Resumo
Os autores analisam a Assistência Farmacêutica (AF) e o acesso a medicamentos no Brasil na perspectiva do princípio da integralidade nos 30 anos do SUS. A partir da sua inclusão no movimento de reforma sanitária, foram selecionados temas relevantes, incluindo a reorientação da AF, a questão de recursos humanos, o conceito de medicamentos essenciais, o uso apropriado de medicamentos, o desenvolvimento tecnológico e a produção industrial e a regulação ética. Com fortes componentes regulatórios e tendo a política nacional de medicamentos como eixo estruturante, as três décadas do SUS são confrontadas entre avanços e retrocessos, considerando a complexidade nacional, as mudanças políticas, econômicas e sociais que impactaram políticas públicas e o acesso a medicamentos, tema que hoje mostra sua importância mesmo nas economias mais ricas do mundo, a partir de foros de discussão relacionados com Saúde Global. As conquistas ao longo do tempo são destacadas, considerando a preocupação decorrente do regime fiscal que compromete as áreas sociais.
Assistência Farmacêutica; Política Nacional de Medicamentos; Medicamentos Essenciais; Integralidade em Saúde; Sistema Único de Saúde
Introdução
Ao olharmos para um Brasil contemporâneo, conquistas sociais relevantes colocadas em risco, é importante voltar para 1988 e lembrar o que significaram estes 30 anos da nossa Constituição Cidadã, do SUS e do direito à saúde com acesso universal. A transição entre os 20 anos de regime militar e a volta da democracia ensejou a organização de um movimento progressista, suprapartidário, denominado de Reforma Sanitária e que pensou e idealizou a construção de um país justo, equânime e com justiça social11. Escorel S. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999..
Nesse movimento, a Assistência Farmacêutica (AF) foi incluída e viveu alterações profundas ao longo dos últimos trinta anos que pretendemos percorrer neste artigo (Quadro 1). É nesse contexto, e com marcos principais, que pretendemos discutir temas selecionados, tendo como eixo a Política Nacional de Medicamentos com suas diretrizes e prioridades e destacando, entre os princípios do SUS, a integralidade.
Eventos selecionados da assistência farmacêutica no Brasil segundo decênios. Brasil, 1988-2017.
Em determinados momentos vamos nos referir a AF e em outros ao acesso a medicamentos, considerando que são dois conceitos inseridos nos princípios do SUS e, na agenda internacional, que devemos também considerar como um diferencial importante ao longo do tempo.
Considerando as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) em trabalhos anteriores, ressaltamos a importância das discussões para influenciar e pautar os diferentes países na implementação das ações voltadas a assegurar o acesso de suas populações aos medicamentos22. Bermudez J. Acesso a medicamentos: direito ou utopia? Rio de Janeiro: E-papers; 2014.,33. Bermudez J. Contemporary challenges on access to medicines: beyond the UNSG High-Level Panel. Cien Saude Colet 2017; 22(8):2435-2439.. Na atualidade e com ampla revisão da literatura, a OMS aponta uma série de desafios relacionados com assegurar o acesso a tecnologias em saúde, diversos dos quais serão discutidos neste trabalho44. World Health Organization (WHO). Addressing the global shortage of, and access to, medicines and vaccines. Geneva: WHO; 2013. Report No: EB142/13..
Comissões de inquérito, Decretos e Leis, reorientação das políticas públicas, propostas tecnológicas não conseguiram ecoar na ideia de uma indústria farmacêutica estatal, que receberia a denominação de Farmoquímica Brasileira S.A (Farmobras S.A), que vinha sendo objeto de discussão ainda no regime militar. Entretanto, uma série de propostas e iniciativas impactaram de maneira definitiva a AF no SUS, ao longo de três décadas.
Reorientação da assistência farmacêutica – o paradigma da integralidade
Essa Diretriz aglutinou elementos estratégicos e estruturantes para consolidação do SUS. Como nominado, na forma de “reorientação”, isso já traz em si um significado inovador, para “dar nova orientação ou novo sentido” ao processo iniciado e em evolução.
A expressão “assistência farmacêutica” cunhou-se em um contexto focal para o abastecimento de medicamentos. Embora o decreto55. Brasil. Presidência da República. Decreto no 68.806, de 25 de Junho de 1971. Institui a Central de Medicamentos (CEME). Diário Oficial da União 1971; 26 jun. criador da Ceme contivesse o termo AF, não havia até a promulgação da PNM, uma clara definição de seu escopo de ação, objetivos e o conjunto de atividades que a compunha. Logo, a reorientação da AF da PNM correspondeu a proposta de construção concreta de AF integrada ao SUS. Isso permitiria pavimentar o processo instalado de promoção de cidadania, coerente com os princípios constitucionais do direito à saúde.
A Diretriz Reorientação da Assistência Farmacêutica foi construída numa perspectiva transversal na PNM, produzindo impactos diretos no campo da saúde coletiva66. Vasconcelos DMM, Chaves GC, Azeredo TB, Silva RM. Política Nacional de Medicamentos em retrospectiva: um balanço de (quase) 20 anos de implementação. Cien Saude Colet 2017; 22(8):2609-2614.. Destaca-se que suas prioridades tomam por base o tripé formado pela descentralização, financiamento e ações logísticas77. Brasil. Portaria MS/GM No 3916, de 30 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos. Brasília, DF. Diário Oficial da União 1998; 31 out.. Ademais, também norteou e reforçou o compromisso sanitário dos três níveis de gestão do SUS para com os elementos constituintes do campo da AF.
As características inerentes à Diretriz em sua constituição histórica, ao longo dos três decênios, refletem o cenário social e político brasileiro, reproduzindo o desenvolvimento sanitário presente nestes intervalos (Quadro 2).
Eventos selecionados relacionados a reorientação da assistência farmacêutica, desenvolvimento e capacitação de recursos humanos no Brasil segundo decênios. Brasil, 1988-2018.
