem por objetivo avaliar o estado nutricional de crianças menores de 5 anos no Brasil no ano de 2009, além de identificar discrepâncias e peculiaridades quanto aos aspectos sociais e demográficos.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal de base populacional, cujo grupo de interesse foi constituído por crianças menores de 5 anos de idade, participantes da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), 2008-2009, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), totalizando 14.569 indivíduos.
No planejamento da amostra da POF foram empregados procedimentos complexos de amostragem envolvendo estratificação geográfica e estatística do conjunto de setores censitários do país, sorteio de conglomerados de setores dentro de estratos e sorteio de domicílios dentro dos setores. Em seguida ao processo de seleção de setores e domicílios, os primeiros foram distribuídos ao longo dos quatro trimestres da pesquisa, garantindo que em cada um deles os estratos geográfico e socioeconômico estivessem representados através dos domicílios selecionados1414. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009: antropometria e estado nutricional de crianças, adolescentes e adultos no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2010..
Cada domicílio pertencente à amostra da POF representa um determinado número de domicílios particulares permanentes da população (universo) na qual esta amostra foi selecionada. Com isso, a cada domicílio da amostra está associado um peso amostral ou fator de expansão que, atribuído às características investigadas no estudo, permite a obtenção de estimativas das quantidades de interesse para o universo da pesquisa. Para efeito do cálculo das estimativas das variáveis de interesse, no presente estudo foram utilizados os fatores de expansão ajustados fornecidos juntamente com os microdados da pesquisa pelo IBGE.
Os dados de peso e estatura (comprimento e altura) foram submetidos, pelo próprio IBGE, a um tratamento de crítica e imputação, no qual foi utilizado o procedimento de imputação para tratar a não resposta e também os erros de resposta associados a valores rejeitados na etapa de crítica. No presente estudo, utilizaram-se os dados das variáveis de peso e estatura já imputados.
Para a classificação do estado nutricional utilizaram-se as variáveis de peso, estatura, idade e sexo, as quais foram processadas no software WHO Anthro1515. World Health Organization (WHO). WHO Anthro. [computer program]. Version 3.2.2, January 2011. Geneva: WHO; 2011. para a obtenção dos escores-z de cada criança, tomando como referência as curvas de crescimento propostas pela Organização Mundial de Saúde (OMS)1616. World Health Organization (WHO). WHO child growth standards: Length/height-for-age, weight-for-age, weight-for-length, weight-for-height and body mass index-for-age. Methods and development. Geneva: WHO; 2006.. O diagnóstico nutricional foi determinado a partir do emprego de três índices antropométricos: Estatura-para-idade (E/I); Peso-para-idade (P/I) e Peso-para-estatura (P/E).
Utilizando o critério estatístico de escore-z e a classificação recomendada pelo Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN)1717. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Orientações para a coleta e análise de dados antropométricos em serviços de saúde: Norma Técnica do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional - SISVAN. Brasília: MS; 2011., foram classificadas em déficit estatural, ponderal ou magreza as crianças cujos índices E/I, P/I, P/E apresentaram valores inferiores a -2,0 escores-z; eutróficas, as crianças com escores-z maiores ou igual a -2,0 e menores ou igual a +2,0 para o índice P/E. O índice P/E também foi utilizado para classificação de sobrepeso para crianças cujo índice apresentou valores maiores que +2,0 escores-z e menores ou iguais a +3,0 escores-z, e, para obesidade, utilizou-se como ponto de corte, valores superiores a +3,0 escores-z.
Considerou-se como critério de exclusão as crianças que apresentaram em pelo menos um dos três índices utilizados no estudo valores tidos como biologicamente implausíveis (outliers). Seguindo o proposto no software WHO Anthro1515. World Health Organization (WHO). WHO Anthro. [computer program]. Version 3.2.2, January 2011. Geneva: WHO; 2011., consideraram-se os seguintes pontos de corte para exclusão: z < -6 ou > 5 para o índice Peso-para-idade; z < -5 ou > 5 para Peso-para-estatura e z < -6 ou > 6 para o índice Estatura-para-idade. Desta forma, das 14.569 crianças, foram incluídas no presente estudo 14.013, representando uma perda de 3,8%.
