Resumo
Nessa entrevista, o ex-Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, professor e pesquisador-titular aposentado da Fiocruz, Rio de Janeiro, apresenta a trajetória e os desafios da gestão no Ministério da Saúde, no período de 2007-2010, em que exerceu o cargo principal da pasta.
Brasil; Gestão; Saúde Pública
1 - O ex-ministro da Saúde, Alcenir Guerra, afirmou em entrevista (http://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-tempo-de-temporao) que há quatro fases no comando da pasta da Saúde: esperança, enfado devido à falta de andamento das iniciativas, cobrança por parte da população e mídia e, por último, a rejeição. Você considera ter vivido essas fases enquanto ministro?
R: Essa entrevista foi publicada na revista Piauí em 2007 e fez esse contraponto entre o início da minha gestão em que ocorreram muitas medidas de impacto e muita visibilidade (o licenciamento compulsório de um medicamento para tratamento da AIDS, a discussão do aborto como problema de saúde pública etc.), e a frase do Alcenir que é típica de um político profissional que amargou dissabores e frustrações à frente da pasta da saúde e que serviu a um governo desastroso
A entrevista terminava com uma interrogação: ao final da minha passagem pelo governo, eu estaria na mesma situação, ou seja, me sentindo um ministro rejeitado, uma espécie de maldição que acometeria os que passam por essa função pública? Bom, a jornalista não voltou a me procurar para me fazer essa pergunta ao final da minha gestão! A esperança é alimento do dia a dia para quem participa da construção do SUS há várias décadas. Já a cobrança por parte da mídia e da população estiveram presentes todo o tempo e isso foi importante também. Agora, enfado e rejeição nunca experimentei. Minha experiência foi totalmente distinta. Até hoje ao caminhar pelas ruas da cidade onde vivo sou reconhecido e as pessoas vêm comentar comigo sobre aquela época. Algumas até brincam: volta Temporão! Toda a minha vida profissional foi dedicada à saúde pública. São quarenta anos dos quais trinta e dois como professor e pesquisador da Ensp-Fiocruz, e também ocupando cargos de direção nos níveis municipal, estadual e federal. Ter sido ministro só me trouxe alegria e prazer. Durante os quatro anos que ocupei a função tive total consciência de que estava ali como um quadro do movimento da reforma sanitária brasileira onde milito desde os tempos da faculdade de medicina. Foi um momento especial, por vezes tenso e desgastante, mas totalmente coerente com minha trajetória política, profissional e pessoal e participando de um governo que fez muito pelo social no Brasil.
2 - Antes de assumir a gestão do Ministério da Saúde, em 2007, você chefiou a Secretaria de Atenção à Saúde e, anteriormente, a direção do Instituto Nacional do Câncer (Inca) em um período de crise. Quais foram os maiores empecilhos no comando da pasta da Saúde? O que você já esperava enfrentar, o que estimava ser um problema, mas não foi, e quais obstáculos te surpreenderam?
R: Ter passado pelo INCA e pela SAS me deu maior conhecimento da máquina pública e experiência na gestão federal. Não houve exatamente surpresas, mas momentos inquietantes. Um deles foi a derrota do governo na aprovação da prorrogação da CPMF. Ali tivemos uma grande derrota que impediu que muitos programas e metas pudessem ter sidos implementados. Os sucessivos fracassos na tentativa de aprovação da Emenda 29 que daria uma nova base para o financiamento do setor foi outro ponto de frustração, assim como as iniciativas de questionamento da estrutura de subsídios fiscais e gastos tributários que desde os anos 1990 foram mecanismos importantes de expansão do setor de planos e seguros. Nesses casos específicos o ministro da saúde foi praticamente um ator isolado lutando dentro do governo onde a posição da área econômica e do ministério do planejamento sempre foram céticas quando não contrárias às propostas. Esse ponto infelizmente não diferenciou nosso governo dos que nos antecederam. Outro ponto importante foi a relação sempre muito tensa com a grande mídia, considerando seus ataques constantes ao governo Lula. Um exemplo didático foi o surgimento de alguns casos de febre amarela no final de 2007 transformados criminosamente pela imprensa em uma epidemia. Este fato levou inclusive a mortes de algumas pessoas que tomaram a vacina sem indicação induzidas pelo clima de histeria criado pelos órgãos de comunicação. As relações com a mídia foram sempre um dos maiores desafios. Uma outra proposta que causou muito debate e conflitos, principalmente com as corporações de profissionais de saúde, foi a da criação de um novo modelo para a gestão pública: as Fundações Públicas de direito privado que acabou totalmente desvirtuada na criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) mas que prosperou na versão original em alguns estados como na Bahia.
