Alimentação do Trabalhador: uma avaliação em indústrias no nordeste do Brasil

Worker’s Nutrition: an evaluation in industries in north-eastern Brazil

Ruth Cavalcanti Guilherme Raquel Canuto Sabrina Gomes Ferreira Clark Fábio Nogueira de Vasconcelos Vivianne Montarroyos Padilha Fernanda Cristina de Lima Pinto Tavares Renata Freire de Melo Pessoa Pedro Israel Cabral de Lira Sobre os autores

Resumo

Objetivo deste artigo é avaliar o Programa de Alimentação do Trabalhador sob a ótica de gestores, nutricionistas e a alimentação oferecida em indústrias da Região Metropolitana do Recife. Trata-se de um estudo transversal. Foi aplicado questionário estruturado com 40 gestores e 40 nutricionistas acerca dos seus conhecimentos sobre o programa e o cumprimento das atribuições exigidas por ele. Também foi avaliada a qualidade nutricional dos cardápios. Entre os gestores e os nutricionistas, 22,5% e 72,5% não sabiam do cadastro no programa e das suas exigências nutricionais, respectivamente. Grande parte dos nutricionistas e gestores relacionou o programa a uma exigência da legislação trabalhista. Nenhum respondente conhecia a obrigatoriedade de ações de educação alimentar e nutricional, mesmo assim, 55% dos serviços realizavam ações educativas e 25% realiza avaliação nutricional dos trabalhadores. Observou-se que apesar da oferta de bebidas naturais, frutas e folhosos diariamente, também há oferta diária de diversos produtos ultraprocessados, principalmente doces e bebidas artificiais. O estudo evidenciou o pouco conhecimento dos gestores e dos nutricionistas sobre os objetivos do programa bem como a sua insipiente execução.

Palavras-chave
Programas e Políticas de Nutrição e Alimentação; Saúde do Trabalhador; Planejamento de cardápio; Alimentação

Abstract

The scope of this article is to evaluate the Worker Food Program from the viewpoint of managers, nutritionists and the food offered in industries of the Metropolitan Region of Recife. It consisted of a cross-sectional study. A structured questionnaire was filled out by 40 managers and 40 nutritionists regarding their knowledge about the program and compliance with the tasks required by it. The nutritional quality of the menus was also evaluated. Among the managers and nutritionists, 22.5% and 72.5%, respectively, did not know about the enrolment in the program and the nutritional requirements involved. Most nutritionists and managers related the program to a labor law requirement. None of the respondents knew about the mandatory food and nutritional education actions, even though 55% of the services involved educational actions and 25% performed nutritional assessment of the workers. It was found that, despite the daily supply of natural beverages, fruit and leafy vegetables, there is also a daily supply of various ultra-processed products, especially sweet foods and artificial beverages. The study revealed the lack of knowledge of managers and nutritionists about the objectives of the program as well as its incipient execution.

Key words
Nutrition and Food Programs and Policies; Worker health; Menu planning; Food

Introdução

O Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) tem como objetivo o aumento da produtividade, redução da taxa de absenteísmo e de acidentes de trabalho, por meio de ações de promoção à saúde que visem hábitos alimentares e manutenção do peso saudáveis. Para tanto, as empresas participantes fornecem refeições subsidiadas de forma compartilhada com Governo Federal e, em contrapartida, recebem benefícios fiscais11 Tavares FCLP, Leal VS. Evolução da política e dos programas de alimentação e nutrição no Brasil: de Josué de Castro à política nacional de segurança alimentar e nutricional. Recife: Editora Universitária da UFPB; 2012..

Embora seus objetivos tenham sido mantidos ao longo do tempo, bem como o ambiente de trabalho como cenário de sua realização, a literatura aponta a relação, não rara, entre a presença do programa e o aumento dos índices de excesso de peso e comorbidades na população trabalhadora, demonstrando um descompasso entre os objetivos e sua operacionalização22 Araujo MPN, Costa-Souza J, Trad LAB. A alimentação do trabalhador no Brasil: um resgate da produção científica nacional. Hist Cien Saude-Manguinhos 2010; 17(4):975-992..