As variáveis sociodemográficas utilizadas no estudo foram: sexo (masculino, feminino), idade (0 ano, 1 ano, 2 anos, 3 anos, 4 anos), cor/raça (branca, preta, amarela, parda, indígena), situação de domicílio (urbano, rural), renda familiar mensal per capita em salários mínimos (até ¼, de ¼ a ½, de ½ a 1, de 1 a 5, 5 ou mais), macrorregião (Norte, Nordeste, Sudeste, Centro-oeste, Sul) e Unidades da Federação (Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Amapá, Tocantins, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Distrito Federal).
Para a classificação da renda familiar mensal per capita, dividiu-se o valor expresso na variável renda per capita da unidade de consumo pelo valor referente a um salário mínimo na data de referência da pesquisa (15 de janeiro de 2009), que era de R$ 415,00 (quatrocentos e quinze) reais.
Para análise dos dados utilizou-se o software Statistical Package for the Social Science (SPSS) Statistics versão 20. O teste qui-quadrado de Pearson e modelos de regressão logística foram utilizados na primeira etapa do estudo para verificar a associação das variáveis dependentes Peso-para-idade, Estatura-para-idade e Peso-para-estatura com as variáveis explicativas representadas pelas informações sociais e demográficas (sexo, idade, cor/raça, situação de domicílio, renda familiar mensal per capita e macrorregião). Para as variáveis Peso-para-idade e Estatura-para-idade utilizou-se a regressão logística binária e para a variável Peso-para-estatura utilizou-se a regressão logística multinomial, tendo como categoria de referência a eutrofia.
Primeiramente, aplicou-se o teste qui-quadrado para identificar quais variáveis explicativas associavam-se significativamente com as variáveis respostas. Posteriormente, aquelas variáveis que se apresentaram estatisticamente significantes ao nível de 20% foram incluídas no modelo de regressão logística, permanecendo no modelo final aquelas significativas após método de seleção stepwise, sendo estimados os valores de razões de chance (Odds ratio) e respectivos intervalos de confiança. O nível de significância estatística considerado nas análises de regressões logísticas foi de 5% (p < 0,05).
Na segunda etapa do estudo, buscou-se explorar relações conjuntas, por meio da análise de correspondência, entre os fatores socioeconômicos e demográficos e o estado nutricional das crianças, a partir da variável Peso-para-estatura categorizada. Utilizou-se o software XLSTAT para a realização desta análise.
A análise de correspondência é uma técnica estatística exploratória utilizada para verificar associações ou similaridades entre variáveis qualitativas ou categorizadas. Por meio de representação gráfica, as posições espaciais das categorias de cada variável no mapa multidimensional podem ser interpretadas como associações, nas quais as variáveis percebidas como similares ou associadas são alocadas em pontos próximos no mapa, ao passo que aquelas percebidas como não similares são representadas em pontos distantes1818. Mota JC, Vasconcelos AGG, Assis SG. Análise de correspondência como estratégia para descrição do perfil da mulher vítima do parceiro atendida em serviço especializado. Cien Saude Colet 2007; 12(3):799-809..
Por possibilitar a investigação da associação das variáveis sem o pressuposto de uma relação causal entre estas, bem como sem assumir uma distribuição de probabilidades, a aplicação da análise de correspondência demonstra-se bastante apropriada nos estudos de dados populacionais e com delineamentos transversais1919. Greenacre MJ. Practical Correspondence Analysis. In: Barnett V. Looking at Multivariate Data. New York: J. Wiley & Sons; 1981. p. 119-146..
Resultados
Observaram-se maiores prevalências de déficit ponderal e estatural nas crianças do sexo masculino (2,9% e 10,0%), indígenas (4,4% e 20,2%), residentes na zona rural (3,4% e 10,8%) e nas regiões Norte (3,5% e 14,7%) e Nordeste (2,8% e 9,8%). A região Centro-Oeste também apresentou elevado percentual de déficit estatural (9,8%) (Tabela 1).
O déficit ponderal, avaliado pelo índice P/I, e a magreza, definida a partir do índice P/E, foram mais prevalentes nas crianças menores de 1 ano de idade, 3,6% e 8,9%, respectivamente. Já o déficit estatural mostrou-se maior entre as crianças de 3 anos de idade (12,0%). A variável renda mensal per capita apresentou, em todos os índices analisados, níveis de prevalência de déficit inversamente proporcionais ao aumento da renda (Tabela 1).
