Resumo
A prevenção ao uso de álcool e outras drogas no Brasil é marcada pela descontinuidade e pelo predomínio de um modelo não baseado em evidência. No ano de 2013, a Coordenação Geral de Saúde Mental, álcool e outras drogas, do Ministério da Saúde, implementou o programa escolar europeu Unplugged#Tamojunto, nos municípios de São Paulo/SP, São Bernardo do Campo/SP e Florianópolis/SC, envolvendo 2.161 educandos da rede pública. O objetivo da pesquisa foi a elaboração de recomendações de adequação do programa ao contexto brasileiro. O estudo qualitativo, baseado na Teoria Fundamentada Construtivista, analisou os documentos institucionais: “Diários Cartográficos”, “Matriz lógica de adaptação cultural” e relatório de pesquisa titulado “Resultados da Avaliação da Implantação Piloto do Programa Unplugged em São Paulo e Santa Catarina” (UFSC e UNIFESP). As formulações teóricas, organizadas a partir da Teoria de Difusão de Inovações, revelaram que é necessário: mudança paradigmática da abordagem de drogas pelos profissionais, maior adesão a metodologias interativas, adequação no tempo da hora-aula, compromisso da gestão escolar, fomento da intersetorialidade entre saúde e educação, consolidação de um monitoramento de processo e um alinhamento ético com os princípios da promoção da saúde.
Palavras-chave
Promoção da saúde; Prevenção primária; Saúde escolar; Programas governamentais
Introdução
A promoção da saúde no Brasil, instituída enquanto política11. Brasil. Portaria n° 2.446, de 11 de novembro de 2014: Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). Diário Oficial da União 2014; 11 nov., assume a necessidade de se tomar como objeto os problemas de saúde e seus determinantes, convocando a uma atuação ampliada, intersetorial, não focada no binômio saúde-doença em perspectiva exclusivamente clínica. A promoção da saúde tem, ao longo dos últimos anos, se aproximado e se distanciado das abordagens definidas como preventivas justamente por se aproximarem, em algumas vertentes, de uma abordagem centrada em aspectos individuais exclusivamente22. Czeresnia DO. Conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: Czeresnia DO, Freitas CM, organizadoras. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2003. p. 39-54..
No campo da prevenção de agravos e doenças há a prevenção ao uso de álcool e outras drogas. Ainda distante de ser uma política social, organizada por princípios e diretrizes acordados entre as esferas de governo, há no Brasil algo mais difuso e pouco articulado entre projetos e programas que se definem como preventivas, mas que não têm seu efeito verificado33. Büchele F, Coelho EBS, Lindner SR. A Promoção de Saúde enquanto Estratégia de Prevenção ao Uso De Drogas. Cien Saude Colet 2009; 14(1):267-273.. As iniciativas que se apresentam como preventivas são marcadas pela descontinuidade e pelo predomínio do modelo da “guerra às drogas”, já bastante questionado em sua efetividade, que desconsidera dimensões fundamentais na constituição desta problemática, em especial os valores fundantes que embasam a perspectiva da promoção da saúde: o reconhecimento da subjetividade das pessoas e dos coletivos, a solidariedade, a felicidade, a ética, o respeito às diversidades, a humanização, a corresponsabilidade, a justiça e a inclusão social11. Brasil. Portaria n° 2.446, de 11 de novembro de 2014: Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). Diário Oficial da União 2014; 11 nov.,44. Bucher R. A ética da prevenção. Teor. e Pesq. 1992; 8(3):385-398.–66. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia estratégico para o cuidado de pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas: Guia AD. Brasília: MS; 2015..
O desenvolvimento de estratégias de prevenção baseadas em evidências tem sido considerado na melhoria das políticas, influenciando a escolha de “boas técnicas” para o uso adequado de verbas públicas77. Hawks D, Katie S, Myanda M. Prevention of psychoactive substance use: a selected review of what works in the area of prevention. Geneva: World Health Organization; 2002.–1111. Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC). Normas Internacionais Sobre a Prevenção do uso de Drogas. Brasília: UNODC; 2014. A prevenção e a promoção se nutrem de uma ciência baseada em modelos de evidência, mas a ciência, e sua pretendida objetividade, é insuficiente para, de modo isolado, captar e responder às complexidades que incluem o espírito humano1212. Maturana H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG; 1998.,1313. Morin E. O problema epistemológico da complexidade. 2ª ed. Lisboa: Europa-América; 1996.. A evidência traz aspectos éticos relevantes para a tomada de decisões do gestor sobre os métodos eleitos para lidar com determinados problemas sociais, porém deve-se ir além dos indicadores de uso de drogas como centrais na valorização de uma técnica. Deve-se abranger, também, o mapeamento no campo dos significados sociais e culturais de comportamentos individuais e coletivos que, se não compreendidos, podem interferir na sustentabilidade das políticas – para que uma boa técnica se torne uma boa prática1414. Campos GW. Políticas e práticas em saúde mental: as evidências em questão. Cien Saude Colet 2013; 18(10):2797-2805..