Nos 10 primeiros anos do SUS, a AF foi caracterizada pela transição entre a extinção da Ceme e a vigência da PNM. Nessa trajetória inicial reimprimiu-se o Programa Farmácia Básica, marcado pelo envio de kits de medicamentos a municípios pequenos. Isso ainda refletia o caráter centralizador, com problemas e críticas semelhantes ao que antes havia verificado no período da Ceme88. Cosendey MAE, Bermudez JAZ, Reis ALA, Silva HF, Oliveira MA, Luiza VL. Assistência farmacêutica na atenção básica de saúde: a experiência de três estados brasileiros. Cad Saude Publica 2000; 16(1):171-182..
Entre 1998 e 2007, identifica-se princípios coerentes com o SUS, com foco na organização da AF pautada na descentralização e na busca de recursos para acesso a medicamentos. Alterações nas modalidades licitatórias e sistemas de aquisição eficientes foram introduzidos, o que impelia os entes subnacionais ao desafio de fortalecer sua capacidade de gestão e de planejamento.
Ainda no período, dois momentos centrais se destacaram. O primeiro, na recomposição do financiamento do SUS, dividido em blocos, que permitiu à AF um novo status com um bloco particular. Isso não trouxe grande expansão nos recursos para a AF, pois dados mais recentes dos gastos do governo federal, entre 2010 e 2016, mostraram crescimento médio de 21%, quando somados os três componentes de dispensação do bloco99. Vieira FS. Integralidade da assistência terapêutica e farmacêutica: um debate necessário. Rev Saude Publica 2017; 51:126., onde o Componente Básico foi o único que sofreu queda.
Outra característica se refere à fragmentação no cuidado com base na organização de serviços farmacêuticos segundo os três componentes de dispensação de medicamentos. Os modelos de organização e gestão dos serviços, com foco no produto e não no serviço ao paciente, dificultam a introdução do cuidado ao usuário e que, certamente, compromete a integralidade no SUS1010. Rover MRM, Vargas-Peláez CM, Farias MR, Leite SN. Da organização do sistema à fragmentação do cuidado: a percepção de usuários, médicos e farmacêuticos sobre o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica. Physis 2016; 26(2):691-711..
O segundo evento foi a introdução do Programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB), que ao longo de sua evolução passou por diversos arranjos, tendo na sua parceria com o comércio farmacêutico sua principal forma de consolidação e expansão. Esse modelo representou um retorno ao caráter centralizador do Ministério da Saúde (MS) na provisão de medicamentos. Trouxe à tona discussões sobre sua interlocução com o modelo público no SUS, traz dúvidas sobre sua ação complementar ou concorrencial, além dos seus maiores custos comparados em cenários públicos estudados1111. Silva RM, Caetano R. “Farmácia Popular do Brasil” Program: characterization and evolution between 2004 and 2012. Cien Saude Colet 2015; 20(10):2943-2956.. Ainda, podemos arguir em que medida esse modelo, com ênfase no consumo de medicamentos como promotor de acesso a medicamentos, dialoga com os nexos da integralidade, quando não se identifica no PFPB ações de indução ao uso apropriado, acompanhamento farmacoterapêutico, etc.1111. Silva RM, Caetano R. “Farmácia Popular do Brasil” Program: characterization and evolution between 2004 and 2012. Cien Saude Colet 2015; 20(10):2943-2956..
Por fim, o último decênio de 2008 aos dias atuais traz antigos e novos desafios. O fortalecimento no modelo de atenção primária, pela expansão da Estratégia do Saúde da Família introduziu, via Núcleos de Apoio à Saúde da Família, ações relativas à organização das atividades de AF. Isso permitiu integração dos farmacêuticos com os demais profissionais de saúde, com possibilidade de ações, dentre outras, como as voltadas ao uso apropriado de medicamentos, como exemplo do cuidado integral, um valor do SUS.
Outros pontos recentes remetem aos riscos de comprometimento ao funcionamento do SUS, como as medidas de congelamento dos gastos públicos, que certamente contrapõem a garantia do direito à saúde1212. Vieira FS, Benevides RPS. Os impactos do novo regime fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA; 2016..
A extinção dos blocos de financiamento sem aumento nos recursos pode trazer fragilização de áreas internas ao sistema público de saúde que competirão entre si por recursos, como a AF. Esses fatos atuais não permitem ainda avaliar seus reais impactos. No entanto, propomos alguns questionamentos: (1) qual será o papel do MS como regulador, formulador e indutor de políticas públicas? (2) como ficará a situação de municípios brasileiros x sua capacidade de gestão e de financiamento? (3) em que medida a capacidade instalada com densidade tecnológica poderá drenar recursos de outros setores? (4) como lidar com as diferenças regionais tão marcantes no cenário brasileiro?
No cenário histórico após 30 anos do SUS e 20 anos da PNM, a AF historicamente se constituiu como uma área de suprimentos e logística, voltada ao apoio das ações e serviços de saúde, com baixa inserção às práticas sociais de cuidado e prestação de serviços farmacêuticos, dirigidas ao uso correto de medicamentos. Isso remonta aos desafios de se pensar que a Reorientação é um movimento contínuo, vivo e de transformação positiva da realidade e não um fim na letra fria da norma.
A amplitude de atividades e ações também confere a AF caráter polissêmico, semelhante a integralidade. Por isso é preciso conjugar ações concretas nas práticas assistenciais dos profissionais, na organização dos serviços farmacêuticos e nas respostas governamentais sensíveis às necessidades de saúde, à perspectiva de defesa desse valor doutrinário99. Vieira FS. Integralidade da assistência terapêutica e farmacêutica: um debate necessário. Rev Saude Publica 2017; 51:126.,1313. Pinheiro R, Mattos RA, editores. Os Sentidos da Integralidade na atenção e no cuidado à saúde Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ, Abrasco; 2006..
Recursos humanos em assistência farmacêutica
Um dos fatores críticos para os sistemas e serviços de saúde são os recursos humanos. É necessário que estejam disponíveis em quantidade e qualidade para operacionalizar as políticas de saúde. Os guias da OMS e Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) consideram os recursos humanos como um dos componentes chave de uma PNM, levando em conta tanto o desenvolvimento quanto a gestão do trabalho1414. World Health Organization (WHO). How to develop and implement a national drug policy. Geneva: WHO; 2003. Vol. 6.,1515. Organización Panamericana de la Salud (OPS). Conceptos, estrategias y herramientas para una política farmacéutica nacional en las Américas. Washigton: OPS; 2016..