Esse descompasso, aliado ao grande o número de estudos epidemiológicos que comprovam a associação do excesso de peso e dietas de composição inadequada com as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT)33 Rodriguez-Fernandez R, Rahajeng E, Viliani F, Kushadiwijaya H, Amiya RM, Bangs MJ. Non-communicable disease risk factor patterns among mining industry workers in Papua, Indonesia: longitudinal findings from the Cardiovascular Outcomes in a Papuan Population and Estimation of Risk (COPPER) Study. Occup Environ Med 2015; 72(10):728-735.

4 Popkin BM, Adair LS, Ng SW. Global nutrition transition and the pandemic of obesity in developing countries. Nutr Rev 2012; 70(1):3-21.

5 Finucane MM, Stevens GA, Cowan MJ, Danaei G, Lin JK, Paciorek CJ, Singh GM, Gutierrez HR, Lu Y, Bahalim AN, Farzadfar F, Riley LM, Ezzati M, Global Burden of Metabolic Risk Factors of Chronic Diseases Collaborating Group (Body Mass Index). National, regional, and global trends in body mass index since 1980: systematic analysis of health examination surveys and epidemiological studies with 960 country-years and 9.1 million participants. Lancet 2011; 337(9765):557-567.

6 Malik VS, Popkin BM, Bray GA, Després JP, Willett WC, Hu FB. Sugar-sweetened beverages and risk of metabolic syndrome and type 2 diabetes: A meta-analysis. Diabetes Care 2010; 33(11):2477-2483.
-77 Veloso IS, Santana VS, Oliveira NF. Programas de alimentação para o trabalhador e seu impacto sobre ganho de peso e sobrepeso. Rev Saúde Pública 2007; 41(5):769-776., provocou uma atualização legislativa. A portaria nº 193/2006, trouxe mudanças expressivas nos parâmetros nutricionais e instituiu ações de educação alimentar e nutricional e o provimento de refeição adequada a qualquer trabalhador que apresente patologia relacionada à alimentação, devidamente diagnosticada, bem como o acompanhamento nutricional periódico necessário88 Brasil. Portaria Interministerial nº 193, de 5 de dezembro de 2006. Altera os parâmetros nutricionais do Programa de Alimentação do Trabalhador - PAT. Diário Oficial da União 2006; 7 dez..

Dentro deste contexto e considerando que os locais de trabalho têm uma influência significativa nos hábitos alimentares e na condição de saúde dos trabalhadores99 Olinto MTA, Canuto R, Garcez AS. Work and Abdominal Obesity Risk. Elsevier 2014; 1:17-25,1010 De Freitas E, Canuto R, Henn RL, Olinto BA, Macagnan JB, Pattussi MP, Busnello FM, Olinto MTA. Alteration in eating habits among shift workers of a poultry processing plant in southern Brazil. Cien Saude Colet 2015; 20(8):2401-2410., como aponta o documento “Estratégia Global sobre Alimentação, Atividade Física e Saúde” da Organização Mundial de Saúde, que considera as empresas que fornecem alimentação coletiva, protagonistas importantes na promoção de uma alimentação saudável1111 Waxman A, World Health Assembly. WHO global strategy on diet, physical activity and health. Food Nutr Bull 2004; 25(3):292-302., torna-se imprescindível o envolvimento de todos os responsáveis pela execução do PAT na empresa para que essa premissa se torne verdadeira.

No entanto, a responsabilidade ou gestão técnica do profissional legalmente habilitado em nutrição, uma exigência para a execução do programa, bem como o acompanhamento dos gestores administrativos que fiscalizam a execução do programa, como forma de assegurar o fornecimento de uma alimentação adequada e de qualidade, não é necessariamente, uma realidade, como verificaram em seus estudos, Borges e Lima1212 Borjes LC, Lima JS. Programa de Alimentação do Trabalhador: avaliando o conhecimento por parte dos gestores administrativos e técnicos. Rev Demetra 2014; 9(1):107-119., em Santa Catarina; Bandoni et al.1313 Bandoni DH, Brasil BG, Jaime PC. Programa de Alimentação do Trabalhador: representações sociais de gestores locais. Rev Saúde Pública 2006; 40(5):837-842. em São Paulo e Stolte et al.1414 Stolte D, Hennington EA, Bernardes JS. Sentidos da alimentação e da saúde: contribuições para a análise do Programa de Alimentação do Trabalhador. Cad Saúde Pública 2006; 22(9):1915-1924., no Rio Grande do Sul.

