Consumo alimentar de usuários do Sistema Único de Saúde segundo o tipo de assistência e participação no Bolsa Família

Juliana Silvani Caroline Buss Geórgia das Graças Pena Andrea Fontoura Recchi Eliana Márcia Wendland Sobre os autores

Resumo

Foi realizado estudo transversal com objetivo de avaliar e comparar o consumo alimentar de usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), segundo tipo de assistência (Unidades Básicas de Saúde-UBS e Estratégias de Saúde da Família-ESF) e participação no Programa Bolsa Família (PBF). A amostra foi composta por indivíduos de 18 a 78 anos, de ambos sexos, de Porto Alegre-RS. Foram coletados dados socioeconômicos, clínicos e de consumo alimentar através de questionário adaptado dos inquéritos nacionais SISVAN e VIGITEL. As análises foram realizadas no software R3.1. Dos 187 entrevistados, 91 pertenciam à ESF, 96 à UBS e 40 eram beneficiários do PBF. O padrão alimentar saudável foi identificado em apenas 41% dos usuários do SUS. Entre os beneficiários do PBF, consumo de hortaliças foi menor (67,5% vs 75,9;p = 0,02) e 55% não consumiam salada crua (37%;p = 0,04). Não houve diferença significativa no consumo considerando o tipo de assistência recebida (ESF ou UBS). O padrão de consumo saudável não foi associado às variáveis demográficas e socioeconômicas. A maioria dos beneficiados pelo PBF também não demonstrou padrão alimentar saudável. Portanto, maiores esforços para efetiva promoção e prevenção da saúde são necessários para essa população, principalmente entre os beneficiados pelo PBF.

Consumo alimentar; Sistema Único de Saúde; Atenção primária à saúde

Introdução

Desde 1998, a Organização Mundial da Saúde (OMS) vem propondo que as recomendações alimentares para as populações fossem centradas nos alimentos ao invés dos nutrientes11. Sichieri R, Coitinho DC, Monteiro JB, Coutinho WF. Recomendações de alimentação e nutrição saudável para a população brasileira. Arq. Bras. Endocrinol. Metabol. 2000; 44(3):227-232.. A partir de então, muitos estudos focaram na avaliação do consumo alimentar das populações, observando os alimentos consumidos22. Go VLW, Wong DA, Butrum R. Diet, Nutrition and Cancer Prevention: Where Are We Going from Here? J Nutr 2001; 131(11 Supl.):3121S-316S.

3. Heber D, Bowerman S. Applying Science to Changing Dietary Patterns. J Nutr 2001; 131(11 Supl.):3078S-3081S.

4. Sichieri R, Castro JFG, Moura AS. Fatores associados ao padrão de consumo alimentar da população brasileira urbana. Cad Saude Publica 2003; 19(Supl. 1):S47-S53.
-55. Simopoulos AP. The Mediterranean Diets: What Is So Special about the Diet of Greece? The Scientific Evidence. J Nutr 2001; 131(11 Supl.):3065S-3073S..

No Brasil, as Pesquisas de Orçamentos Familiares (POF) demonstraram que o padrão alimentar da população brasileira é caracterizado pelo consumo habitual de arroz e feijão, juntamente com elevado consumo de alimentos de alto valor energético e baixo valor nutricional66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de orçamento familiar 2008-2009: Avaliação nutricional da disponibilidade domiciliar de alimentos no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2010.. Este padrão representa a transição do consumo nutricional, na qual a escassez de alimentos vem sendo substituída pelo excesso de alimentos pouco nutritivos. Este hábito contribui para o aumento do sobrepeso e obesidade da população, bem como das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT)77. Schmidt MI, Duncan BB, Azevedo e Silva G, Menezes AM, Monteiro CA, Barreto SM, Chor D, Menezes PR. Chronic non-communicable diseases in Brazil: burden and current challenges. Lancet 2011; 377(9781):1949-1961.,88. Sartorelli DS, Franco LJ, Cardoso MA. Nutritional intervention and primary prevention of type 2 diabetes mellitus: a systematic review. Cad Saude Publica 2006; 22(1):7-18..

