Resumo
Políticas públicas são baseadas em categorias que possuem um duplo efeito: constroem elegibilidade aos direitos e geram efeitos simbólicos, reproduzindo ou enfrentando estigmas sociais. Este artigo tem como objetivo analisar como, historicamente, foram construídas as categorias do público-alvo das políticas de saúde mental no Brasil. A partir de um estudo documental das legislações de 1841 até 2017, observamos os processos de construção das categorias políticas dos usuários da saúde mental. Foram analisados os processos de alteração das categorias políticas a respeito dos usuários da política de saúde mental, o enquadramento social dado a eles e seus efeitos em acesso a políticas e construção de estigmas sociais. As análises demonstraram mudanças importantes em categorias que buscaram desestigmatizar o sujeito das políticas ao longo do tempo baseadas em novas concepções propostas pelos movimentos sociais da saúde mental, pelas políticas internacionais e por mudanças sociais mais amplas, como a redemocratização do país. Entretanto, também evidenciamos a dificuldade do enfrentamento efetivo dos estigmas devido a falta de consenso do próprio campo, resistência das transformações das categorias sociais, dos familiares e dos profissionais da saúde.
Palavras-chave:
Categorias políticas; Doente mental; Cidadão
Introdução
A ação estatal é construída por meio de regras que compõem as categorias a respeito dos públicos atendidos11 Schneider AL, Ingram HM, organizadores. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005.. As regras dividem a população, por identidade, comportamento ou situações, construindo ou reproduzindo categorias que devem receber tratamentos diferenciados de cordo com suas características. Políticas públicas podem ser vistas como uma ordenação deliberada do mundo a partir de distintos tratamentos propostos para categorias diferentes, suportadas em regras22 Stone D. Foreword, State University of New York, 2005. In: Schneider AL, Ingram HM organizadores. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005.. Se por um lado esse processo de categorização e os encaminhamentos que ele gera podem ser vistos como uma ação racional do Estado para viabilizar políticas, também se torna um potencial problema, dada a necessidade de conciliar igualdade e universalismo - ideais democráticos - com a diferenciação requerida pela operação das políticas22 Stone D. Foreword, State University of New York, 2005. In: Schneider AL, Ingram HM organizadores. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005..
Esse é um processo mais crítico se pensarmos que a categorização, além de gerar tratamentos diferentes, pode se reverter em (re)produção de desigualdades. Isso porque o Estado tem papel importante na construção, alteração e legitimação de categorias sociais a partir das políticas públicas que constrói. As políticas são a primeira ferramenta com a qual o governo atua para institucionalizar, perpetuar ou mudar construções sociais, e são o meio pelo qual o governo pode apoiar ou coibir práticas disseminadas de segregação social e dar suporte, ou punição, a grupos em desvantagem social11 Schneider AL, Ingram HM, organizadores. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005.. Além disso, por meio das políticas, o Estado constrói novas categorias que não existiriam sem a força da lei e acabam, por ela, virando um estigma social.
Assim, as políticas podem servir tanto para reforçar construções sociais como para alterá-las, gerando impactos na inclusão e exclusão social de certos grupos11 Schneider AL, Ingram HM, organizadores. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005.. Nesse sentido, Harrits e Moller33 Harrits G, Møller M. Categories and categorization: towards a comprehensive sociological framework. Distinktion: Aarhus University; 2011. utilizam uma diferenciação entre os conceitos de categorias sociais e categorias políticas. As primeiras são fruto do ordenamento social e se reproduzem nas relações sociais mais amplas da sociedade. Já as categorias políticas são agrupamentos produzidos pelas políticas públicas e que materializam a ação do Estado. Em alguns momentos, categorias sociais são reproduzidas pelas categorias políticas. Em outros, categorias políticas são usadas para enfrentar categorias sociais.
As categorias políticas, portanto, têm papel fundamental para entender a ação estatal e seus efeitos em inclusão e exclusão, tanto em termos materiais como simbólicos44 Pires R. Implementando desigualdades? Introdução a uma agenda de pesquisa sobre agentes estatais, representações sociais e (re)produção de desigualdades. In: Pires R, organizador. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Brasília: IPEA; 2017.. Por um lado, constroem elegibilidade a direitos e serviços públicos, determinando quem pode ter acesso ao quê. Por outro, produzem efeitos simbólicos, considerando a estigmatização que pode ser (des)construída pela elegibilidade11 Schneider AL, Ingram HM, organizadores. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005.,44 Pires R. Implementando desigualdades? Introdução a uma agenda de pesquisa sobre agentes estatais, representações sociais e (re)produção de desigualdades. In: Pires R, organizador. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Brasília: IPEA; 2017.. É o que pode ocorrer, por exemplo, com o enquadramento na categoria de “pobres beneficiários”55 Eiró F. O Programa Bolsa Família e os pobres "não merecedores": poder discricionário e os limites da consolidação de direitos sociais. In: Pires R, organizador. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Brasília: IPEA; 2017., “grávidas adolescentes”66 Lotta GS. Inclusão, exclusão e (re)produção de desigualdades: o papel das práticas, interações e julgamentos dos agentes comunitários de saúde na implementação das políticas públicas. In: Pires R, organizador. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Brasília: IPEA; 2017. ou “doentes mentais”. Assim, a elegibilidade pode se transformar em acesso, mas também pode se converter em estigmatização de grupos sociais categorizados pelas políticas.
