“No meio do fogo cruzado”: reflexões sobre os impactos da violência armada na Atenção Primária em Saúde no município do Rio de Janeiro

Mayalu Matos Silva Fernanda Mendes Lages Ribeiro Vera Cecília Frossard Rosane Marques de Souza Miriam Schenker Maria Cecília de Souza Minayo Sobre os autores

Resumo

O artigo aborda os impactos da violência armada, a partir da Atenção Primária em Saúde, em um bairro do município do Rio de Janeiro, Brasil. Trata-se de estudo qualitativo exploratório desenvolvido em dois serviços com o objetivo de identificar os principais tipos de violência, seus impactos e as estratégias utilizadas para enfrentamento do fenômeno. A produção de informações incluiu coleta de dados nos registros dos serviços, realização de entrevistas semi-estruturadas, grupos focais e seminário de devolutiva. A violência armada, dentre todas as expressões de violência, foi identificada como uma das maiores preocupações de profissionais de saúde e usuários dos serviços, em função de sua intensa ocorrência e gravidade de suas consequências sob a saúde. Destaca-se seu impacto nas estratégias de enfrentamento à violência e a dificuldade em visibilizar o fenômeno. Considera-se que esse tipo de violência, predominante nos territórios negros da cidade, é legitimada pelo racismo estrutural, sendo a política pública de segurança – baseada no ideário de guerra às drogas e no enfrentamento bélico com grupos armados que atuam no comércio varejista de drogas ilícitas – expressões do racismo de estado e da necropolítica.

Palavras chave
Violência com armas de fogo; Saúde; Violência; Atenção Primária em Saúde; Leis sobre Drogas

Introdução

O artigo busca refletir sobre os impactos da violência armada (VA) na Atenção Primária em Saúde (APS) em um bairro localizado na zona norte do cidade do Rio de Janeiro. Ele conta com instituições públicas e privadas e seus 36.16011 Instituto Pereira Passos (IPP). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dados do Universo. Censo Demográfico. Rio de Janeiro: IPP, IBGE; 2010. habitantes residem em um complexo de favelas. Para se ter ideia da dimensão, 4.629 municípios brasileiros, do total de 5.570, são menos populosos que este local22 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas de população. Rio de Janeiro: IBGE; 2019.. O Índice de Desenvolvimento Social (IDS), indicador que reúne dados de saneamento, habitação, escolaridade e renda, é um dos piores da cidade, estando o bairro quase ao final da lista de 161 bairros11 Instituto Pereira Passos (IPP). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dados do Universo. Censo Demográfico. Rio de Janeiro: IPP, IBGE; 2010.. Dados de 2016 do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde (MS) mostram que 39% das mortes locais por causas externas foram relacionadas à VA, enquanto o município do Rio de Janeiro teve percentual de 22%.

O trabalho de campo que deu origem a este artigo buscou identificar os principais tipos de violência que atingem o local, seus impactos sobre a saúde e as estratégias utilizadas para produção de cuidado e enfrentamento do fenômeno33 Silva MM, Ribeiro FML, Frossard VC, Souza RM, Schenker M, Minayo MCS. Relatório da pesquisa "Violência e Saúde na Estratégia de Saúde da Família de Manguinhos: uma investigação preliminar". 2021. [acessado 2021 jan 02]. Disponível em: https://doi.org/10.48331/scielodata. WDDGXP, SciELO Data, V1, 2021.
https://doi.org/10.48331/scielodata...
. O texto prioriza a discussão sobre a principal expressão de violência encontrada – a VA – e discute suas consequências sob os serviços e a saúde de profissionais e usuários.

No território pesquisado é forte a presença de grupos armados com domínio de território44 Cano I, Borges D, Ribeiro E, organizadores. Os Donos do morro: uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. São Paulo, Rio de Janeiro: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Lav/UeRJ; 2012.

5 Ribeiro FML, Minayo MCS. As Comunidades Terapêuticas Religiosas na Recuperação de Dependentes de Drogas: O Caso de Manguinhos, RJ, Brasil. Interface (Botucatu) 2015; 19(54):515-526.
-66 Bueno LB. A favela (para)militarizada: território contido e impacto da violência armada na saúde, na educação e no cotidiano de moradores de Manguinhos, Jacarezinho e Maré [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2018. que desenvolvem atividades ilegais, entre elas o comércio de drogas. Estes grupos são alvo de operações das forças policiais, que têm como sustentação política de segurança pública ancorada na ideologia de guerra às drogas77 Boiteux L. El antimodelo brasileño, prohibicionismo, encarcelamiento y selectividad penal frente al tráfico de drogas. Rev Nueva Soc 2015; 255:132-144.,88 Valois LC. O Direito Penal da Guerra às Drogas. 3ª ed. Belo Horizonte: D'Plácido; 2019. e no enfrentamento bélico do varejo de drogas visando sua eliminação e uma sociedade “livre das drogas”.

Zaluar99 Zaluar AM. Retomar o debate logo. RECIIS 2018; 12(4):357-363. aponta que as políticas de repressão ao narcotráfico imprimiram a dialética corrupção/manutenção do negócio/abuso da força policial/violação de direitos. Esse tipo de repressão, aliada às formas autoritárias de poder praticadas pelas facções criminosas, tem como resultado o medo e o silenciamento da população e o uso da arma como forma de solução de conflitos. Gomes-Medeiros et al.1010 Gomes-Medeiros D, Faria PH, Campos GWS, Tófoli LF. Política de drogas e Saúde Coletiva: diálogos necessários. Cad Saude Publica 2019; 35(7):1-14. sublinham a associação entre políticas proibicionistas e aumento da violência e mortalidade por homicídio, sendo esta a consequência mais dramática da chamada guerra às drogas. Seu principal alvo é a população masculina, jovem, negra e com baixa escolaridade1111 Brasil. Secretaria Nacional de Juventude. Plano Juventude Viva: Guia de Implementação para Estados e Municípios. Brasília: Secretaria Nacional de Juventude; 2014., uma vez que é empreendida, sobretudo, nos espaços favelizados da cidade cuja população é, em sua maioria, negra1212 Rodriguez ECB. Cidade do Rio de Janeiro: indicadores censitários - raça e cor - na conformação do espaço urbano [dissertação]. Rio de Janeiro: CEFET; 2015.. Ela atinge todos que ali habitam e, em menor medida, também os que trabalham.