Mas há uma outra dimensão muito mais importante. Eu me recordo que em uma das primeiras entrevistas que concedi logo após minha nomeação ao portal da Fiocruz, o jornalista me perguntou do que eu me orgulharia de ter colaborado para o SUS e para a saúde pública brasileira, ao final de minha gestão. E respondi que ao final da minha passagem pelo ministério eu desejaria que a população do Brasil tivesse orgulho do seu sistema de saúde e cada vez mais passasse a utilizar os serviços que o SUS oferece, ou seja, esperava que a população brasileira ampliasse sua crença no aperfeiçoamento e na consolidação do SUS. Um dado indireto, mesmo que só permita um olhar parcial sobre processo tão complexo, para medir essa percepção seriam as pesquisas de avaliação da população sobre as políticas públicas realizadas ao longo dos anos pela Confederação Nacional da Indústria em parceria com o Ibope (pesquisas CNI-IBOPE). Em dezembro de 2010, ao final da minha gestão, a pesquisa CNI-Ibope aferiu que 42% da população aprovavam a área de saúde do governo, 54% desaprovavam e 5% não sabiam. Já em março de 2015 apenas 13% aprovavam o desempenho da área de saúde.
Mas, além disso, naquela entrevista eu expressava o desejo de que a população, ao final da minha gestão, tivesse fortalecido a sua compreensão de que o SUS é fundamental para a melhoria das suas condições de vida e para a consolidação da nossa democracia. Ou seja, eu apontava a importância da construção de uma consciência política coletiva no sentido da consciência sanitária de Berlinguer, para garantir a sustentabilidade política do SUS. Agora, como avaliar isso? Como medir se isso efetivamente ocorreu?
3 - Como fazer política, negociar e articular propostas com representantes de diferentes segmentos, sem cair na “politicagem” – troca de favores, interesses pessoais e corporativismo?
R: Colocar a agenda da saúde pública como eixo em torno do qual tudo se movimenta foi um desafio permanente dado o perfil do congresso nacional e as especificidades do presidencialismo de coalizão. De toda a minha equipe a única posição que não tive condições de nomear foi o titular para a FUNASA. Com apenas essa exceção, pude nomear uma equipe de alta qualidade fortemente comprometida com a saúde brasileira e elaborar um plano de ação (o Mais Saúde lançado em dezembro de 2007) que considero bastante inovador. Quando você coloca o trabalho de aprofundamento e fortalecimento do SUS na frente de tudo, fazendo com que esse conceito dirija toda e qualquer ação do governo, é possível se manter distante do que você adjetivou como “politicagem”.
4 - Como ex-ministro da Saúde, você avalia que os projetos e programas implementados no Sistema Único de Saúde (SUS) são marcados pela estabilidade ou são datados como iniciativas de gestões específicas? No caso daqueles implementados durante sua gestão houve continuidade?