Considerando esse duplo efeito dos processos de categorização em termos materiais e simbólicos, este artigo tem como objetivo analisar como se construíram historicamente as categorizações em torno dos elegíveis às políticas de saúde mental no Brasil. Para tanto, partimos da análise de duas categorias: cidadão e doente mental. Entende-se a categoria de cidadão como uma identidade social política, um sujeito reconhecido por um Estado-nação como parte integrante de sua sociedade e que tem seus direitos civis, políticos e sociais garantidos77 Costa MIS, Ianni AMZ. Individualização, cidadania e inclusão na sociedade contemporânea: uma análise histórica. São Bernardo do Campo: Editora UFABC; 2018.. Por doente mental entende-se um indivíduo considerado enfermo, irracional, que necessita ser tutelado e normatizado. As duas categorias são historicamente antagônicas. Parte-se da hipótese de que, inicialmente, por meio da política de saúde mental, o Estado construiu a categoria dos usuários desses serviços vinculada ao conceito de doentes mentais considerados “loucos, degenerados, perigosos e incapazes” - indivíduos que precisavam ser excluídos para não perturbar a ordem social. Ao longo dos anos, essa categoria foi transformada, à luz das ideias de cidadania e inclusão.
Embora a história da saúde mental seja um tema bastante discutido na literatura, a inovação deste artigo está em enquadrar a análise no escopo mais geral de política pública e processos de categorização. Assim, em vez de observarmos os conteúdos das políticas, analisamos como se construíram os públicos elegíveis a partir de uma contraposição entre categorias políticas e sociais. Para tanto, analisamos a legislação brasileira entre 1841 e 2017, observando como se deram os processos de construção e alteração das categorias políticas dos usuários da política de saúde mental. Parte-se do pressuposto de que o tipo de enquadramento social e político tem efeitos de acesso a políticas públicas e garantias ou não de direitos. A partir da análise histórica da transformação das categorias políticas, buscamos compreender em que medida elas se aproximaram ou enfrentaram as categorias sociais ao longo do tempo, propondo quem poderia ser enquadrado como doente mental ou cidadão. A aproximação em relação a esses conceitos reforça ou combate os estigmas sofridos por essa população, facilitando ou dificultando a sua inclusão social. Como apontam Schneider e Ingram11 Schneider AL, Ingram HM, organizadores. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005., “a história da exclusão da incapacidade ilustra, assim, a relação entre a política pública e a construção social de certos grupos como merecedores e titulares”.
Método
Esta pesquisa é exploratória e de natureza qualitativa. Foram analisados os processos de alteração das categorias políticas a respeito dos usuários da política de saúde mental, o enquadramento social dado a eles e seus efeitos em termos de acesso a políticas e construção de estigmas sociais.
Foram selecionadas para análise as 24 principais normas legais (identificadas no Quadro 1) que subsidiaram a construção da política de saúde mental brasileira. A seleção considerou sua centralidade na construção normativa da política. O recorte temporal vai da abertura do primeiro hospital psiquiátrico brasileiro até a última resolução publicada em dezembro de 2017. Tendo em vista a importância e a influência das Conferências Nacionais de Saúde Mental para o campo, decidiu-se englobar os relatórios finais das quatro conferências. Utilizou-se metodologia de análise de conteúdo88 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1977..
Primeiramente, mapeou-se nas normas legais a categoria política por meio da identificação do beneficiário e qual o conceito/termo ao qual é referido. Na segunda etapa, cuja síntese encontra-se no Quadro 1, foram analisados os enquadramentos com base nas categorias de cidadão e doente mental. Entende-se aqui a categoria de cidadão como uma identidade social política de um sujeito reconhecido pelo Estado como parte da sociedade, com garantia a direitos civis, políticos e sociais77 Costa MIS, Ianni AMZ. Individualização, cidadania e inclusão na sociedade contemporânea: uma análise histórica. São Bernardo do Campo: Editora UFABC; 2018.. Doente mental é o indivíduo considerado doente e irracional, e que precisa de tutela. Na terceira etapa, reconstruiu-se a história do uso de categorias políticas dos usuários da política de saúde mental, para analisar seus impactos no enquadramento dado a esses indivíduos, ou seja, a construção, a reafirmação ou a desconstrução de estigmas. Na quarta e última etapa, por meio de dados secundários de pesquisas desenvolvidas por terceiros, analisou-se a manutenção dos estereótipos perpetuados pelos profissionais da saúde mental e dos demais cidadãos após a alteração das categorias políticas.
Resultados e discussão
Categorizações e políticas públicas
A categorização pode ser definida como agrupamento de objetos que compartilham características particulares comuns e que se diferenciam de outros agrupamentos. O processo de categorização constrói pertencimentos e fronteiras entre quem está incluído e quem está excluído de determinadas categorias55 Eiró F. O Programa Bolsa Família e os pobres "não merecedores": poder discricionário e os limites da consolidação de direitos sociais. In: Pires R, organizador. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Brasília: IPEA; 2017.. A ação cotidiana do Estado é, intrinsecamente, baseada em categorizações, que podem ser encontradas nas regras das políticas e nas regras de operação dos serviços55 Eiró F. O Programa Bolsa Família e os pobres "não merecedores": poder discricionário e os limites da consolidação de direitos sociais. In: Pires R, organizador. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Brasília: IPEA; 2017.. Essas categorias organizam o mundo social a partir de identidades, pertencimentos e características sociais, econômicas ou materiais.