Esse fato expressa interseccionalidades relativas à raça, classe e localização espacial, que podem ser melhor compreendidas se considerarmos a vertente estrutural do racismo1313 Almeida SL O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento; 2018., componente fundamental da desigualdade econômica, política e jurídica que marca a sociedade brasileira. As classificações raciais foram centrais para a legitimidade das relações coloniais1414 Quijano A. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO; 2005: p. 117-142.,1515 Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Santos BDS, Meneses MPG, organizadores. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, CES/UC; 2014. p. 23-71., da escravização de africanos e do processo de libertação sem reparação ou inclusão social1616 Moraes F. No país do Racismo Institucional: dez anos de ações do GT Racismo no MPPE. Recife: Procuradoria Geral de Justiça; 2013., marcos históricos que expressam como o racismo estrutural está no cerne da construção da sociedade brasileira. As hierarquias racializadas construídas a partir deste processo permanecem e mantêm, ainda hoje, a população negra em posição de vulnerabilidade, habitando espaços que são alvo da violência armada e de uma política militarizada e ofensiva de segurança pública que, cotidianamente, violam direitos humanos.

No Rio de Janeiro, grande parte dos serviços da APS localiza-se em áreas com características e contextos similares ao do caso estudado. Em alguns territórios, além dos confrontos entre grupos armados e forças de segurança, existe também disputas entre diferentes grupos armados, que rivalizam pelo monopólio do comércio varejista de drogas, o que agrava a VA. A APS é o nível mais básico do Sistema Único de Saúde (SUS), tem organização territorial e atende uma população adstrita, o que faz com que os impactos da VA sejam bastante percebidos nesse nível de atenção.

No Brasil a organização do sistema de saúde, no que tange a problemática da violência, está atrelada à percepção de seus impactos sobre o perfil de morbimortalidade da população. Como lembram Minayo et al.1717 Minayo MCS, Souza ER, Silva MMA, Assis SG. Institucionalização do tema da violência no SUS: Avanços e Desafios. Cien Saude Colet 2018; 23(6):2007-2016. a violência afeta a saúde individual e coletiva, provoca mortes, lesões e traumas, diminui a qualidade de vida, coloca desafios para os serviços de saúde e evidencia a necessidade de atuação de base interdisciplinar, intersetorial e socialmente engajada.

O setor saúde é convocado a construir respostas para o enfrentamento à violência no que tange atenção, vigilância, prevenção e promoção da saúde1818 Silva Júnior JB. Prefácio. In: Njaine K, Assis SG, Constantino P, organizadoras. Impactos da Violência na Saúde. Rio de Janeiro: Ead/ENSP; 2013. p. 13-14.. Já em 1975 fora criado o Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), central para a compreensão da mortalidade por violência no país. Em 2001 é promulgada, pelo MS, a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (PNRMMAV)1919 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 737, de 16 de maio de 2001. Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes e violência. Diário Oficial da União; 2001., que incorpora o tema como problema de saúde pública e estabelece diretrizes para seu enfrentamento.

A Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS)2020 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 687, de 30 de março de 2006. Política Nacional de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União; 2006., em 2006, estabelece como prioridade a redução das violências e destaca o estímulo ao trabalho em rede, com ênfase na implementação da ficha de notificação de violência interpessoal. Em 2011 o MS2121 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme o disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005), a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelece fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. Diário Oficial da União; 2011. inclui a violência como agravo de notificação compulsória, implicando na padronização de procedimentos e fluxos para a vigilância epidemiológica. Cabe, a todo profissional de saúde, notificar os casos registrando-os no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), sendo obrigatório para:

Caso suspeito ou confirmado de violência doméstica/intrafamiliar, sexual, autoprovocada, tráfico de pessoas, trabalho escravo, trabalho infantil, tortura, intervenção legal e violências homofóbicas contra mulheres e homens em todas as idades. No caso de violência extrafamiliar/comunitária, somente serão objetos de notificação as violências contra crianças, adolescentes, mulheres, pessoas idosas, pessoa com deficiência, indígenas e população LGBT.2222 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. Brasília: MS; 2016.(p.21)

No entanto, diversos são os desafios nos serviços de saúde para efetivar esta ação, havendo significativa subnotificação2323 Jesus T, Mota E. Fatores associados à subnotificação de causas violentas de óbito. Cad Saude Colet 2010; 18(3):361-370.,2424 Kind L, Orsini MLP, Nepomuceno V, Gonçalves L, Souza GA, Ferreira MFF. Subnotificação e (In)Visibilidade da Violência Contra Mulheres na Atenção Primária à Saúde. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1805-1815.. A violência implica em desafios permanentes e complexos, pois expressa violações de direitos de difícil resolução e com consequências que se desdobram em vários âmbitos das vidas das pessoas.

Os serviços da APS são fundamentais na identificação e acolhimento dos casos de violência por sua proximidade com a população e potencial para desenvolver estratégias de enfrentamento. Os atendimentos baseiam-se no vínculo entre profissional e usuário, o que facilita a identificação dos agravos e o desenvolvimento de ações de cuidado, proteção e redução de danos2525 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Por uma cultura da paz, a promoção da saúde e a prevenção da violência. Brasília: MS; 2009.. No entanto, embora haja esse importante percurso histórico, a VA não é, até o momento, foco de enfrentamento pela APS.

Definimos a VA como violência real, ou em ameaça, com uso de arma de fogo (AF), que inclui uma série de expressões como tiroteios, “balas perdidas”, atuação de snipers, ostensividade da exposição e uso de armas, granadas, bombas e outros tipos de explosivos, etc. A VA atinge indivíduos e instituições e tem impactos na saúde das pessoas e nas ações sociais do território. Os serviços da APS têm sua rotina alterada e há efeitos na saúde de trabalhadores, o que repercute na atenção dispensada à população.

Metodologia

O estudo seguiu as exigências éticas relativas à pesquisa preconizadas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Os participantes não foram identificados e nas falas citadas neste artigo as categorias profissionais foram omitidas, a fim de garantir os princípios de anonimato e confidencialidade. O projeto foi aprovado pelo CEP/ENSP.

