Sítios simbólicos de pertencimento e prevenção e controle da tuberculose: percepções e práticas dos Agentes Comunitários de Saúde no Brasil e na Etiópia

Gisela Cordeiro Pereira Cardoso Elizabeth Moreira dos Santos Yibeltal Kiflie Alemayehu Kifle Woldemichael Berhane Megerssa Ereso Wuleta Lemma Sobre os autores

Resumo

O objetivo do artigo é avaliar a contribuição do DOTS comunitário, do inglês “Directly Observed Treatment Short-Course”, nas ações de prevenção e controle da tuberculose na atenção primária no Brasil e na Etiópia, a partir das percepções e práticas dos agentes comunitários de saúde (ACS). Utilizou-se o referencial conceitual e metodológico dos sítios simbólicos de pertencimento, com suas três tipologias: caixas preta, conceitual e operacional. Empregou-se o estudo de dois casos contrastantes, triangulando e complementando informações advindas de entrevistas semiestruturadas com ACS e profissionais de saúde e também observação participante. Os achados destacam o sentido de comprometimento dos ACS como um valor importante nas ações desenvolvidas em ambos contextos. Os principais desafios são a insuficiência de capacitação e supervisão das ações realizadas (caixa conceitual), assim como as dificuldades de acesso (caixa de ferramentas), expressas em distâncias geográficas no caso etíope e em barreiras relacionadas à violência no território, não explicitadas, no contexto brasileiro. Isto implica em um esforço contínuo dos ACS para adaptar suas práticas, respeitando os valores culturais (caixa preta) que dão sentido e direção às suas ações na superação dos desafios.

Palavras-chave
Avaliação; Tuberculose; Agentes Comunitários de Saúde; Brasil; Etiópia

Introdução

Este artigo apresenta uma avaliação das ações de prevenção e controle da tuberculose (TB) na Atenção Primária em Saúde (APS), a partir das percepções e das práticas dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), em dois contextos diferentes, urbano e rural, no Brasil e na Etiópia, utilizando a teoria dos sítios de pertencimento de Zaoual11 Zaoual H. Nova economia das iniciativas locais: uma introdução ao pensamento pós-global. Rio de Janeiro: DP&A, COPPE/UFRJ; 2006.. As semelhanças e as diferenças entre os dois países instigaram os autores a analisar como as políticas globais de TB se traduzem em realidades diversas22 Cardoso G, Santos EM, Kiflie Y, Woldemichael K, Wilson S, Lemma W. Strategic analysis of tuberculosis prevention and control actions in Brazil and Ethiopia: one size fits all? Int J Public Health 2017; 62(2):305-315..

As ações de prevenção e controle da TB estão organizadas em torno da estratégia DOTS, do inglês Directly Observed Treatment Short-Course, lançada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1994, com o objetivo de reduzir a morbimortalidade e a transmissão da doença. A estratégia é constituída de cinco componentes: compromisso político com a implantação e sustentabilidade do programa de TB; diagnóstico bacteriológico; tratamento diretamente observado (TDO), fornecimento de medicamentos, e sistema de registro e acompanhamento dos casos33 World Health Organization (WHO). WHO Tuberculosis Programme: framework for effective tuberculosis control [Internet]. Geneva: WHO; 1994. [acessado 2017 Out 2]. Disponível em: http://whqlibdoc.who.int/hq/1994/WHO_TB_94.179.pdf?ua=1
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. Apesar dos avanços, limites ainda foram identificados, sobretudo os vinculados ao acesso em áreas rurais e urbanas44 World Health Organization (WHO). Community contribution to TB care: practice and policy [Internet]. Geneva: WHO/CDS/TB; 2003 [acessado 2017 Out 2]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/67865/1/WHO_CDS_TB_2003.312.pdf
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,55 World Health Organization (WHO), Stop TB Partnership. DOTS Expansion Working Group strategic plan, 2006-2015. Geneva: WHO; 2006.. A OMS e a International Union Against Tuberculosis and Lung Diseases promoveram, assim, aos países com elevada carga da doença apoio na integração com as atividades da APS, principalmente para a implementação do DOTS comunitário (DOTSC), cujo principal protagonista é o Agente Comunitário de Saúde (ACS). Sua função é estabelecer a ponte entre a comunidade, onde comumente vive, e os serviços de saúde, identificando, através de visitas domiciliares, indivíduos que apresentam tosse por mais de duas ou três semanas, dependendo do país, encaminhando-os às unidades de saúde para pesquisa de TB (busca ativa), acompanhando a tomada de medicamentos ao longo do tratamento e promovendo ações de educação em saúde44 World Health Organization (WHO). Community contribution to TB care: practice and policy [Internet]. Geneva: WHO/CDS/TB; 2003 [acessado 2017 Out 2]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/67865/1/WHO_CDS_TB_2003.312.pdf
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,66 Perry HB, Zulliger R, Rogers MM. Community health workers in low-, middle-, and high-income countries: an overview of their history, recent evolution, and current effectiveness. Annu Rev Public Health 2014; 35:399-421..