Além disso, estudos que avaliaram a alimentação oferecida no contexto do PAT demonstraram que ela não atende às necessidades nutricionais dos trabalhadores. Os cardápios não são adequados em relação às calorias preconizadas pelo programa, tendo inadequações principalmente em carboidratos, lipídeos, sal e fibras1414 Stolte D, Hennington EA, Bernardes JS. Sentidos da alimentação e da saúde: contribuições para a análise do Programa de Alimentação do Trabalhador. Cad Saúde Pública 2006; 22(9):1915-1924.

15 Gorgulho BM, Lipi M, Marchioni DML. Qualidade nutricional das refeições servidas em uma unidade de alimentação e nutrição de uma indústria da região metropolitana de São Paulo. Rev Nutr Campinas 2011; 24(3):463-472.

16 Canella DS, Bandoni DH, Jaime PC. Densidade energética de refeições oferecidas em empresas inscritas no programa de alimentação do Trabalhador no município de São Paulo. Rev Nutr Campinas 2011; 24(5):715-724.

17 Salas CKTS, Spinelli MGN, Kawashima LM, Ueda AM. Teores de sódio e lipídios em refeições almoço consumidas por trabalhadores de uma empresa do município de Suzano, SP. Rev Nutr 2009; 22(3):331-339.

18 Geraldo APG, Bandoni DH, Jaime PC. Aspectos dietéticos das refeições oferecidas por empresas participantes do Programa de Alimentação do Trabalhador na Cidade de São Paulo, Brasil. Rev Panam Salud Publica 2008; 23(1):19-25.

19 Bandoni DH, Jaime PC. A qualidade das refeições de empresas cadastradas no Programa de Alimentação do Trabalhador na cidade de São Paulo. Rev Nutr 2008; 21(2):177-184.
-2020 Savio KEO, Costa THM, Miazaki E, Schmitz BAS. Avaliação do almoço servido a participantes do programa de alimentação do trabalhador. Rev Saúde Pública 2005; 39(2):148-155..

Nesse contexto, este trabalho avaliou a execução do Programa de Alimentação do Trabalhador em indústrias da Região Metropolitana do Recife/PE, através da visão dos seus gestores e da avaliação da qualidade nutricional da alimentação oferecida, como forma de possibilitar uma efetiva contribuição no aprimoramento deste importante programa e consequentemente contribuir para a melhoria da qualidade de vida de quem representa a força produtiva do país.

Métodos

Trata-se de um estudo observacional de corte transversal exploratório, realizado no segmento da indústria por ser o espaço que adere majoritariamente ao PAT, segundo os critérios de inclusão do estudo. A população alvo foi constituída a partir do Cadastro de Indústrias de Pernambuco 2013, cedido pela Gerência da Unidade de Economia, Estudos e Pesquisas (UEP) da Federação de Indústrias de Pernambuco (FIEPE). Foram adotados como critérios de inclusão: 1) Indústrias com refeitório sediado na RMR; 2) Indústrias de porte médio ou grande (≥ 100 funcionários); 3) Indústrias inscritas no PAT nas modalidades autogestão e gestão terceirizada; 4) Presença de nutricionista. Foram excluídas todas as outras indústrias que não atendiam a estes critérios.

Das 4.774 indústrias cadastradas, 327 eram de médio e grande porte. Devido ao cadastro utilizado conter números de telefones inválidos, foi possível estabelecer contato com apenas 279 dessas e 273 aceitaram participar da triagem telefônica que verificou os critérios de inclusão 3 e 4. Ao final, 66 indústrias faziam parte da população alvo (atenderam a todos os critérios de inclusão). Das indústrias elegíveis, 26 recusaram participar do estudo ou não foi possível contato com gestor para autorizar a visita. Desta forma, a amostra final foi constituída por 40 indústrias. As coletas foram realizadas entre agosto de 2014 e maio de 2015.