A PNM brasileira tem como uma de suas diretrizes o desenvolvimento de recursos humanos visando a disposição dos mesmos em qualidade e quantidade, chamando a responsabilidade para os três entes federativos à provisão adequada e oportuna dos mesmos (Quadro 2). A atual política cita a necessidade de capacitação em áreas específicas como promoção do uso racional de medicamentos, desenvolvimento tecnológico, assistência farmacêutica e vigilância sanitária1616. Azeredo T. Política Nacional de Medicamentos no Brasil: da estrutura normativa à reflexão dos agentes sobre o processo de implementação [tese]. Rio de Janeiro: Fiouz; 2012..
Azeredo1616. Azeredo T. Política Nacional de Medicamentos no Brasil: da estrutura normativa à reflexão dos agentes sobre o processo de implementação [tese]. Rio de Janeiro: Fiouz; 2012., quando estuda a implementação da política, demonstra que a diretriz em questão foi uma das poucas diretrizes com menos normas publicadas, num contexto de esforços de estabelecimento de normativas para as demais diretrizes, com vistas à sua implementação. Como interpretações possíveis, o autor aponta a baixa importância dada à diretriz e a dificuldade de articulação com o Ministério da Educação para propor as mudanças necessárias1616. Azeredo T. Política Nacional de Medicamentos no Brasil: da estrutura normativa à reflexão dos agentes sobre o processo de implementação [tese]. Rio de Janeiro: Fiouz; 2012.. A situação parece melhorar com a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, com a ampliação do programa Pró-Saúde para a Assistência Farmacêutica, com a publicação da Portaria Nº 2.981/20091717. Brasil. Portaria No 2.981, de 26 de novembro de 2009. (Revogada pela PRT no 1554/GM/MS de 30.07.2013). Aprova o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica. Diário Oficial da União 2009; 27 nov., que estabelecia a utilização de determinada porcentagem de recursos financeiros do Componente Básico da AF, para estruturação e atividades ligadas a educação continuada e com o estabelecimento do programa Qualifar-SUS. Este último, com o objetivo de promover educação permanente, oferece em seu eixo educação cursos presenciais e a distância1818. Brasil. Portaria MS/GM 1.214, de 13 de junho de 2012. Institui o Programa Nacional de Qualificação da Assistência Farmacêutica no âmbito do Sistema Único de Saúde (QUALIFAR-SUS). Diário Oficial da União 2012; 14 jun..
Apesar do quadro exposto acima, pensando no decênio 1998 a 2007, vislumbra-se a importância e o esforço que o Ministério da Saúde empregou, nas últimas duas décadas, após a publicação da PNM. No Quadro 2 verifica-se as diferentes iniciativas do Ministério da Saúde para o fortalecimento da AF mediante capacitação dos recursos humanos envolvidos, principalmente os farmacêuticos1919. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Rede Sentinela - Histórico. Brasília: Anvisa; 2003.,2020. Emmerick IC, Chaves LA, Marin N, Luiza VL. Strengthening the capacity of managers in pharmaceutical services based on Primary Health Care (PHC) at different levels of the health system. Hum Resour Health 2014; 12(1):34.. Para profissionais médicos, destaca-se o Primeiro Curso Nacional sobre o Ensino em Uso Racional de Medicamentos, realizado em 2002, com foco na prescrição médica. É importante também frisar a realização de capacitações locais e regionais.
Entretanto, em contraste com todo o esforço supracitado, ainda persistem situações que precisam de atenção, estratégias e esforços para contorná-las. A concentração de farmacêuticos nas capitais2121. Luiza VL, Oliveira MA, Chaves GC, Bermudez AZ, Flynn MB. Pharmaceutical Policies in Brazil. In: Zaheer-Ud-Din Babar, editor. Pharmaceutical policy in countries with developing healthcare systems. New York: Springer Berlin Heidelberg; 2017., os serviços de farmácia com estrutura inadequada e com falta de pessoal capacitado2222. Lima-Dellamora EC, Caetano R, Osorio-de-Castro CGS. Dispensação de medicamentos do componente especializado em polos no Estado do Rio de Janeiro. Cien Saude Colet 2012; 17(9):2387-2396. e, muitas vezes, a dificuldade de priorizar a capacitação frente a demanda da presença do farmacêutico no serviço, são situações presentes e frequentes2323. Miai ET, Nogueira-Martins MCF. Farmacêuticos na Atenção Básica: um estudo qualitativo sobre necessidades e possibilidades de qualificação dos profissionais para a integralidade do cuidado aos usuários-cidadãos. Bol Inst Saúde 2014; 15(Supl.):71-79.. Ainda, há barreiras que não serão derrubadas apenas com esforços de capacitação.
Medicamentos essenciais – eficácia, efetividade, qualidade e segurança
A trajetória dos medicamentos essenciais (ME) no Brasil, de 1988 a 2018, pode se configurar como uma aproximação da trajetória da própria PNM (Quadro 3).
Eventos selecionados relacionados a seleção e uso apropriado de medicamentos no Brasil segundo decênios. Brasil, 1988-2018.
O princípio da integralidade teve evolução durante o período de construção do SUS. Nos anos 1980-1990 a integralidade era vista como identificação e resposta a necessidades de saúde2424. Kalichman AO, Ayres JRCM. Integralidade e tecnologias de atenção à saúde: uma narrativa sobre contribuições conceituais à construção do princípio da integralidade no SUS. Cad Saude Publica 2016; 32(8):e00183415.. Sob esta égide observou-se a implementação do conceito dos ME como aqueles que satisfariam às necessidades de saúde de uma população2525. World Health Organization (WHO). WHO Expert Committee on The Selection of Essential Drugs. The Selection of Essential Drugs: first report of the WHO Expert Committee. Geneva: WHO; 1977., conceito que preponderou na PNM de 1998, com a adoção e revisão permanente da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename).
Desde 1964 existia uma lista nacional de medicamentos e insumos. Durante a época da Ceme, a Rename era a lista que fundamentava a escolha de medicamentos comprados e distribuídos de forma centralizada. Em 1996, já no escopo da elaboração da PNM, nasceu a primeira lista de ME do Brasil, baseada em evidências, dando início a um intenso processo de revisões consecutivas2626. Osorio-de-Castro CGS, Azeredo TB, Pepe VLE, Lopes LC, Yamauti S, Godman B, Gustafsson LL. Policy Change and the National Essential Medicines List Development Process in Brazil between 2000 and 2014: Has the Essential Medicine Concept been Abandoned? Basic Clin Pharmacol Toxicol 2017; 122(4):402-412..