Artigos de revisão77 Arshad A, Salam RA, Lassi ZS, Das JK, Naqvi I, Bhutta ZA. Community based interventions for the prevention and control of tuberculosis. Infect Dis Poverty 2014; 3(1):27.,88 Zhang H, Ehiri J, Yang H, Tang S, Li Y. Impact of Community-Based DOT on Tuberculosis Treatment Outcomes: A Systematic Review and Meta-Analysis. PLoS One 2016; 11(2):e0147744. sinalizam que o DOTSC, quando adaptado aos contextos locais, são mais efetivos no controle da doença. A descentralização das ações de TB, assim, demanda a realização de avaliações que permitam verificar não somente o alcance de resultados desta estratégia, mas também sua operacionalização in situ99 Figueiredo TMRM, Villa TCS, Scatena LM, Cardozo Gonzales RI, Ruffino-Netto A, Nogueira JA, Oliveira AR, Almeida SA. Desempenho da atenção básica no controle da tuberculose. RevSaude Publica 2009; 43(5):825-831.. Desse modo, o objetivo deste artigo é avaliar a contribuição do DOTSC nas ações de prevenção e controle da TB no Brasil e na Etiópia, por meio do papel exercido pelos ACS, incluindo os modos de abordagem dos desafios observados nos dois locais de estudo.

Por que Brasil e Etiópia?

Ambos pertencem ao grupo de 20 países denominados de elevada carga de doença pela OMS1010 World Health Organization (WHO). Global tuberculosis report 2016 [Internet]. 2016 [acessado 2017 Jun 8]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/250441/1/9789241565394-eng.pdf?ua=1
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. Do ponto de vista geográfico, situam-se em diferentes continentes com diversos contextos sociais, políticos e econômicos. Enquanto no Brasil, aproximadamente 85% da população vive em ambiente urbano1111 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Atlas do censo demográfico 2010 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2013. [acessado 2017 Dez 4]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/pt/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=264529
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, na Etiópia 85% da população habita áreas rurais1212 World Health Organization (WHO). Country Cooperation Strategy at a glance [Internet]. Global Health Observatory; 2016 [acessado 2017 Jul 12]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/137170/1/ccsbrief_eth_en.pdf
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. Além disso, diferentes padrões epidemiológicos são identificados. No Brasil a taxa de incidência de TB foi de 41 por 100.000 em 20151010 World Health Organization (WHO). Global tuberculosis report 2016 [Internet]. 2016 [acessado 2017 Jun 8]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/250441/1/9789241565394-eng.pdf?ua=1
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, apresentando disparidades entre as regiões. Na Etiópia a incidência de TB é 192/100.000, sendo a infecção disseminada por todo o país1010 World Health Organization (WHO). Global tuberculosis report 2016 [Internet]. 2016 [acessado 2017 Jun 8]. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/250441/1/9789241565394-eng.pdf?ua=1
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. Nas últimas duas décadas ocorreram melhorias em ambos locais, com aporte de recursos para TB e a descentralização das ações para a APS1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: MS; 2012..

O Brasil adotou a estratégia DOTS a partir de 20031414 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). O apoio à implementação da Estratégia de Tratamento Diretamente Supervisionado (DOTS) para o combate à Tuberculose [Internet]. Brasília: OPAS; 2010. (Série: Boas práticas de cooperação internacional da OPAS/OMS no Brasil). [acessado 2017 Jul 7]. Disponível em: http://www.paho.org/bra/index.php?option=com_docman&view=download&category_slug=serie-tecnica-boas-praticas-da-gestao-do-termos-196&alias=1145-o-apoio-a-implementacao-da-estrategia-tratamento-diretamente-supervisionado-dots-para-o-combate-a-tuberculose-5&Itemid=965
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, estendendo aos poucos suas ações ao âmbito da APS. O programa de TB atua como parte integrante do sistema de saúde, com estruturas de gestão a nível nacional (nível terciário) estadual (nível secundário) municipal (primário: unidades básicas e da Estratégia Saúde da Família).

Os ACS começam a atuar no Brasil a partir de experiências isoladas no final da década de 1970. Nos anos 1990 surgem os primeiros cursos profissionalizantes e em 2002 é criada a profissão1515 Mota RRA, David HMSL. A crescente escolarização do agente comunitário de saúde: uma indução do processo de trabalho? Trab Educ e Saúde 2010; 8(2):229-248.. A maioria realiza um curso introdutório de formação genérica inicial (diagnóstico da área, carteira de serviços, organização da APS), de duração de uma semana, com 40 horas. O número de ACS deve ser suficiente para cobrir 100% da população cadastrada no território, com um máximo de 750 pessoas por ACS e de 12 ACS por equipe de Saúde da Família (SF)1313 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: MS; 2012.. A equipe mínima da SF é composta por médico, enfermeiro, técnico de enfermagem e ACS. Os ACS recebem um salário e sua maioria é constituída por mulheres1515 Mota RRA, David HMSL. A crescente escolarização do agente comunitário de saúde: uma indução do processo de trabalho? Trab Educ e Saúde 2010; 8(2):229-248.. Em relação à TB, os mesmos são responsáveis pelo desenvolvimento das ações de diagnóstico, prevenção e controle1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Programa Nacional de Controle da Tuberculose. Brasília: MS; 2004.,1717 Hijjar MA, Gerhardt G, Teixeira GM, Procópio MJ. Retrospecto do controle da tuberculose no Brasil. Rev Saude Publica 2007; 41(Supl. 1):50-58.. No Brasil, em 2013 existiam aproximadamente 240.000 ACS66 Perry HB, Zulliger R, Rogers MM. Community health workers in low-, middle-, and high-income countries: an overview of their history, recent evolution, and current effectiveness. Annu Rev Public Health 2014; 35:399-421..