No campo das políticas públicas, um estudo sobre a eficácia da prevenção demonstrou que, para cada dólar investido em prevenção, em torno de 4 a 5 dólares são economizados em tratamento dos problemas decorrentes do uso de drogas1515. National Institute on Drug Abuse (NIDA). Preventing drug use among children and adolescent: a research-based guide. 2nd ed. Maryland: NIH Publications; 2003.. Nessas estratégias não são incluídas intervenções coercitivas, que costumam se realizar por meio de palestras sobre os efeitos nocivos ou em depoimentos de ex-usuários, pois estas não apresentam desfechos mensuráveis88. Becoña Iglesias E. Bases científicas de la prevención de las drogodependencias. Madrid: Plan Nacional sobre Drogas; 2002.,1111. Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC). Normas Internacionais Sobre a Prevenção do uso de Drogas. Brasília: UNODC; 2014,1616. Shamblena SR, Coursera MW, Abadia MH, Johnsona KW, Younga L, Browneb TJ. An international evaluation of DARE in São Paulo, Brazil. Drugs: Education, Prevention, and Policy 2014; 21(2):110-119.,1717. European Moniroting Center for Drugs and Drug Addiction (EMCDDA). European Drug Prevention Quality Standards: a manual for prevention professionals. Lisbon: EMCDDA; 2011..
O uso de drogas deve ser entendido na perspectiva dos determinantes sociais, como a interação entre fatores que protegem e que colocam em risco a saúde do sujeito, que habita e convive em um ambiente e comunidade que possui crenças e valores, e que esses fatores podem incrementar as condições de vulnerabilidade66. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia estratégico para o cuidado de pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas: Guia AD. Brasília: MS; 2015.,1818. Eriksson I, Cater A, Andershed A-K, Andershed H. What we know and need to know about factors that protect youth from problems: a review of previous reviews. Procedia Social and Behavioral Sciences 2010; 5:477-482.–2020. Rose G. The strategy of preventive medicine. Oxford: Oxford University Press; 1992.. O estudo dessa cadeia de mediações entre fatores de risco e proteção permite também evidenciar os pontos mais sensíveis onde tais intervenções podem provocar maior impacto, incluindo, por exemplo, impactos diferentes sobre gêneros2121. Vigna-Taglianti FD, Galanti MR, Burkhart G, Caria MP, Vadrucci S, Faggiano F. “Unplugged”, a European school-based program for substance use prevention among adolescents: Overview of results from the EU-Dap trial. New directions for youth development 2014; (141):67-82.–2323. Vigna-Taglianti FD, Vadrucci S, Faggiano F, Burkhart G, Siliquini R, Galanti MR. Is universal prevention against youths' substance misuse really universal? Gender-specific effects in the EU-Dap school-based prevention trial. J Epidemiol Community Health 2009; 63(9):722-728..
Estudos indicam que adolescentes que consomem álcool antes dos 12 anos de idade, em comparação àqueles que não o fazem, estão mais propensos a consumir álcool em padrão binge (consumo de cinco doses ou mais numa única ocasião), apresentarem padrões de consumo pesado (consumo superior a 19 dias por mês) e fazer uso de drogas ilícitas2424. Sanchez ZM, Santos MG, Pereira AP, Nappo SA, Carlini EA, Carlini CM, Martins SS. Childhood alcohol use may predict adolescent binge drinking: a multivariate analysis amog adolescents in Brazil. J Pediatr 2012; 163(2):363-368.. Os dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar do ano de 2012 indicam, entre adolescentes do nono ano do Ensino Fundamental das Escolas Públicas e Privadas, a prevalência de 50,3% para experimentação alcóolica e 26,1% para consumo nos últimos 30 dias, o que reforça a indicação de que as ações de prevenção devem acontecer, portanto, antes do primeiro consumo2525. Malta DC, Machado IE, Porto DL, Silva MMA, Paula Freitas PC, Costa AWN, Maryane Oliveira-Campos M. Consumo de álcool entre adolescentes brasileiros segundo a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE 2012). Rev Bras Epidemiol Suppl Pense 2014; 17(Supl. 1):203-214..
Em estudo recente, Szalavitz2626. Szalavitz M. Unbroken Brain: A Revolutionary New Way of Understanding Addiction. New York: St Martins's Press; 2016. aponta para o mito da “personalidade aditiva” e indica que há traços de caráter universais que são comuns a todas as pessoas que fazem, ou não, uso problemático. A pesquisa acrescenta que não são os traços em si que são mais ou menos protetores e, por isso, não se trata de eliminar determinados traços em detrimento de outros, mas são os extremos de personalidade e temperamento, alguns dos quais estão associados com talentos, e não déficits, em que se eleva o risco. Sloboda et al.2727. Sloboda Z, Meyer D, Glantz T, Ralph ET. Revisiting the concepts of risk and protective factors for understanding the etiology and development of substance use and substance use disorders: implications for prevention. Subst Use Misuse 2012, 47(8-9):944-962., na mesma direção, indicam que os fatores de predisposições do ponto de vista genético, neurobiológico e de comportamento são insuficientes para explicar o uso problemático de drogas, pois o fator que ativa a predisposição sempre será a interação com o ambiente.