Os gestores administrativos (gerentes de Recursos Humanos) e técnicos (nutricionistas) foram entrevistados sendo utilizado questionário estruturado, composto por questões abertas cujas respostas foram categorizadas pela técnica de análise do discurso do sujeito coletivo1313 Bandoni DH, Brasil BG, Jaime PC. Programa de Alimentação do Trabalhador: representações sociais de gestores locais. Rev Saúde Pública 2006; 40(5):837-842.,2121 Lefèvre F, Lefèvre AMC. Os novos instrumentos no contexto da pesquisa qualitativa. In: Lefèvre F, Lefèvre AMC, Teixeira JJV, organizadores. O discurso do sujeito coletivo: uma nova abordagem metodológica em pesquisa qualitativa. Caxias do Sul: EDUCS; 2000. p. 11-35. e fechadas, que incluíam dados operacionais, tais como: tempo na empresa, modalidade de gestão do serviço, fiscalização do programa, realização de avaliação da situação de nutrição e saúde e ações de educação alimentar e nutricional para os trabalhadores.

Para avaliação da qualidade da alimentação oferecida para os trabalhadores, foram coletados os cardápios do almoço do mês anterior a aplicação dos questionários. A avaliação dos cardápios seguiu o Método AQPC (Avaliação Qualitativa das Preparações do Cardápio) com adaptações, através dos seguintes critérios elaborados por Veiros2222 Veiros MB. Análise das condições de trabalho do nutricionista na atuação como promotor de saúde em uma Unidade de Alimentação e Nutrição: um estudo de caso [dissertação]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2002.: uso da técnica de fritura de maneira isolada e por imersão quando associada a oferta de doces; variedade de cor das preparações e/ou alimentos isolados; presença de alimentos ricos em enxofre, relacionados por Proença et al.2323 Proença RPC, Souza AA, Veiros MB, Bethania H. Qualidade nutricional e sensorial na produção de refeições. Florianópolis: EdUFSC; 2005.; aparecimento de frutas, folhosos, doces e conservas.

Como adaptações ao método, foi realizada a avaliação da presença de embutidos cárneos; produtos cárneos industrializados; vísceras; bebidas (artificial ou natural) e a repetição de ingredientes. Foram considerados embutidos cárneos: linguiças, salame, mortadela e salsichas, e como produtos cárneos industrializados: carnes empanadas, hambúrguer, bacon, presunto e almôndegas. Na avaliação das bebidas, distinguiu-se o tipo de bebida ofertada, quando ofertada, em artificial se utilizado pó reconstituído e/ou refrigerante e, natural quando à base de fruta in natura e/ou polpa. Por fim, na repetição de ingredientes, foram considerados as ofertas diárias ≥ 2 itens iguais. A avaliação da qualidade dos alimentos seguiu a categorização proposta pela NOVA, assim embutidos cárneos, produtos cárneos industrializados, bebidas artificiais e doces foram consideradas produtos ultraprocessados2424 Monteiro CA, Cannon G, Levy RB, Moubarac JC, Jaime P, Martins AP, Canella D, Louzada M, Parra D, Ricardo C, Calixto G, Machado P, Martins C, Martinez E, Baraldi L, Garzillo J, Sattamini I. NOVA. The star shines bright. Food classification. Public health. World Nutrition 2016; 7(1-3):28-38..

Na avaliação da presença dos critérios estabelecidos nos cardápios, primeiramente, foi analisada e computada a ocorrência diária dos alimentos ou preparações. Após, foi transformado em frequência absoluta mensal. Por fim, foi calculada a frequência relativa ao número de dias avaliados no mês, da seguinte forma: frequência mensal absoluta/número de dias avaliados multiplicado por 100.

Os dados digitados com dupla entrada, com verificação através do módulo VALIDATE do Programa Epi-info® na versão 3.5.2. Os resultados foram apresentados por meio de frequências absolutas e relativas, medianas e percentis (dados não paramétricos). Na avaliação das associações, foi empregado o teste de Mann-Whitney. Foram consideradas associações significantes com valor de p ≤ 0,05. As análises foram realizadas no programa Statistical Package for Social Sciences® (SPSS na versão 13.0).

Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco.