Os dados foram coletados a partir de pesquisa qualitativa exploratória do tipo estudo de caso, que teve como objetivo identificar, a partir de dois serviços da APS, os principais tipos de violência presentes no local, seus impactos e as estratégias utilizadas para seu enfrentamento e para a produção de cuidado. O trabalho de campo, desenvolvido em 2016, contou com as seguintes etapas:

  1. (1) Coleta de informações sobre os casos de violência registrados nos serviços, numa amostra de três meses (outubro a dezembro de 2015). A partir de instrumento de registro, buscou-se perceber os tipos e naturezas de violência, grupos afetados, encaminhamentos, desfechos e problemas de saúde relacionados. Encontraram-se 226 prontuários físicos, 20 eletrônicos, 3 fichas de notificação compulsória de violência e 50 fichas de acolhimento da psicologia. Foi aplicado filtro relativo ao atendimento de geriatras, pediatras, psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, a partir da orientação dos serviços a respeito do fluxo de encaminhamento interno dos casos de violência.

  2. (2) Entrevistas semi-estruturadas (seis) com trabalhadores dos serviços representantes de áreas indicadas pela gerência dos serviços como importantes para o cuidado relativo à violência: gestão, terapia comunitária, serviço social, psicologia e articulação institucional. O roteiro buscou perceber os tipos de violência presentes no território, grupos afetados, impactos sobre o serviço e a saúde de profissionais e usuários, capacitação, estratégias de enfrentamento e contato com a rede de proteção.

  3. (3) Grupos focais (quatro), que reuniram 40 pessoas indicadas pela gerência dos serviços como importantes para o cuidado relativo à violência: agentes comunitários de saúde, médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e moradores participantes dos conselhos locais de saúde. O roteiro buscou perceber os tipos de violência presentes no território, grupos afetados, impactos sobre o serviço e a saúde de profissionais e usuários, capacitação, estratégias de enfrentamento e contato com a rede de proteção.

  4. (4) Realização de seminário de apresentação dos resultados da pesquisa para os serviços da APS e parceiros da rede intersetorial de cuidado e proteção social às pessoas em situação de violência. Compuseram a mesa representantes da Coordenadoria da Área Programática da Secretaria Municipal de Saúde (CAP 3.1/SMS), do Centro de Referência Especial de Assistência Social (CREAS) e do Conselho Tutelar (CT), que puderam relatar suas experiências relacionadas aos resultados da pesquisa, enriquecendo a perspectiva de análise a partir dos parceiros da rede de proteção.

Para tratamento das informações da etapa 1 foi adotada análise descritiva simples; para as etapas 2 e 3 seguiram-se os princípios da Análise de Conteúdo temática2626 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977.,2727 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9ª ed. São Paulo: Hucitec; 2006.: na pré-análise foi feita leitura flutuante com base nos principais aspectos abordados nos roteiros e a constituição do corpus de análise; na fase de exploração do material foram levantadas as categorias de sentido, a partir da classificação dos principais temas abordados, seguindo-se a organização das informações; na terceira fase se deu a análise dos resultados e interpretação crítica à luz da literatura. O registro das discussões da etapa 4 foi utilizado de forma complementar às análises aqui empreendidas. Neste artigo foi priorizada a discussão sobre a VA devido à pregnância de sua presença nos resultados do trabalho de campo.

Resultados

Impactos da VA na saúde de profissionais e usuários e nos serviços

A VA, dentre todas as expressões de violência, foi identificada como uma das maiores preocupações de profissionais de saúde e de usuários dos serviços da APS em função de sua intensa ocorrência. Registram-se graves resultados como homicídios intencionais ou em função de “balas perdidas”; testemunho de torturas e homicídios; envolvimento de familiares e amigos com grupos armados do comércio varejista de drogas ilícitas; invasão de domicílios por pessoas ligadas aos grupos armados – os chamados traficantes – impondo a guarda de armas; invasão de domicílios pelas forças de segurança em busca de drogas, armas e pessoas envolvidas com o tráfico; invasão de serviços públicos por policiais e traficantes em busca de pessoas; expulsão de moradores do território por grupos armados; violência contra mulheres cujos parceiros pertencem às facções criminosas, especialmente relacionadas a ameaças com armas de fogo.

Como já é conhecido, existe uma sincronia entre as violências mais declaradas, as mais sutis e as do âmbito privado1717 Minayo MCS, Souza ER, Silva MMA, Assis SG. Institucionalização do tema da violência no SUS: Avanços e Desafios. Cien Saude Colet 2018; 23(6):2007-2016.. Os relatos mostram uma intersecção da VA com uma série de outras expressões, como a intrafamiliar que envolve agressões físicas, verbais, abuso sexual e negligências de diversas ordens. A ocorrência da violência autoinfligida também é significativa, observando-se ideações e tentativas de suicídio e a prática de automutilação, nesse último caso, entre os jovens.

As manifestações de VA violam direitos básicos, os serviços de saúde têm que fechar parcial ou totalmente e suspender atividades comunitárias para diminuir os riscos à vida dos trabalhadores e usuários. As operações das forças de segurança são realizadas, grande parte das vezes, de forma ostensiva e violenta. Não é incomum registrar a chegada da polícia na favela fazendo disparos por AF, o que deixa a população local vulnerável e produz feridos e mortos. Em tais ocasiões crescem os sentimentos de insegurança que geram medo entre todos.

Há precariedade estrutural em alguns serviços de saúde locais, como os construídos em containers de frágil estrutura, o que representa um incremento à vulnerabilidade já vivida no ir e vir. Além dos riscos de ferimento e morte, profissionais e moradores acumulam adoecimentos provenientes da vivência de VA ou por ela intensificados:

Ontem teve tiroteio, a Clínica inteira foi para o meio do corredor, mas refúgio aqui não tem [trabalhamos nos containers]. Uma bala entrou, se tivesse alguém ali [teria morrido]. A saúde mental do pessoal está muito afetada sim! (Profissional de saúde).