Há a necessidade que o campo da prevenção supere a lógica curativa de um modelo verticalizado de se pensar saúde pública, e passe a integrar a perspectiva da saúde coletiva que amplia a percepção sobre o conceito de risco, e compreender que os agravos e doenças compartilham os mesmos mediadores de vulnerabilidades de coletivos e que passam, assim, a abranger o aspecto ecológico e adaptativo da saúde na comunidade2828. Merchan-Hamann E. Os ensinos da educação para a saúde na prevenção de HIV-Aids: subsídios teóricos para a construção de uma práxis integral. Cad Saúde Pública 1999; 15(Supl. 2):85-92..
As escolas se destacam pelo seu papel de compartilhar e problematizar as normas sociais e por isso são contextos privilegiados para a promoção da saúde, e essas ações devem acontecer num clima de relações de solidariedade entre pessoas e grupos e devem se estender aos demais setores, como o da saúde, na perspectiva da intersetorialidade, tornando possível uma intervenção comunitária que fortaleça a coesão social, um fator protetor2929. European Drug Addition Prevention Trial (EU-DAP). Preventing Substance Abuse Among Students: a guide to successful implementation of Comprehensive Social Influence (CSI) curricula in schools. Novara: EU-DAP; 2013.,3030. European Moniroting Center for Drugs and Drug Addiction (EMCDDA). Insights: Prevention of substance abuse. Luxembourg: Official Publications of the European Communities; 2008..
As evidências demonstram que a promoção de habilidades de vida vêm confirmando seus efeitos preventivos. Destacam-se o desenvolvimento das habilidades de manejo das emoções, criatividade, pensamento crítico, resolução de problemas e tomada de decisão99. World Health Organization (WHO). Outcome Evaluation Summary Report: WHO/UNODC Global Initiative (1999-2003) on Primary Prevention of Substance Abuse. Geneva: WHO; 2007.,1010. Botvin GJ, Griffin KW. Life Skills Training: Empirical Findings and Future Directions. The Journal ufa Primary Prevention 2004; 25(2):211-232.,3131. Paiva FS, Rodrigues MC. Habilidades de vida: uma estratégia preventiva ao consumo de substâncias psicoativas no contexto educativo. Estudos e pesquisas em psicologia 2008; 8(3):672-684.. Os fatores de proteção são, porém, multifacetados e por isso não devem ser confundidos com modelos comportamentais ideais – deve-se superar a tentativa de identificar traços de personalidade que possam vir a tornar o sujeito mais ou menos propenso a tornar-se um usuário problemático de drogas.
Diante dos desafios de repostas ao uso de drogas no Brasil, a Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, em parceria com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) vêm investindo desde o ano de 2013 na adaptação, implantação e avaliação de programas de prevenção do uso de drogas entre educandos brasileiros. Faz parte desse processo a implementação do programa Unplugged, que apresentou resultados de efeitos preventivos em sete países europeus e foi adaptado em vários países da África e Ásia2020. Rose G. The strategy of preventive medicine. Oxford: Oxford University Press; 1992.–2222. Vadrucci S, Federica D, Vigna-Taglianti FD, Der-Kreeft PV, Vassara M, Scatigna M, Faggiano F, Burkhart G; EU-Dap Study Group. The theoretical model of the school-based prevention programme Unplugged. Glob Health Promot 2015; 23(4):49-58.,3232. Miovsky M, Novak, P, Stastna L, Gabrhelik R, Jurystova L, Vopravil J. Resultados del programa de prevención escolar Unplugged sobre el uso del tabaco en la República Checa/The Effect of the School-Based Unplugged Preventive Intervention on Tobacco Use in the Czech Republic. Adicciones 2012; 4(3):211-218.,3333. Faggiano F, Vigna-Taglianti F, Burkhart G, Bohrn K, Cuomo L, Gregori D, Panella M, Scatigna M, Siliquini R, Varona L, van der Kreeft P, Vassara M, Wiborg G, Galanti MR. The effectiveness of a school-based substance abuse prevention program: 18-Month follow-up of the EU-Dap cluster randomized controlled trial. Drug Alcohol Depend 2010; 8(1-2):56-64.. A avaliação contínua dos programas é uma diretriz da iniciativa brasileira e o programa Unplugged está a ser avaliado nas suas diferentes etapas de implementação, quanto às necessidades de adaptação cultural, avaliação de processo, eficácia e efetividade, pelas Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)3434. Medeiros PFP, Cruz JI, Schneider DR, Sanudo A, Sanchez ZM. Process evaluation of the implementation of the Unplugged Program for drug use prevention in Brazilian schools. Subst Abuse Treat Prev Policy 2016; 11:2..
O programa Unplugged, nomeado no Brasil em 2014 de #Tamojunto, é organizado em 12 aulas conduzidas por professores em escolas do Ensino Fundamental junto a educandos de 11 a 14 anos, em 2013, e 13 e 14 anos, a partir de 2014. Além das 12 aulas há 3 Oficinas para Pais e Comunidade a serem realizadas, na versão brasileira, por profissionais de saúde da Atenção Básica e da educação3535. Pedroso RT, Abreu S, Kinoshita, RT. Aprendizagens da intersetorialidade entre saúde e educação na prevenção do uso de álcool e outras drogas. Textura 2015; (33):9-24.. Sua linha teórica baseia-se no modelo Comprehensive Social Influence Model3434. Medeiros PFP, Cruz JI, Schneider DR, Sanudo A, Sanchez ZM. Process evaluation of the implementation of the Unplugged Program for drug use prevention in Brazilian schools. Subst Abuse Treat Prev Policy 2016; 11:2., que se define pelo seguinte tripé: (1) promoção de habilidades de vida; (2) informações sobre drogas; e (3) pensamento crítico frente às crenças normativas. Cada aula tem duração prevista de 60 minutos.