Na Etiópia também ocorre a descentralização da atenção à TB de instituições de nível terciário para unidades de cuidados primários. O programa de TB atua como parte integrante do sistema público de saúde, com estruturas de gestão a nível regional e distrital. O sistema distrital é composto por postos de saúde, centro de saúde e hospital distrital. O tratamento da TB é gerido nos centros de saúde, ao quais estão vinculados postos de saúde. Todos os usuários têm livre acesso aos serviços de diagnóstico e tratamento nos serviços públicos de saúde1818 Mesfin MM, Newell JN, Walley JD, Gessessew A, Tesfaye T, Lemma F, Madeley RJ. Quality of tuberculosis care and its association with patient adherence to treatment in eight Ethiopian districts. Health Policy Plan 2009; 24(6):457-466..

Na Etiópia, o Health Service Extension Program foi criado em 2003. Os ACS são profissionais do sexo feminino que vivem na comunidade, são assalariadas, tem ensino médio e recebem capacitação de um ano em atividades preventivas e de controle composto de quatro áreas de atuação: Higiene e saneamento ambiental, Controle e prevenção de doenças, Saúde da Família, Educação em saúde e comunicação. As ACS ficam alocadas em duplas nos postos de saúde dos kebeles (menor unidade administrativa, com 5 mil habitantes). Os demais profissionais, com exceção dos médicos que atuam primordialmente nos hospitais, trabalham nos centros de saúde. As atividades das ACS relacionadas à TB são de educação em saúde, encaminhamento de sintomáticos respiratórios para o centro de saúde e o acompanhamento do tratamento1919 Yassin MA, Takele L, Gebresenbet S, Girma E, Lera M, Lendebo E, Cuevas LE. HIV and Tuberculosis Coinfection in the Southern Region of Ethiopia: A Prospective Epidemiological Study. Scand J Infect Dis 2004; 36(9):670-673.,2020 Workie NW, Ramana GN. Ethiopia - The health extension program in Ethiopia.Universal Health Coverage (UNICO) studies series; no. 10. [Internet]. Washington: World Bank; 2013 [acessado 2017 Jul 7]. Disponível em: http://documents.worldbank.org/curated/en/356621468032070256/Ethiopia-The-health-extension-program-in-Ethiopia
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. Em 2014, havia na Etiópia ao redor de 34.000 ACS66 Perry HB, Zulliger R, Rogers MM. Community health workers in low-, middle-, and high-income countries: an overview of their history, recent evolution, and current effectiveness. Annu Rev Public Health 2014; 35:399-421..

A teoria dos sítios de pertencimento

Este referencial visa uma análise cultural das práticas sociais, a partir do conceito de sítio simbólico de pertencimento. Os sítios não são espaços geométricos vazios, mas compõem uma entidade material e imaterial de sentido compartilhado de códigos sociais e costumes locais11 Zaoual H. Nova economia das iniciativas locais: uma introdução ao pensamento pós-global. Rio de Janeiro: DP&A, COPPE/UFRJ; 2006.. Isto implica na impossibilidade de transpor mecanicamente modelos de um local para outro, como ocorre na tese da globalização, onde percebe-se a expansão de um modelo hegemônico uniformizante nos campos científico, econômico e financeiro2121 Panhuys H. Do Desenvolvimento Global aos Sítios Locais. Uma crítica metodológica à Globalização. Rio de Janeiro: E-papers; 2006.. O modelo dos sítios de pertencimento busca produzir efeitos diferenciados segundo os locais, os momentos, os contextos, as organizações e as atividades. Se por um lado observamos um excesso de uniformização, padronização e regulamentação, por outro, assistimos o retorno do local, do sustentável e do criativo. Torna-se importante, assim, considerar as respostas dos atores nas codificações e recodificações dos recursos, tanto materiais quanto imateriais, considerando a organizações dos contextos nos quais estão inseridos.

Para Zaoual11 Zaoual H. Nova economia das iniciativas locais: uma introdução ao pensamento pós-global. Rio de Janeiro: DP&A, COPPE/UFRJ; 2006. as construções abstratas sucumbem diante da “exuberância do mundo factual”. Os modelos clássicos da racionalidade são limitados em sua capacidade de ler as práticas locais dos indivíduos, sendo “na maioria das vezes estáticos, deterministas, monodisciplinares e monoculturais”2121 Panhuys H. Do Desenvolvimento Global aos Sítios Locais. Uma crítica metodológica à Globalização. Rio de Janeiro: E-papers; 2006., sem privilegiar, deste modo, a visão de mundo que o ator tem no processo decisório. Uma racionalidade situada não se limita a uma mera adequação técnica, mas considera a racionalidade das crenças e das ações que se desenrolam nos sítios11 Zaoual H. Nova economia das iniciativas locais: uma introdução ao pensamento pós-global. Rio de Janeiro: DP&A, COPPE/UFRJ; 2006..

Desse modo, a aceitação de uma “norma” como as diretrizes do DOTSC, por exemplo, seria diferente do domínio da norma. A introdução de uma intervenção se insere dentro de uma determinada cosmovisão local, e suas “alfândegas invisíveis”11 Zaoual H. Nova economia das iniciativas locais: uma introdução ao pensamento pós-global. Rio de Janeiro: DP&A, COPPE/UFRJ; 2006., que facilitariam ou não seu processo de implementação. O DOTSC teria que dar sentido às ações e interações concretas locais. Para isso é fundamental uma recombinação dos valores que chegam, por meio de uma racionalidade empreendedora, conjuntamente com os valores locais. Torna-se necessário uma pedagogia do monitoramento, onde ação e reflexão andariam juntas acompanhando a dinâmica deste processo. A partir desta perspectiva nos perguntamos: Como a racionalidade do DOTSC se apresenta em locais/sítios tão diversos, como o Brasil e a Etiópia, a partir do olhar dos ACS? Como as práticas dos ACS são organizadas e manejadas no dia a dia dos sítios?