Os depoimentos destacam o desenvolvimento ou piora de sintomas relacionados à gastrite, úlcera, descontrole glicêmico e hipertensão. Como reação imediata aos eventos foram relatados vômitos, diarréias em crianças e sangramento em grávidas. Em relação à saúde mental registrou-se ansiedade, insônia, estresse, alterações de humor, sofrimento psíquico difuso intenso, dificuldades de relacionamento e medo de sair de casa, além de quadros mais graves como crises de pânico, fobias, depressão e agravamento de quadros psicóticos:

Eu estava no acolhimento e chegou um rapaz novo, negro, que fazia acompanhamento de pressão. Esbaforido e nervoso, tinha sido revistado porque estava tendo uma incursão e ele tentava chegar na clínica. Quando estava saindo de casa os policiais quiseram entrar e revistaram tudo, ele achou aquilo um excesso e foi na UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) reclamar, e lá deram na cara dele. A pressão que já estava alta, ficou mais alta, teve [que receber] medicação. Dois dias depois a doutora teve que entrar com remédio, porque ele foi diagnosticado com hipertensão (Profissional de saúde).

Nos prontuários dos usuários chama atenção a anotação de quadros psicopatológicos associados à VA. Os códigos da Classificação Internacional de Doenças (CID 10) mais registrados são os do Capítulo V, relativo aos “Transtornos Mentais e Comportamentais”: “F48.9 Transtorno neurótico não especificado”, “F41.0 Transtorno de Pânico”, “F41.1 Ansiedade generalizada”, “F31.9 Transtorno afetivo bipolar não especificado” e “F13.2 Transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de sedativos e hipnóticos - síndrome de dependência”.

Da parte dos profissionais, encontram-se relatos de afastamento do trabalho como um dos impactos da VA. Dentre eles, os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) são os mais expostos, pois, além de serem trabalhadores, são moradores do território:

A gente vê a violência diariamente. Você fica estressado. Como é que você vai trabalhar numa área de violência, com tiroteio, com polícia, com bandido? Você sai de casa como? Não sabe se vai, não sabe se fica, e é um problema sério! Muita gente passa mal! (Profissional de saúde).

A gravidade dos casos atendidos, dificuldades de encaminhamento e de resolução dos problemas, assim como a proximidade com a vulnerabilidade social dos usuários devido ao vínculo que caracteriza a relação profissional/usuário na APS, angustiam os profissionais e são fatores de sofrimento. No entanto, a capacidade de resiliência identificada entre os usuários no enfrentamento de situações adversas de vida, provê aos profissionais algum alento.

Dificuldades e limites da notificação compulsória de violência

A notificação de violência é um instrumento de vigilância epidemiológica para informar casos suspeitos ou confirmados à autoridade sanitária, visando ao enfrentamento deste agravo. Apesar de sua importância, no território pesquisado esta notificação é deficiente, o que não é exclusividade local. Os profissionais atribuem esse fato à extensão da ficha, sobrecarga de trabalho, medo de represálias por parte dos grupos armados com domínio de território, medo de estremecimento do vínculo com as famílias, com consequente abandono do serviço e agravamento da situação de violência.

A notificação é um ato do setor saúde que visa à proteção, porém, num território com significativa ocupação de grupos armados e intensos confrontos por AF, os profissionais da APS receiam que, ao cumprir a orientação da vigilância em saúde, estejam se expondo à ira destes grupos. Sobretudo os ACS expressam esse temor, na medida em que conhecem e são conhecidos no seu local de trabalho e moradia. Outro fator é a confusão que muitos profissionais fazem entre notificação e denúncia. O ato de notificar remete ao setor saúde e gera informações sobre o agravo da violência. Sua inserção no SINAN é fruto da luta de gerações de profissionais e movimentos sociais para gerar visibilidade sobre as violências. Já a denúncia remete às instâncias de segurança pública e justiça, podendo ser feita por qualquer pessoa. A situação, tal como se apresenta, dificulta a consolidação da notificação como uma prática rotineira dos serviços. Durante o período da pesquisa foram registradas apenas três notificações de violência, número desproporcional aos casos narrados em entrevistas e prontuários:

A violência está estampada, você vê, mas, o que você pode fazer? Essa mulher que apanhou, com a cara toda quebrada, falou que tinha caído. O marido dela era do tráfico, aí ela vai me dizer e eu vou dizer para a médica e eu vou tomar partido. E ele faz o que comigo depois, no território? (Profissional de saúde).

A não notificação da situação de violência pela APS, no entanto, não impede que os casos cheguem ao conhecimento das autoridades sanitárias, pois outros serviços de saúde, como as emergências, podem fazer o registro ao atender à população, já numa situação bem mais grave de assistência. Periodicamente a CAP 3.1/SMS, que recebe as notificações e monitora os casos, devolve às unidades da APS relatórios com os casos de sua área de abrangência, uma vez que cabe a estas unidades acompanhá-los.

Atuação em rede de cuidado e proteção social às pessoas em situação de violência

Para a atenção em violência e saúde é essencial o trabalho em rede intrassetorial, reunindo outros serviços de saúde; e intersetorial, articulando-se com serviços como os de assistência social, educação e ONGs. No presente estudo identificou-se um melhor funcionamento da rede intrassetorial da saúde, com esforço de acompanhamento e encaminhamentos entre os diversos níveis da atenção. Os principais parceiros da rede intrasetorial citados foram a Coordenadoria da Área Programática da Secretaria Municipal de Saúde (CAP 3.1/SMS) e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).

Já em relação aos encaminhamentos para a rede intersetorial, os profissionais da APS referiram dificuldades, pois a percebem como sobrecarregada pela falta de profissionais e por dificuldades logísticas. Estas se relacionam à falta de investimento adequado para a consolidação e desenvolvimento das atividades, o que afeta a efetividade dos encaminhamentos e a comunicação. Os principais parceiros da rede intersetorial citados foram: Conselho Tutelar (CT), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e Coordenadoria Regional de Educação (CRE).