O sobrepeso e a obesidade foram mais prevalentes em crianças do sexo masculino (10,1% e 7,0%), pertencentes às famílias com níveis de renda intermediários, de ½ a 1 salário mínimo per capita (10,9% e 6,2%) e de 1 a 5 salários mínimos per capita (11,1% e 7,4%), residentes na zona urbana (10,3% e 6,6%) e nas regiões Sul, Centro-Oeste e Sudeste (12,7%, 11,0% e 10,6% para o sobrepeso e 5,7%, 6,2% e 7,3% para a obesidade, respectivamente) (Tabela 1).
Destaca-se ainda a baixa prevalência de sobrepeso e obesidade em crianças de cor/raça amarela (3,1% e 0,0%) e a acentuada prevalência de obesidade nas crianças indígenas (10,0%) e sobrepeso nas de cor/raça branca (10,8%) (Tabela 1).
No modelo de regressão logística binária (Tabela 2), observou-se que todas as categorias de cor/raça, com exceção da preta para o déficit estatural e da amarela, para ambos os déficits (ponderal e estatural), apresentaram maiores chances do desenvolvimento dos déficits nutricionais do que a cor/raça branca. As maiores chances de apresentar algum tipo de déficit foram das crianças indígenas, sendo esta quase o dobro para o déficit estatural (OR = 1,754; IC95% 1,714-1,794).
Em relação às crianças com 4 anos de idade, todas as crianças das outras idades obtiveram maiores chances de apresentar déficits, destacando-se aquelas com menos de 1 ano de idade para o déficit ponderal e as com 3 anos para o déficit estatural. A variável renda continuou demonstrando associação inversamente proporcional aos déficits ponderal e estatural, indicando que quanto menor o nível de renda maior a chance de a criança desenvolver alguma situação de carência nutricional, sendo esta quase dez vezes maior para o grupo de até ¼ de salário mínimo para o déficit estatural (OR = 9,568; IC95% 9,106-10,052) e quase quatro vezes maior para o déficit ponderal (OR = 3,493; IC95% 3,437-3,549) (Tabela 2).
Pode-se inferir ainda que crianças de todas as regiões brasileiras apresentaram maiores chances de déficits do que aquelas residentes na região Sul, com destaque especial para a região Norte, cujas chances são quase o dobro comparadas à região Sul (baixo peso – OR = 1,908; IC95% 1,876-1,941 e baixa estatura – OR = 1,901; IC95% 1,886-1,917) (Tabela 2).
No modelo de regressão logística multinomial (Tabela 3), observou-se que o sexo masculino, em comparação ao feminino, todas as faixas de idade, exceto 3 anos para a obesidade, em relação às crianças com 4 anos de idade e a área urbana em relação à rural, obtiveram maiores razões de chance de desenvolver sobrepeso e obesidade. Todas as macrorregiões obtiveram menores razões de chance de desenvolver o sobrepeso e maiores razões de chances de apresentar a obesidade em relação à região Sul.
Para efeito de convergência do modelo de regressão logística multinomial, como a categoria amarela da variável cor/raça não apresentou contagem de crianças com obesidade, esta foi agrupada à categoria parda, tendo em vista a semelhança do padrão do estado nutricional das crianças entre as duas. Após este ajuste de agrupamento dos dados, todas as categorias obtiveram menores razões de chance de desenvolver o sobrepeso e a obesidade do que a cor/raça branca, com exceção da obesidade para as crianças indígenas (OR = 1,893; IC95% 1,836-1,952) (Tabela 3).
Os resultados obtidos por meio da análise de correspondência (Figura 1) estiveram em consonância com aqueles apresentados quando da aplicação dos modelos de regressão logística. Para a classificação magreza (déficit pondero-estatural), observou-se maior relação com as crianças oriundas das regiões Norte e Nordeste, pertencentes às famílias com menores níveis de renda per capita (até ¼ de salário mínimo e de ¼ a ½ salário mínimo) e de cor/raça preta.
Análise de correspondência aplicada ao índice Peso-para-estatura e variáveis sociodemográficas em crianças menores de 5 anos. Brasil, 2009.
No quadrante superior esquerdo da Figura 1, o sobrepeso mostrou-se mais relacionado às crianças das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, do sexo masculino, residentes no estrato urbano do país, de cor/raça branca, com 3 anos de idade e pertencentes às famílias com faixas de renda per capita intermediárias (1/2 a 1 salário mínino e de 1 a 5 salários mínimos).