Neste contexto, foi criado, no Brasil, o Programa Bolsa Família (PBF) a fim de garantir o direito humano à alimentação adequada e promover a segurança alimentar e nutricional. O PBF é um programa de transferência de renda que contribui para a conquista da cidadania na população que se encontra mais suscetível à fome, situação de pobreza e extrema pobreza99. World Health Organization (WHO). The world health report 2002: reducing risks, promoting healthy life. Geneva: WHO; 2002.. O objetivo principal do Programa é combater a fome e promover a segurança alimentar, especialmente em famílias com crianças e gestantes, que estejam em situação de pobreza extrema (R$77,00 por pessoa).

No entanto, o aumento da renda não significa dieta mais saudável. Maior poder de compra das famílias pobres aumenta o consumo de alimentos pouco saudáveis1010. Brasil. Lei Nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Cria o Programa Bolsa Familia e dá outras providências. Diário Oficial da União 2004; 10 jan.. Avaliação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas constatou o mesmo que as POF haviam mostrado nas famílias beneficiadas pelo PBF: tendência de aumento no consumo de proteínas de origem animal, leite e derivados; aumento no consumo de biscoitos, óleos e gorduras, açúcares e alimentos industrializados; e, em menor proporção, no consumo de vegetais e hortaliças1111. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE). Repercussões do programa bolsa família na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiadas:documento síntese. 20. Rio de Janeiro: IBASE; 2008..

Ainda nessa problemática, o consumo insuficiente de frutas, legumes e verduras (FLV) está entre os dez principais fatores de risco para doenças em todo o mundo, estimando-se que até 2,7 milhões de vidas poderiam ser salvas anualmente em todo o mundo, se o consumo de FLV fosse adequado1212. Lignani JB, Sichieri R, Burlandy L, Salles-Costa R. Changes in food consumption among the Programa Bolsa Família participant families in Brazil. Public Health Nutr 2011; 14(5):785-792., o que reforça a importância de se avaliar a ingestão de alimentos para efetivar medidas corretivas no padrão de consumo das populações.

No âmbito das medidas corretivas e das políticas públicas, o Ministério da Saúde criou o Programa Saúde da Família, que se efetivou como Estratégia Saúde da Família (ESF), com o intuito de fortalecer a atenção primária em saúde e agir mais ativamente nas populações de maior vulnerabilidade1313. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial. Brasília: MS; 1997.. Além disso, a estratégia visa substituir o modelo tradicional de assistência à saúde no país, as Unidades Básicas de Saúde (UBS), reorganizando, assim, o Sistema Único de Saúde (SUS), priorizando a atenção integral à saúde, prevenindo, promovendo e recuperando a saúde dos indivíduos de maneira completa e contínua1414. Freitas MLA, Mandú ENT. Promoção da saúde na Estratégia Saúde da Família: análise de políticas de saúde brasileiras. Acta Paul. Enferm. 2010; 23(2):200-205.. Na ESF uma equipe multiprofissional atende uma população definida, pertencente a uma área adscrita limitada. Entretanto, ainda não está claro se o tipo de assistência impacta em algumas condições de saúde da população, como, por exemplo, o padrão alimentar.

Vale a pena ressaltar que, mesmo com auxílio dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) que contribuem para ampliar e aperfeiçoar a atenção e a gestão da saúde1515. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Diretrizes do NASF. Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília, Brasília: MS; 2009. Cadernos de Atenção Básica nº 27. dentro da ESF, o nutricionista não é membro obrigatório nos mesmos, mas, na sua presença, prevenção dos agravos da má alimentação e estilo de vida não saudável é reforçado, como correção das deficiências nutricionais e prevenção ou tratamento das DCNT1515. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Diretrizes do NASF. Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília, Brasília: MS; 2009. Cadernos de Atenção Básica nº 27..