Em geral, casos que poderiam ser abordados de forma intersetorial, acabam por ser tratados apenas sob a ótica da saúde, que tem na área adstrita maior número de profissionais disponíveis, em comparação com os outros serviços2828 Silva MM, Ribeiro FML. Rede de proteção às violências de Manguinhos: informações e contatos da saúde, assistência social e direitos humanos, educação [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz/ENSP/CLAVES; 2020 [acessado 2020 out 15]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/43989.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict...
. Os encaminhamentos à rede de proteção são precários e acontecem quase que exclusivamente em casos extremos. Outra questão é que o encaminhamento para a rede intersetorial demanda tempo de acompanhamento porém, este trabalho não é contabilizado nas metas do serviço de saúde, o que desencoraja os profissionais a fazê-lo, uma vez que via de regra estão assoberbados com outras demandas.

Os profissionais consideram confuso o processo de encaminhamento para outros serviços e o retorno para a saúde, havendo consideráveis dificuldades para acesso a informações quando se trata de acompanhamento dos casos. Um dos motivos é que cada setor utiliza um sistema de informação diferente, não havendo padronização para essa comunicação intersetorial, nem para o fluxo de encaminhamento entre os serviços. O aprimoramento da comunicação foi apontado como um grande desafio por todos.

Os parceiros da rede também demandam ações da saúde pois, não obstante as dificuldades, os serviços da APS desenvolvem estratégias de cuidado para minimizar os efeitos das violências e fortalecer os vínculos. Diversas vezes a busca por atendimentos especializados, como de psicólogos e psiquiatras em casos de sofrimentos psíquicos, gera encaminhamentos para a instituição de saúde à qual esses serviços estão vinculados. A APS aposta no vínculo e na proximidade com as famílias para garantir o cuidado longitudinal e em equipe multiprofissional, garantindo o acesso aos recursos disponíveis no setor.

Durante o seminário realizado houve consenso entre os diferentes componentes da rede sobre os impactos negativos da VA: medo, sentimento de impotência, adoecimento físico e mental dos trabalhadores e dificuldade na circulação pelo território prejudicam a integração entre os diferentes serviços. Os problemas vivenciados na saúde são compartilhados pelos outros setores:

Muda a rotina, a tensão, aumenta estresse e preocupação com o profissional na rua. Já houve caso de profissional fazendo visita e o policial apontar a arma porque a pessoa era negra e estava sem o colete, estava só com uma blusa e o crachá de profissional de saúde (Profissional de saúde).

Discussão

Considera-se, a partir da análise dos resultados, que o fenômeno da violência em geral, e da VA em particular, é extremamente relevante no contexto estudado, desdobrando-se em impactos sobre a saúde física e mental de profissionais e usuários e sobre o funcionamento dos serviços.

Essas expressões de violência não podem ser descontextualizadas da prevalência da violência estrutural que atravessa a sociedade brasileira e mantém as desigualdades. Esta violência, tida como “natural”, incide sobre as condições de vida da população e relaciona-se historicamente à estrutura política, cultural, econômica e social brasileira2929 Minayo MCS. Conceitos, Teorias e Tipologias de Violência: A Violência faz Mal à Saúde. In: Njaine K, Assis SG, Constantino P, organizadoras. Impactos da Violência na Saúde. Rio de Janeiro: Ead/ENSP; 2013. p. 21-42., se fazendo presente, de maneira dramática, nos espaços de vida mais desvalorizados das cidades, como as favelas cariocas.

É para estes espaços que se dirige o braço repressor da política pública de segurança brasileira orientada pelo ideário de guerra às drogas. Tal política aposta na ostensividade do poderio bélico, priorizando operações de repressão em detrimento de ações de inteligência3030 Silva LAM. "Violência urbana", segurança pública e favelas: o caso do Rio de Janeiro atual. Cad CRH 2010; 23(59):283-300.,3131 Muniz JO, Almeida RR. Respondendo às balas: segurança pública sob intervenção das palavras: entrevista com Jacqueline Muniz. Trab Lingu Apl 2005; 57(2):993-1014.. No entanto, ao entrar na favela para travar mais uma batalha contra as drogas, as forças de segurança encontram outro ator também fortemente armado: os grupos com domínio de território. Não é incomum identificar em relatos de profissionais e de moradores o sentimento de estar “no fogo cruzado”, “acuados”. Independente de quem atira, serão eles os atingidos.

O complexo cenário da política de guerra às drogas na América Latina e no Brasil3232 Lemgruber J, Boiteux L. O fracasso da guerra às drogas. In: Lima RS, Ratton JL, Azevedo RG organizadores. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Editora Contexto; 2014. p.357-362.,3333 Jelsma M. Ungass 2016: Prospects for Treaty Reform And Un System-wide Coherence On Drug Policy. Center for 21st century security and intelligence latin america initiative; 2015. e o comércio internacional de armas e de drogas3434 Wacquant L. As prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar; 2011.,3535 Daudelin JE, Ratton JL. Mercados de Drogas, Guerra e Paz no Recife. Tempo Soc Rev Sociol USP 2017; 29(2):115-134. sustentam a violência que se pratica cotidianamente nas favelas, onde mora a parcela mais pobre da população, em sua maioria negra. A violência racial3636 Silva MM, Pereira JG. Violência Contra A População Negra: Ampliando Olhares. In: Minayo MCS, Assis SG, organizadoras. Novas e Velhas Faces da Violência no Século XXI: Visão da Literatura Brasileira do Campo da Saúde. Rio De Janeiro: Editora Fiocruz; 2017. p. 341-362., que se volta aos corpos negros, os torna os principais destinatários da violência e se reflete nos elevados índices de mortalidade por causas externas, muito superiores ao de não negros. Michel Foucault3737 Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collége de France (1975 -1976). São Paulo: Martins Fontes; 2005. já apontava que o racismo de Estado é parte fundamental do exercício do poder na modernidade, criando e hierarquizando raças, diferenciando grupos e informando quem deve viver e quem pode morrer. A partir deste autor, Mbembe3838 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições; 2018. cunha o conceito de necropolítica, a fim de pensar as formas contemporâneas de submissão da vida às tecnologias de morte, dispostas com o objetivo de provocar a destruição de pessoas, submetendo populações inteiras. Esses conceitos nos ajudam a compreender políticas como a de segurança pública brasileira levada a cabo em favelas e que deixam a população negra muito mais expostas à morte e ao extermínio, a reificando como alvo do poder de morte do Estado. Acrescenta-se ainda uma permissividade social, frente o desenvolvimento de ações violentas que ferem os direitos humanos, em espaços precarizados e estigmatizados como perigosos. As consequências de tal política nas vidas e na saúde de profissionais e moradores são profundas, conforme ressaltado na pesquisa.