Resultados

Foram entrevistados gestores e nutricionistas de 40 indústrias de médio e grande porte da RMR Recife-PE. Na sua maioria, as indústrias eram do ramo alimentício (n = 10) e metalúrgico (n = 10). O tempo de trabalho do gestor e da nutricionista na empresa foi de 60 meses (P25-P75; 18-114) e de 10 meses (P25-P75; 4-23,5), respectivamente. A modalidade de gestão do serviço era majoritariamente terceirizada (95%) e apresentando uma mediana da relação de refeições por nutricionista de 437 (P25-P75; 251-902) (dados não apresentados em tabela).

Na Tabela 1, observam-se os resultados da avaliação do conhecimento dos gestores e nutricionistas sobre os objetivos do PAT, quais são as motivações para a sua adesão e a avaliação da qualidade da alimentação oferecida. Apesar de todas as empresas estarem cadastradas no PAT, foi verificado que aproximadamente metade dos nutricionistas não tinha conhecimento dessa informação. Sobre o que é o PAT e quais são os seus objetivos a maioria dos gestores e nutricionistas respondeu que era um programa/benefício de saúde com objetivo de promover uma alimentação equilibrada na empresa. Nenhum respondente relacionou o programa a ações de educação alimentar e nutricional. Quando questionados sobre as motivações para as empresas aderirem ao programa, a maioria dos nutricionistas respondeu que é o benefício fiscal que a empresa recebe. Já os gestores responderam que desconhecem. Cerca de 11 Tavares FCLP, Leal VS. Evolução da política e dos programas de alimentação e nutrição no Brasil: de Josué de Castro à política nacional de segurança alimentar e nutricional. Recife: Editora Universitária da UFPB; 2012./55 Finucane MM, Stevens GA, Cowan MJ, Danaei G, Lin JK, Paciorek CJ, Singh GM, Gutierrez HR, Lu Y, Bahalim AN, Farzadfar F, Riley LM, Ezzati M, Global Burden of Metabolic Risk Factors of Chronic Diseases Collaborating Group (Body Mass Index). National, regional, and global trends in body mass index since 1980: systematic analysis of health examination surveys and epidemiological studies with 960 country-years and 9.1 million participants. Lancet 2011; 337(9765):557-567. dos gestores e nutricionistas veem o programa como um bem-estar para os trabalhadores. Grande parte dos nutricionistas e gestores relacionou o programa a uma exigência da legislação trabalhista. Quando questionados sobre a qualidade da alimentação servida, a maioria dos gestores (administrativos e nutricionistas) responderam como saudável. A grande maioria (95%) dos nutricionistas relatou ter autonomia para elaboração dos cardápios e 82,5% acreditam que os mesmos estavam adequados às recomendações do programa. Por fim, 15% dos gestores administrativos relataram ter recebido alguma visita de fiscalização do PAT (dados não estão apresentados na tabela).

Tabela 1
Conhecimento do nutricionista e gestor da indústria sobre o Programa de Alimentação do Trabalhador.

Na Tabela 2, estão apresentados os dados relativos às avaliações de nutrição e saúde e ações de promoção à saúde e alimentação saudável. Dos serviços de alimentação das indústrias avaliadas, as ações educativas são realizadas em pouco mais da metade das indústrias e apenas um quarto realiza avaliação nutricional dos trabalhadores. Além disso, há desconhecimento de uma parcela considerável de nutricionistas em relação ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis entre os trabalhadores, apesar da maioria oferecer alimentação alternativa para essas situações.

Tabela 2
Avaliação das ações de promoção a alimentação saudável e saúde voltadas aos trabalhadores.

Na Tabela 3, observa-se a avaliação dos cardápios de acordo o método AQPC adaptado. Para ambos os grupos, há a oferta de bebidas naturais, frutas, folhosos e doces em todos os dias analisados. Os produtos ultraprocessados ricos em sódio, açúcares e gorduras tiveram distribuição percentual semelhante entre si, com mediana em torno de 20%. Mais da metade dos dias analisados de todos os cardápios apresentam bebidas artificiais (refrescos em pó reconstituído e\ou refrigerantes). Também foram investigadas possíveis diferenças na qualidade da refeição oferecida de acordo com autorrelato dos nutricionistas sobre o cumprimento ou não das recomendações do PAT. Apesar de não apontar diferença estatística significativa entre os grupos, ressaltam-se alguns desses resultados. Embora afirmem o cumprimento das recomendações do programa, a oferta de doces associados a fritura por imersão mostra-se discretamente maior neste grupo. Em contrapartida, a um menor percentual de repetição de ingredientes e de oferta de embutidos. Demanda-se atenção quanto às bebidas artificiais por apresentarem oferta superior nos cardápios dos quais as nutricionistas referem executar as recomendações.