Diante do exposto, o objetivo do estudo foi avaliar o consumo alimentar de usuários do SUS de acordo com o tipo de assistência recebida – modelo assistencial convencional (UBS) e modelo de assistência (ESF) – e conforme a participação no PBF.

Métodos

Foi realizado estudo transversal com indivíduos de 18 anos ou mais, de ambos os sexos, usuários do SUS de Porto Alegre-RS/Brasil. Foram sorteadas duas unidades de ESF (Esperança Cordeiro e São Borja) que apresentavam equipe completa e outras duas unidades tradicionais, entre aquelas que apresentavam equipes equivalentes (UBS Santa Rosa e São Cristóvão). Utilizou-se amostra de conveniência, sendo que os indivíduos foram convidados a participar na sala de espera das unidades de saúde, em diferentes turnos (manhã e tarde). Todas as entrevistas foram realizadas pela mesma pesquisadora, no período de novembro de 2012 a maio de 2013. Todos os indivíduos adultos que procuraram as unidades de saúde durante o período de realização da coleta foram considerados elegíveis para o estudo.

Foi desenvolvido questionário contendo informações sobre aspectos socioeconômicos como, por exemplo, renda familiar (em salários mínimos), estado civil (solteiro, casado, outros), raça/cor de pele autorreferidos (preta, parda, branca, indígena, outros), escolaridade (anos de estudo), se estava empregado ou não. Além de consumo alimentar e participação no programa Bolsa Família, também foram coletados dados de hipertensão e diabetes autorreferidos1616. Schmidt MI, Duncan BB, Hoffmann JF, Moura L, Malta DC, Carvalho RMSV. Prevalência de diabetes e hipertensão no Brasil baseada em inquérito de morbidade auto-referida, Brasil, 2006. Rev Saude Publica 2009; 43(Supl. 2):74-82.. Foi utilizada avaliação estruturada a partir do questionário de frequência alimentar do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN)1717. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Protocolos do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional – SISVAN na assistência à saúde. Brasília: MS; 2008. com o acréscimo dos alimentos para avaliação do consumo alimentar regular adotado pelo inquérito de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônicas (VIGITEL)1818. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Vigitel Brasil 2013: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: MS; 2014.. A avaliação do consumo alimentar foi realizada em relação à frequência alimentar semanal e ao consumo regular conforme descritos abaixo:

Frequência alimentar semanal: foi analisada conforme marcador de consumo alimentar do SISVAN1717. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Protocolos do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional – SISVAN na assistência à saúde. Brasília: MS; 2008.. Foi considerada alimentação saudável quando o indivíduo apresentava consumo diário de feijão, frutas, verduras e leite ou iogurte do tipo desnatado ou semidesnatado e/ou consumo de peixe ao menos uma vez na semana. O consumo frequente de alimentos fritos e guloseimas como: batata frita, batata de pacote, salgados fritos, biscoitos salgados ou salgadinho de pacote, biscoitos doces ou recheados, doces, balas e chocolates – em barra ou bombom , embutidos e refrigerantes foram considerados inadequados quando ingeridos pelo menos uma vez por semana .

Consumo alimentar regular: foi utilizado o inquérito do VIGITEL1818. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Vigitel Brasil 2013: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: MS; 2014.. Foi considerado saudável o consumo de frutas (incluindo o consumo de suco de fruta natural), hortaliças (saladas cruas, legumes e verduras cozidos) e feijão em cinco ou mais vezes na semana. Foi considerado consumo alimentar não saudável, o hábito de consumir carnes com excesso de gordura como carne vermelha com gordura ou frango com pele e o hábito de consumir leite integral, além do consumo de refrigerantes de qualquer tipo e de sucos artificiais em cinco ou mais dias da semana.