R: Esse é um tema que considero bastante importante. Costuma ser preocupação permanente dos ministros da ocasião deixar sua marca para que esse feito possa ser depois capitalizado em ativo político na próxima eleição para o parlamento ou para o executivo. Eu me lembro que já no final da minha gestão dei uma entrevista para um jornal e afirmei que gostaria de ser lembrado no futuro como um ministro sem marcas, apenas como um ministro que trabalhou para o fortalecimento do SUS11. Paim JS. Reforma Sanitária Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.. Mas, de todo modo, se olharmos o desenvolvimento do SUS em uma perspectiva histórica, há uma grande estabilidade em relação à manutenção e aprofundamento dos principais programas e políticas que atravessam várias gestões e que abarcam ministros com matizes ideológicos distintos. Seja na dimensão das normas operacionais do sistema (Nobs, Noas, Pacto pela Saúde), na estruturação de redes de alta complexidade, seja em programas e políticas como Saúde da Família, Reforma Psiquiátrica, direitos sexuais e reprodutivos, política de acesso a medicamentos, genéricos, entre outros. Na verdade, temos um vetor médio de manutenção e aprofundamento dessas políticas e programas. É um tema interessante para ser analisado pela Academia. A exceção evidente diz respeito à atual gestão que se dedica com afinco a fragilizar o que já foi conquistado sob o argumento de que se dedica principalmente ao aperfeiçoamento da eficiência do gasto, que nada mais é do que um engodo para esconder sua total falta de compromisso com o SUS. Em relação à minha gestão muitas das iniciativas foram mantidas e tiveram continuidade como as políticas de saúde do homem, da população negra, do fortalecimento do complexo industrial da saúde, das UPAS, da Universidade Aberta do SUS, da expansão da rede Fiocruz, do Saúde na Escola, da inclusão no SUS da cirurgia para mudança de sexo, da prioridade dada ao desenvolvimento da primeira infância com a Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis, entre outras iniciativas. Mas claro, a visão política e os compromissos que levaram este ou aquele ministro à posição, estabelecem mudanças em relação ao ritmo, prioridades e enfoques que podem impactar a continuidade como foi o caso da fragilização da política de direitos sexuais e reprodutivos ou até mesmo a extinção de programas como o Farmácia Popular em 2017.
5 - Quão próxima é a relação de um ministro da Saúde com a Presidência da República? Na época em que foi ministro havia audiências e reuniões periódicas com o então presidente Lula?
R: A saúde é um tema que afeta profundamente a dinâmica e o cotidiano de um governo. Minha relação com o Presidente Lula foi de contato permanente não apenas pelo peso político da função e pela complexidade da saúde, mas também porque fui um ministro que não fugi de minhas responsabilidades e assumia diretamente o diálogo com a sociedade, o que evidentemente repercutia no palácio. Durante a minha gestão ocorreram fatos importantes como a pandemia do H1N1, a derrota da CPMF, a elaboração do Mais Saúde, as inúmeras pressões do PMDB para a minha saída, a polêmica discussão com o Zeca Pagodinho em relação à publicidade de cerveja pela TV. Em todos esses episódios minha interação com o presidente foi intensa e, por vezes, tensa (risos). Mas houve momentos em que essa relação foi ainda mais difícil, como aconteceu com a discussão do aborto como um problema de saúde pública em que o próprio presidente foi chamado a se manifestar após as minhas intervenções em defesa dos direitos das mulheres, e que gerou uma ameaça de minha excomunhão por um bispo do nordeste coincidindo com a visita do Papa ao Brasil. Na dimensão da formulação de políticas de saúde essa relação se dava de modo construtivo como ocorreu com a iniciativa do presidente em convocar uma reunião com os governadores do Nordeste e estabelecer um pacto pela redução da mortalidade infantil naquela região. Decisão importante para que entre 2000 e 2012 a mortalidade infantil no país tenha sido reduzida pela metade. Fizemos inúmeras viagens conjuntas para inaugurações de hospitais, Upas, centros de pesquisa, unidades do Samu, da farmácia popular, do Brasil sorridente e para o lançamento de novos programas como a saúde nas escolas, a inclusão da pílula anticoncepcional no programa Aqui tem Farmácia Popular. Sua presença ao meu lado nas solenidades de abertura do Congresso da Abrasco, da 13ª Conferência Nacional de Saúde, e da 1ª Conferência Nacional LGBT, ou na formatura da 1ª turma de médicos pelo PROUNI entre outras, foi marcante. No plano internacional as reuniões da UNASUL que deram origem depois ao Conselho Sul-americano de Saúde e ao ISAGS e a inauguração da fábrica de antirretrovirais de Moçambique se destacam. Não esquecendo sua decisão de pela primeira vez o Brasil ter determinado o licenciamento compulsório de um medicamento estratégico para o tratamento da Aids. Isso somado aos despachos regulares e aos incêndios de dentro e de fora do governo em que a minha presença era exigida, criaram uma relação muito próxima e de mútua admiração e que se manteve após minha saída do governo.