Metodologia

Foi realizado um estudo de caso contrastante, considerando a intervenção, o DOTS comunitário, e sua relação com o contexto. Empregou-se o método REM (Rapid Evaluation Method)2222 Anker M, Guidotti RJ, Orzeszyna S, Sapirie SA, Thuriaux MC. Rapid evaluation methods (REM) of health services performance: methodological observations. Bull World Health Organ 1993; 71(1):15-21., no qual foram priorizadas a rapidez e o uso de diversas técnicas e fontes de evidencias, e sua respectiva triangulação e complementariedade, permitindo checar a pertinência, a validade e a interpretação das informações coletadas2323 Greene JC, Caracelli VJ, Graham WF. Toward a Conceptual Framework for Mixed-Method Evaluation Designs. Educ Eval Policy Anal 1989; 11(3):255-274..

No Rio de Janeiro (RJ) foi selecionada uma Unidade de Saúde (US), com um posto da Estratégia Saúde da Família (ESF) acoplado, situado em um conjunto de favelas da cidade. Na Etiópia foi selecionado um Centro de Saúde no vilarejo de Agaro, com seus cinco postos de saúde acoplados, na região rural da Etiópia.

As técnicas de construção de evidências incluíram análise documental, predominantemente a análise do livro de acompanhamento de casos em tratamento; observação direta das US e da rotina dos ACS, visando identificar os recursos materiais e humanos disponíveis, assim como apreender a rotina e a dinâmica de trabalho; e entrevistas semiestruturadas com ACS e demais profissionais de saúde. O roteiro das entrevistas buscou explorar o processo de capacitação dos ACS, a descrição de suas atividades, a relação com os demais profissionais de saúde e usuários, e o manejo das situações apresentadas na rotina de trabalho. A coleta de informações foi realizada por duas assistentes de pesquisa, uma no Brasil e outra na Etiópia, acompanhadas da pesquisadora principal, no ano de 2012.

Foi realizada uma análise de conteúdo temático utilizando a tipologia dos sítios de pertencimento11 Zaoual H. Nova economia das iniciativas locais: uma introdução ao pensamento pós-global. Rio de Janeiro: DP&A, COPPE/UFRJ; 2006., a saber, as caixas denominadas de conceitual, ferramentas e preta. A caixa conceitual abrange os conhecimentos empíricos e/ou teóricos que se tornam um saber social acumulado pela trajetória. Os atores operam também com uma caixa de ferramentas que contém o saber-fazer, as técnicas e os modos de organização, assim como modelos de comportamento próprios ao contexto. A caixa preta, neste marco conceitual, descreve os mitos, as crenças, as experiências e os valores que dão sentido e direção aos atores do sítio. Seria o aspecto simbólico, muitas vezes oculto, das práticas locais, que alude à cumplicidade, à singularidade e, também, à abertura ao novo, à mudança. O material de cada local foi analisado primeiro separadamente, enquanto que num segundo momento foi realizada uma análise das convergências e divergências entre os dois casos. Foi também realizada uma análise descritiva das variáveis sexo, idade, estado civil, nível de escolaridade, categoria profissional, tempo de trabalho na unidade.

O estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro e da Jimma University.

Resultados

O caso Rio de Janeiro, Brasil

A cidade do RJ é um grande centro urbano, com população de 6,5 milhões de habitantes. O caso analisado está situado em local com alto índice de violência, decorrente principalmente do narcotráfico. A US é ampla, tem um posto da ESF, dentro da unidade, além de cinco outros, externos. Foram entrevistados 11 ACS e 7 outros profissionais de saúde (enfermeiro, técnicos de enfermagem, médico, farmacêutico e chefe do programa do adulto). Em relação aos ACS entrevistados, 10 eram do sexo feminino, sendo a média de idade de 30 anos. A maioria possuía Ensino Médio completo, predominando o estado civil de casado, idade média de 30 anos, com variação de opção religiosa (católica, protestante e espírita).

O caso Agaro Town, Etiópia

O vilarejo de Agaro tem uma população de 26.000 habitantes e fica na região de Oromia, sudoeste da Etiópia. A região é conhecida por suas plantações de café, sendo Agaro um local de comércio desse produto. O Centro de Saúde fica localizado no centro do vilarejo e tem 5 postos de saúde rurais, cada um com duas ACS. Não há médicos no Centro de Saúde, mas enfermeiros e health officers, profissional com formação em gestão e enfermagem, qualificados para examinar, diagnosticar e prescrever. Os postos de saúde ficam a uma distância que varia entre 2 e 15 km. Em cada posto atuam duas ACS. Foram entrevistadas oito ACS, média de 22 anos, todas com Ensino Médio, sendo a maioria solteira e de religião muçulmana. No Centro de Saúde foram entrevistados 6 profissionais: enfermeiro, dispensador de farmácia, técnico de laboratório, tecnologista de laboratório, farmacêutico, administrador em saúde e health officer.

Análise a partir dos sítios de pertencimento

Os principais resultados estão descritos na Figura 1 e serão analisados a partir das categorias dos sítios de pertencimento.

Figura 1
Resultados Brasil e Etiópia por sítios de pertencimento.

Caixa conceitual: conhecimentos empíricos e teóricos dos ACS

Foram levados em consideração os processos de capacitação e treinamento dos ACS e a execução das atividades preconizadas pelos programas de TB.