A partir de 2002, a própria OMS passou a definir ME como aqueles orientados a dar resposta às prioridades sanitárias de uma população2727. World Health Organization (WHO). WHO Perspective: The Selection of Essential Medicines. Geneva: WHO; 2002., mostrando que os conceitos de ‘essencialidade’ e ‘prioridade’ se complementavam. No Brasil, a condução da revisão da lista passou à Comissão Multidisciplinar de Atualização da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (COMARE), com regimento próprio, critérios explícitos de inclusão e exclusão de medicamentos2828. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, RENAME, 2010. Brasília: MS; 2010.. O conceito de ME institucionalizou-se nos entes subnacionais, calcados nas necessidades sanitárias e adaptados às necessidades locais pela implementação das Relações Municipais de ME (Remume) e Estaduais (Resme). A construção da integralidade passava pela efetivação de um sistema hierarquizado, no qual as escolhas locais e estaduais supririam, de forma complementar, as necessidades orientadas pela Rename. A noção de essencialidade – medicamento eficaz e seguro, efetivo no tratamento a que se destina, com qualidade, e custo acessível – refletia a integralidade. Até 2006, duas novas atualizações da lista foram realizadas2626. Osorio-de-Castro CGS, Azeredo TB, Pepe VLE, Lopes LC, Yamauti S, Godman B, Gustafsson LL. Policy Change and the National Essential Medicines List Development Process in Brazil between 2000 and 2014: Has the Essential Medicine Concept been Abandoned? Basic Clin Pharmacol Toxicol 2017; 122(4):402-412..
Nos anos 2000, teve início o descompasso entre o conceito de ME e aquele regendo a lista nacional. Intensificaram-se as pressões para inovação no âmbito do SUS. Com oferta e implantação de novas tecnologias, objetivou-se conduzir o usuário por níveis de atenção, de forma ‘regulada’. As necessidades seriam atendidas, mas no interior de linhas de cuidado, condutoras da oferta no sistema1717. Brasil. Portaria No 2.981, de 26 de novembro de 2009. (Revogada pela PRT no 1554/GM/MS de 30.07.2013). Aprova o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica. Diário Oficial da União 2009; 27 nov.. Ao mesmo tempo, a organização do financiamento da AF passou a balizar a provisão e exercer pressão sobre a seleção. A Rename tornou-se vulnerável à capacidade municipal de abastecimento. Desde a descentralização da AF2929. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Gabinete do Ministro. Portaria no 176, de 08 de março de 1999. Estabelece critérios e requisitos para a qualificação dos municípios e estados ao incentivo à Assistência Farmacêutica Básica e define valores a serem transferidos. Diário Oficial da União 1999; 9 mar.as fragilidades da gestão local já se faziam sentir. Portarias que atrelavam o financiamento do medicamento à sua presença na Rename3030. Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS). Assistência farmacêutica no SUS. Brasília: CONASS; 2011. não conseguiram impedir a aplicação da escolha baseada em evidências, mas fragilizaram o processo hierarquizado que articulava listas locais e lista nacional2727. World Health Organization (WHO). WHO Perspective: The Selection of Essential Medicines. Geneva: WHO; 2002.,3131. Hogerzeil HV. The concept of essential medicines: lessons for rich countries. BMJ 2004; 329(7475):1169-1172., tornando agudos o descompasso e a fragmentação da provisão no SUS.
Dificuldades na integralidade tornaram-se evidentes com a crescente judicialização para acesso a ME, a partir de 2007-2009. Antes, a judicialização do acesso foi marco original e importante para o atingimento do direito fundamental à saúde3232. Ventura M, Simas L, Pepe VLE, Schramm FR. Judicialization of the right to health, access to justice and the effectiveness of the right to health. Physis 2010; 20(1):77-100.; a manutenção da fragmentação do financiamento, entretanto, teve enorme impacto sobre a provisão, de sorte que uma área ‘cinzenta’ não coberta pelo financiamento se ampliasse e impelisse o usuário a buscar a via judicial.
De 2008 a 2010 foram feitas duas publicações importantes – o Formulário Terapêutico Nacional (FTN) – edições referentes à Rename de 2006 e à Rename de 2008. O FTN é uma importante estratégia complementar à lista de ME, pois ajuda a pautar a prescrição e a dar concretude à melhor escolha terapêutica, além de orientar os prescritores na sua formação para a boa prescrição.
A adoção do conceito de ME implica também em ações regulatórias – como ‘limpeza’ do mercado - restrição a registro de medicamentos de valor terapêutico duvidoso3131. Hogerzeil HV. The concept of essential medicines: lessons for rich countries. BMJ 2004; 329(7475):1169-1172.,3333. Wannmacher L. Importância dos Medicamentos Essenciais em Prescrição e Gestão Racionais. Uso Racional de medicamentos: temas selecionados 2012; 2(2):15-20.,3434. Wannmacher L. Seleção de Medicamento. In: Osorio-de-astro CGS, Luiza VL, Castilho SR, Oliveira MA, Marin N, editors. Assistência Farmacêutica: gestão e prática para profissionais de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014. p. 79-88., treinamento de prescritores para o uso racional, seguimento dos medicamentos introduzidos no mercado para coibir uso abusivo e mau uso, além de possibilitar exame da sua efetividade e da segurança no mundo real, entre outras. No entanto, o Brasil não tomou o caminho da restrição e do monitoramento do uso dos medicamentos. Houve, de fato, a introdução dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas a partir de 1997, cujo desenvolvimento se notabilizou a partir de 20023333. Wannmacher L. Importância dos Medicamentos Essenciais em Prescrição e Gestão Racionais. Uso Racional de medicamentos: temas selecionados 2012; 2(2):15-20.. Os protocolos são estratégia crucial no estabelecimento de padrões aceitáveis de uso, pois baseiam-se na melhor evidência. Ocorre que sua implantação se flexibilizou e sua aplicação no SUS tem sido aquém do esperado3535. Camargo IA, Almeida Barros BC, Nascimento Silveira MS, Osorio-de-Castro CGS, Guyatt G, Lopes LC. Gap Between Official Guidelines and Clinical Practice for the Treatment of Rheumatoid Arthritis in São Paulo, Brazil. Clin Ther 2016; 38(5):1122-1133..