Cabe ainda destacar a posição das crianças menores de 1 ano de idade e das indígenas, que se situaram entre a obesidade e a magreza, revelando elevados percentuais destes dois distúrbios nestes grupos sociais.
A Figura 2 refere-se à análise de correspondência realizada entre o índice Peso-para-estatura e as Unidades da Federação. Os estados que mais se associaram a magreza foram: Roraima, Maranhão, Amapá, Amazonas, Alagoas, Pernambuco e Distrito Federal, corroborando o já exposto anteriormente, tendo em vista que a maioria destes Estados se situam nas regiões Norte e Nordeste. Enquanto que os que mais se relacionaram com o sobrepeso foram: Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Minas Gerais, Goiás e Ceará. Observa-se que a maior parte das Unidades da Federação que se associaram ao sobrepeso estão situadas no Sudeste, Sul e Centro-Oeste, com exceção apenas dos dois estados do Nordeste. No tocante à obesidade, os estados que mais obtiveram associação foram: Rio de Janeiro, Mato Grosso, Ceará, Alagoas, Amazonas e Amapá.
Análise de correspondência aplicada ao índice Peso-para-estatura e Unidades da Federação em crianças menores de 5 anos. Brasil, 2009.
Discussão
Os principais resultados do presente estudo demonstraram que as situações de déficits nutricionais em crianças estão altamente atreladas às condições socioeconômicas as quais estas encontram-se inseridas. Em contrapartida, as distribuições do sobrepeso e da obesidade demonstraram caráter bem mais complexo, apresentando prevalências heterogêneas e situando-se nos mais distintos grupos populacionais.
Avaliando a tendência de evolução do retardo estatural em menores de 5 anos no Brasil, Batista Filho e Rissin44. Batista Filho M, Rissin A. A transição nutricional no Brasil: tendências regionais e temporais. Cad Saude Publica 2003; 19(Supl. 1):181-191. demonstraram o acentuado declínio do déficit estatural no período de 1975, 1989 e 1996, entretanto, com maiores prevalências no estrato rural em relação ao urbano e nas regiões Norte e Nordeste quando comparadas ao Centro-Sul. No presente estudo, a região Norte apresentou níveis de déficit tanto ponderal quanto estatural bem elevados em relação às demais regiões. No entanto, a região Nordeste em termos de déficit estatural apresentou percentual semelhante aos registrados nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, o que demonstra que embora mais lentamente do que nas macrorregiões situadas no Centro-Sul do país, a Região Nordeste vem conseguindo melhorar seus níveis de nutrição infantil.
Monteiro et al.2020. Monteiro CA, Conde WL, Konno SC, Lima ALL, Silva ACF, Benicio MHDA. Avaliação antropométrica do estado nutricional de mulheres em idade fértil e crianças menores de cinco anos. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher – PNDS 2006: dimensões do processo reprodutivo e da saúde da criança. Brasília: MS; 2009. p. 214-230. corroboraram os achados do presente estudo ao identificar risco elevado de exposição da população de menores de 5 anos à desnutrição apenas na região Norte, sendo moderado e muito semelhante nas demais macrorregiões do País, frisando ainda a redução substancial no risco de desnutrição infantil particularmente na região Nordeste entre 1996 e 2006.
Mesmo reconhecendo que diversos fatores exercem impacto no estado nutricional e, mais especificamente, no crescimento infantil, vem sendo discutida a influência dos programas de transferência condicionada de renda considerando que uma proporção importante dos recursos transferidos é destinada à compra de alimentos, e também por demandarem cuidados com a saúde devido às condicionalidades existentes nestes programas2121. Burlandy L. Transferência condicionada de renda e segurança alimentar e nutricional. Cien Saude Colet 2007; 12(6):1441-1451..
Avaliando o impacto do programa de transferência de renda Bolsa Família sobre a desnutrição infantil ao utilizarem dados coletados no inquérito “Chamada Nutricional 2005” realizado no semiárido brasileiro, Monteiro et al.2222. Monteiro CA, Conde WL, Konno SC. Análise do inquérito Chamada Nutricional 2005. In: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, organizador. Chamada Nutricional: um estudo sobre a situação nutricional das crianças no semi-árido brasileiro. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2006. p. 29-36., a partir de estimativas ajustadas de prevalência de déficits de estatura-para-idade, identificaram que, para o total de crianças menores de 5 anos de idade, a participação no programa resultaria em uma redução de quase 30% na frequência da desnutrição.