Na literatura há diferentes modelos de adaptação cultural, mas que coincidem por conterem passos que orientam uma investigação que se utiliza de métodos quantitativos (efeitos) e qualitativos (descritivos-analíticos) para levantar as necessidades de adaptação3636. Castro FG, Barrera Jr M, Steiker LKH. Issues and challenges in the design of culturally adpated evidence-based interventions. Annu Rev Clin Psychol 2010; (6):213-239.,3737. Domenech-Rodríguez M, Wieling E. Developing culturally appropriate, evidence-based treatments for interventions with ethnic minority populations. In: Rastogi M, Wieling, E, editors. Voices of Color: First-Person Accounts of Ethnic Minority Therapists. Oaks: Sage; 2004. p. 313-333.. Falicov3838. Falicov CJ. Commentary: on the wisdom and challenges of culturally attuned treatments for Latinos. Fam Proc 2009; 48:292-309. compreende a adaptação cultural como um caminho intermediário entre duas posturas extremas: de um lado o entendimento de que a evidência tem um caráter universal que pode ser replicado a qualquer grupo e, de outro, a compreensão de que uma evidência encontrada em um subgrupo cultural não pode ser adaptada.
O presente estudo analisou aspectos das fases de adoção e implementação piloto do Programa referido para a construção de recomendações de adequação da implementação ao contexto brasileiro, com a identificação de procedimentos que sejam percebidos como pertinentes e adequados à cultura do público alvo, contribuindo com as futuras etapas de disseminação. Parte-se, portanto, do entendimento de que a construção de hipóteses indutivas e dedutivas a partir de evidências de implementação do programa Unplugged favorecem a construção de políticas públicas no campo da prevenção e promoção em saúde, na identificação de fatores que possam operar de forma determinante na sustentabilidade da iniciativa3838. Falicov CJ. Commentary: on the wisdom and challenges of culturally attuned treatments for Latinos. Fam Proc 2009; 48:292-309.,3939. Vadruci S, Vigna-Taglianti FD, Van de Kreeft P, Vassara M, Scatigna M, Faggiano F, Burkhart G, EU-DAP Study Group. The theoretical model of the school-based prevention programme Unplugged. Global Health Promot 2015; 23(4):49-58..
A teoria fundamentada nas evidências das experiências
O presente estudo, de caráter qualitativo, baseou-se na Teoria Fundamentada Construtivista4040. Leite F. Raciocínio e procedimentos da Grounded Theory Construtivista. Revista de Epistemologias da Comunicação 2015; 3(6):76-85.,4141. Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009., que consiste no desenvolvimento de teorias a partir da pesquisa baseada em dados em vez da dedução de hipóteses analisáveis a partir de teorias existentes, com a construção de explicações dos processos sociais.
Seguiram-se as etapas metodológicas previstas no modelo, a saber: amostragem dirigida à construção da teoria e não visando a representação populacional; construção de códigos e categorias analíticas a partir dos dados e não de hipóteses preconcebidas; constante utilização de método comparativo dos dados entre o mesmo sujeito e entre diferentes sujeitos; redação de memorandos para elaboração de categorias; formulações de relações que levam à construção de teorias a cada etapa de análise; e a revisão bibliográfica após o desenvolvimento de uma análise independente.
O piloto do programa Unplugged (2013) foi realizado em oito escolas públicas distribuídas nas cidades de São Paulo (SP), São Bernardo do Campo (SP) e Florianópolis (SC), abrangendo um total de 2.161 educandos do Ensino Fundamental. Para a implementação piloto foi organizado um sistema de capacitação, monitoramento e avaliação que previa um articulador essencial, denominado multiplicador, que acumulava a função de formar professores, realizar o acompanhamento em lócus dessa implementação no formato de encontros individuais, e de preencher sistematicamente um instrumento de caráter qualitativo-descritivo, denominado Diários Cartográficos.
Esses Diários se constituíram como a amostragem inicial4141. Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009. do presente estudo. Eles foram preenchidos por seis multiplicadores que, por sua vez, foram selecionados e formados pelos desenvolvedores internacionais do programa, gerando ao todo 144 Diários Cartográficos da implementação do programa Unplugged. Os Diários Cartográficos continham informações do processo que revelavam opiniões, sentimentos, intenções e ações dos multiplicadores, influenciando os tomadores de decisões sobre as necessidades de adequação do conteúdo e da estrutura de implementação do programa ao contexto brasileiro.