Até 2012, a Rename teve seis versões revisadas (apenas as cinco primeiras publicadas), mas sofreu danos importantes com a publicação da Lei 12.4013636. Brasil. Presidência da República. Lei n. 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União 2011; 29 abr., que passou à nova Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) a responsabilidade de incorporar as tecnologias no SUS e de revisar e atualizar a Rename. A lista publicada em 2012, produzida pelo MS a partir da compilação de todas as listas e fornecimento do SUS, passou a ser entendida como a lista de todos os produtos financiados pelo SUS3737. Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Decreto no 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2011; 29 jun., e não mais uma lista de ME. Paradoxalmente, foram excluídos da lista todos os oncológicos e oftalmológicos. A integralidade, na ótica da lista nacional, passa a ser entendida como ‘tudo’3838. Santos-Pinto CDB, Ventura M, Pepe VLE, Osorio-de-Castro CGS. Novos delineamentos da Assistência Farmacêutica frente à regulamentação da Lei Orgânica da Saúde. Cad Saude Publica 2013; 29(6):1056-1058.,3939. Yamauti SM, Bonfim JRA, Barberato-Filho S, Lopes LC. Essencialidade e racionalidade da relação nacional de medicamentos essenciais do Brasil. Cien Saude Colet 2017; 22(3):975-986. provido pelos componentes de financiamento – com exclusão do financiado por APAC. Passou-se, assim, para uma lista positiva do sistema, colocando abaixo o conceito dos ME e da integralidade baseada em necessidade.
A partir de 2013, ocorre a flexibilização das normas de registro, abreviando o tempo para que um produto acesse o mercado brasileiro4040. Brasil. Presidência da República. Decreto No 8.077, de 14 de agosto de 2013. Regulamenta as condições para o funcionamento de empresas sujeitas ao licenciamento sanitário, e o registro, controle e monitoramento, no âmbito da vigilância sanitária, dos produtos de que trata a Lei no 6.360, de 23 de setembro de 1976, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2013; 15 ago., e normas regulando acesso expandido e uso compassivo4141. Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Diretoria Colegiada. Resolução - RDC No 38, de 12 de agosto de 2013. Aprova o regulamento para os programas de acesso expandido, uso compassivo e fornecimento de medicamento pós-estudo. Diário Oficial da União 2013; 13 ago.. Esta tem sido uma tendência internacional e é consequência da pressão por inovação e por financiamento4242. Osorio-de-Castro CGS, Caetano R, Pepe VLE. The 21st Century Cures Act: can the regulatory framework survive the “cures”? Cad Saude Publica 2015; 31(9):1807-1810., resultando em judicialização crescente e em níveis sem paralelo, colocando em risco a provisão pública. Em 2016, a provisão regular de medicamentos no SUS, nos três níveis de atenção, consumiu 13 bilhões de reais. A via judicial, oito bilhões4343. Brasil. Ministério da Saúde (MS). 300 Dias de Gestão. R$ 2,9 bilhões de eficiência. Mais serviços para a população. Brasília: MS; 2017..
Os 20 anos que nos separam do lançamento da PNM mostram avanços heterogêneos na provisão pública de medicamentos: vemos excelente acesso em alguns nichos de agravos na APS4444. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Componente populacional: resultados. Brasília: MS; 2016., e enormes dificuldades para os usuários na obtenção de medicamentos especializados99. Vieira FS. Integralidade da assistência terapêutica e farmacêutica: um debate necessário. Rev Saude Publica 2017; 51:126.,4545. Chieffi AL, Barradas RDCB, Golbaum M. Legal access to medications: a threat to Brazil’s public health system? BMC Health Serv Res 2017; 17(1):499.. No entanto, a revisão permanente da Rename e a adoção do conceito dos ME, vistas como estruturantes para a Política e como orientadoras da provisão e de todas as atividades de AF, ficaram comprometidas no decorrer do tempo. Favorecer a ideia de essencialidade é estratégico para o SUS e absolutamente consoante com o princípio da integralidade. Faz sentido, dentro da ideia de redes, como estratégia de superação da fragmentação da atenção4646. Brasil. Ministério da Saúde, Gabinete do Ministro. Portaria MS/GM No 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2010; 30 dez..
Uso Racional de Medicamentos
O uso racional de medicamentos tem sido apontado, juntamente com o acesso a medicamentos de qualidade, como objetivo central de uma política de medicamentos. A partir do marco da Conferência de Nairobi4747. World Health Organization (WHO). The Rational use of drugs: report of the conference of experts, Nairobi, 25-29 November 1985. Geneva, Albany: WHO; WHO Publications Center USA; 1987., se reconheceu que os benefícios do acesso não se concretizam, ou mesmo perdem, se os medicamentos não forem usados de forma adequada.
Há uma tendência atual de adotar a designação de “uso apropriado de medicamentos” (UAM) em lugar de “uso racional”, uma vez que o mal uso pode ser respaldado por racionalidades espúrias.
As estratégias de promoção do UAM têm sido classificadas como regulatórias, gerenciais e educacionais4848. Marin N, Luiza VL, Osorio-de-Castro CGS, Machado-dos-Santos S. Assistência Farmacêutica para gerentes municipais. Rio de Janeiro: OPAS/OMS; 2003.. Os principais marcos relacionados aos esforços de promoção do UAM no Brasil estão sumarizados no Quadro 3.
No Brasil, registram-se poucas ações para promoção do UAM até o final dos anos 80. Talvez, das poucas ações de abrangência nacional, tenham sido as publicações dos mementos terapêuticos da CEME, que traziam orientações quanto às características, uso e cuidados com os medicamentos da RENAME. O último memento da CEME foi publicado em 19894949. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Central de Medicamentos. Memento terapêutico CEME 89/90: relação de medicamentos essenciais - RENAME e relação de medicamentos básicos - RMB. Brasília: MS; 1989..