Especificamente em famílias de baixa renda, o impacto do Programa Bolsa Família, por exemplo, vem se traduzindo em maior gasto domiciliar com alimentação, maior disponibilidade de alimentos in natura ou minimamente processados e maior disponibilidade de alimentos que usualmente diversificam e melhoram a qualidade nutricional da dieta, tais como carnes, tubérculos e hortaliças2323. Martins APB. Impacto do Programa Bolsa Família sobre a aquisição de alimentos em famílias brasileiras de baixa renda [tese]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2013.. Reflexos destes programas poderiam estar influenciando positivamente no perfil do estado nutricional das crianças nordestinas, tendo em vista que esta região comporta o maior número de famílias beneficiárias do programa.
Contudo, deve-se considerar que essa maior disponibilidade de alimentos pode influenciar no aumento de peso em crianças de maneira não adequada. A tendência observada no Brasil de substituir refeições tradicionais baseadas em alimentos in natura ou minimamente processados por alimentos ultraprocessados vem trazendo prejuízos à saúde da população. Alimentos ultraprocessados possuem maior densidade energética e maiores teores de açúcar, gorduras em geral, gordura saturada e gordura trans, e, ainda, menores teores de fibras e potássio2424. Louzada MLC, Martins APB, Canella DS, Baraldi LG, Levy RB, Claro RM, Moubarac JC, Cannon G, Monteiro CA. Alimentos ultraprocessados e perfil nutricional da dieta no Brasil. Rev Saude Publica 2015; 49(38):1-11..
Essa discussão evidencia um desafio emergente para a saúde coletiva: promover intervenções educativas em saúde, mais especificamente em Educação Alimentar e Nutricional (EAN), que ao compreender o comportamento alimentar como resultado de relações sociais e históricas, possa superar suas raízes biomédicas2525. Mancuso AMC, Vincha KRR, Santiago DA. Educação Alimentar e Nutricional como prática de intervenção: reflexão e possibilidades de fortalecimento. Physis 2016; 26(1):225-249., e promover a prática autônoma e voluntária de hábitos alimentares saudáveis2626. Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Marco de Referência de Educação Alimentar e Nutricional para as Políticas Públicas. Brasília: Ministério da Saúde; 2012..
O efeito das condições socioeconômicas sobre o crescimento infantil tem sido observado em diferentes contextos na população brasileira e já apresenta relevante arcabouço na literatura que confirma essa relação1111. Monteiro CA, Benicio MHDA, Conde WL, Konno S, Lovadino AL, Barros AJD, Victora CG. Narrowing socioeconomic inequality in child stunting: the Brazilian experience, 1974-2007. Bull World Health Organ 2010; 88(4):305-311.,2727. Menezes RCE, Lira PIC, Leal VS, Oliveira JS, Santana SCS, Sequeira LAS, Rissin A, Batista Filho M. Determinantes do déficit estatural em menores de cinco anos no Estado de Pernambuco. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1079-1087.
28. Monteiro CA, Benicio MHDA, Konno SC, Silva ACF, Lima ALL, Conde WL. Causas do declínio da desnutrição infantil no Brasil, 1996-2007. Rev Saude Publica 2009; 43(1):35-43.
29. Lima ALL, Silva ACF, Konno SC, Conde WL, Benicio MHDA, Monteiro CA. Causas do declínio acelerado da desnutrição infantil no Nordeste do Brasil (1986-1996-2006). Rev Saude Publica 2010; 44(1):17-27.-3030. Ramos CV, Dumith SC, César JA. Prevalence and factors associated with stunting and excess weight in children aged 0-5 years from the Brazilian semi-arid region. J Pediatr 2015; 91(2):175-182.. A renda familiar apresenta frequente associação inversa e significativa com as situações de déficits nutricionais. Utilizando dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS – 1996 e 2006), Monteiro et al.2828. Monteiro CA, Benicio MHDA, Konno SC, Silva ACF, Lima ALL, Conde WL. Causas do declínio da desnutrição infantil no Brasil, 1996-2007. Rev Saude Publica 2009; 43(1):35-43. identificaram a melhoria no poder aquisitivo das famílias como determinante responsável por 21,7% no declínio total da prevalência de desnutrição, em crianças menores de 5 anos, observado no Brasil entre 1996 e 2006.