As dificuldades dos profissionais de saúde em lidar com situações que envolvem violência foram também identificadas por outros estudos, que destacam os desafios do atendimento aos casos por desconhecimento sobre os tipos e naturezas da violência3939 Costa DKGD, Reichert LP, França JRFS, Collet N, Reichert APS. Concepções e Práticas dos Profissionais de Saúde acerca da Violência Intrafamiliar contra Crianças e Adolescentes. Trab Educ Saude 2015; 13(Supl. 2):79-95.

40 Gomes NP, Erdmann AL, Bettinelli LA, Higashi GDC, Carneiro JB, Diniz MR. Significado da Capacitação Profissional para o Cuidado da Mulher Vítima de Violência Conjugal. Esc Anna Nery Rev Enferm 2013; 17(4):683-689.
-4141 Kanno NDP, Bellodi PL, Tess BH. Profissionais da Estratégia Saúde da Família diante de demandas médico-sociais: dificuldades e estratégias de enfrentamento. Saude Soc 2012; 21(4):884-894.; os problemas para fazer o devido registro dos fatos4242 Salcedo-Barrientos DM, Miura PO, Macedo VD, Egry EY. Como os Profissionais da Atenção Básica Enfrentam a Violência na Gravidez? Rev Lat-Am Enferm 2014; 22(3):448-453.; a confusão entre notificação e denúncia2424 Kind L, Orsini MLP, Nepomuceno V, Gonçalves L, Souza GA, Ferreira MFF. Subnotificação e (In)Visibilidade da Violência Contra Mulheres na Atenção Primária à Saúde. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1805-1815.,4343 Lima MLC, Souza ER, Lima MLLT, Barreira AK, Bezerra ED, Acioli RML. Assistência à saúde dos idosos vítimas de acidentes e violência: uma análise da rede de serviços SUS no Recife (PE, Brasil). Cien Saude Colet 2010; 15(6):2677-2686.

44 Lima MCCS, Costa MCO, Bigras M, Santana MAO, Alves TDB, Nascimento OC, Silva MR. Atuação pro-fissional da atenção básica de saúde face à identificação e notificação da violência infanto-juvenil. Rev Baiana Saude Publica 2011; 35(1):118-137.
-4545 Lobato GR, Moraes CL, Nascimento MCD. Desafios da atenção à violência doméstica contra crianças e adolescentes no programa saúde da família em cidade de médio porte do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2012; 28(9):1749-1758.; e o sentimento de impotência e sofrimento psíquico4444 Lima MCCS, Costa MCO, Bigras M, Santana MAO, Alves TDB, Nascimento OC, Silva MR. Atuação pro-fissional da atenção básica de saúde face à identificação e notificação da violência infanto-juvenil. Rev Baiana Saude Publica 2011; 35(1):118-137.,4646 Luna GLM, Ferreira RC, Vieira LJEDS. Notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes por profissionais da equipe saúde da família. Cien Saude Colet 2010; 15(2):481-491.. Considera-se que a atuação violenta de grupos armados com domínio de território e a existência de um sistema autocrático de justiçamento, no presente caso, agravam as dificuldades acima elencadas. Os desdobramentos da notificação, no imaginário dos profissionais, são percebidos como atos policialescos que podem desvelar violências relacionadas a outras ilegalidades, como tráfico de drogas, armas e roubos. Assim, um ato de cuidado que hipoteticamente visaria romper o ciclo da violência é omitido.

Estudos indicam a falta de conhecimento ou mesmo de interesse dos profissionais de saúde sobre como funciona a rede de proteção social e seus serviços4545 Lobato GR, Moraes CL, Nascimento MCD. Desafios da atenção à violência doméstica contra crianças e adolescentes no programa saúde da família em cidade de médio porte do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2012; 28(9):1749-1758., o que dificulta a integralidade no atendimento às pessoas que vivenciam violências. Somado a isso, no Rio de Janeiro, o cenário atual de precariedade dos serviços da rede gera mais incertezas do que efetividade das ações. Segundo relatos, o fluxo de encaminhamento é difícil porque os serviços estão sobrecarregados, o que é atribuído aos problemas financeiros e políticos do estado e do município. Ademais, o cenário de VA, comum a muitos territórios de atuação dos serviços da rede, faz os profissionais questionarem se vale o risco da exposição, sem a garantia de uma solução para os casos e sem o apoio efetivo para solucioná-los por parte das autoridades locais.

Essa situação é um dos exemplos de como a VA colabora com a invisibilidade dos casos de violência no Rio de Janeiro: se não notificados, não existem para os sistemas de informação. Dessa maneira, suas consequências não se configuram como uma demanda prioritária para ação pública. Embora os números relativos à violência no SINAN já chamem atenção, pode-se inferir, com apoio na literatura2323 Jesus T, Mota E. Fatores associados à subnotificação de causas violentas de óbito. Cad Saude Colet 2010; 18(3):361-370.,2424 Kind L, Orsini MLP, Nepomuceno V, Gonçalves L, Souza GA, Ferreira MFF. Subnotificação e (In)Visibilidade da Violência Contra Mulheres na Atenção Primária à Saúde. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1805-1815. e no trabalho de campo, que há considerável sub-registro. Por sua vez, a subnotificação corrobora com o enfraquecimento institucional da rede intersetorial, pois faz parecer falsamente que não há demanda e que o investimento público é desnecessário. Frente à complexidade da problemática notificação/subnotificação é necessário ouvir os profissionais e levar em conta as dificuldades das realidades locais, a fim de elaborar estratégias que possam valorizar e dar sentido a este instrumento, como sua revisão e das normativas de aplicação.