Para avaliação global do consumo alimentar, foi criada a variável “padrão saudável”. Esta combinou os alimentos considerados saudáveis (frutas, hortaliças e feijão) quando consumidos na frequência recomendada (cinco ou mais vezes na semana), de acordo com o VIGITEL1818. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Vigitel Brasil 2013: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: MS; 2014..

Foram calculadas frequências relativas e absolutas, e foi realizada análise univariada para observar diferenças entre as categorias pelo teste de Q quadrado ou teste exato de Fisher. As diferenças entre médias foram calculadas com o teste t de Student. As análises estatísticas foram feitas no software R 3.1. O nível de significância foi considerado quando p < 0,05 e foi adotado intervalo de confiança de 95%.

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Todos os sujeitos incluídos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido após serem informados sobre a natureza do estudo, tendo respaldado todos os preceitos éticos da Resolução CNS 196/96.

Resultados

A população estudada foi composta por 187 indivíduos, sendo 40 (21,4%) beneficiados pelo PBF, em sua maioria mulheres (80%). Destes, 91 (49%) pertenciam à ESF e 96 (51%) à UBS. Os resultados das variáveis socioeconômicas são apresentados na Tabela 1. Os participantes da ESF apresentaram menor escolaridade (p = 0,02) e maior participação no PBF (p = 0,02). Os indivíduos participantes do PBF são, em sua maioria, da raça/etnia preta ou parda, diferentemente dos não participantes no programa de transferência de renda (p = 0,04). Não houve diferença quanto à hipertensão (31%) ou diabetes (14,4%) autorreferidos segundo tipo de serviço avaliado nem segundo participação no PBF.

Tabela 1
Características sociodemográficas de 187 usuários do SUS de acordo com o tipo de assistência recebida. Porto Alegre, 2014.

Para o consumo regular adotado pelo VIGITEL (Tabela 2), 41% apresentaram consumo saudável de alimentos. A frequência de consumo alimentar saudável foi: hortaliças (74%), feijão (72%) e frutas (68%). E o consumo de marcadores de risco foi: leite ou iogurte do tipo integral (54%), carnes com gordura (39%) e refrigerante ou sucos artificiais (29%).

Tabela 2
Frequência do consumo alimentar regular, segundo critérios do VIGITEL, de 187 usuários do SUS de acordo com o tipo de assistência recebida. Porto Alegre, 2014.

Ao comparar a frequência de consumo alimentar saudável entre os beneficiários dos PBF observamos que a maioria (55%) não consome salada crua em comparação com os que não recebem o benefício (36,6%; p = 0,04) e o consumo de hortaliças foi menor entre os beneficiários (67,5% versus 75,9%; p = 0,02). O padrão de consumo saudável não foi associado às variáveis demográficas ou socioeconômicas (Tabela 3).

Tabela 3
Associação do padrão de consumo saudável e variáveis demográficas, socioeconômicas de 187 usuários do SUS. Porto Alegre, 2014.

Discussão

O estudo verificou que a maior parte da população avaliada não possui padrão alimentar saudável. Além disso, os beneficiários do BF apresentaram hábitos alimentares menos saudáveis dos que os que recebem sem encontrar uma associação entre o tipo de assistência recebida – modelo assistencial convencional (UBS) e estratégia de saúde da família (ESF).

Os usuários que pertencem à ESF possuem menor escolaridade e recebem mais benefícios do PBF em relação aos que pertencem à UBS, dado que é esperado, uma vez que a ESF deve estar localizada em populações de maior vulnerabilidade social. Contudo, não houve diferença no valor da renda de acordo com o tipo de assistência recebida. Tendo em vista que a maioria dos beneficiários do PBF encontra-se na ESF, o auxílio de transferência de renda pode estar auxiliando nesta melhoria, diminuindo a desigualdade social. Ao melhorar a renda com o benefício do PBF, espera-se que haja maior aquisição de alimentos, incluindo alimentos mais saudáveis. No entanto, revisão publicada em 2013 identificou que o PBF promove um aumento do acesso aos alimentos, mas que não é necessariamente acompanhado por um aumento da qualidade nutricional da alimentação1010. Brasil. Lei Nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Cria o Programa Bolsa Familia e dá outras providências. Diário Oficial da União 2004; 10 jan.,1919. Cotta RMM, Machado JC. Programa Bolsa Família e segurança alimentar e nutricional no Brasil: revisão crítica da literatura. Rev. Panam. Salud Pública 2013; 33(1):54-60., o que está de acordo com os resultados encontrados.