Tabela 3
Avaliação da qualidade nutricional dos cardápios das empresas (n=40) de acordo com o autorrelato pelas nutricionistas de cumprimento das recomendações nutricionais do PAT.

Discussão

De modo geral, o conhecimento sobre o PAT entre os gestores e nutricionistas das indústrias estudadas é insuficiente. A maioria deles, apesar de conhecer o programa, o relaciona principalmente a uma exigência legal trabalhista que, de fato, não existe. Este desconhecimento fica ainda mais evidente quando nenhum deles relaciona o programa às ações de educação alimentar e nutricional preconizadas na Portaria Interministerial nº193/200688 Brasil. Portaria Interministerial nº 193, de 5 de dezembro de 2006. Altera os parâmetros nutricionais do Programa de Alimentação do Trabalhador - PAT. Diário Oficial da União 2006; 7 dez., bem como pelo fato da maioria dos gestores desconhecerem o motivo da adesão ao programa e da maioria dos nutricionistas atribuírem esta adesão simplesmente ao benefício fiscal recebido. Bandoni et al.1313 Bandoni DH, Brasil BG, Jaime PC. Programa de Alimentação do Trabalhador: representações sociais de gestores locais. Rev Saúde Pública 2006; 40(5):837-842., em São Paulo e Borges e Lima1212 Borjes LC, Lima JS. Programa de Alimentação do Trabalhador: avaliando o conhecimento por parte dos gestores administrativos e técnicos. Rev Demetra 2014; 9(1):107-119., em Santa Catarina, também constataram este desconhecimento sobre o PAT pelos responsáveis diretos pela execução do programa, demonstrando não ser um fator regional, mas principalmente por falta de informação, capacitação e até mesmo cobrança por parte do Ministério do Trabalho e Emprego, ao qual o programa está vinculado.

A partir dos anos 90, os nutricionistas da Alimentação Coletiva tiveram seus vínculos empregatícios desvinculados das indústrias e passaram a ser terceirizados, através das concessionárias de alimentos, o que os leva a uma situação de insegurança, instabilidade e precariedade deste vínculo, uma vez que apresentam condições de trabalho e remuneração menos favoráveis2525 Rodrigues KM, Peres F, Waissmann W. Condições de trabalho e perfil profissional dos nutricionistas egressos da Universidade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais, entre 1994 e 2001. Cien Saude Colet 2007; 12(4):1021-1031.. Esse processo pode explicar a alta rotatividade encontrada, o que dificulta planejamentos a médio e longo prazo e consequentemente comprometem a atuação profissional2626 Mandarini MB, Alves AM, Sticca MG. Terceirização e impactos para a saúde e trabalho: Uma revisão sistemática da literatura. Rev Psicol Organizações Trab 2016; 16(2):143-152..

O percentual de nutricionistas que não consideraram a alimentação oferecida aos trabalhadores saudável alerta para o fato de que muitos profissionais têm consciência de que não estão aplicando os seus conhecimentos como profissional da saúde nos cardápios ofertados. Este achado é agravado pelo fato de que a grande maioria das nutricionistas relatou ter autonomia na elaboração dos cardápios. No entanto, percebe-se que os dados encontrados são recorrentes, visto que diversos estudos na última década apontam para cardápios desequilibrados nutricionalmente, principalmente com oferta calórica excessiva, a exemplo de Gorgulho et al.1515 Gorgulho BM, Lipi M, Marchioni DML. Qualidade nutricional das refeições servidas em uma unidade de alimentação e nutrição de uma indústria da região metropolitana de São Paulo. Rev Nutr Campinas 2011; 24(3):463-472., que verificou apenas 25% de cardápios adequados de uma fábrica em São Paulo; Geraldo et al.1818 Geraldo APG, Bandoni DH, Jaime PC. Aspectos dietéticos das refeições oferecidas por empresas participantes do Programa de Alimentação do Trabalhador na Cidade de São Paulo, Brasil. Rev Panam Salud Publica 2008; 23(1):19-25. que encontrou excesso de gorduras totais (42,7%) e colesterol (62,5%) ao investigar a alimentação de 72 empresas também em São Paulo e Sávio et al.2020 Savio KEO, Costa THM, Miazaki E, Schmitz BAS. Avaliação do almoço servido a participantes do programa de alimentação do trabalhador. Rev Saúde Pública 2005; 39(2):148-155. cujos cardápios de 52 empresas do Distrito Federal tinham redução no percentual calórico proveniente dos carboidratos, e aumento do percentual relativo aos lipídios.