Outro ponto relacionado à invisibilidade da VA é que, a despeito da enorme relevância nos resultados da pesquisa e da morbimortalidade a ela relacionada, inexiste registro desta violência no SINAN entre 2016 e 2018 (último ano disponível) para o território estudado. Sabe-se, contudo, que é enorme a ocorrência de VA no local. Como reação a esta invisibilidade e como forma de denúncia da violência, a sociedade civil organizada tem envidado esforços para produzir informações. Umas das iniciativas é a plataforma colaborativa Fogo Cruzado, que visibiliza riscos relacionados à circulação durante episódios de VA e que começou a coletar dados no segundo semestre de 2016, contabilizando, no bairro, 22 tiroteios apenas nesse período; em 2017 foram 79 e, em 2018, 77.

Vale destacar também a implementação da iniciativa Acesso Mais Seguro, parceria entre o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e a SMS do Rio de Janeiro. Esta entidade, que desenvolve ações em locais conflagrados, em situações de guerra, está presente no Rio de Janeiro desde 2009, atuando em territórios com grandes índices de VA. Esta iniciativa visa desenvolver estratégias de proteção dos profissionais de saúde da APS, através do desenvolvimento de plano de contingência, protocolo de ação e registro relativo às alterações de funcionamento nos serviços em função de VA. O trabalho de campo, realizado em 2016, coincidiu com a implementação desta iniciativa no território. Apesar de possuir informações importantes sobre a alteração da rotina dos serviços, em função da ocorrência de VA, este banco não é público e seus dados não estão disponibilizados.

Considerações finais

Em relação à atenção voltada às manifestações de violência interpessoal, considera-se que os serviços que compõem a APS do território estudado conseguem acolher as pessoas, fortalecer vínculos e produzir cuidado, apesar da subnotificação de tais violências. Porém, em relação à VA, há enormes desafios tanto para romper com sua invisibilidade, quanto para estruturar ações mais eficazes.

A literatura da área de saúde aborda pouco o fenômeno e registra timidamente os danos da VA na saúde das populações. A informação é fundamental para nortear políticas públicas efetivas e comprometidas com as necessidades das pessoas, sua ausência aprofunda a vulnerabilidade e o risco de quem mora e trabalha em favelas, onde a política pública de segurança é exercida quase que exclusivamente através do braço repressivo e bélico estatal.

Cabe refletir sobre a possibilidade de inclusão, na Ficha de Notificação Compulsória de Violência, de campo específico para registro de pessoas vítimas de VA, para além daquelas que vão à óbito e cuja informação fica registrada no SIM, a fim de produzir visibilidade para as diversas consequências desse fenômeno tão presente e dramático em muitos espaços da cidade. Como propor intervenção para um problema do qual não se conhece a magnitude? O setor saúde possui um bom sistema de informação e tem grande potencial em ser protagonista nesse processo. Destaca-se que, no entanto, sem enfrentar ativa e propositivamente a subnotificação, há considerável risco da inserção de um novo campo na ficha não surtir o efeito pretendido, ou seja, ser capaz de registrar o cenário da VA.

A VA cria um ambiente de insegurança e medo, enfraquece vínculos, resulta em grande sofrimento psíquico e inibe a qualidade dos serviços públicos, representando um grande desafio às garantias do Estado democrático de direito. O presente estudo, de um caso localizado – que tem limites e não pode ser generalizado –, serve de hipótese para muitos outros territórios vulnerabilizados do Rio de Janeiro, que vivem cotidianamente em seus espaços de sociabilidade a trama entre violência estrutural, racial e armada e várias expressões de violência interpessoal e comunitária. Infelizmente no Brasil, país marcado por enormes desigualdades sociais, raciais, de gênero e etárias, as populações de territórios como os deste estudo ainda precisam conquistar os direitos básicos, como à vida e o de ir e vir.