Há dois tipos de categorização: a social e a política55 Eiró F. O Programa Bolsa Família e os pobres "não merecedores": poder discricionário e os limites da consolidação de direitos sociais. In: Pires R, organizador. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Brasília: IPEA; 2017.. A primeira está marcada nas relações sociais mais amplas e se reflete na maneira como grupos sociais interpretam e se relacionam em determinados contextos econômicos, simbólicos e morais. Elas são criadas na interação entre processos de autoidentificação e identificação do “outro”, bem como na relação com a sociabilidade primária, a família, a medicina e as relações de mercado33 Harrits G, Møller M. Categories and categorization: towards a comprehensive sociological framework. Distinktion: Aarhus University; 2011..
Já as categorias políticas aparecem na operação do Estado, sejam elas semelhantes ou diferentes das categorias sociais. As categorias políticas criam legitimidade acerca de quais indivíduos podem (ou não) acessar as políticas e, portanto, constroem significados sobre como cada um espera ser tratado perante a ação estatal55 Eiró F. O Programa Bolsa Família e os pobres "não merecedores": poder discricionário e os limites da consolidação de direitos sociais. In: Pires R, organizador. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Brasília: IPEA; 2017.. Assim, se por um lado as categorias políticas determinam acesso a bens e serviços, por outro moldam as identidades e as expectativas dos usuários sobre si e sobre as políticas44 Pires R. Implementando desigualdades? Introdução a uma agenda de pesquisa sobre agentes estatais, representações sociais e (re)produção de desigualdades. In: Pires R, organizador. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Brasília: IPEA; 2017.. Elas são, portanto, elementos constitutivos das políticas públicas porque influenciam a distribuição de sanções e benefícios e a construção de identidades dos cidadãos, ou seja, têm efeitos materiais e simbólicos44 Pires R. Implementando desigualdades? Introdução a uma agenda de pesquisa sobre agentes estatais, representações sociais e (re)produção de desigualdades. In: Pires R, organizador. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Brasília: IPEA; 2017.,55 Eiró F. O Programa Bolsa Família e os pobres "não merecedores": poder discricionário e os limites da consolidação de direitos sociais. In: Pires R, organizador. Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Brasília: IPEA; 2017..
Contudo, embora apresentem algum grau de independência, não é possível desvincular a produção de categorias políticas das categorias sociais. Ambas são contextualizadas em uma complexa rede de processos discursivos e morais que se influenciam mutuamente. As categorias políticas podem ser construídas reproduzindo categorias sociais ou contestando e buscando alterá-las. Assim, categorias sociais são muitas vezes elementos constitutivos das categorias políticas, mas políticas públicas podem ser propostas justamente para alterar categorias sociais11 Schneider AL, Ingram HM, organizadores. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005..
A análise da construção de categorias políticas permite compreender como se constituem, ao longo do tempo, classificações de usuários mais ou menos merecedores, que possuem ou não direitos. Numa análise da construção da ideia de “cidadãos” na democracia norte-americana, Schneider e Ingram11 Schneider AL, Ingram HM, organizadores. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005., por exemplo, demonstram como a construção da ideia dos “deficientes permite compreender a relação entre política pública e a construção social de certos grupos como portadores de direitos”. Como apontam as autoras, há uma dupla causalidade entre as políticas públicas e a construção social de merecedores.
As autoras também analisam como se constituiu as categorias políticas de doentes mentais e cidadãos na política de saúde mental. Historicamente, a construção dessas categorias se constituiu na institucionalização da psiquiatria em pleno advento do Iluminismo, quando a pressuposta irracionalidade manifestada pelos loucos era vista como perturbadora da ordem e deveria ser contida e corrigida11 Schneider AL, Ingram HM, organizadores. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005.. A nova ordem jurídica institucional vigente determinava novas funções para o Estado. É nesse contexto que emerge a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no ano de 1789. A cidadania era um atributo dos iguais, racionais e normais, o que excluía os doentes mentais despossuídos de razão de participarem das decisões sociais. Aparece, então, o primeiro paradoxo entre a loucura e a condição de cidadão, quando se constrói uma concepção específica sobre o que seria a normalidade. Historicamente, esse paradoxo se estabeleceu com o advento da Revolução Francesa, visto que o reconhecimento da condição de cidadania plena e direito social (liberdade, igualdade e fraternidade) não englobava os doentes mentais, já que estes não eram munidos de racionalidade e deveriam ser assistidos pelo Estado99 Birman J. A cidadania transloucada: notas introdutórias sobre a cidadania dos doentes mentais. In: Junio B, Amarante P, organizadores. Psiquiatria sem hospício: contribuição ao estudo da Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1992.. Assim, o louco é inscrito na nova ordem política como um ser destituído de razão.
Pode-se afirmar que a categorização do indivíduo considerado doente mental no Brasil como irracional e incapaz, e por conseguinte não podendo ser considerado cidadão, estava dentro dos marcos da modernidade7,10 e de uma construção mais ampla da categoria social da normalidade33 Harrits G, Møller M. Categories and categorization: towards a comprehensive sociological framework. Distinktion: Aarhus University; 2011..