Ao comparar a frequência alimentar dos que recebem PBF com os encontrados pelo SISVAN em 2013, tanto nacionalmente como no Rio Grande do Sul2020. Brasil. Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN). 2014. [acessado 2014 Jun 1]. Disponível em: http://dabsistemas.saude.gov.br/sistemas/sisvan/relatorios_publicos/relatorios.php
http://dabsistemas.saude.gov.br/sistemas...
, ou comparado a outro estudo realizado em Porto Alegre2121. Rosa JAO. Estado nutricional e consumo de alimentos de beneficiários do Programa Bolsa Família em uma unidade básica de saúde de Porto Alegre-RS [dissertação]. Porto Alegre: UFRGS; 2011., pode ser observada maior frequência do consumo diário de embutidos e refrigerantes na população do estudo. As frequências diárias de frutas, saladas, legumes e verduras foram baixas na população estudada, no SISVAN (2013) e também no estudo realizado em Porto Alegre2020. Brasil. Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN). 2014. [acessado 2014 Jun 1]. Disponível em: http://dabsistemas.saude.gov.br/sistemas/sisvan/relatorios_publicos/relatorios.php
http://dabsistemas.saude.gov.br/sistemas...
,2121. Rosa JAO. Estado nutricional e consumo de alimentos de beneficiários do Programa Bolsa Família em uma unidade básica de saúde de Porto Alegre-RS [dissertação]. Porto Alegre: UFRGS; 2011., dados que continuam a aparecer desde a última POF em 2008-2009, que caracterizou a alimentação dos brasileiros como baixa em consumo de frutas e hortaliças.

Uma vez que há uma melhoria na renda total, possibilitando maior aquisição de alimentos, mas devido ao baixo custo e marketing dos alimentos industrializados, de alto valor calórico e de baixo valor nutricional, estes acabam sendo mais consumidos pelas famílias beneficiárias do PBF. Sabe-se que os programas de transferência de renda sozinhos não são capazes de resolver o problema da pobreza e da insegurança alimentar, por isso, reforça-se a importância de associar o benefício com ações de educação e avaliação nutricional1919. Cotta RMM, Machado JC. Programa Bolsa Família e segurança alimentar e nutricional no Brasil: revisão crítica da literatura. Rev. Panam. Salud Pública 2013; 33(1):54-60..

Em comparação aos dados obtidos em Porto Alegre pelo VIGITEL em 20131818. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Vigitel Brasil 2013: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: MS; 2014., observamos maior consumo de carne com excesso de gordura ou sem a remoção da gordura visível em nossa amostra. Além disso, houve maior consumo regular de refrigerantes entre os beneficiários do PBF em comparação com a população avaliada em Porto Alegre pelo VIGITEL. Nessa análise, Porto Alegre foi classificada como a terceira capital brasileira que mais consome refrigerantes. As POF realizadas no período de 1974 a 2003 mostraram que houve um aumento de 300% no consumo de embutidos e de 400% de refrigerantes, além de ter sido verificado consumo menor de 30% de feijão2222. Levy-Costa RB, Sichieri R, Pontes NS, Monteiro CA. Disponibilidade domiciliar de alimentos no Brasil: distribuição e evolução (1974-2003). Rev Saude Publica 2005; 39(4):530-540.. Na última análise feita pela POF, entre 2008-2009, continuou sendo observado o consumo abaixo do recomendado de frutas, hortaliças e feijão, além do aumento na ingestão de refrigerantes66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de orçamento familiar 2008-2009: Avaliação nutricional da disponibilidade domiciliar de alimentos no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2010.. Ressalta-se que o feijão é considerado um alimento saudável uma vez que apresenta alto teor de fibras, além de sua relativa baixa densidade energética. Contudo, é preciso ter cuidado quanto à forma de preparo desse alimento, não devem ser acrescentados ingredientes com alto teor de gordura, os quais elevariam o valor energético da preparação1818. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Vigitel Brasil 2013: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: MS; 2014..