Enquanto os multiplicadores acompanhavam presencialmente as etapas de implementação do programa em cada território, supervisores vinculados ao Ministério da Saúde eram responsáveis pela gestão político-institucional. Os supervisores elaboravam documentos-síntese de gestão que demarcavam as tomadas de decisão sobre as adequações do programa, seu alcance e desafios. Ao mesmo tempo a UNIFESP e a UFSC realizaram pesquisas, a partir de métodos mistos, sobre os efeitos e a aceitabilidade do programa.
Considerando que a Teoria Fundamentada Construtivista não parte de hipóteses preestabelecidas nem de objetivos especificamente demarcados, mas de uma área de investigação complexa ou de uma problematização aberta e gerativa, a identificação dos dados de análise se dá concomitantemente às formulações teóricas intermediárias. Assim, como amostragem teórica4141. Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009. foram incorporados dois instrumentos advindos dessas formulações: a “Matriz Lógica de adaptação cultural”, desenvolvida pelos supervisores do programa e o Relatório de pesquisa titulado “Resultados da Avaliação da Implantação Piloto do Programa Unplugged em São Paulo e Santa Catarina” (UFSC e UNIFESP).
A etapa de revisão bibliográfica levou à incorporação da Teoria de Difusão de Inovações de Rogers4242. Rogers EM. Diffusion of innovations. 4th ed. New York: Free Press; 1995. na apresentação das recomendações, visando contribuir com aspectos da adequação do programa.
Seguindo as etapas de análise da Teoria Fundamentada Construtivista4141. Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009., chegou-se às seguintes classificações teóricas: “A necessidade de mudança de paradigma na prática dos profissionais de saúde e educação”; “A ‘animação’ e o ‘desânimo’ na implementação do projeto”; “Os ‘pontos operacionais’ como maior desafio na adequação ao contexto”. A elaboração das classificações teóricas seguiram a recomendação metodológica da construção de diagramas compreensivos (Figura 1).
Categorias de análise e a construção dos argumentos
A necessidade de mudança de paradigma na prática dos profissionais de saúde e educação
Os multiplicadores descreveram que para se ter a compreensão do programa e obter o manejo adequado das técnicas propostas, foi necessário um investimento na ampliação do campo teórico-conceitual junto aos professores. Esse investimento dialogava com saberes prévios sobre prevenção mais próximos a ações informativas e coercitivas e foi percebido como uma “empreitada”. Em alguns contextos o próprio professor vivenciou isso junto aos educandos que manifestaram resistências iniciais como, por exemplo, questionar o professor se ele os percebia como “drogados” ou afirmando que “já sabiam tudo sobre as drogas”.
Fazer a transição da passagem de informação para a mediação de interações foi um desafio. O multiplicador incentivou o professor a experimentar a técnica, ao mesmo tempo em que trazia os “por que” e “para que” da estratégia percebida como “algo novo”. As dificuldades em lidar com a proposta e com a indisciplina levou os professores a tomarem decisões de adequação que estiveram mais relacionadas com transmissão de informação e cobrança de aprendizagem de conteúdo.
O programa original prevê que as aulas tenham uma duração de 60 minutos, porém, no contexto brasileiro, elas variaram entre 40 e 50 minutos. Isso exigiu uma flexibilização no planejamento e execução das atividades: além de ter que lidar com um tempo mais curto do que o necessário, o professor não se percebeu tendo habilidades para produzir modos mais interativos. As maiores dificuldades relatadas pelo professor foram: organizar a sala em roda, o que muitas vezes não era possível pela própria estrutura do local; incentivar as discussões em pequenos grupos para depois realizá-las em grupos maiores; as dinâmicas de aquecimento e de divisão de grupos, denominadas “energizadores”, na qual os educandos podiam “se energizar demais”.
Houve desafios semelhantes relatados pelos profissionais da saúde na realização da Oficina de pais da comunidade. Como o formato original de programação da oficina não foi seguido em nenhum contexto, houve a indução pelo multiplicador do planejamento dos encontros de modo intersetorial (saúde e educação). Houve uma sobreposição inicial do setor saúde sobre o da educação, tanto no planejamento quanto na condução da oficina, e uma tendência de opção pelo caráter informativo. Os convites aos pais e comunidade para a participação na Oficina seguiram o envio de convite impresso via educando, usuais na organização. A baixa adesão nas oficinas foi compreendida pelo multiplicador como uma baixa participação na instituição/escola. Uma aluna chegou a comentar que sua mãe não foi porque ela não é “drogada”. Uma professora exemplificou relatando que a reunião de pais, hoje, na escola em que leciona, parece um “velório”.
A “animação” e o “desânimo” na implementação do projeto [subsubtítulo]
Os multiplicadores atuaram no fomento da intersetorialidade entre saúde e educação. A intersetorialidade era um fator de “desânimo” para os profissionais quando não havia apoio dos gestores das escolas e dos equipamentos de saúde para a realização das ações conjuntas. Houve relatos de constrangimento dos profissionais de saúde que, nas horas de dedicação às atividades intersetoriais, estariam se “ausentando do trabalho”.
Houve, na maioria dos contextos, um distanciamento do gestor escolar com o professor do programa, o que se configurou como um “desânimo” e, nesse contexto, a figura do multiplicador se tornou mais essencial. Esse distanciamento, porém, foi descrito como parte de uma rotina escolar acumulada de tarefas, organizada em um calendário com prazo e que é concorrido no segundo semestre, período em que ocorreu o projeto. Há descrições de práticas mais impositivas em relação à chegada programa e, para os professores que se sentiram “obrigados” a atuar, esse foi um fator de desânimo.