Panorama da política de saúde mental no Brasil
Atualmente, a assistência pública à saúde mental é estruturada por meio de uma rede de serviços denominada Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que normativamente, deve priorizar o atendimento comunitário e de base territorial. Esse cenário é fruto de um processo histórico que conformou avanços e conquistas no âmbito de políticas publicas que não se restringiram à política de saúde mental, estão vinculados também à democratização do país, a lutas por direitos e à influência das inovações em saúde mental no âmbito internacional. Os principais movimentos influenciadores foram os movimentos sanitários e da luta antimanicomial e a Reforma Psiquiátrica nas décadas de 1970 e 1980. Todos esses aspectos culminaram na constituição do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso foi seguido por um processo gradual que visava uma reforma estrutural da concepção do modelo de atenção à saúde mental, com o início dos fechamentos de leitos psiquiátricos e a criação de uma rede substitutiva extra-hospitalar1010 Amarante P, organizador. Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998.,1111 Yasui S. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.. Desde então, reforçados por novos dispositivos institucionais, muitos foram os avanços na política de saúde mental na ruptura de paradigmas manicomiais, na busca pela superação do estigma e o reconhecimento de direitos de cidadania. Segundo Costa-Rosa1212 Costa-Rosa A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P, organizador. Ensaios subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000., tais dispositivos foram embasados por um novo paradigma de saúde mental denominado modo psicossocial, que, entre outros aspectos, não considera a loucura um fenômeno exclusivamente individual, mas também social. A extensa literatura sobre a história da saúde mental brasileira demonstra que esse campo possui muitas disputas e contradições1111 Yasui S. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006.,1212 Costa-Rosa A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: Amarante P, organizador. Ensaios subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2000..
Embora reconhecendo as contradições desse processo, o que é importante ressaltar aqui são as mudanças e disputas históricas em torno das categorias sociais e políticas que regeram este processo. A emergência da política de saúde mental no Brasil, a partir do século XIX, surgiu da concepção da loucura como um problema social que necessitava de instituições e práticas que a controlassem1313 Resende H. Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: Tundis S, Costa N, organizadores. Cidadania e loucura: políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes; 2001
14 Engel M. Os delírios da razão: médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro, 1830-1930). Rio de Janeiro: Fiocruz; 2001.
15 Cunha MCP. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1986.-1616 Costa J. História da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Xenon; 1986.. Sua história esteve relacionada ao desenvolvimento urbano e econômico do país. A ideia de loucura foi vinculada aos indivíduos considerados desordeiros e vagabundos, tornando-se uma preocupação das autoridades que buscavam a ordem do espaço urbano1313 Resende H. Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: Tundis S, Costa N, organizadores. Cidadania e loucura: políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes; 2001 por meio do controle dos comportamentos considerados desviantes, que seriam um empecilho à modernização. Ter em mente esse panorama histórico da emergência da política de saúde mental é importante para frisar que essa política nasceu com base em estereótipos e criou novos estigmas, resultando na exclusão do status de cidadãos desses indivíduos.
Categoria política e categoria social
A análise histórica da legislação que permeou a construção da política de saúde mental brasileira permite observar como foram constituídas as categorias políticas, como elas embasaram ou buscaram transformar as categorias sociais mais amplas e como se deu o processo de construção da cidadania desses indivíduos. O Quadro 1 sistematiza essas mudanças na legislação e nas conferências, que serão analisadas em seguida.
Considerando o arcabouço legal da política de saúde mental brasileira entre 1841 e a década de 1980, as referências aos indivíduos com algum diagnóstico de transtorno mental se aproximam mais da categoria de doentes mentais. Os termos mais utilizados para tratar dessa categoria política foram “alienados” e “psicopatas”.
Há duas legislações que merecem ser citadas: o Decreto nº 1.132, de 1903, e o nº 24.559, de 1934. A primeira indica a criação dos manicômios judiciários e regulamenta que a internação pode ser requerida pela ordem pública ou por algum particular, e essa ação é justificada pela necessidade de manutenção da ordem pública e da segurança da população e dos indivíduos. Isso reforça a visão de que o público-alvo da política de saúde mental seria perigoso e desordeiro, reforçando o estigma social de que esses indivíduos precisariam estar reclusos nos asilos e excluídos socialmente. Criou-se assim uma nova categoria política associada à doença mental, vinculando a identidade desses indivíduos a irracionalidade e anormalidade.
Já o Decreto nº 24.559, de 1934, foi o primeiro a tratar da curatela/tutela, bem como da internação de menores e indivíduos usuários de substâncias psicoativas. Introduz a noção de incapacidade civil, o que distancia ainda mais tais indivíduos da categoria de cidadãos, autônomos e racionais. Também substitui a denominação “alienados” por “psicopatas”, além de vincular o uso de substâncias psicoativas à política de saúde mental. Essas mudanças geraram um novo tipo de enquadramento na categoria da política que associava uma categoria previamente existente (da doença mental) com novos tipos de comportamento (uso de substâncias psicoativas) também sujeitos a estigmas sociais. Ou seja, há uma amplificação e diversificação dos sujeitos enquadrados na categoria de loucos.
A análise da legislação até a década de 1970 nos permite aferir que a categorização política de saúde mental agiu em consonância com os preceitos da ciência e o discurso psiquiátrico sobre a racionalidade, e por meio da construção da política de saúde mental e sua legislação, legitimou o discurso da razão e reforçou o público-alvo da política na categoria de doente mental. Havia, portanto, um alinhamento entre a categoria da política e a categoria social, amparada em uma base científica de construção da (a)normalidade. Esse processo pode ser visto em praticamente todas as legislações de 1841 até a década de 1970. Além do uso de termos como “alienados”, “moléstias mentais”, “psicopatas” e “anormais”, o tipo de encaminhamento se baseou na concepção científica sobre o tratamento dado a esta anormalidade: isolamento e internação.