Ao final da década de 90 surgem no Brasil algumas associações independentes de profissionais ou consumidores visando promover o UAM, tendo sempre o medicamento como parte importante de sua pauta. Naquela época, se iniciou também a parceria com organizações internacionais, com representação em diferentes continentes. O Núcleo de Assistência Farmacêutica (NAF/ENSP/Fiocruz), criado em 1998, e Centro Colaborador da OPAS/OMS, embora declare sua atuação focada em políticas farmacêuticas, tem atuado em vários temas relevantes ao UAM.
Tendo em vista que as estratégias regulatórias constituem núcleo importante para promoção do UAM, o órgão regulador brasileiro sempre teve papel importante no tema. Assim, na década 1988-97 cabe destaque ao esforço da Anvisa na instituição das Boas Práticas de Dispensação, atividade com impacto direto no UAM5050. Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução no 328, de 22 de julho de 1999. Dispõe sobre requisitos exigidos para a dispensação de produtos de interesse à saúde em farmácias e drogarias. Diário Oficial da União 1999; 23 jul..
Na década 1998-2007, destaca-se a criação do Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos5151. Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria No 1.555, de 27 de junho de 2007. Institui o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos. Diário Oficial da União 2007; 28 jun. (com redefinições em 20135252. Brasil. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria No 834, de 14 de maio de 2013. Redefine o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos no âmbito do Ministério da Saúde. Diário Oficial da União 2013; 15 maio.). Este comitê tem representação de várias instituições e tem desenvolvido ações como a organização de eventos, sendo o Congresso Brasileiro de Uso Racional de Medicamentos o principal deles, materiais educativos, recomendação de ações regulatórias e campanhas. Na mesma década, o Brasil institui na ANVISA o Sistema Nacional de Farmacovigilância, iniciativa que contou com forte indução da Organização OPAS, além de grupos nacionais que militavam pelo UAM5353. Mendes MCP, Pinheiro RO, Avelar KES, Teixeira JL, Silva GMS. História da farmacovigilância no Brasil. Rev Bras Farm 2008; 89(3):246-251.. Um importante reconhecimento foi a inclusão do Brasil como 62o membro oficial do Programa Internacional de Monitorização de Medicamentos5353. Mendes MCP, Pinheiro RO, Avelar KES, Teixeira JL, Silva GMS. História da farmacovigilância no Brasil. Rev Bras Farm 2008; 89(3):246-251..
Finalmente, a década 2008-2018 tem assistido um número maior de iniciativas, como a atualização das normas de propaganda e publicidade em 20085454. Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC No 96, de 17 de dezembro de 2008. Dispõe sobre a propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos. Diário Oficial da União 2008; 18 dez., o estabelecimento das Boas Práticas Farmacêuticas, onde inclui a prestação de serviços farmacêuticos em farmácias e drogarias5555. Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução-RDC no 44, de 17 de agosto de 2009. Dispõe sobre Boas Práticas Farmacêuticas para o controle sanitário do funcionamento, da dispensação e da comercialização de produtos e da prestação de serviços farmacêuticos em farmácias e drogarias e dá outras providências. Diário Oficial da União 2009; 18 ago., a harmonização do conteúdo das bulas5656. Brasil, Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução da Diretoria Colegiada. RDC No 47, de 8 de setembro de 2009. Estabelece regras para elaboração, harmonização, atualização, publicação e disponibilização de bulas de medicamentos para pacientes e para profissionais de saúde. Diário Oficial da União 2009; 9 set. e as normativas para o controle da prescrição/comercialização de antimicrobianos5757. Brasil. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC No 20, de 5 de maio de 2011. Dispõe sobre o controle de medicamentos à base de substâncias classificadas como antimicrobianos, de uso sob prescrição, isoladas ou em associação. Diário Oficial da União 2011; 6 maio..
O avanço trazido por essas iniciativas tem sido controverso. No caso do controle de propaganda, à época da consulta pública que resultou na normativa, houve um pronunciamento enfático de um grande grupo de pesquisadores, profissionais e ativistas do UAM, com críticas ao documento, em especial a não adoção da fiscalização prévia. Argumentavam que, ainda que a infração fosse detectada posteriormente, o baixo valor das multas faria com que o ganho recuperado com as vendas promovidas pela circulação das peças, ainda que num curto período, compensavam o risco. De fato, estudos realizados evidenciaram o baixo cumprimento da legislação em peças de propaganda de medicamentos tanto dirigida a profissionais quanto a usuários5858. Abdalla MCE, Castilho SR. Análise da propaganda de medicamentos dirigida a profissionais de saúde. Rev Direito Sanitário 2017 9; 18(1):101.,5959. Soares JCRS. Quando o anúncio é bom, todo mundo compra: o Projeto Monitoração e a propaganda de medicamentos no Brasil. Cien Saude Colet 2008; 13(Supl.):641-649..
No caso dos serviços farmacêuticos, o Conselho Federal de Farmácia se viu respaldado a normatizar a prescrição farmacêutica6060. Brasil. Conselho Federal de Farmácia. Prescrição farmacêutica e atribuições clínicas do farmacêutico: recompilação de documentos. CFF; 2015., tema sem consenso mesmo dentro da categoria farmacêutica6161. Folha de São Paulo. Disputas de médicos com biomédicos e farmacêuticos vão para a Justiça - 15/11/2016 - Cotidiano . Folha de S.Paulo. 2016. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/11/1832292-disputas-de-medicos-com-biomedicos-e-farmaceuticos-vao-para-a-justica.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2... . Houve pela Anvisa esforços de fortalecimento das ações quanto às bulas, como a publicação do bulário eletrônico6262. Fujita PL, Machado CJS, Teixeira MO. A bula de medicamentos e a regulação de suas configurações em termos de forma e conteúdo no Brasil. Saúde Soc 2014; 23(1):277-292..
Finalmente, quanto aos antimicrobianos, também se tem demonstrado incipiente repercussão na redução do volume de consumo6363. Wirtz VJ, Hogerzeil HV, Gray AL, Bigdeli M, de Joncheere CP, Ewen MA, Gyansa-Lutterodt M, Jing S, Luiza VL, Mbindyo RM, Möller H, Moucheraud C, Pécoul B, Rägo L, Rashidian A, Ross-Degnan D, Stephens PN, Teerawattananon Y, ‘t Hoen EF, Wagner AK, Yadav P, Reich MR. Essential medicines for universal health coverage. Lancet 2016; 389(10067):403-476..