6 - Como era o diálogo com as instâncias de participação/controle social? A experiência como ministro impactou sua percepção sobre algum desses mecanismos?
R: Minha relação com esse tema vem de longe. Antes da Nova República, no INAMPS, como secretário de planejamento da equipe de Hésio Cordeiro pude participar da elaboração e implementação das Ações Integradas de Saúde – as AIS – que já continham dispositivos de participação da sociedade nos níveis estadual e municipal. Participei sob a coordenação de Eleutério Rodrigues Neto nos trabalhos de redação da lei orgânica do SUS e de toda a discussão sobre as instâncias de participação social. Já como ministro minha relação com o CNS foi muito afetada pelo debate sobre as fundações estatais. Houve ali um claro conflito. Também durante a minha gestão ocorreu a 13ª CNS e tive o dissabor de ver minha posição sobre o aborto ser derrotada. Penso ser necessário uma revisão das conferencias e dos conselhos. Precisamos retornar a uma conferência de teses como foi a 8ª conferência. Em relação aos Conselhos temos que rever a questão dos conselheiros profissionais e o fato de que, ao termos inserido o controle social na estrutura do Estado, inevitavelmente lhe retiramos potência e autonomia. Mas não tenho uma proposta pronta.
7 - O aumento dos casos de judicialização na saúde é uma das questões que motiva discussões sobre o limite da integralidade no SUS. Como fazer essa discussão de forma a fortalecer o SUS em um cenário no qual se tem afirmado que o Sistema Único de Saúde não cabe no orçamento? A discussão sobre a integralidade é um impasse?
R: O fenômeno da judicialização pode ser visto de três perspectivas: do direito – quando um cidadão ou entidade busca a justiça para demandar o acesso a uma determinada tecnologia ou procedimento que por algum motivo lhe é negada mas que é possível identificar que a demanda provêm da compreensão da Saúde como Direito assegurado na constituição; da necessidade , quando o que está estabelecido nas diretrizes, protocolos ou políticas oficiais por algum motivo não estejam disponíveis a tempo e a hora, e do desejo, quando estratégias das indústrias da saúde utilizam a via judicial para tentar incorporar determinada tecnologia de seu interesse nos protocolos do SUS. Foi por isso que em 2008 criei a Comissão de Incorporação de Tecnologias do Ministério da Saúde – CITEC – a primeira estrutura voltada para a gestão de tecnologias em saúde do SUS. Essa proposta vai se consolidar em 2011 com a aprovação da lei 12.401 que cria a CONITEC. Temos que estabelecer critérios para o processo de incorporação que envolve também parcerias público-privadas, ampliar essa discussão para o setor de planos e seguros e fortalecer a participação de representação dos pacientes. A integralidade é princípio pétreo do SUS e não pode ser “flexibilizada” ou relativizada sob pena de fragilizarmos uma das bases em que se apoia o cuidado, compreendido aqui em uma visão ontológica que transcende a visão de cuidado apenas enquanto intervenção técnica.
8 - Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo no mês de outubro você discute a necessidade de ver o aborto como uma questão de saúde pública. Dez anos antes, enquanto ministro da Saúde, você se envolveu com polêmicas ao apoiar o direito de a mulher abortar. Em sua avaliação, temos uma conjuntura mais desfavorável para discussão desse tema no país, em comparação à época em que foi ministro?