A dieta inadequada é um dos fatores que aumenta o risco de hipertensão e diabetes. Em nossa amostra, a prevalência de hipertensão foi, aproximadamente, 10% maior entre os beneficiários do PBF do que os dados encontrados no mesmo ano em Porto Alegre pelo VIGITEL1818. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Vigitel Brasil 2013: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: MS; 2014.. A prevalência de diabetes autorreferida foi o dobro da encontrada pelo VIGITEL em Porto Alegre no ano de 2013. Outro dado mostrado pelo VIGITEL é que Porto Alegre é a segunda capital com mais casos autorreferidos de diabetes, e a quarta em casos autorreferidos de hipertensão arterial sistêmica.

Apesar de se tratar de uma amostra de conveniência, com número restrito de voluntários que recebem o Bolsa Família, foi observado que as características da população amostrada são muito semelhantes à população geral relatada pelo IBGE66. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa de orçamento familiar 2008-2009: Avaliação nutricional da disponibilidade domiciliar de alimentos no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2010.. Da mesma forma, a grande proporção de mulheres na amostra reflete a maior busca por assistência de pessoas desse sexo nos serviços de saúde, anteriormente relatada na literatura2323. Pinheiro RS, Viacava F, Travassos C, Brito AS. Gênero, morbidade, acesso e utilização de serviços de saúde no Brasil. Cien Saude Colet 2002; 7(4):687-707.,2424. Couto MT, Pinheiro TF, Valença O, Machin R, Silva GSN, Gomes R, Schraiber LB, Figueiredo WS. O homem na atenção primária à saúde: discutindo (in)visibilidade a partir da perspectiva de gênero. Interface (Botucatu) 2010; 14(33):257-270.. Outra limitação é que não foi investigado o recebimento de outros benefícios que podem ter impactado na renda familiar, como os assistenciais obtidos pessoas idosas, ou realizada uma investigação socioeconômica mais detalhada, devido ao impacto que a mesma teria no tempo de entrevista. Por fim, questões de ordem fisiológica, como, por exemplo, doenças orais, uso de próteses, adontia ou outras alterações que podem exercer impacto na escolha dos alimentos (aumentando a frequência de alimentos cozidos e a diminuição dos crus, por exemplo), não foram avaliadas pelo presente estudo. De qualquer forma, no caso de recebimento de outros benefícios, ou de questões fisiológicas que pudessem alterar a consistência de alimentos, os resultados deste estudo tornam-se ainda mais relevantes ao evidenciar escolhas alimentares.

Desse modo, os dados apontam que são necessárias medidas preventivas, através de educação e informação sobre aquisição de alimentos para uma alimentação adequada, para o controle da pressão arterial e da diabetes e para a prevenção das DCNT. Além disso, políticas públicas devem enfatizar ações na disponibilidade de alimentos saudáveis. É consenso que o desenvolvimento econômico precisa estar ligado ao setor saúde para que as populações que tenham acréscimo na renda também tenham melhorias de acesso e condições de saúde2525. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília: MS; 2012. (Série B. Textos Básicos de Saúde nº 84).. No entanto, o aumento de renda precisa, necessariamente, estar atrelado a atividades de educação e promoção da saúde, visando a uma alimentação saudável.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2015
  • Revisado
    16 Ago 2016
  • Aceito
    18 Ago 2016
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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