As ACS na Etiópia têm uma capacitação de um ano de duração. As oito ACS entrevistadas descrevem de forma minuciosa o espectro de atividades incluídas no que denominam 16 Packages, que engloba 80% de ações de prevenção e 20% de controle e tratamento.

Minhas atividades são baseadas nos “16 Packages”, que inclui saúde materna e infantil, cuidados pré-natais, planejamento familiar, imunização para menores de 5 anos, tratamento e serviços curativos; higiene ambiental. Nós ensinamos como construir latrinas e como usá-las e a importancia de colocar o gado em abiente separado, o que não é fácil devido ao custo; também a eliminação de resíduos, a preparação do poço para enterrar o lixo e ensinar como beber água, fervendo, e como protegê-la dos animais (ACS, Etiópia).

No RJ, a capacitação dos ACS é mais compacta, mas também prioriza a ligação entre a comunidade e a US; a visita domiciliar, a orientação em relação às doenças, como diabetes, hipertensão, TB e o acompanhamento ao usuário. Somente um ACS destaca as ações de promoção e prevenção.

Em relação às ações de TB especificamente, os ACS no RJ referem haver treinamento, apesar de alguns ainda não o terem realizado. Os treinamentos são vistos como proveitosos, válidos e importantes: Sempre tem uma informação nova (ACS, Brasil). A atividade mais importante seria a busca ativa de sintomáticos respiratórios na comunidade, o encaminhamento para a unidade de saúde, o acompanhamento do tratamento, o controle de faltosos e as ações educativas. Em Agaro, os ACS referem não ter um treinamento para TB, realizando as seguintes atividades: identificação de casos suspeitos, acompanhamento do uso das medicações, coleta das medicações no centro de saúde, aconselhamento em educação em saúde, especialmente em higiene ambiental, incluindo ventilação, coabitação com animais e hábitos alimentares (fervura do leite).

No que tange à supervisão das atividades por parte dos demais profissionais, dos 11 ACS entrevistados no RJ, somente 3 relatam ter supervisão. Para os ACS em Agaro, apesar de haver supervisão, é insuficiente: Eles vêm e nos perguntam de uma forma geral, não é uma supervisão formal, com retorno, é superficial. Somente perguntam se executamos as atividades (ACS, Etiópia).

Sobre o uso do Manual de TB ou outro material de consulta, a maioria dos ACS (8) no RJ responde que não usa, predominando o que foi aprendido nos treinamentos e nas informações compartilhadas com a equipe. Os ACS de Agaro tampouco referem utilizar o manual de TB e explicam que a ficha de encaminhamento e o cartão de monitoramento do tratamento são suficientes.

Caixa de ferramentas: o saber-fazer, as técnicas e os modelos de ação

OS ACS de ambos locais referem-se às suas atividades como sendo múltiplas, precisando responder às demandas, tanto dos usuários, quanto da US. No RJ um dos ACS destaca que sua função seria parecida com a de uma esponja multiuso, tipo “Bombril” (Visita domiciliar, orientação aos pacientes, atividade de grupo... Somos praticamente “Bombril”).

Em relação ao manejo do TDO, apesar de considerado como uma opção importante e pertinente, os ACS fazem suas ponderações. As dificuldades comuns relatadas em ambos locais dizem respeito à identificação dos casos suspeitos, ao abandono do tratamento e à sobrecarga de atividades. Outras estão mais vinculadas aos contextos. A metade dos ACS de Agaro reclama do fato de ter que ir ao Centro de Saúde para retirar as medicações, sem nenhum tipo de suporte financeiro, e também das longas distâncias percorridas e do difícil acesso para se chegar aos usuários. Na observação foi possível verificar esta dificuldade. Dois postos funcionavam em locais longínquos, no meio do campo, com acessibilidade dificultada por trajetos íngremes, sinuosos e acidentados, sendo possível acessar somente caminhando. Os ACS descrevem lançar mão de diferentes recursos para alcançar estas áreas mais distantes: Eu preciso envolver membros voluntários de saúde da comunidade para me ajudar a alcançar determinadas áreas da região.

Entre os ACS no RJ, são relatados falta de material e de parceria no território, falta de ajuda dos profissionais técnicos, medo de se infectar com TB e as condições de moradia das pessoas. Os ACS não falaram sobre a violência local como um dificultador na execução das atividades, apesar deste tema ter aparecido em conversas informais, principalmente com os demais profissionais de saúde. A equipe de pesquisa, inclusive, precisou tomar cuidados na ida à US, sendo orientada a telefonar antes para perguntar se o acesso estava liberado, devido aos conflitos no território (confronto entre policiais e traficantes e tensões entre diferentes facções do tráfico de droga). Foi necessário também substituir o carro que a equipe de pesquisa utilizava devido à cor do mesmo, identificada como a cor do grupo contrário à facção que dominava no local. Diferentes estratégias foram relatadas para a realização do TDO com alguns dos usuários com TB vinculados ao tráfico de drogas, como a intermediação por um membro da família que ia à US receber os medicamentos e as orientações. Foi também relatado o encontro do ACS com o usuário em local neutro, que não o colocasse em risco e não o expusesse.

Quando indagados sobre o que fazem quando um paciente começa a faltar ou a perder doses, os ACS de ambos locais parecem ter uma postura ativa, utilizando diferentes estratégias. No RJ, os ACS referem que vão na residência, procuram saber o que está acontecendo, incentivam, e compartilham com a supervisão, de forma a tentar encontrar meios de auxiliar o paciente. Em Agaro relatam que sinalizam os riscos da TB tornar-se uma doença crônica, incluindo a possibilidade de falecer, desenvolver resistência às drogas e ser um risco para a família.