R: Sem dúvida estamos em um momento de retrocesso em relação ao aborto em termos globais. Mesmo países onde legalmente as mulheres podem decidir pela interrupção da gravidez, a questão da garantia do acesso é um limitador cada vez mais importante como é o caso dos EUA, Índia e África do Sul. Ao mesmo tempo tivemos avanços recentes na América do Sul: Uruguai, Colômbia e Chile. No Brasil, a bancada evangélica da câmara dos deputados que tem 87 deputados e 3 senadores defende a proibição absoluta da interrupção da gravidez mesmo nos casos em que a atual e retrógrada legislação, permite. E de fato o aborto é legal para as mulheres que possam pagar por ele em clínicas privadas ilegais; já as pobres se arriscam, e morrem, impactando de modo importante a taxa de mortalidade materna em nosso país. Aqui cabe uma reflexão sobre a “defesa da vida” tão propalada por estes senhores. Que vida? Quais vidas? A vida da mulher não é considerada! E muitas vezes essa “mulher” é uma adolescente desinformada ou distante das políticas que dão suporte aos direitos sexuais e reprodutivos. Estas precisariam ocupar espaço aberto nas Escolas, na formação dos jovens, na compreensão da importância e responsabilidade do lugar/função do pai e da mãe, qualquer que seja sua configuração familiar, para o cuidado com um filho. E seu impacto no desenvolvimento pessoal e da sociedade. Uma oportunidade imensa de transmissão deste cuidado, que poderia estar sendo ofertado pela escola, gerando um ambiente facilitador à vida diante de tantas vulnerabilidades é barrado por visões preconceituosas e hipócritas sobre “o que deve saber um jovem” a respeito de si mesmo e de suas relações com outros nesta dimensão. Mesmo nos casos em que a legislação autoriza o acesso aos serviços de abortamento legais, como no caso de gravidez decorrente de estupro, esse acesso pode ser difícil e penoso para as mulheres.
Enfocar essa questão como um problema de saúde pública pode ser uma abordagem que ajude a construir uma visão de maior respeito aos direitos das mulheres.
9 - A cobertura da mídia sobre a saúde pública e o SUS pode tanto ajudar a criar uma consciência sanitária quanto minar a luta política na defesa do direito à saúde e do sistema de saúde brasileiro. Que papel desempenha a imprensa sobre a gestão de um ministro da Saúde?
R: A questão do processo de construção de uma consciência política em saúde coletiva que leve a uma compreensão da saúde como fenômeno social e político é fundamental para o fortalecimento do SUS. Sociedades que vêem seu sistema de saúde como um patrimônio construído por gerações e que deve ser defendido e aperfeiçoado, conseguem lhe dar sustentabilidade política. Em nosso país o papel desempenhado pela grande imprensa é claramente contraditório e negativo nessa perspectiva. Existem, é verdade, espaços para levar informação, orientar, apoiar a mobilização da sociedade em relação a temas importantes que não podem ser negados. Mas os interesses econômicos ligados ao setor de planos e seguros, dos grandes anunciantes de medicamentos, a contradição entre programas de alcance popular sobre hábitos saudáveis de vida e a publicidade massiva de refrigerantes, fast food e alimentos ultraprocessados explicita um dos paradoxos. A imprensa também pode ser o algoz de um ministro (vide o exemplo de Alcenir Guerra) ou até mesmo apoiá-lo em situações específicas (campanhas de dengue, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis) dando eco para polêmicas positivas. Mas temos também um fenômeno bastante curioso que vem a ser o da transmigração da caridade e da filantropia para o SUS, na medida em que os espaços midiáticos obscurecem permanentemente a questão do direito à saúde e o relativizam ao afirmar que o SUS de fato é muito importante, mas principalmente para os pobres. Ora, vivemos em um país em que a saúde, diz a nossa constituição, é um direito de todos, mas a toda a hora nos deparamos com iniciativas do tipo “criança esperança”, programa Luciano Huck, campanhas para financiar tratamentos no exterior pela internet, que infelizmente trazem um subtexto com a visão de que seriam alternativas a um sistema que consideram falimentar. Então, entenda, nada contra campanhas solidárias e iniciativas da sociedade civil em apoiar situações claramente identificadas em conjunto, desde que dialogando com as ofertas e princípios do SUS.