Como explicitado por Schneider e Ingram11 Schneider AL, Ingram HM, organizadores. Deserving and entitled: social constructions and public policy. New York: State University of New York; 2005., as categorias eleitas pelas políticas públicas podem moldar identidades e influenciar as categorias sociais ao construir estigmas baseados nas diferenças entre categorias de pessoas. Dessa maneira, a política de saúde mental da época reforça a ideia de tratar o que é considerado “anormal” a partir de uma separação física em relação aos “normais”. Também serviu para atrelar a identidade do sujeito considerado louco ao estigma de perigoso e irracional, bem como para vincular as ideias de crime e loucura. Tais ações influenciam a categoria social, gerando um discurso que legitima a ação do Estado contra o que é considerado comportamento anormal.
O enfrentamento a essas categorizações começa juntamente com o processo de redemocratização, quando trabalhadores, usuários e familiares passam a debater a política no combate ao estigma, por meio da criação de novas categorias sociais. A análise desse período permite identificar uma mudança significativa nas categorias antes atribuídas a esses indivíduos. A referência mais utilizada passa a ser a de usuários - um indivíduo que faz uso de determinada política pública -, termo que passa a ser uma denominação comum ao público das políticas pós-Constituição de 1988, referindo-se não a um simples consumidor do serviço, mas a um cidadão que acessa determinados direitos. Assim, os então usuários dos serviços de saúde mental passaram a ser considerados cidadãos detentores de direitos.
Além disso, nesse período ocorre uma renovação teórica e política nos movimentos sociais, que procuram formas de organização mais independentes, distanciando-se do Estado e estimulando a participação e organização de entidades formadas por usuários e familiares. Buscava-se atuar de forma democrática ao dar voz a esses atores que até então não participavam das decisões sobre tratamentos.
Nos relatórios das conferências é possível identificar como a noção de cidadania em meio à redemocratização influencia a busca por transformações na política. A 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental (1987) foi um dos primeiros passos para a superação da visão da política de saúde mental para além do foco asilar, pela busca de alternativas e pela discussão sobre direitos de cidadania dos usuários. Foi o início da tentativa de superar o estigma de “incapazes” e a necessidade de exclusão do meio social, ou seja, da criação de uma nova categoria social inclusiva e de um movimento social que buscou a superação das categorias políticas que imprimiam a exclusão e a violação dos direitos humanos.
A 2ª Conferência (1992) teve papel central no debate sobre a categoria “cidadania” e pela transformação da categoria política ao concluir que a então legislação aplicável à saúde mental era conflitante com as novas práticas da atenção e da busca pela cidadania. O relatório da conferência parte da concepção de que o exercício da cidadania se dá pelo incentivo à participação para que os direitos dos usuários possam ser exercidos. Além disso, foi proposta a revisão das bases legais que reforçavam a exclusão.
As legislações promulgadas na década de 1990 alteraram a categoria política ao se distanciarem da categoria de “doente mental” e se aproximarem da categoria de “cidadania”. As legislações que se seguiram colaboraram para a tentativa de quebra do estigma de irracionalidade e periculosidade e buscaram a garantia dos direitos sociais e civis dessa parcela da população. Duas legislações merecem especial atenção: a Lei nº 8.742, de 1993, da Assistência Social, e a Portaria nº 106, de 2000, do Ministério da Saúde. A primeira regulamentou, entre outros itens, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) à pessoa com deficiência e ao idoso. A segunda criou o Serviço de Residência Terapêutica (SRT) em saúde mental para o atendimento dos egressos dos hospitais psiquiátricos e internos dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP). Vinculado aos direitos sociais e civis, o serviço visa garantir moradia a esses indivíduos e sua volta ao convívio social.
A Lei nº 10.216, de 2001, que dispôs sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionou o modelo assistencial em saúde mental, foi o primeiro marco legal divisório de uma política que reforçava a exclusão de seu público-alvo, agora para uma ação que visava a inclusão e incentivava o tratamento ambulatorial e a manutenção do usuário no meio comunitário. Com base na nova legislação, foi publicada em 2002 a Portaria nº 336, que estabeleceu as modalidades de atendimento ambulatorial definidas por porte, localidade e complexidade do atendimento.
Mais duas legislações seguiram a linha de quebra dos paradigmas manicomiais: a Lei nº 10.708, de 2003, e a Portaria nº 52, de 2004. A primeira, por meio do Programa de Volta para Casa, regulamentado pela Portaria 2.077/2004, instituiu o auxílio para reabilitação de pacientes acometidos por transtornos mentais egressos de internações. Esse benefício qualificou a política de desinstitucionalização iniciada com a criação dos SRT e apoiou os indivíduos em sua inclusão social e no combate às consequências negativas de exclusão, cronificação e quebra dos vínculos familiares e sociais. A segunda legislação estabeleceu critérios para a redução gradual dos leitos psiquiátricos, fortalecendo o atendimento extra-hospitalar e uma política inclusiva. Assim, ambas as normativas colaboraram para o combate ao modelo de tratamento centrado na hospitalização e na exclusão social.
Após vários avanços na política de saúde mental no sentido de imprimir uma política inclusiva e a categorização que reforça o conceito de cidadania, as legislações que se seguiram foram mais contraditórias: algumas reforçavam esse processo, outras não. Uma legislação que teve impacto extremamente positivo foi a Portaria nº 3.088, de 2011, que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no âmbito do SUS, para “pessoas com sofrimento ou transtorno mental” e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. Essa rede possibilita a atenção integral e interdisciplinar no atendimento à saúde mental. Ela integra os serviços específicos da saúde mental aos demais serviços do SUS em todos os níveis e complexidades. Foi instituída no mesmo dia da Portaria nº 3.090, que dispôs sobre o custeio e a implantação do SRT dentro da RAPS.