Em relação às sugestões para melhorar as ações de TB, os ACS, de modo geral, sugerem mobilização comunitária para divulgação de informações sobre TB. A maioria dos ACS da unidade avaliada no Rio ressalta a importância de maior divulgação sobre a doença via palestras, campanhas, distribuição de cartazes, ações na rua para alertar a comunidade, inclusive utilizando ferramentas como fotos, filmes, indo mais para o visual que para verbal para não ser cansativo.

Os ACS em Agaro sinalizam a importância de aumento da conscientização sobre as ações de prevenção, principalmente por meio do envolvimento de usuários curados e de membros da comunidade que possam ajudar a sensibilizar as pessoas. Foi possível observar nos postos e centro de saúde diversos cartazes alertando sobre os principais sintomas da TB.

Caixa preta: Os mitos, crenças, valores e experiências dos ACS

Percebe-se na fala de todos os ACS entrevistados, tanto do Brasil, quanto da Etiópia, uma aceitação e valorização de seus papéis por parte das comunidades onde atuam. Três dos ACS no RJ identificam-se como uma peça importante: Acho que a gente só veio para somar (ACS, RJ). A relação com o usuário e a comunidade, em ambos locais, é descrita de forma positiva: Existe uma relação forte, próxima. Nós somos consideradas como sendo da família. Eu nasci, cresci e casei aqui. Muitos me consideram como uma filha (ACS, Agaro).

Sobre a percepção do TDO, para todos os ACS entrevistados no RJ, é descrito como bom, pois permite fazer o tratamento até o fim de forma acompanhada, dificultando o abandono. Também quebra o preconceito: Acho muito bom porque é uma maneira da pessoa terminar o tratamento até o fim, sendo acompanhada. Acho ótimo que quebra todos os preconceitos, vergonha. Contudo, encontram-se algumas resistências: Bacana, mas tem paciente que não aceita que você vá lá todos os dias.

Os ACS em Agaro concordam que é uma ótima intervenção: Eu acho que é a melhor estratégia. O tratamento anterior levava a um grande abandono. Mas a maioria também faz críticas: É uma intervenção muito interessante, mas se tivermos a supervisão apropriada, treinamento e também a medicação aqui no posto, não tendo que ir ao centro de saúde pegar, seria perfeita.

Uma certa tensão é identificada por alguns ACS, em ambos locais, no que diz respeito à relação com os outros profissionais de saúde. Uma ACS na Etiópia relata: Eu tento discutir os casos no centro de saúde, mas eles não me consideram muito… acho que é porque eu sou uma ACS. No Brasil uma ACS diz que uma das dificuldades que vivencia é: Falta de parceria no território e ajuda dos profissionais.

A fala dos outros profissionais de saúde da equipe

Os outros profissionais de saúde no RJ destacam a importância da função do ACS, contudo, sinalizam que o nível de compromisso dos mesmos variaria muito. Alguns profissionais descrevem como tendo uma relação próxima e de muita interação, outros referem como sendo mais distante e formal. A maioria aponta alguma dificuldade no trabalho dos ACS, sinalizando a falta ou a insuficiência de treinamento para TB, o que geraria uma falta de compreensão do problema e ações incompletas. Há relatos também de os ACS não conhecerem a rotina e o fluxo de encaminhamento do paciente para a US. Outra dificuldade seria que o ACS estaria arraigado à “cultura da comunidade”: Temos que trabalhar essa mudança de que o ACS não é morador e sim um trabalhador saúde (enfermeira, RJ).

Para os demais profissionais de saúde em Agaro, as dificuldades vinculadas aos ACS são: a falta de conhecimento sobre os efeitos colaterais das drogas e suas interações, a falta de incentivo financeiro para ir ao centro de saúde pegar as medicações (Às vezes o ACS manda o paciente vir ao centro de saúde pegar as medicações [health officer]), falta de conhecimento, principalmente no rastreamento de faltosos. De acordo com os estes profissionais os ACS deveriam ter um treinamento formal nas ações de TB: Somente poucos ACS são capazes de realizar tantas atividades recomendadas. Eles precisam de mais treinamento e capacitação (farmacêutico).

Os demais profissionais de ambos locais fazem sugestões para melhorar a relação entre eles e os ACS. No RJ reiteram que a direção da US poderia auxiliar dando palestras sobre o funcionamento das rotinas, dos programas, facilitando a integração (enfermeira). São sugeridas alternativas para um maior entrosamento, como, por exemplo, fazer que as salas de espera e de dispensação de medicações estejam em conjunto, para um melhor desdobramento das ações, no sentido de facilitar na busca de contatos e na administração das medicações. A técnica de enfermagem sugere atividades sociais, como reuniões e festas como forma de romper a resistência à participação dos ACS que alguns possam ter. Todos os profissionais sugerem mais treinamento em ações de TB. Acreditam que dessa maneira seria possível uma valorização do ACS, já que na visão de alguns dos profissionais entrevistados o ACS não é visto como uma profissão.

Em relação aos ACS de Agaro, a maioria dos demais profissionais sinaliza a importância de fortalecer o vínculo entre profissionais e ACS e todos reconhecem que existe uma lacuna na supervisão dos ACS. Recomendam a oferta de treinamento específico, supervisão regular e atividades colaborativas na prevenção e tratamento da TB: O programa é bom em termos de suprimento de drogas e atividades, mas o vínculo entre os profissionais e os ACS precisa ser reforçado por meio de atividades colaborativas nas ações de prevenção e controle da TB (farmacêutico). O técnico de laboratório sinaliza: Muitas vezes alguns profissionais não consideram o ACS como tendo o mesmo status que eles.