Referências

  • 1
    Instituto Pereira Passos (IPP). Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dados do Universo. Censo Demográfico. Rio de Janeiro: IPP, IBGE; 2010.
  • 2
    Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativas de população. Rio de Janeiro: IBGE; 2019.
  • 3
    Silva MM, Ribeiro FML, Frossard VC, Souza RM, Schenker M, Minayo MCS. Relatório da pesquisa "Violência e Saúde na Estratégia de Saúde da Família de Manguinhos: uma investigação preliminar". 2021. [acessado 2021 jan 02]. Disponível em: https://doi.org/10.48331/scielodata WDDGXP, SciELO Data, V1, 2021.
    » https://doi.org/10.48331/scielodata
  • 4
    Cano I, Borges D, Ribeiro E, organizadores. Os Donos do morro: uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. São Paulo, Rio de Janeiro: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Lav/UeRJ; 2012.
  • 5
    Ribeiro FML, Minayo MCS. As Comunidades Terapêuticas Religiosas na Recuperação de Dependentes de Drogas: O Caso de Manguinhos, RJ, Brasil. Interface (Botucatu) 2015; 19(54):515-526.
  • 6
    Bueno LB. A favela (para)militarizada: território contido e impacto da violência armada na saúde, na educação e no cotidiano de moradores de Manguinhos, Jacarezinho e Maré [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2018.
  • 7
    Boiteux L. El antimodelo brasileño, prohibicionismo, encarcelamiento y selectividad penal frente al tráfico de drogas. Rev Nueva Soc 2015; 255:132-144.
  • 8
    Valois LC. O Direito Penal da Guerra às Drogas. 3ª ed. Belo Horizonte: D'Plácido; 2019.
  • 9
    Zaluar AM. Retomar o debate logo. RECIIS 2018; 12(4):357-363.
  • 10
    Gomes-Medeiros D, Faria PH, Campos GWS, Tófoli LF. Política de drogas e Saúde Coletiva: diálogos necessários. Cad Saude Publica 2019; 35(7):1-14.
  • 11
    Brasil. Secretaria Nacional de Juventude. Plano Juventude Viva: Guia de Implementação para Estados e Municípios. Brasília: Secretaria Nacional de Juventude; 2014.
  • 12
    Rodriguez ECB. Cidade do Rio de Janeiro: indicadores censitários - raça e cor - na conformação do espaço urbano [dissertação]. Rio de Janeiro: CEFET; 2015.
  • 13
    Almeida SL O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento; 2018.
  • 14
    Quijano A. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO; 2005: p. 117-142.
  • 15
    Santos BS. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Santos BDS, Meneses MPG, organizadores. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, CES/UC; 2014. p. 23-71.
  • 16
    Moraes F. No país do Racismo Institucional: dez anos de ações do GT Racismo no MPPE. Recife: Procuradoria Geral de Justiça; 2013.
  • 17
    Minayo MCS, Souza ER, Silva MMA, Assis SG. Institucionalização do tema da violência no SUS: Avanços e Desafios. Cien Saude Colet 2018; 23(6):2007-2016.
  • 18
    Silva Júnior JB. Prefácio. In: Njaine K, Assis SG, Constantino P, organizadoras. Impactos da Violência na Saúde. Rio de Janeiro: Ead/ENSP; 2013. p. 13-14.
  • 19
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 737, de 16 de maio de 2001. Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes e violência. Diário Oficial da União; 2001.
  • 20
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 687, de 30 de março de 2006. Política Nacional de Promoção da Saúde. Diário Oficial da União; 2006.
  • 21
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme o disposto no Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI 2005), a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelece fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. Diário Oficial da União; 2011.
  • 22
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Viva: instrutivo notificação de violência interpessoal e autoprovocada. Brasília: MS; 2016.
  • 23
    Jesus T, Mota E. Fatores associados à subnotificação de causas violentas de óbito. Cad Saude Colet 2010; 18(3):361-370.
  • 24
    Kind L, Orsini MLP, Nepomuceno V, Gonçalves L, Souza GA, Ferreira MFF. Subnotificação e (In)Visibilidade da Violência Contra Mulheres na Atenção Primária à Saúde. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1805-1815.
  • 25
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Por uma cultura da paz, a promoção da saúde e a prevenção da violência. Brasília: MS; 2009.
  • 26
    Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977.
  • 27
    Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9ª ed. São Paulo: Hucitec; 2006.
  • 28
    Silva MM, Ribeiro FML. Rede de proteção às violências de Manguinhos: informações e contatos da saúde, assistência social e direitos humanos, educação [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz/ENSP/CLAVES; 2020 [acessado 2020 out 15]. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/43989
    » https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/43989
  • 29
    Minayo MCS. Conceitos, Teorias e Tipologias de Violência: A Violência faz Mal à Saúde. In: Njaine K, Assis SG, Constantino P, organizadoras. Impactos da Violência na Saúde. Rio de Janeiro: Ead/ENSP; 2013. p. 21-42.
  • 30
    Silva LAM. "Violência urbana", segurança pública e favelas: o caso do Rio de Janeiro atual. Cad CRH 2010; 23(59):283-300.
  • 31
    Muniz JO, Almeida RR. Respondendo às balas: segurança pública sob intervenção das palavras: entrevista com Jacqueline Muniz. Trab Lingu Apl 2005; 57(2):993-1014.
  • 32
    Lemgruber J, Boiteux L. O fracasso da guerra às drogas. In: Lima RS, Ratton JL, Azevedo RG organizadores. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Editora Contexto; 2014. p.357-362.
  • 33
    Jelsma M. Ungass 2016: Prospects for Treaty Reform And Un System-wide Coherence On Drug Policy. Center for 21st century security and intelligence latin america initiative; 2015.
  • 34
    Wacquant L. As prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Zahar; 2011.
  • 35
    Daudelin JE, Ratton JL. Mercados de Drogas, Guerra e Paz no Recife. Tempo Soc Rev Sociol USP 2017; 29(2):115-134.
  • 36
    Silva MM, Pereira JG. Violência Contra A População Negra: Ampliando Olhares. In: Minayo MCS, Assis SG, organizadoras. Novas e Velhas Faces da Violência no Século XXI: Visão da Literatura Brasileira do Campo da Saúde. Rio De Janeiro: Editora Fiocruz; 2017. p. 341-362.
  • 37
    Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collége de France (1975 -1976). São Paulo: Martins Fontes; 2005.
  • 38
    Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições; 2018.
  • 39
    Costa DKGD, Reichert LP, França JRFS, Collet N, Reichert APS. Concepções e Práticas dos Profissionais de Saúde acerca da Violência Intrafamiliar contra Crianças e Adolescentes. Trab Educ Saude 2015; 13(Supl. 2):79-95.
  • 40
    Gomes NP, Erdmann AL, Bettinelli LA, Higashi GDC, Carneiro JB, Diniz MR. Significado da Capacitação Profissional para o Cuidado da Mulher Vítima de Violência Conjugal. Esc Anna Nery Rev Enferm 2013; 17(4):683-689.
  • 41
    Kanno NDP, Bellodi PL, Tess BH. Profissionais da Estratégia Saúde da Família diante de demandas médico-sociais: dificuldades e estratégias de enfrentamento. Saude Soc 2012; 21(4):884-894.
  • 42
    Salcedo-Barrientos DM, Miura PO, Macedo VD, Egry EY. Como os Profissionais da Atenção Básica Enfrentam a Violência na Gravidez? Rev Lat-Am Enferm 2014; 22(3):448-453.
  • 43
    Lima MLC, Souza ER, Lima MLLT, Barreira AK, Bezerra ED, Acioli RML. Assistência à saúde dos idosos vítimas de acidentes e violência: uma análise da rede de serviços SUS no Recife (PE, Brasil). Cien Saude Colet 2010; 15(6):2677-2686.
  • 44
    Lima MCCS, Costa MCO, Bigras M, Santana MAO, Alves TDB, Nascimento OC, Silva MR. Atuação pro-fissional da atenção básica de saúde face à identificação e notificação da violência infanto-juvenil. Rev Baiana Saude Publica 2011; 35(1):118-137.
  • 45
    Lobato GR, Moraes CL, Nascimento MCD. Desafios da atenção à violência doméstica contra crianças e adolescentes no programa saúde da família em cidade de médio porte do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica 2012; 28(9):1749-1758.
  • 46
    Luna GLM, Ferreira RC, Vieira LJEDS. Notificação de maus-tratos em crianças e adolescentes por profissionais da equipe saúde da família. Cien Saude Colet 2010; 15(2):481-491.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2020
  • Aceito
    25 Jan 2021
  • Publicado
    27 Jan 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br