De acordo com Costa1717 Costa TCR. A política de saúde mental na contemporaneidade: entre a inovação e o conservadorismo [tese]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2016., em tempos de restrição dos direitos, a RAPS vem sendo considerada um avanço pelos movimentos dos trabalhadores da saúde mental. Entretanto, seu foco está na mudança do modelo assistencial, e “as lutas sociais que vêm sendo travadas no campo das políticas sociais na atualidade, e em especial, na saúde mental, não conseguem romper o modelo anterior [...] não se consegue lograr uma efetiva ruptura com o paradigma manicomial”1010 Amarante P, organizador. Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998.. Entre as justificativas, encontram-se a manutenção de uma lógica medicamentosa, biomédica, e a transferência do paradigma manicomial para o CAPS por parte dos profissionais. O que evidencia uma dificuldade das atuais normas legais de alterarem as categorias políticas anteriores e da própria resistência de um grupo de trabalhadores.
Entre as legislações que imprimiram uma volta da categorização política vinculada ao conceito de doente metal estão as relacionadas às políticas de drogas. A Portaria nº 1.190, de 2009, instituiu o Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e Outras Drogas no SUS. Essa política avança no debate ao propor que o tratamento do uso de substância psicoativa deveria ser responsabilidade da política de saúde mental. Entretanto, um dos objetivos do eixo Articulação Intra e Intersetorial é a realização da oficina nacional de articulação com Comunidades Terapêuticas (CT) e ONGs, bem como a criação de critérios para regulação das vagas para internação em CT, o que vai contra os preceitos da reforma, recolocando a internação como opção de tratamento. Nessa mesma linha, em 2012 foi publicada a Portaria nº 131, que novamente reforçou a internação para casos de tratamento de álcool e substâncias psicoativas.
Por fim, após 16 anos da promulgação da Lei nº 10.216, de 2001, que regulou as internações psiquiátricas e promoveu mudanças no modelo assistencial aos pacientes portadores de sofrimento mental, a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) aprovou a Resolução n. 32, de 2017, que reinseriu o hospital psiquiátrico na Rede de Atenção Psicossocial e fortaleceu a Comunidade Terapêutica. Essa legislação pode ser considerada um retrocesso na política inclusiva que vinha sendo consolidada pelo Ministério da Saúde.
Como é possível perceber pela análise da legislação, há cerca de dez anos a política de combate ao álcool e às drogas vem ganhando mais espaço no campo da saúde mental, e sua estratégia de atenção trouxe novamente um modelo de atenção que replica a lógica manicomial que vinha sendo combatida. Sua construção tem sido pautada por um grupo ideologicamente contrário à Reforma Psiquiátrica, com um discurso de que a desinternação psiquiátrica promoveu a desassistência aos usuários1010 Amarante P, organizador. Loucos pela vida: a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998.,1818 Perrone PAK. A comunidade terapêutica para recuperação da dependência do álcool e outras drogas no Brasil: mão ou contramão da reforma psiquiátrica? Cien Saude Colet 2014; 19(2):569-580..
A análise histórica da legislação brasileira em saúde mental nos permite afirmar que houve três momentos de transformações das categorias políticas que são associados a modelos de serviços distintos. O primeiro se deu com o nascimento da própria política, em consonância tanto com o discurso médico (nascimento da medicina social e discurso biomédico sobre a razão) quanto com o político (a racionalidade como pré-requisito para o exercício da cidadania) então vigentes. Nesse momento a categoria política se aproximava do conceito de doente mental, ou seja, o irracional e perigoso que necessitava ser retirado do convívio social e internado nos manicômios.
O segundo momento se deu no fim da década de 1970 e início da década de 1980, fundamentado na ideia de cidadania, central no processo de redemocratização, com movimentos sociais que influenciaram a transformação de uma política que até então se baseava na exclusão social de seu público-alvo. Essa transformação foi iniciada de baixo para cima, por meio dos movimentos sociais que pautaram as transformações e lograram aprovar um conjunto de novas legislações e políticas voltadas a um novo tipo de categorização política que se aproximava do conceito de cidadão e que, ao mesmo tempo, enfrentava a categoria social mais ampla e as ideias de anormalidade e irracionalidade.
O terceiro, o atual, é o mais complexo, por ainda ser um momento novo e difícil de ser interpretado. Apesar dos serviços implantados com a Reforma Psiquiátrica continuarem em andamento, há indícios de uma volta ao antigo modelo, com reaparecimento dos serviços de internação, principalmente para os usuários de substâncias psicoativas, e tendência da retomada da categoria política vinculada à doença mental. Segundo Amarante1919 Amarante P, Nunes MO. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Cien Saude Colet 2018; 23(6):2067-2074., a resolução “praticamente resgata o modelo manicomial e dá início a um desmonte de todo o processo construído ao longo de décadas no âmbito da Reforma Psiquiátrica brasileira”.