Discussão

Este estudo explorou as práticas e as percepções dos ACS nos contextos do Brasil e da Etiópia, a partir da perspectiva dos sítios de pertencimento. Foi possível identificar como os ACS estão cientes da importância de sua função de elo de ligação entre a comunidade e a unidade de saúde. Tal como sinalizado em vários estudos2424 Maciel ELN, Vieira RCA, Milani EC, Brasil M, Fregona G, Dietze R. O agente comunitário de saúde no controle da tuberculose: conhecimentos e percepções. Cad Saude Publica 2008; 24(6):1377-1386.

25 Oliveira ACA. A ciranda do tratamento diretamente observado da Tuberculose: a construção do conhecimento em roda com Agentes Comunitários de Saúde [Internet] [dissertação]. Niterói: Universidade Federal Fluminense; 2013.

26 Tulloch O, Theobald S, Morishita F, Datiko DG, Asnake G, Tesema T, Jamal H, Markos P, Cuevas LE, Yassin MA. Patient and community experiences of tuberculosis diagnosis and care within a community-based intervention in Ethiopia: a qualitative study. BMC Public Health 2015; 15:187.
-2727 Rachlis B, Naanyu V, Wachira J, Genberg B, Koech B, Kamene R, Akinyi J, Braitstein P. Community Perceptions of Community Health Workers (CHWs) and Their Roles in Management for HIV, Tuberculosis and Hypertension in Western Kenya. PLoS One 2016; 11(2):e0149412., os mesmos acreditam na importância de seu papel e de suas atividades para o controle da TB. O sentido do comprometimento2828 Sen AK. Sobre ética e economia. São Paulo: Companhia das Letras; 1999. surge como valor importante na teoria dos sítios, identificado em ambos contextos. As atividades dos ACS não se restringem, assim, à utilidade de sua função, mas ao papel que ocupam na comunidade, cuidando, olhando, compartilhando, se relacionando com as pessoas que vivem no local2929 Gonzales RIC, Harter J, Costa LM, Pinho LB, Reis SP. A descoberta da tuberculose no território: análise qualitativa do trabalho do agente comunitário de saúde. Rev Cienc Enfermeria 2015; 21(2):87-97.. A racionalidade não se limita a uma adequação puramente técnica, mas leva em consideração os valores, as regras e a percepção de mundo local11 Zaoual H. Nova economia das iniciativas locais: uma introdução ao pensamento pós-global. Rio de Janeiro: DP&A, COPPE/UFRJ; 2006.. Apesar de reclamarem da falta de treinamento em TB (Etiópia) e de supervisão (Brasil e Etiópia), da falta de apoio logístico ou de recurso financeiro para as idas às unidades de saúde (Etiópia), as ações se desenrolam, sendo necessários, contudo, ajustes e adaptações. Por exemplo, utilizando recurso do próprio bolso para ir às unidades de saúde pegar os remédios para os pacientes ou mobilizando membros da comunidade para ajudar na identificação de suspeitos de caso de TB, na Etiópia, ou fazendo adaptações em relação ao preconizado no contexto do RJ, onde membros da família auxiliam na administração do TDO.

Em estudo anterior realizado no RJ, na mesma localidade, os profissionais sinalizaram realizar o que denominaram de “DOTS improvisado”3030 Cardoso GCP, Chrispim PPM, Decotelli PV, Abreu DMF, Cruz MM, Borenstein JS, Santos EM. A conformidade das ações do tratamento diretamente observado para tuberculose na perspectiva dos profissionais de duas unidades de saúde da cidade do Rio de Janeiro. Cad Saúde Colet 2012; 20(2):203-210., diante de restrições relacionadas aos usuários vinculados ao tráfico de drogas. Nesses casos, um familiar também intermediava o tratamento indo à unidade de saúde semanalmente pegar os remédios, recebendo as orientações e administrando o tratamento em casa. Os sítios e os atores nele inseridos têm, assim, certo grau de plasticidade, muitas vezes incompreensível para os atores externos.

Contudo, o fato dos ACS não conversarem com a equipe de avaliação sobre a violência local no RJ chamou nossa atenção. Os poderes que ditam as regras no local onde está situada a unidade de saúde, complexo de favelas, não são escritos, mas são códigos conhecidos pelos moradores, não explicitados. Alguns estudos3131 Jardim TA, Lancman S. Aspectos subjetivos do morar e trabalhar na mesma comunidade: a realidade vivenciada pelo agente comunitário de saúde. Interface (Botucatu) 2009; 13(28):123-135.,3232 Lopes CVM. Violência urbana e condições de trabalho dos agentes comunitários de saúde em uma comunidade da região metropolitana [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2014. relatam o silêncio dos ACS quando abordado o assunto relacionado ao tráfico, sendo interpretado como forma de defesa do território ao qual pertencem3232 Lopes CVM. Violência urbana e condições de trabalho dos agentes comunitários de saúde em uma comunidade da região metropolitana [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2014.. Isto não ocorre de forma tão evidente com os enfermeiros e médicos. Os mesmos exigem, inclusive, que os pesquisadores fiquem atentos às regras da localidade. Os ACS parecem não gozar dessa proteção e, por isso, provavelmente, não se sintam confortáveis de falar sobre a violência local. Observamos, assim, discursos diferentes que não são equânimes. O ACS vai agir como um membro da comunidade, apesar de estar trabalhando dentro de uma unidade de saúde, com outro tipo de regras e códigos.