O prejuízo no cumprimento curricular das disciplinas regulares, ocasionado pela entrada do projeto, foi agravado pelo não envolvimento da gestão. Nos contextos em que a gestão se dispôs a rever arranjos institucionais não houve um desânimo, já quando o professor teve que lidar sozinho houve “desânimo”, revelado como “Só não desisti porque já tinha me comprometido”. Esse compromisso foi relatado como sendo “de profissional para profissional”, e esse vínculo com confiança entre o professor e o multiplicador foi importante para que o professor expressasse as dificuldades de implementação – tensionada pela percepção do professor de que suas habilidades estivessem em avaliação e não o projeto em si.
O professor relatou que as relações de trabalho e vínculos nas instituições, agravadas pela alta vulnerabilidade à violência que estavam imersos, eram um fator e “desânimo”. O tema das drogas gerava medo no professor especialmente nas escolas que estão na rota do tráfico.
Um fator de “animação” foi as mudanças das relações em sala de aula, caracterizada pela descoberta do “lúdico”. Dentre os efeitos do programa são descritos: melhoria na relação professor e educando; melhoria na relação dos educandos entre si (quebra dos “grupinhos”); resgate de educandos desinteressados; melhoria na prática do professor; “o projeto abre portas para o autoconhecimento”; melhoria na disciplina; exercício do pensamento crítico por parte dos educandos; e vivência de prazer, emoção e alegria em sala de aula, especialmente nas interações dos educandos entre si e nas encenações (role play), atividade identificada como a preferida dos educandos.
Os “pontos operacionais” como maior desafio na adaptação ao contexto
Os pontos operacionais se revelaram como o maior desafio de organização do processo de trabalho. Em uma parceria entre o multiplicador e os profissionais das escolas para a organização da agenda de implementação foram previstas visitas de acompanhamento numa frequência mínima quinzenal. Em alguns contextos o coordenador pedagógico da escola assumiu a tarefa de organizar as agendas, mas foi desestabilizado pelas demandas da escola. Os calendários eram revistos pelo multiplicador permanentemente, e essa tarefa tomou o maior tempo gasto à distância. As mudanças de rotina eram inicialmente mobilizadas por e-mail, mas como esse mecanismo não se mostrou eficaz para a comunicação, elas eram complementadas por contatos telefônicos ou, em último caso, por visitas presenciais fora da data prevista, como “montar um quebra-cabeça”. O multiplicador se percebeu como essencial nessa fase, o que gerou preocupações em relação à sustentabilidade do projeto.
Houve uma consonância entre as escolas do que deveria ser ajustado em relação à linguagem e ao conteúdo do programa, inclusive entre as cidades participantes, além do entusiasmo de professores em colaborar com as propostas. Essas adequações se revelaram como exequíveis aos multiplicadores.
Da prevenção à promoção da saúde: recomendações de adequação do programa Unplugged e seus desafios no contexto das desigualdades sociais
O programa Unplugged está baseado na interação de três teorias3939. Vadruci S, Vigna-Taglianti FD, Van de Kreeft P, Vassara M, Scatigna M, Faggiano F, Burkhart G, EU-DAP Study Group. The theoretical model of the school-based prevention programme Unplugged. Global Health Promot 2015; 23(4):49-58.: “Social Learning Theory”, de Albert Bandura, “Health Belief Model”, de Irwin M. Rosenstock e “Reasoned Action – Attitude”, de Martin Fishbein e Icek Ajzen. As teorias partem da compreensão de que a personalidade é formada a partir da interação entre o ambiente, comportamentos e processos psicológicos e ocorre a partir da observação e modelagem de comportamentos, atitudes e reações emocionais de outros por aprendizagem imitativa; as percepções dos riscos à saúde são diretamente afetadas pelas variáveis sociais, ambientais e psicológicas sendo que todos esses elementos são determinantes no desenvolvimento de comportamentos de maior ou menor risco à saúde; e as crenças subjetivas são determinadas pela intenção de compartilhar comportamentos daqueles que fazem parte dos contextos dos sujeitos, incluindo referências midiáticas.
Não há evidências internacionais de quais seriam os desafios na adequação do programa, tendo em vista que os estudos existentes apontavam resultados com relação ao impacto no uso de drogas e não sobre o processo de implantação e suas etapas3333. Faggiano F, Vigna-Taglianti F, Burkhart G, Bohrn K, Cuomo L, Gregori D, Panella M, Scatigna M, Siliquini R, Varona L, van der Kreeft P, Vassara M, Wiborg G, Galanti MR. The effectiveness of a school-based substance abuse prevention program: 18-Month follow-up of the EU-Dap cluster randomized controlled trial. Drug Alcohol Depend 2010; 8(1-2):56-64.. No Brasil, a avaliação de processo apresentou resultados que dialogam com o presente estudo e serão abaixo detalhados3434. Medeiros PFP, Cruz JI, Schneider DR, Sanudo A, Sanchez ZM. Process evaluation of the implementation of the Unplugged Program for drug use prevention in Brazilian schools. Subst Abuse Treat Prev Policy 2016; 11:2..