Um elemento importante identificado nesta análise é que, a partir do segundo momento, a própria política passa a incorporar como parte de seu objetivo o enfrentamento a categorias sociais mais amplas baseadas em estigma e exclusão. Assim, desde os anos 1990, a concepção de cidadania aparece em praticamente todos os normativos da política. Isso se associa a um conjunto de estratégias de enfrentamento da exclusão e do estigma, como a ideia de participação social dos usuários, de reforço à tônica das garantias de direitos, da reinserção social e do olhar comunitário e inclusivo. Esses elementos tiveram como consequência colocar na agenda uma nova posição do Estado a respeito do tratamento da questão da saúde mental e do enquadramento da normalidade dessa população, que passa a ser vista como cidadã e portadora de direitos que demanda atendimentos específicos, dadas as suas necessidades.
Consequências das categorias políticas no combate ao estigma
Embora a análise das normativas demonstre que houve propostas importantes de mudança das categorias políticas para superação de categorias sociais, esse processo não é linear e é repleto de contradições. Assim, cabe analisar em que medida a mudança da categoria de “loucos” para “cidadãos” de fato se transformou em mudanças concretas na implementação das políticas. Nesta seção analisamos, a partir de dados secundários de outras pesquisas, em que medida as alterações nas categorias políticas conseguiram enfrentar de fato os estigmas sociais.
Como dito, a categoria política da primeira fase não pode ser desconectada da categoria social que criou e perpetuou o estigma desses indivíduos como doentes mentais perigosos. Embora em termos normativos seja clara a mudança dessa categoria política, e que as políticas públicas tenham tentado transformar os estigmas da categoria social, ainda há inúmeras resistências e barreiras para a efetiva inclusão social desses indivíduos e a quebra definitiva de seus estigmas. É importante ressaltar que a bibliografia do campo também aponta para desafios nesse processo de transformação da cultura manicomial, seja no campo social ou no da implementação da própria política. Pesquisas sobre o estigma e os estereótipos dos usuários da saúde mental demonstram a persistência desses tanto na sociedade como entre os próprios profissionais da área.
Gomide e colaboradores2020 Gomide HP, Lopes TM, Soares RG, Silveira PS, Bastos RR, Ronzani TM. Estereótipos dos profissionais de saúde em relação a alcoolistas em Juiz de Fora-MG, Brasil. Psicol Teor Prat 2010; 12(1):171-180. observaram crenças estereotipadas em relação aos alcoolistas por parte dos profissionais responsáveis pelo tratamento: crenças de que eles não têm força de vontade e de que são pessoas moralmente fracas. Em uma pesquisa empírica que avalia a representação dos usuários de saúde mental por parte de profissionais e familiares, Maciel et al.2121 Maciel SC, Maciel CMC, Barros DR, Sá RCN, Camino, LF. Exclusão social do doente mental: discursos e representações no contexto da reforma psiquiátrica. Psico usf 2008; 13(1):115-124. afirma que mais de 80% dos profissionais de saúde pesquisados consideraram os usuários de saúde mental agressivos e sem juízo/sem razão, o que reforça que sua base de julgamento sobre a saúde mental está ancorada na noção de racionalidade. Já 64% dos familiares os consideraram sem juízo, e 48% agressivos, o que nos leva a pensar que ao mesmo tempo em que enxergam a necessidade de cuidar desses indivíduos de forma tutelada, há também certa aversão por eles serem considerar agressivos (violentos). No que se refere à internação em hospitais psiquiátricos, Maciel e colaboradores2121 Maciel SC, Maciel CMC, Barros DR, Sá RCN, Camino, LF. Exclusão social do doente mental: discursos e representações no contexto da reforma psiquiátrica. Psico usf 2008; 13(1):115-124. observaram que profissionais e familiares possuem uma visão positiva ao afirmar que os hospitais cuidam e protegem seus internos.
Em um estudo específico sobre estereótipos relacionados à esquizofrenia, Loch2222 Loch AA. Estereótipos e crenças relacionadas a` esquizofrenia: um levantamento comparativo entre profissionais de saúde mental e a população geral do Brasil [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina; 2013. observou que a maior parte dos psiquiatras, assim como a maior parte da população geral, estigmatiza indivíduos com esquizofrenia, criando uma cultura de discriminação.
Cusinato2323 Cusinato C. Reforma psiquiátrica: avanços e desafios das práticas dos profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) [dissertação]. Botucatu: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho; 2016. identificou, dentro de um CAPS, uma parcela de trabalhadores que acabaram reproduzindo e naturalizando a lógica manicomial no serviço. Alguns apresentavam concepções contraditórias, ora em defesa de práticas antimanicomiais, ora em disssonância, a depender da temática que estava sendo abordada.
Esses estudos permitem afirmar que, por mais que as categorias políticas tenham sido alteradas ao longo dos anos, e buscado combater e alterar estigmas sociais atribuídos aos usuários dos serviços de saúde mental, a imagem desses indivíduos perante profissionais e sociedade ainda está associada aos estereótipos de periculosidade e incapacidade. Particularmente, a manutenção desses estereótipos na visão dos profissionais é um fator crítico, por abrir espaço para que encaminhamentos e tratamentos sejam baseados na exclusão social, tais como internação, medicalização excessiva e indicação da interdição civil. Tais exemplos demonstram o quão difícil tem sido superar as categorias sociais que reforçam os estigmas, mesmo com as transformações das categorias políticas.