Tal como sinalizado por Cunha e Frigotto3333 Cunha MB, Frigotto G. O trabalho em espiral: uma análise do processo de trabalho dos educadores em saúde nas favelas do Rio de Janeiro. Interface (Botucatu) 2010; 14(35):811-823., os ACS ocupam um lugar diferenciado, no terreno da fronteira entre diversas realidades, estando em intercâmbio com estruturas supralocais e circulando por vários espaços externos à comunidade. Esta questão não verbalizada pelos ACS no Rio poderia configurar uma outra “caixa preta” paralela, precisando incorporar a estas experiências outros códigos e valores, o que implicaria, por sua vez, em novos arranjos organizacionais e das práticas assistenciais, ou seja, da caixa de ferramentas. Os demais profissionais, em parte, também se submeteriam à essa regra (por exemplo, não utilizar determinada cor), de forma a poder trabalhar dentro do território, sem ameaças.

Na Etiópia a violência não é a questão. A maior dificuldade relatada pelos ACS é de distância geográfica, não uma distância imposta por barreiras externas. Portanto, não há uma mudança de códigos ou de valores. A caixa preta acionada é a da comunidade de um país de cultura milenar, expresso inclusive no perfil das ACS, mulheres jovens e de religião muçulmana.

Outra singularidade dos contextos locais refere-se as atividades de prevenção dos ACS na Etiópia relacionadas ao ambiente rural onde estão inseridos (por exemplo, a fervura do leite ou o convívio com animais dentro de casa). A caixa conceitual e de ferramentas utilizadas, portanto, variam com os contextos, rural e urbano. Isto também ocorria quando abordado o tema das alternativas de mobilização comunitária em relação à TB. É interessante como os ACS no RJ sugerem alternativas de mobilização envolvendo recursos visuais e audiovisuais, próprio de contexto urbanos, enquanto os ACS na Etiópia procuram arranjos com membros da comunidade que possam ser parceiros nas ações de prevenção e controle. É importante entender o que a intervenção está tentando alcançar e como funciona, em outras palavras, não apenas quais atividades uma intervenção realiza, mas também como elas são entendidas para provocar mudanças3434 Rogers P. Implications of complicated and complex characteristics for key tasks in evaluation. In: Forss K, Marra M, Schwartz R, editors. Evaluating the complex?: attribution, contribution, and beyond. New Jersey: Transaction Publishers; 2011. p. 33-51.. Como funciona pode ser suficiente para determinados contextos, mas insuficientes ou sem sentido para outros.

Tanto no RJ, quanto em Agaro, observamos uma certa tensão na relação entre ACS e os demais profissionais de saúde. Seabra et al.3535 Seabra DC, Carvalho ACD, Forster AC. O agente comunitário de saúde na visão da equipe mínima de saúde. Rev APS 2008; 11(3):226-234. sinalizam que sendo o ACS da comunidade pode tornar-se motivo de atrito com a equipe de saúde. Tal como observamos, isto pode provocar atritos na interpretação e no manuseio das caixas conceitual e de ferramentas. Crispim el al.3636 Crispim JA, Scatolin BE, Silva LMC, Pinto IC, Palha PF, Arcêncio RA. Agente Comunitário de Saúde no controle da tuberculose na Atenção Primária à Saúde. Acta Paul Enferm 2012; 25(5):721-727. fazem referência à importância da sinergia na ação coletiva e no fazer cooperativo dentro das equipes de saúde em relação às ações de TB.

Esta avaliação, a partir do referencial dos sítios de pertencimento, possibilitou observar que o homo situs tem uma ética, uma identidade e uma racionalidade construídas em seu local de pertencimento, podendo se adequar a múltiplas entidades espaciais e organizacionais11 Zaoual H. Nova economia das iniciativas locais: uma introdução ao pensamento pós-global. Rio de Janeiro: DP&A, COPPE/UFRJ; 2006.,2121 Panhuys H. Do Desenvolvimento Global aos Sítios Locais. Uma crítica metodológica à Globalização. Rio de Janeiro: E-papers; 2006.. As caixas conceitual e de ferramentas adaptam-se, assim, de acordo com as crenças, as experiências e os valores que dão sentido e direção aos atores do sítio (caixa preta). Isto implica um esforço contínuo para superar os principais desafios visualizados em ambos contextos (distância geográfica no caso etíope e violência no contexto brasileiro). Supõe por parte dos ACS um trabalho singular, de contínuo exercício de criatividade, e por parte dos gestores um cuidado especial com este ator que ocupa um lugar estratégico nas ações de prevenção e controle da TB. Os sistemas de monitoramento, ferramentas que permitem o acompanhamento sistematizado, a aprendizagem in situ e a responsabilidade gerencial, devem privilegiar as especificidades da dinâmica de controle da TB em cada país, com suas particularidades geográficas, epidemiológicas e socioculturais.

Agradecimentos

À Adriana Sampaio Leite pelas ricas discussões sobre a teoria dos sítios simbólicos de pertencimento e sua aplicabilidade em contextos variados e à Patrícia Pássaro da Silva Toledo pela contribuição na organização do texto. Agradecemos também à Tulane University (EUA) pelo apoio logístico na Etiópia. E pelo financiamento, à Bolsa de pós-doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Ago 2020

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2018
  • Aceito
    22 Out 2018
  • Publicado
    24 Out 2018
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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