É possível reafirmar que boas técnicas precisam, para se tornarem boas práticas, de um mapeamento das incompatibilidades entre a técnica e o contexto. Os ambientes, as crenças subjetivas e as normas sociais atuam nas intenções dos sujeitos, os aproximando ou os distanciando de práticas de risco às suas saúdes e das coletividades.
As incompatibilidades mapeadas irão interferir diretamente na difusão de inovações e seus estágios. Os estágios de difusão de inovações4242. Rogers EM. Diffusion of innovations. 4th ed. New York: Free Press; 1995. são compreendidos como etapas que passam pela adoção, implementação, disseminação e sustentabilidade. A Teoria de Difusão de Inovações indica que a compreensão cuidadosa de como os implementadores da intervenção atualizam, modificam e criticam as ações previstas, são informações estratégicas para a adequação da intervenção e organiza quatro elementos centrais para a análise, a saber: a inovação propriamente dita; os meios de comunicação; o tempo requerido para aprender sobre a nova tecnologia; e o sistema social no qual a inovação está inserida.
A “inovação propriamente dita” é um elemento caracterizado pela percepção dos implementadores quanto aos aspectos da nova ação ser, ou não, uma proposta melhor que as anteriormente utilizadas, tanto numa perspectiva econômica como subjetiva. Se faz assim necessária a compreensão de aspectos da compatibilidade e da incompatibilidade (complexidade) com as realidades, e de como as normas e princípios da cultura influenciam na percepção da inovação da ação. O “meios de comunicação” é um elemento que identifica os modos como os participantes criam e compartilham informações uns com os outros, a fim de chegar a um entendimento mútuo, considerando-se que a maioria dos indivíduos percebem uma inovação não com base em pesquisas científicas, mas por meio de subjetivas avaliações dos pares que adotaram a inovação. O “Tempo” é o elemento que valoriza a figura do “inovador” como um agente de manutenção e disseminação da estratégia mesmo lidando com os graus de incerteza da nova ação. O “Sistema social” constitui um limite dentro do qual se difunde uma inovação e por isso os padrões de interação da comunidade devem ser compreendidos para que possam incorporar novas práticas.
Seguem abaixo formulações teóricas das recomendações sobre a adequação ao contexto brasileiro do programa Unplugged #Tamojunto, organizadas nos estágios da Teoria da Difusão de Inovações de Rogers4242. Rogers EM. Diffusion of innovations. 4th ed. New York: Free Press; 1995., emergentes das análises acima descritas:
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A inovação propriamente dita: as análises dos dados revelam que há aspectos da percepção da ação como inovadora que podem ser melhorados. Sobre esses aspectos destaca-se como recomendação: incluir um momento de apresentação institucional do projeto para a comunidade escolar (professores, educandos, pais e outros), com foco nos elementos de inovação do projeto; adequar etapas prévias de adesão das diferentes instâncias (Estaduais, Municipais e Locais) à implementação do programa; instituir o acompanhamento presencial do professor implementador, com foco em elementos de melhoria da implementação articulando os aspectos teóricos que embasam o programa; criar arranjos locais sustentáveis para a manutenção da função do multiplicador; e incorporar o programa numa lógica curricular e não extracurricular.
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Os meios de Comunicação: houve fragilidades na comunicação entre os diversos atores da implementação, incluindo a comunidade, e uma baixa troca de experiências dos implementadores entre si e com os gestores das unidades escolares e de saúde. Para o aprimoramento desses canais, propõe-se como adequação: incluir na estrutura de implementação momentos de troca dos professores entre si sobre a experiência de implementação; adequar o convite para a Oficinas de pais e comunidade na perspectiva da mobilização comunitária; ampliar a relação com as gestões das Secretarias Municipais e Estaduais de saúde e educação para elevar os níveis da prevenção e promoção da saúde às políticas públicas locais; e incluir os gestores locais em níveis de decisão estratégicas do projeto no fomento da gestão participativa e compartilhada.
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O Tempo: o tempo de aprendizagem da inovação pelos diferentes atores da implementação influenciou na superação dos desafios da ação. O reconhecimento da inovação pelos gestores se revelou como um elemento influenciador no tempo de aprendizagem do professor e profissional de saúde pois possibilitou, ou não, que os encontros de acompanhamento pudessem se concretizar. O multiplicador se revelou como um ator estratégico para a capacitação do “inovador” influenciando no cumprimento das agendas previstas para a ação. Considerando a necessidade de ampliação da aprendizagem e da rede de inovadores, recomenda-se: que a formação presencial inicial deve ter a participação de um representante da gestão escolar e a participação integral dos implementadores (saúde e educação); incluir na formação presencial inicial um momento de início de construção de agenda das atividades previstas no projeto; priorizar ações de planejamento e acompanhamento da implementação de forma coletiva e não individual; criar instrumentos que monitorem indicadores de processo de implementação; e compreender as recomendações dos professores de adaptação do material como produção permanente de conhecimento inovador.