Os dados do presente estudo revelaram maiores prevalências de déficits nutricionais em crianças do sexo masculino em detrimento daquelas do feminino. Outros trabalhos com níveis de agregação mais específicos também encontraram resultados semelhantes2727. Menezes RCE, Lira PIC, Leal VS, Oliveira JS, Santana SCS, Sequeira LAS, Rissin A, Batista Filho M. Determinantes do déficit estatural em menores de cinco anos no Estado de Pernambuco. Rev Saude Publica 2011; 45(6):1079-1087.,3131. Vitolo MR, Gama CM, Bortolini GA, Campagnolo PDB, Drachler ML. Alguns fatores associados a excesso de peso, baixa estatura e déficit de peso em menores de 5 anos. J Pediatr 2008; 84(3):253-262.. Os autores de um estudo sugerem que os meninos parecem ser mais vulneráveis à desnutrição em ambiente desfavorável ao crescimento3131. Vitolo MR, Gama CM, Bortolini GA, Campagnolo PDB, Drachler ML. Alguns fatores associados a excesso de peso, baixa estatura e déficit de peso em menores de 5 anos. J Pediatr 2008; 84(3):253-262..
No que concerne à elevada prevalência de déficits ponderais e, principalmente, estaturais em crianças indígenas, assim como no presente estudo, pesquisas realizadas em distintas aldeias e comunidades indígenas do país vêm apresentando resultados que revelam prevalências, principalmente, de baixa estatura bem acima da média nacional3232. Santos Junior MS. Consequências de um encontro: a insegurança alimentar das populações indígenas brasileiras e a relação de contato com a sociedade nacional. In: Taddei JAAC, Viana K, Vitalle MSS, organizadores. Jornadas cientificas do NISAN: Núcleo Interdepartamental de Segurança Alimentar e Nutricional 2008/2009. Barueri: Minha Editora; 2013. p. 79-98.,3333. Leite MS. Transformação e persistência: antropologia da alimentação e nutrição em uma sociedade indígena amazônica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.. Contudo, embora os registros de desnutrição, de modo geral, caracterizem os perfis antropométricos infantis entre os povos indígenas, o aumento de crianças com obesidade nesta população vem merecendo destaque especial. Mondini et al.3434. Mondini L, Rodrigues DA, Gimeno SGA, Baruzzi RG. Estado nutricional e níveis de hemoglobina em crianças Aruak e Karibe – povos indígenas do Alto Xingu, Brasil Central, 2001- 2002. Rev Bras Epidemiol 2009; 12(3):469-477., avaliando o estado nutricional de crianças indígenas do Alto Xingu, e Kuhl et al.3535. Kühl AM, Corso ACT, Leite MS, Bastos JL. Perfi l nutricional e fatores associados à ocorrência de desnutrição entre crianças indígenas Kaingáng da Terra Indígena de Mangueirinha, Paraná, Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(2):409-420., em estudo de perfil nutricional em crianças indígenas Kaingáng, também diagnosticaram acentuado percentual de sobrepeso assim como o observado no presente estudo. Os autores ainda ressaltaram que esses achados não se tratam de casos isolados no contexto indígena, frisando que estudos recentes vêm identificando casos de sobrepeso entre crianças de diversas etnias indígenas.
A ocidentalização da dieta, marcada pela substituição de hábitos alimentares tradicionais e a incorporação de práticas da população urbana, principalmente em relação aos alimentos industrializados, assim como a redução nos níveis de atividade física, podem representar mudanças no estilo de vida dos povos indígenas que estariam indicando um processo de transição alimentar e nutricional nesta população, possivelmente resultando em importantes repercussões ao perfil epidemiológico destes povos no futuro3636. Castro TG, Schuch I, Conde WL, Veiga J, Leite MS, Dutra CLC, Zuchinali P, Barufaldi LA. Estado nutricional dos indígenas Kaingáng matriculados em escolas indígenas do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saude Publica 2010; 26(9):1766-1776.,3737. Boaretto JD, Molena-Fernades CA, Pimentel GGA. Estado nutricional de indígenas Kaingang e Guarani no estado do Paraná, Brasil. Cien Saude Colet 2015; 20(8):2323-2328..