Cabe ressaltar que, embora o Ministério do Trabalho e Emprego nunca tenha fiscalizado as empresas em relação ao PAT, por ser um programa de adesão voluntário e opcional, houve relato por parte dos gestores desta fiscalização. Esse fato pode demonstrar, assim como constatado por Bandoni et al.1313 Bandoni DH, Brasil BG, Jaime PC. Programa de Alimentação do Trabalhador: representações sociais de gestores locais. Rev Saúde Pública 2006; 40(5):837-842., que esses gestores não identificam o PAT como uma política pública de alimentação e nutrição, mas sim como uma exigência legal trabalhista.

Do mesmo modo, foi constatado que, apesar das alterações dos parâmetros nutricionais ocorridas através das Portarias Interministeriais nº 66 e nº 193 (2006), as ações educativas previstas só acontecem em pouco mais da metade das indústrias e a avaliação nutricional em apenas ¼ delas. Esta informação é contraditória ao relato do conhecimento das nutricionistas pesquisadas acerca das DCNT entre os trabalhadores, e demonstra que, infelizmente, a realidade encontrada por Bandoni et al.1313 Bandoni DH, Brasil BG, Jaime PC. Programa de Alimentação do Trabalhador: representações sociais de gestores locais. Rev Saúde Pública 2006; 40(5):837-842., assim como por Borges e Lima1212 Borjes LC, Lima JS. Programa de Alimentação do Trabalhador: avaliando o conhecimento por parte dos gestores administrativos e técnicos. Rev Demetra 2014; 9(1):107-119., perdura.

O uso frequente de produtos ultraprocessados, que configuram um padrão alimentar hipercalórico, com maior teor de açúcar livre, rico em gorduras, de gorduras saturadas e de gorduras trans e menor teor de proteínas, fibras e micronutrientes, especialmente vitamina D, ferro e zinco2727 Louzada MLC, Martins APB, Canella DS, Baraldi LG, Levy RB, Claro RM, Moubarac JC, Cannon G, Monteiro CA. Alimentos ultraprocessados e perfil nutricional da dieta no Brasil. Rev Saude Publica 2015; 49:38., foi mais um achado nos cardápios que vai de encontro aos objetivos do PAT. Assim, a alimentação oferecida aos trabalhadores segue as mudanças observadas na população em geral, conforme verificado nos dados das três últimas Pesquisas de Orçamentos Familiares (POF) que apontam para o aumento uniforme e significativo do percentual calórico proveniente dos alimentos ultraprocessados consumidos no Brasil, passando de um consumo de 18,7%, em 1987, para 29,6%, em 20092828 Martins APB, Levy RB, Claro RM, Moubarac JC, Monteiro CA. Participação crescente de produtos ultraprocessados na dieta brasileira (1987-2009). Rev Saude Publica 2013; 47(4):656-665..