Acredito que a imprensa tem também um papel muito importante de fiscalização e acompanhamento das políticas de saúde que contribui para a ampliação da transparência e das gestões virtuosas.
10 - Ao pensar a prospecção estratégica de cenários futuros para a saúde pública brasileira, o projeto “Brasil Saúde Amanhã” propõe três cenários para o país: um otimista e possível, um pessimista e plausível e um inercial e provável. Diante dos cenários possíveis e considerando que 2018 é um ano de eleições, quais as suas perspectivas para o futuro do sistema de saúde brasileiro?
R: Bom, fazer esse exercício é um gigantesco desafio! Mas eu quero lembrar que se tomarmos na linha do tempo do país como ponto zero o ano de 1500 que marca a inserção do Brasil no processo de globalização do século XVI, durante os 517 anos que se seguiram vivemos em números aproximados 64% do tempo como colônia portuguesa, 13% como monarquia, 8% como república oligárquica, 7,6% como ditadura e pouco mais de 2% desse período como democracia. Ou seja, ainda somos uma frágil e jovem democracia. Portanto a questão da estruturação das políticas sociais e da saúde nesse contexto são também iniciativas relativamente recentes.
Carlos Gentile de Melo um cebiano (fundador do CEBES) histórico definia o sanitarista como um otimista incorrigível. Não temos como negar os imensos avanços em termos de acesso e cobertura nestes 30 anos, mas nestes anos recentes acumulamos derrotas que colocam em risco tudo o que foi conquistado até aqui. A emenda 95 de congelamento dos gastos públicos por vinte anos, a proposta dos planos de saúde populares, a fragilização da ESF (criação do plantão de médico, redução da importância dos ACS, o risco da focalização nos mais vulneráveis) reforça a visão estreita do SUS como um plano de saúde para os pobres. O fato é que nós estamos no início de um longo processo cheio de contradições e a conjuntura tende a nos tornar pessimistas, mas não podemos cair nessa armadilha e negar os avanços e também observar como alguém já disse, que não há luz sem sombra nem progresso sem retrocesso.
11 - Após sua saída do Ministério da Saúde, você assumiu outros cargos, como a direção executiva do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags), dedicou-se à pesquisa, participou de diversos eventos e, no campo da militância, tem se posicionado criticamente sobre aspectos da conjuntura. Você pode nos dizer como é a vida pós-ministério da Saúde?
R: Com certeza bem mais calma! (risos). Ficar quatro anos como ministro me dedicando à defesa da saúde do povo em tempo integral, abrindo mão de minha vida pessoal, experimentando a perda de privacidade que acompanha a figura pública, teve um impacto muito importante sobre a minha vida e de minha família. Mas continuei trabalhando muito, viajando pelo país, dando aulas, estruturando o ISAGS que é uma organização internacional com sede permanente no Rio de Janeiro e vinculada à UNASUL, que dirigi por cinco anos, assessorando o governo da China na revisão de sua política de saúde, retomando meus vínculos com a Fiocruz, ou seja, não me faltou ocupação! A experiência que acumulei poderia ser utilizada para produzir um Guia prático para candidatos a ministro! É uma idéia!!! (risos).
Posso afirmar que na verdade estou hoje num lugar do qual nunca me afastei por todas estas décadas: na construção desse patrimônio da sociedade brasileira que é o SUS.
Referências
- 1Paim JS. Reforma Sanitária Brasileira Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jun 2018