As ações de promoção do UAM estão fortemente situadas no campo da promoção da saúde e prevenção de doenças, seja primária, secundária, terciária ou quaternária, portanto bastante imbricadas com o processo de cuidado em saúde. Pode-se dizer, portanto, que atendem diretamente ao princípio da integralidade. São muitas as dificuldades envolvidas, uma vez que têm grande repercussão no consumo de medicamentos, portanto nas vendas e na adoção das medidas que implicam em mudança de comportamento, tanto por profissionais, gestores e consumidores.
Desenvolvimento tecnológico e produção industrial
A questão da dependência tecnológica do Brasil no setor farmacêutico foi permanente ao longo do século XX e respondida em diferentes momentos, considerando o país na condição de “periferia” de um setor industrial que se consolidou principalmente nos países europeus e Estados Unidos, e cuja base dependeu do lançamento de inovações no mercado e na expansão de suas vendas6464. Achilladelis B, Antonakis N. The dynamics of technological innovation: the case of the pharmaceutical industry. Res Policy 2001; 30(4):535-588..
No início da década de 1970, o estímulo à produção nacional de medicamentos esteve relacionado às ações de AF. Com a constituição de um mercado público, que possibilitou assegurar uma demanda constante, a Ceme adotou outros instrumentos de política industrial para incentivar a produção pelo setor público e também o desenvolvimento de insumos farmacêuticos ativos (IFA) em território nacional6565. Bermudez JAZ. Remédio: Saúde ou Indústria? A Produção de Medicamentos no Brasil. Vol. 1. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 1992.. A Ceme foi extinta em 1997 por não cumprir satisfatoriamente nenhum de seus objetivos iniciais, além de denúncias de irregularidades (Quadro 4)88. Cosendey MAE, Bermudez JAZ, Reis ALA, Silva HF, Oliveira MA, Luiza VL. Assistência farmacêutica na atenção básica de saúde: a experiência de três estados brasileiros. Cad Saude Publica 2000; 16(1):171-182..
Eventos selecionados relacionados ao desenvolvimento científico e tecnológico e Promoção da produção de medicamentos no Brasil segundo decênios. Brasil, 1988-2018.
A primeira década de existência do SUS se encerra, portanto, com perspectivas de longo prazo, a partir da publicação, em 1998, da PNM. Aspectos relacionados à política industrial foram reconhecidos, com diretrizes específicas para o desenvolvimento Científico e Tecnológico (C&T) e a Promoção da Produção de Medicamentos1616. Azeredo T. Política Nacional de Medicamentos no Brasil: da estrutura normativa à reflexão dos agentes sobre o processo de implementação [tese]. Rio de Janeiro: Fiouz; 2012..
Na primeira década do SUS, a tradução desses enunciados em iniciativas concretas voltadas ao setor industrial nacional pode ser refletida tanto pela aprovação da Política de Genéricos (Lei 9.787/99), que por meio de investimentos do BNDES estimulou o crescimento do setor nacional privado6666. Quental C, Abreu JC de, Bomtempo JV, Gadelha CAG. Medicamentos genéricos no Brasil: impactos das políticas públicas sobre a indústria nacional. Cien Saude Colet 2008; 13(Supl.):619-628., quanto pelo Projeto Guarda Chuva, que assegurou financiamento aos LFO, principalmente considerando a produção de medicamentos antirretrovirais no contexto da epidemia de HIV/aids6767. Fischer-Pühler P. O Acesso ao Medicamentos - a gestão da política pública entre 1997 e 2002. Rio de Janeiro: Livrotab; 2003.. Lições importantes dessas experiências sugerem um papel relevante dos LFO na realização de estimativas de custo de produção e de desenvolvimento estratégico de produtos sob monopólio, contribuindo nos esforços de negociação de preços entre o governo e as empresas transnacionais.
A 1a Conferência Nacional de Medicamentos e AF buscou alinhar a AF a outras políticas no campo da produção industrial e da ciência e tecnologia, reconhecidas na Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF).
No que se refere à C&T, voltada ao setor saúde, entre os principais marcos está a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (PNCTI), aprovada em 2004, na 2a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde e publicada em 2008, que incorporou os princípios do mérito científico e relevância social6868. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política nacional de ciência, tecnologia e inovação em saúde. Brasília: MS; 2008..
Já na segunda década de existência do SUS, a questão do desenvolvimento industrial ganhou contornos para além do setor saúde, com a aprovação da Política Industrial, Tecnológica e do Comércio Exterior (PITCE), que incluiu o setor farmacêutico entre suas áreas e visou a redução da vulnerabilidade nacional, caracterizada por dependência externa nas áreas intensivas em tecnologia.
Em 2007, com o licenciamento compulsório das patentes do ARV efavirenz, a produção local foi novamente inserida entre as opções de implementação da medida, resultando num consórcio para a produção do insumo farmacêutico ativo (IFA), que resultou na disponibilização do genérico nacional do medicamento a partir de 2009 e gerando economia considerável nos gastos públicos.
A partir de 2008, na terceira década do SUS, o Complexo Industrial da Saúde (CIS) foi inserido entre os eixos estratégicos do planejamento em saúde do governo federal6969. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Mais saúde: direito de todos: 2008 - 2011. Brasília: MS; 2008., resultando na aprovação de uma série de normas que deram novos contornos à política industrial, com ênfase nos esforços de retomada da indústria farmoquímica nacional e fortalecimento dos LFO7070. Chaves GC, Azeredo TB, Vasconcelos DMM de, Ruiz AM, Scopel CT, Oliveira MA, Hasenclever L. Estudo da produção pública de medicamentos no Brasil: capacitação tecnológica e acesso a medicamentos. Rio de Janeiro: E-papers; No prelo.. A partir de 2009, as Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDP) foram estabelecidas como arranjos de transferência de tecnologia para fortalecer esses dois segmentos, considerando produtos adquiridos pelo SUS enquanto perspectiva de demanda constante, sem concorrência.