A justificativa para essa manutenção se encontra na falta de consenso interno no campo da saúde mental. Isto é, por ser um campo de constante disputa, essas transformações - tanto dos serviços como da concepção do processo saúde e doença - não ocorreram de forma consensual por todos os atores envolvidos. Há espaços de resistência que ainda acreditam no modelo hospitalocêntrico e na concepção exclusivamente biológica1515 Cunha MCP. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1986.. Além disso, não se pode excluir dessa análise a força com que o mercado atua nessas disputas, seja pela ampliação da medicalização ou pela manutenção e criação de novos nichos de instituições de internações financiadas pelo Estado, que são os casos das quase 3 mil Comunidades Terapêuticas existentes atualmente1111 Yasui S. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira [tese]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2006..
A análise das normas legais e das pesquisas dá indícios para afirmar que o debate sobre ser ou não cidadão em termos normativos já não está mais posto em questão. Isso significa que o status de cidadão já está atribuído aos usuários de política de saúde mental enquanto uma categoria política. Entretanto, por mais controverso que seja, os estereótipos e estigmas se mantiveram nos discursos e nas práticas, influenciados pelas categorias sociais mais amplas. O resultado dessa nova conjuntura é a criação de cidadãos que não estão verdadeiramente incluídos na sociedade.
Considerações finais
Este artigo teve o objetivo de analisar como, historicamente, foram construídas e alteradas as categorias políticas relativas ao público das políticas de saúde mental no Brasil. Para além de uma discussão sobre o conteúdo da política em si, já bastante avançada na literatura, o artigo buscou reconstruir o percurso da política a partir das mudanças das categorias políticas e sociais a ela vinculadas e apontar a dificuldade de superação dos estereótipos e estigmas reforçados na emergência da política de saúde mental. Para tanto, analisamos a legislação desde 1841, observando suas mudanças na construção de públicos específicos baseados em compreensão sobre o fenômeno da saúde mental e seus devidos encaminhamentos. Buscamos, dessa forma, compreender como se construiu e alterou a categorização política e seus efeitos na construção de identidade, estigmas e acesso aos serviços. Também analisamos se e como as políticas buscaram enfrentar - ou reforçaram - categorias sociais mais amplas e os estigmas a elas vinculados.
O que se percebe ao analisar os processos de transformação das categorias políticas é que há uma mudança normativa dessas categorias ao longo das décadas e, como consequência, do encaminhamento dado a essa população. Essa mudança tem como foco central tanto processos mais gerais de construção do Estado brasileiro (redemocratização) como uma transformação do próprio discurso científico sobre a saúde mental influenciado pelo movimento social. Essas duas mudanças geram, desde os anos 1990, um reenquadramento das categorias políticas e dos serviços, em conjunto com um enfrentamento às categorias sociais mais amplas e a tentativa de reversão do estigma social associadas a elas.
Nessas transformações, três processos foram relevantes. Em primeiro lugar, o papel desempenhado pelos movimentos sociais que influenciaram o modelo psiquiátrico amparado pelo discurso científico, fundamental nessa transformação, reenquadrando tanto a categoria como o modelo de serviço oferecido. Em segundo lugar, movimentos mais gerais e internacionais de compreensão do fenômeno, que influenciaram as ações adotadas no Brasil. Em terceiro lugar, o processo de redemocratização, que reenquadrou os sujeitos da política na tônica dos direitos. Essas mudanças, em conjunto, constroem uma alteração importante na maneira de se enxergar e enquadrar os usuários das políticas e mudanças no tipo de encaminhamento dado a essas pessoas. Esses encaminhamentos, por sua vez, se refletiram em mudanças no desenho e na implementação de políticas públicas para esse público, incorporando as transformações na ação do Estado. Por fim, as mudanças também construíram na ação estatal um foco na reversão de estigmas e categorias sociais mais amplas, de forma que as próprias políticas públicas incorporaram como objetivo enfrentar a estigmatização que elas mesmas reproduziam a partir de suas categorias políticas. No entanto, como outras pesquisas demonstram, este processo não é linear e é carregado de contradições. Pela falta de consenso do próprio campo da saúde mental, entre outros fatores, as transformações das categorias sociais têm encontrado resistência, seja no meio própria sociedade ou entre familiares e profissionais do meio. Ao mesmo tempo em que houve uma mudança de categorias políticas, estas ainda não foram capazes de superar categorias sociais estigmatizantes.
Tendo como objeto a análise das políticas de saúde mental, logramos compreender como o processo de categorização política se transformou ao longo do tempo e como ele é inerente e importante para a compreensão da ação do Estado. Esta análise permitiu compreender como o Estado se transforma à luz dos processos de construção e mudança das categorias políticas por ele mobilizadas. No caso específico da saúde mental, permitiu compreender como o Estado reagiu a categorias sociais mais amplas e estigmatizantes, seja no sentido de reforçá-las, seja criando políticas para enfrentá-las.
A análise histórica das categorias políticas permite compreender como se dão as transformações mais amplas da sociedade e das ciências e como essas mudanças se refletem em mudanças de políticas públicas.
Podemos afirmar, por fim, que as transformações da política de saúde mental, apesar de ter tido início nos anos 1970, não ocorreu de forma consensual e ainda tem uma longa caminhada. Isso acontece em razão da complexidade temática que envolve processos econômicos, históricos, políticos e culturais que visam transformar a relação entre a sociedade e a loucura, relação ainda pautada na manutenção de estereótipos, criando cidadãos excluídos.
Agradecimentos
Gabriela Lotta agradece à FAPESP pelo apoio na realização da pesquisa e ao CNPq pela Bolsa Produtividade.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
30 Ago 2021 - Data do Fascículo
2021
Histórico
- Recebido
27 Maio 2019 - Aceito
07 Out 2019 - Publicado
09 Out 2019