No presente estudo, ainda pode-se observar que, quanto à faixa etária, a prevalência de déficit foi maior em crianças menores de 1 ano em relação a quase todas as outras idades, exceto para crianças de 1 e 3 anos no índice estatura-para-idade. O início da desnutrição normalmente ocorre entre o quarto e o sexto mês de vida da criança, quando a transição de alimentos complementares pode ser inadequada em qualidade e quantidade, além de expor as crianças às infecções, especialmente as diarreias, aumentando ainda mais a vulnerabilidade destes grupos etários3838. World Health Organization. Multicentre Growth Reference Study Group. Complementary feeding in the WHO Growth Reference Study. Acta Paediatr 2006; 95(Supl. 450):27-37.,3939. Souza MM, Figueroa Pedraza D, Menezes TN. Estado nutricional de crianças assistidas em creches e situação de (in)segurança alimentar de suas famílias. Cien Saude Colet 2012; 17(12):3425-3436..
As maiores velocidades de crescimento do peso e estatura ocorrem em dois estágios da vida de um indivíduo, nos primeiros dois anos de idade e na adolescência, sendo, o primeiro, um período mais vulnerável aos distúrbios de crescimento4040. Spyrides MHC, Struchiner CJ, Barbosa MTS, Kac G. Efeito das práticas alimentares sobre o crescimento infantil. Rev Bras Saude Mater Infant 2005; 5(2):145-153.. Quando um agravo à saúde da criança instala-se nesta faixa etária pode comprometer tanto o peso quanto o comprimento. A recuperação de déficit ponderal pode ocorrer completamente, sem prejuízo ao peso esperado segundo o potencial genético do indivíduo. Já a recuperação completa de déficits estaturais apresenta maior complexidade e ainda pode refletir em consequências importantes em fase posterior da vida, como o desencadeamento de doenças crônicas na idade adulta4141. Yanomoto RM, Lopes FM, Pinto MMS, Ito RKL, Iversen R, Cunha SR. Retardo de crescimento secundário à desnutrição no segundo ano de vida: há recuperação até a idade escolar? Pediatria 2001; (1):37-44.,4242. Hoffman DJ. Growth retardation and metabolic programming: implications and consequences for adult health and disease risk. J Pediatr 2014; 90(4):325-328..
Um achado importante no presente estudo foi a forma como o sobrepeso e a obesidade apresentaram-se distribuídos nos mais distintos grupos populacionais, o que demonstra seu caráter heterogêneo e complexo. Estudo realizado a partir de dados da PNDS – 2006 também revelou elevadas prevalências de excesso de peso em crianças menores de 5 anos de todas as macrorregiões brasileiras, com maiores percentuais para a região Sul (9,3%) e menores para a região Norte (5,1%)4343. Meller FO, Araújo CLP, Madruga SW. Fatores associados ao excesso de peso em crianças brasileiras menores de cinco anos. Cien Saude Colet 2014, 19(3):943-955..
Ainda no tocante à distribuição espacial, o estrato urbano também apresentou prevalências sensivelmente mais elevadas de excesso de peso em relação ao rural. Esse padrão pode ser particularmente atribuído às diferenças no acesso à alimentação, serviços de saúde, padrões de atividade física e normas sociais entre estes estratos domiciliares4444. Wang Y. Cross-national comparison of childhood obesity: the epidemic and the relationship between obesity and socioeconomic status. Int J Epidemiol 2001; 30(5):1129-1136..
O comportamento heterogêneo do sobrepeso e da obesidade, dentre as diversas regiões e grupos populacionais no Brasil, retrata a enorme diversidade física, socioeconômica e cultural do país. Tornando-se importante desconstruir a idéia da obesidade enquanto uma enfermidade própria dos países desenvolvidos ou de grupos socialmente mais favorecidos4545. Ferreira VA, Magalhães R. Obesidade no Brasil: tendências atuais. Rev Port Saúde Pública 2006; 24(2):71-81..
No presente estudo, observou-se a associação da obesidade a estados da Federação que outrora a desnutrição infantil destacava-se isoladamente enquanto distúrbio nutricional. Estados das regiões Norte e Nordeste, reconhecidamente de menor poder econômico, tais como Alagoas, Ceará, Amazonas e Amapá demonstraram-se associados a esta condição.
O incremento da obesidade em grupos com menores níveis de renda parece refletir o impacto da falta do conhecimento em torno dos danos relacionados à esse problema, bem como da desigualdade no acesso à prática de atividade física e à uma nutrição adequada em qualidade e quantidade, o que impõe a esses grupos um padrão de alimentação precário. Assim, é cada vez mais frequente observar a adesão a uma alimentação mais saudável e prática de atividades físicas em grupos socialmente mais favorecidos4545. Ferreira VA, Magalhães R. Obesidade no Brasil: tendências atuais. Rev Port Saúde Pública 2006; 24(2):71-81..