Em que pese a previsão de uma política industrial enquanto enunciado e priorização governamental, diagnóstico recente dos LFO evidencia que aspectos da capacitação tecnológica e da capacidade em contribuir para o acesso a medicamentos pouco avançaram neste segmento7070. Chaves GC, Azeredo TB, Vasconcelos DMM de, Ruiz AM, Scopel CT, Oliveira MA, Hasenclever L. Estudo da produção pública de medicamentos no Brasil: capacitação tecnológica e acesso a medicamentos. Rio de Janeiro: E-papers; No prelo., sugerindo baixa condição em responder às vulnerabilidades da AF no SUS. A seleção de tecnologias candidatas à produção local e ao desenvolvimento industrial deve ser considerada à luz da integralidade, o que, neste caso, implica analisar a dinâmica do mercado e priorizar aquelas sob risco de desabastecimento; áreas de vazios terapêuticos; e produtos de alto custo, com a finalidade de subsidiar a regulação de preços.
Regulação ética, pesquisa e medicamentos
O Sistema de Regulação de Ética em Pesquisa com medicamentos está estabelecido sob responsabilidade do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e conta com a participação do MS em algumas de suas funções7171. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no 446, de 11 de agosto de 2011. qualifica o processo de análise ética das pesquisas, sendo o ser humano considerado em sua individualidade, como foco essencial do processo de produção da ciência e garante o monitoramento das pesquisas com seres humanos em andamento no Brasil. Diário Oficial da União 2011; 12 ago..
A primeira resolução publicada para estabelecer normas para pesquisas na área de saúde no Brasil foi a Resolução CNS 01/88 (Quadro 5). A pouca adesão desejada entre os membros da comunidade científica deu origem à necessidade de se elaborar um novo documento mais detalhado na abordagem dos aspectos éticos requeridos na realização de pesquisas. Em 1995, foi criada uma comissão liderada pelo CNS para elaboração de uma nova resolução, publicada em 19967272. Oliveira MA, Santos EM, Mello JMC. AIDS, ativismo e regulação de ensaios clínicos no Brasil: o Protocolo 028. Cad Saude Publica 2001; 17(4):863-875.,7373. Novaes MRCG, Guilhem D, Lolas F. Dez anos de experiência do comitê de ética em pesquisa da secretaria de saúde do Distrito Federal, Brasil. Acta Bioethica 2008; 14(2):185-192.. A Resolução 196/96 atualizou diretrizes e estabeleceu a necessidade de criação de um sistema centralizado de revisão ética composto pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), “uma instância colegiada, de natureza consultiva, deliberativa, normativa, educativa, independente, vinculada ao CNS” e por Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) definidos como “colegiados interdisciplinares e independentes, com ‘munus público’, de caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os interesses dos participantes da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos”7474. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução No 196, de 10 de outubro 1996. Diário Oficial da União 1996; 11 out.. Esta resolução foi revogada em 2012, com a publicação da Resolução CNS 466/12, que trouxe avanços, dentre eles instruções sobre a utilização de placebo e a necessidade de assegurar a todos os participantes ao final do estudo, por parte do patrocinador, acesso gratuito e por tempo indeterminado, aos melhores métodos profiláticos, diagnósticos e terapêuticos que se demonstraram eficazes. Além disso, contemplou a garantia de fornecimento aos participantes, que muitas vezes ficavam desassistidos, no intervalo entre o término da participação individual e o final do estudo7575. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução No 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União 2012; 13 dez..
Eventos selecionados relacionados a regulamentação sanitária Garantia da segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos no Brasil segundo decênios. Brasil, 1988-2018.
Atualmente, destacam-se três iniciativas regulatórias que poderão modificar o cenário de revisão ética do país. A primeira é a Resolução CNS 506/16 que “estabelece os critérios para o processo de acreditação de CEP do Sistema CEP/Conep, em instituições públicas e privadas”. Pretende-se que este movimento promova uma maior descentralização do sistema, fortalecendo a autonomia de Comitês de Ética em Pesquisa para atuar de forma mais regionalizada. A segunda é a resolução 510/16 que aprova normas para regulamentar pesquisa na área de ciências humanas e sociais e outras que utilizam metodologias próprias dessas áreas. Desta forma, busca-se uma análise mais adequada às especificidades destas pesquisas, a constituição de uma nova área para submissão de projetos na Plataforma Brasil e ainda o estabelecimento de novos fluxos para apreciação das pesquisas de acordo com riscos envolvidos7676. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução Nº 510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobe as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possa acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana, na forma definida nesta Resolução. Diário Oficial da União 2016; 8 abr..
Com o argumento de dar maior legitimidade jurídica e celeridade às pesquisas clínicas no país, tramita na Câmara de Deputados um projeto de lei (7082/17), já aprovado no Senado (PL 200/15), que dentre outras propostas propõe uma limitação no fornecimento do medicamento pós-estudo garantido pela Res. CNS 466/12. Propõe a criação de um novo sistema de regulação ética para pesquisas clínicas vinculado ao MS, a nosso ver um contrassenso se pensarmos na função precípua do CNS, órgão participativo e deliberativo vinculado ao MS com importantes funções de fiscalização e formulação de políticas de saúde no país e que vêm exercendo com seriedade a defesa dos participantes de pesquisas no Brasil.
Considerações finais
Trinta anos é um período longo. O país é grande, desigual e complexo, e atravessou várias mudanças políticas, econômicas e sociais ao longo desse tempo. O tema dos medicamentos e AF é bastante amplo e central, com várias imbricações intersetoriais. Assim, contar esta história requer recortes e escolhas.
A seleção dos eventos não foi tarefa fácil. Foram considerados, principalmente, ainda que não exclusivamente, atos regulatórios, o que por si expressam um esforço de implementação. No entanto, isto não garante, necessariamente, que a implementação tenha sido plena ou bem sucedida, uma vez que não é pretensão deste texto um levantamento dos resultados alcançados. Por outro lado, consideramos necessário o alerta das consequências das atuais políticas que vem sendo implementadas e o desmonte de estruturas sólidas e que representaram consideráveis avanços sociais. Vamos defender o SUS!
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jun 2018
Histórico
- Recebido
05 Jan 2018 - Aceito
30 Jan 2018 - Aceito
03 Abr 2018