Ademais, a maioria dos cardápios avaliados apresentaram a disponibilização de bebidas artificiais em quantidade consideravelmente superior ao consumo desse tipo de produto em âmbito nacional, (16,5%)2929 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Vigitel Brasil 2016. Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Brasília: MS; 2017., demonstrando o confronto ideológico desta grande oferta em cenários ligados ao PAT, conhecidamente oportuno para a promoção de práticas alimentares saudáveis. A associação entre consumo de bebidas açucaradas e o desenvolvimento de obesidade e Diabetes tipo II já está bem estabelecido na literatura66 Malik VS, Popkin BM, Bray GA, Després JP, Willett WC, Hu FB. Sugar-sweetened beverages and risk of metabolic syndrome and type 2 diabetes: A meta-analysis. Diabetes Care 2010; 33(11):2477-2483.,3030 Basu S, Mckee M, Galea G, Stuckler D. Relationship of Soft Drink Consumption to Global Overweight, Obesity, and Diabetes: A Cross-National Analysis of 75 Countries. Am J Public Health 2013; 103(11):2071-2077.. O peso dessa oferta recai sobre o estado nutricional e de saúde dos trabalhadores, como já verificado por Veloso et al.77 Veloso IS, Santana VS, Oliveira NF. Programas de alimentação para o trabalhador e seu impacto sobre ganho de peso e sobrepeso. Rev Saúde Pública 2007; 41(5):769-776., que ao analisar os prontuários de 10.630 trabalhadores do estado da Bahia, verificou que os beneficiários do PAT (Razão de Taxa de Incidência, RTI = 1,71; IC95%: 1,45; 2,00) ou de outros programas de alimentação (RTI = 2,00; IC95%: 1,70; 2,35) apresentavam maiores taxas de incidência de ganho de peso em comparação com os trabalhadores não cobertos. O sobrepeso também se associou à cobertura pelo Programa, (RTI = 1,91; IC95% 1,26; 2,91) e outros programas de alimentação (RTI = 2,13; IC95%: 1,41; 3,23).

Apesar desse cenário, espera-se que a presença de nutricionistas nas empresas contribua positivamente para a promoção de uma alimentação adequada e saudável e que, nesse sentido, seja evitada a oferta de alimentos ultraprocessados.

Destacam-se algumas dificuldades encontradas neste trabalho. Não foi possível realizar a pesquisa em cerca de 30% das empresas elegíveis, demonstrando a dificuldade da condução de pesquisas no ambiente de trabalho. Além disso, a ausência de fichas técnicas de preparo na totalidade nas unidades de alimentação e nutrição impossibilitou a avaliação da alimentação oferecida de acordo com os parâmetros nutricionais estabelecidos pelo PAT. Isso também possivelmente demonstra que os parâmetros não são considerados na elaboração dos cardápios e que parâmetros baseados na qualidade dos alimentos, como o Guia Alimentar para a População Brasileira3131 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia alimentar para a população brasileira. Brasília: MS; 2014. postula talvez fossem mais adequados ao contexto do programa. Além disso, o método adotado para avaliação das refeições oferecidas, em sua versão original e na versão adaptada para este estudo, não foi validado e, assim, não é possível afirmar sua validade interna e externa. Isso demonstra a necessidade do desenvolvimento e validação de novos instrumentos capazes de medir a qualidade nutricional da alimentação oferecidas para coletividades.

Com base nos resultados obtidos, observa-se conhecimento superficial, tanto pelos gestores administrativos quanto pelas nutricionistas, que resulta em uma atuação insuficiente perante a legislação, que favorecidos ainda pela ausência de fiscalização do poder público deixam de ocupar papéis primordiais para a apropriada execução do PAT. Além disso, os resultados realçam o afastamento do nutricionista da sua formação profissional da área da saúde, refletindo em omissão frente à trajetória de risco nutricional, e de saúde, que tem sido observada entre a força motriz do país, o trabalhador.

Por fim, em um cenário de empobrecimento populacional, entende-se a necessidade urgente de sensibilização dos nutricionistas e gestores sobre objetivos e funcionamento do PAT, com vistas ao seu fortalecimento como política pública de saúde e de segurança alimentar e nutricional destinada a todos os trabalhadores brasileiros. Chama-se atenção também para a responsabilidade das empresas na promoção de um ambiente alimentar saudável para os trabalhadores, apoiando os nutricionistas a atuarem em consonância às recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira3131 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Guia alimentar para a população brasileira. Brasília: MS; 2014..

  • Apoio financeiro
    O presente estudo foi financiado pela Chamada MCTI/CNPq/MDS-SAGI Nº24/2013.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pela bolsa de produtividade em pesquisa de PIC Lira.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Out 2020

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2018
  • Aceito
    11 Fev 2019
  • Publicado
    13 Fev 2019
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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