Por outro lado, embora o declínio da desnutrição já seja evidente, sua prevalência ainda persiste no Brasil sob as formas mais severas, especialmente o déficit de estatura por idade, sendo este mais grave nas regiões Norte, mas também presente em bolsões de pobreza nas demais regiões, o que caracteriza a desnutrição como um fruto da desigualdade social e pobreza do país4646. Coutinho JG, Gentil PC, Toral N. A desnutrição e obesidade no Brasil: o enfrentamento com base na agenda única da nutrição. Cad Saude Publica 2008; 24(Supl. 2):332-340..
Deve-se ressaltar ainda que, considerando o déficit estatural, que reflete a cronicidade da desnutrição, em todas as subcategorias analisadas no presente estudo encontrou-se percentuais mais altos do que aquele esperado em uma população saudável de referência, que é de 2,3%1717. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Orientações para a coleta e análise de dados antropométricos em serviços de saúde: Norma Técnica do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional - SISVAN. Brasília: MS; 2011..
A persistência desse déficit na população brasileira, coexistindo com a crescente e difusa distribuição da obesidade, remete ao fenômeno da polarização epidemiológica, e indica que, embora venha ocorrendo de maneira acelerada, o processo de transição nutricional no Brasil ainda não se concluiu. Convive-se com a redução da desnutrição associada à diminuição na ocorrência de doenças transmissíveis, caracterizando a terceira fase da transição nutricional denominada “recuo da fome”. Contudo, concomitantemente, observa-se o aumento da obesidade e das DCNT correlacionadas, tanto nas populações de baixa renda, como naquelas de maior poder aquisitivo, identificando a quarta fase da transição nutricional4747. Popkin BM. An overview on the nutrition transition and its health implications: the Bellagio meeting. Public Health Nutr 2002; 5(1A):93-103..
Uma possível limitação deste estudo refere-se ao percentual (3,8%) de crianças excluídas da amostra por apresentarem valores de escore-z biologicamente implausíveis (outliers). A OMS reconhece como de boa qualidade os inquéritos antropométricos cuja proporção de valores biologicamente implausíveis não ultrapasse 1% do total de indivíduos estudados4848. World Health Organization (WHO). Physical Status: The use and interpretation of Anthropometry. Geneva: WHO; 1995. WHO technical reports series.. Contudo, mesmo diante desta limitação, deve-se ressaltar a importância do presente estudo, tendo em vista a reduzida quantidade de pesquisas que utilizam bases de dados populacionais tão abrangentes quanto a POF, que permite a investigação de aspectos antropométricos e nutricionais em nível territorial, não se restringindo apenas às realidades locais ou de grupos específicos. Destaca-se ainda que não houve perda seletiva significativa relacionada às variáveis explicativas, o que permite fazer as inferências estatísticas sem perda de poder dos testes.
Os resultados deste trabalho evidenciam que, paralelamente ao fenômeno da polarização epidemiológica, vive-se no Brasil uma polarização epidemiológica nutricional, demarcada pela permanência da desnutrição em determinadas regiões e grupos populacionais e pela difusa distribuição do excesso de peso, que vem atingindo indiscriminadamente os mais diversos grupos da população brasileira. Nesse sentindo, para a saúde coletiva o presente estudo apresenta uma agenda dualizada, que visa buscar reduzir as carências nutricionais e, consequentemente, a desnutrição, mas que enfoque a EAN como estratégia de promover hábitos alimentares saudáveis desde a infância, modificando assim o perfil nutricional, epidemiológico e de mortalidade da população.
Reitera-se ainda a necessidade da realização de inquéritos que investiguem o estado nutricional em nível populacional, com o intuito de garantir o monitoramento regular, além de identificar grupos populacionais mais vulneráveis, sejam aos distúrbios carenciais ou de excesso. A utilização de tratamentos metodológicos inovadores também permite um novo olhar acerca dos fatores associados aos perfis nutricionais encontrados. A sistematização desse monitoramento mais frequente e específico possibilitará um maior embasamento na formulação de políticas de saúde voltadas à alimentação e nutrição.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Out 2017
Histórico
- Recebido
03 Jul 2016 - Aceito
28 Set 2016 - Revisado
30 Set 2016