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O Sistema Social: os paradigmas de atuação no campo da temática das drogas, desde as concepções baseadas em aspectos morais até aquelas relacionadas com pedagogias participativas, influenciaram nos desafios da implementação e nos compromissos com a fidelidade. As relações entre os campos da saúde e educação na perspectiva da intersetorialidade se revelaram como aspectos essenciais para concretização do envolvimento da comunidade. As organizações, com suas regras e modos de operar (saúde e educação), perceberam que há a necessidade de flexibilização em padrões institucionais para a implementação da inovação e outros em que a inovação deve se adequar aos padrões não passíveis de mudança. Considerando os aspectos do sistema social na sustentabilidade da inovação, sugere-se como recomendação de adequação: realizar um mapeamento junto aos atores dos antecedentes de prevenção do território, assim como os antecedentes intersetoriais (saúde e educação); ampliar a implementação do projeto ao longo do ano para diminuir danos no conteúdo curricular; adequar o tempo-aula; e considerar padrões diferenciados de acompanhamento aos professores de turmas com histórico de violência.
A avaliação de processo da implementação do programa no Brasil3434. Medeiros PFP, Cruz JI, Schneider DR, Sanudo A, Sanchez ZM. Process evaluation of the implementation of the Unplugged Program for drug use prevention in Brazilian schools. Subst Abuse Treat Prev Policy 2016; 11:2. traz elementos que possibilitam complementar as formulações teóricas acima descritas. Dentre elas, destacam-se as recomendações que indicam a necessidade de adequação do tempo da hora-aula, o planeamento estratégico entre os setores envolvidos e a ampliação do apoio da direção escolar.
Dentre os elementos elucidados nesse presente estudo está a dificuldade dos profissionais de saúde e educação, incluindo a gestão, em implementar essa prevenção baseada em princípios interativos e de diálogo e que caminha para a produção de novas condições de inclusão social. No caso do Unplugged, essa dificuldade se deu no interior do contexto de um currículo escolar e agenda pedagógica voltado para as atividades disciplinares centradas na transmissão de conteúdos, com pouca flexibilidade de tempo e de novas organizações institucionais. A gestão escolar esteve distante das demandas do grupo de professores e a relação entre a escola e a comunidade mostrou-se fragilizada.
Os professores sentem medo de falar sobre drogas e a atuação intersetorial entre saúde e educação não se revelou uma prática dos setores. A prevenção ainda é percebida pela saúde como uma ação de dar informações corretas e há um desconhecimento sobre os marcos teórico-conceituais e práticos das evidências na prevenção.
Freitas4343. Freitas L. A instituição do fracasso: a educação da ralé. In: Souza J. A Ralé Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Ed. UFMG; 2009. p.281-304. trabalha com o conceito de má fé institucional na educação, entendida como um padrão de atuação institucional que se articula desde o Estado até os micropoderes e as relações cotidianas, em que as hierarquias de classes determinam os recursos simbólicos que as instituições oferecem. Num contexto em que operam desigualdades sociais, há instituições que não levam em conta essas vulnerabilidades nos seus modos de se organizarem e que acabam por negar os próprios sujeitos-educandos. As condições de trabalho fazem da própria instituição, ela mesma, espaço de acirramento da violência simbólica. Essa perspectiva nos coloca diante de um grande desafio na mudança paradigmática da promoção da saúde, que é fazer “boas práticas” em instituições que, nas suas trajetórias de vulnerabilidades, levaram a uma negação do diálogo, da ludicidade, do prazer da autonomia. Há um acesso universal à escola, mas não há um acesso universal à educação e isso se dá por mecanismos de reprodução de desigualdades, em que as instituições não são organizadas para os mais vulneráveis, e reproduzem as suas invisibilidades4141. Charmaz K. A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed; 2009..
A vivência desse outro caminho, não de “guerra às drogas”, mas de coesão social, pode ser libertador. Ao trabalhar com promoção da saúde, em que o profissional ocupa um papel de mediador junto a educandos, rompe-se com posturas de práticas prescritivas, informativa e autoritária e aprende-se a atuar captando paixões, medos e alegrias1212. Maturana H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG; 1998.. O que está em questão na promoção da saúde não é apenas a adequação de conteúdo, mas uma adequação de modos de ser e conviver: um convite à mediação de emoções1212. Maturana H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG; 1998.. O multiplicador, em momentos desse projeto, ocupou esse lugar de mediador junto aos profissionais e o professor ocupou esse lugar de mediador junto aos educandos. O Unplugged #Tamojunto foi capaz de produzir vivências de revalorização do professor e do profissional de saúde em seu papel social. Essa prevenção pautada pela ética da promoção da saúde é um caminho que contribui com o rompimento dessa reprodução, de geração em geração, de mecanismos de invisibilidade. Uma prevenção pontual, moral, proibicionista, é reprodutora de desigualdades e está distante dos princípios da promoção da saúde. Uma prevenção interativa, voltada para o desenvolvimento de habilidades de vida, de reflexão crítica sobre as crenças e normas sociais, produz uma emoção, uma marca de libertação. É por isso que o professor não desistiu do projeto.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Fev 2019
Histórico
- Recebido
28 Maio 2016 - Revisado
15 Fev 2017 - Aceito
17 Fev 2017