SUS: um novo capítulo de lutas

Ronaldo Teodoro dos Santos Sobre o autor

Nunca o SUS foi tão grande em sua história e, no entanto, nunca esteve tão frágil. A paráfrase ao pensamento do professor Gastão Wagner nos remete à tese fundadora da Reforma Sanitária Brasileira, de que o exercício e a expansão da democracia é premissa incontornável à realização e fortalecimento do SUS. A veracidade histórica desse argumento é atestada por contraste flagrante com o tempo presente.

Pelo argumento da inevitabilidade histórica, a razão privada mercantil vem subordinando o bem-estar social à moldura da austeridade econômica, garantindo-a a partir da autonomização dos órgãos constitucionais. Esta oligarquização do poder nega frontalmente a tradição democrática que se realiza na participação política continuada a qual o SUS foi gestado. Tal problema é corrosivo não apenas à realização da saúde enquanto res pública, mas está na base da contrarrevolução neoliberal que aterroriza a previdência, o trabalho e a educação.

Amparadas por esta sombra, as correntes do antissanitarismo no Brasil ganharam poder de irradiação, a qual é preciso localizar seus lugares de força e dinamismo. No relatório do Banco Mundial (2017), a ideologia do ajuste fiscal referendou o teto de gastos definido na EC 95/16 e prescreveu a criação de novas receitas, via captação de recursos na iniciativa privada e terceirização do funcionalismo. Operando uma inversão de valores, esta economia política converte a universalidade e a gratuidade dos serviços em resíduos históricos de regressividade e privilégios, e evoca as parcerias privadas como arranjos superiores à administração direta estatal. Os ecos desta narrativa assumem temporalidade própria em centros nacionais como o Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças.

A constituição de um bloco político capaz de resistir a esse “poderoso movimento político e cultural”, como destaca Gastão Wagner, deve, além de identificar as correntes do antissanitarismo, operar sobre os lugares que lhe conferem legitimação pública. Neste percurso, nos parece imperativo: (i) investigar os sentidos da comunicação pública para o SUS, (ii) e esclarecer o vínculo entre o trabalhismo organizado, a mercantilização da saúde e a luta sanitária. A inquietação política que unifica estas agendas é a preocupação com a constituição de uma base social de apoio ao SUS.

A primeira agenda se ocupa do silenciamento que uma mídia não democrática é capaz de impor às evidências da “superioridade dos sistemas públicos sobre os sistemas privados”. A este respeito, pesquisas de opinião identificam um fato curioso: a percepção positiva dos usuários diretos do SUS é contraposta pela forte rejeição entre os que declaram não ter tido experiência alguma de utilização do sistema11. Schiavinatto F. Sistema de indicadores de percepção social (SIPS). Brasília: Ipea; 2011.. Os resultados sugerem que na ausência de um contato tangível com os serviços públicos de saúde a formação da opinião fica a cargos dos editoriais midiáticos, onde prevalece o recorte negativo.

O SUS não é impermeável ao papel político que a comunicação cumpre nas democracias. A mídia tradicional se autodeclara independente do mundo da política, mas atua em um espaço de representação de interesses ao disseminar perspectivas de grupos específicos, caracterizando, no caso da saúde, um verdadeiro lobbie antissanitarista22. Lima VA. Informação e Saúde Pública: a incapacidade do estado. In: Lima VA. Regulação das Comunicações. História, poder e direitos. São Paulo: Paulus; 2011. p. 173-204.. O sentido político do SUS não se formará com peças publicitárias ou no acesso a bancos de dados da assistência, mas se inscrevendo nos movimentos ativos de cidadania.

A segunda dimensão que evidencia o deslocamento da base social de apoio ao SUS se revela na cultura corporativa de direitos presente nas relações de trabalho. As reivindicações do campo sindical por planos coletivos privados já encampam 76% desse mercado. Alimentam essa racionalidade econômico-corporativa o desconhecimento da magnitude dos serviços que o SUS realiza na atenção aos acidentes de trabalho, e a baixa integração dos Cerests com os serviços de atenção básica, media e alta complexidade. O diálogo precário entre sanitaristas e sindicalistas produz muitas externalidades. Um programa de formação política que desconstrua essa disjunção histórica será fundamental à reposição do sanitarismo no centro da vida democrática brasileira.

Conclusão

Organiza a reflexão de Gastão Wagner, a elaboração de caminhos à reafirmação do caráter público das politicas de saúde. Ao apontar os sentidos da dinâmica regressiva que agride vorazmente os “espaços de não mercado dentro de economias capitalistas”, procuramos debater caminhos possíveis à plena inscrição do sanitarismo no centro da identidade política do cidadão brasileiro. Visto como síntese de uma direção política, sua formulação abre um mais capítulo de lutas.

Referências

  • 1
    Schiavinatto F. Sistema de indicadores de percepção social (SIPS) Brasília: Ipea; 2011.
  • 2
    Lima VA. Informação e Saúde Pública: a incapacidade do estado. In: Lima VA. Regulação das Comunicações. História, poder e direitos São Paulo: Paulus; 2011. p. 173-204.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2018
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br