Resumo
Nesta entrevista, Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), aborda as análises e estratégias desenvolvidas pelo movimento indígena para o enfrentamento da pandemia da COVID-19. Entre os pontos destacados, estão as estratégias de comunicação, vigilância e monitoramento da COVID-19, o apoio aos territórios indígenas, as iniciativas no Legislativo e no Judiciário, a incidência internacional e a articulação com a academia. Torna-se evidente o importante protagonismo do movimento indígena nas ações de contenção da emergência sanitária e na defesa dos direitos dos povos indígenas, em uma conjuntura de embate com o governo federal e de retrocessos nas políticas públicas.
Palavras-chave:
COVID-19; Movimentos sociais; Povos indígenas; Emergência em saúde pública
Sonia Bone Guajajara, nascida em 1974, pertence ao povo Guajajara/Tenetehára, que habita a Terra Indígena Araribóia, no estado do Maranhão, Brasil. É formada em letras e enfermagem, e fez pós-graduação em educação especial. Sua militância no campo dos direitos indígenas e ambientais começou ainda na juventude, nos movimentos de base, e logo ganhou projeção nacional e internacional pela luta travada em favor dos povos originários. Ela tem voz no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) e há dez anos leva denúncias a diversos órgãos e instâncias internacionais, já havendo recebido vários prêmios e honrarias por seu trabalho. Atualmente, faz parte da Coordenação Executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA).
Entrevistadoras: No contexto imediatamente anterior à pandemia, quais eram as principais pautas e estratégias de atuação da APIB?
Guajajara: Antes da pandemia, estávamos planejando a pauta do Acampamento Terra Livre (ATL) de 2020. A saúde era um dos primeiros pontos, porque cada vez mais as ações na área estavam sendo reduzidas, as condições nos territórios, totalmente decadentes. Por exemplo, até hoje, o combustível para os transportes da saúde acaba na metade do mês. Outro ponto é que a retirada dos médicos cubanos [Programa Mais Médicos] gerou um buraco que não se conseguiu resolver até hoje. Muitos médicos se recusam a ir para as aldeias, por falta de condições. Não é só o salário: a SESAI [Secretaria Especial de Saúde Indígena] não oferece nenhuma estrutura para a equipe médica permanecer nas aldeias. E, é claro, nossa prioridade era o enfrentamento geral ao governo [de Jair] Bolsonaro. Não é só você lutar pela saúde, educação ou demarcação de terra: é todo um desmonte de políticas, enfraquecimento dos órgãos, ataques aos direitos e à vida. O aumento das queimadas, do desmatamento e dos conflitos impacta muito os povos indígenas. Com a pandemia, isso não acabou; pelo contrário, aumentou. Nós tivemos que direcionar o foco para articular um plano de enfrentamento à pandemia. Não foi fácil para nós, uma doença nova, matando muita gente. Tivemos também que nos reorganizar para fazer aquilo que o governo não estava fazendo. A COVID-19 começou a chegar às aldeias e o governo nada fazia para adequar seu plano de saúde para essa situação. Nós começamos a articular um plano da APIB, junto ao Congresso [Nacional], com a deputada Joênia Wapichana (Rede/RR) e a bancada da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas [FPMDDPI] para a elaboração de um projeto de lei (PL nº 1.142). Articulamos junto ao Supremo [Tribunal Federal - STF] para que pudéssemos, minimamente, garantir atendimento ao conjunto dos povos indígenas. Nós não mudamos o foco, ampliamos. Tivemos que permanecer enfrentando todos os históricos problemas e desafios, acrescentando-se a pandemia11 Santos RV, Pontes AL, Coimbra CEA. Um “fato social total”: COVID-19 e povos indígenas no Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(10):e00268220.,22 Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Nossa luta é pela vida: covid-19 e povos indígenas, o enfrentamento das violências durante a pandemia. Brasília: Apib; 2020..
Entrevistadoras: A APIB, já no dia 12 de março de 2020, suspendeu o ATL presencial, rapidamente reorganizando-o em modalidade virtual, e no começo de maio organizou a Assembleia da Resistência para discutir um plano para enfrentamento à COVID-19. Como explicar essa percepção tão clara da urgência daquele momento?
Guajajara: Nós realmente fomos muito rápidos. Lembro que, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a pandemia, e no dia 12, lançamos um comunicado geral [disponível em: https://apiboficial.org/2020/03/12/comunicado-geral-acampamento-terra-livre- adiado/], cancelando o ATL, marcado para 27 a 30 de abril22 Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Nossa luta é pela vida: covid-19 e povos indígenas, o enfrentamento das violências durante a pandemia. Brasília: Apib; 2020.,33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.. Nesse comunicado, já indicamos medidas preventivas e orientações dos protocolos da OMS, e a necessidade de fortalecimento do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena [SASI]. Muita gente achou precipitado cancelarmos o ATL, mas pensamos assim: “É um vírus que está se espalhando muito rápido, que tem uma proliferação incomum e por meio do contato.” Nós, indígenas, tendo hábitos altamente coletivos, entendemos que não seria fácil conter a transmissão e, se realizássemos o acampamento presencial, o vírus poderia se disseminar ainda mais. Acho que também, lá atrás, a experiência com tantas mortes causadas por outros vírus fez com que nós temêssemos muito que tudo voltasse a se repetir. Então, quisemos passar segurança e clareza para nosso povo e evitar uma tragédia.
Entrevistadoras: O governo Bolsonaro assumiu, desde o início, uma postura negacionista da ciência no enfrentamento da COVID-19. Por outro lado, a APIB se articulou com o Projeto Xingu, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e com os pesquisadores do Grupo Temático (GT) de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Você poderia comentar essa parceria do movimento indígena com a academia?
Guajajara: Foi muito importante essa parceria logo no início, porque nós, que estávamos à frente, fazendo as articulações para garantir a saúde e a proteção [dos povos indígenas], precisávamos ter esse apoio, a ciência ao nosso lado. Todo o trabalho que a Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz] e a Abrasco já vinham desenvolvendo, para nós, foi um porto seguro. Vocês chegaram com toda a segurança, nos orientando a continuar com a medicina tradicional, não como cura, mas como fortalecimento da imunidade. Então, nós conseguimos ampliar as parcerias para além do Projeto Xingu e da Abrasco e, com outros médicos, juntos elaboramos o Plano Emergência Indígena [é possível acessar o plano na íntegra em: https:// emergenciaindigena.apiboficial.org/dados_ covid19 ], que orientou todo o período de 2020.
Entrevistadoras: A APIB e suas organizações de base vêm monitorando casos de infecção e óbitos por COVID-19 e produzindo materiais educativos. Como tem sido para o movimento indígena se apropriar dos debates e ferramentas técnicas, como a vigilância da COVID-19, em seu espaço de luta?
Guajajara: Logo no início da parceria [com outros setores], tivemos o entendimento de criar o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena [ver: https://emergenciaindigena.apiboficial.org/dados_covid19/], porque começamos a divulgar os dados a partir do que estávamos recebendo das nossas bases, e o governo começou a contestar, dizendo que a APIB estava com dados mentirosos. Então, nós criamos o comitê, que articula as entidades de base da APIB e tem o apoio de organizações, coletivos e ativistas, inclusive da academia, como a Abrasco. Nós tivemos ali todos esses profissionais para respaldar os dados que estávamos levantando. Isso foi bem importante para contestarmos o negacionismo do governo. E conseguimos ter respaldo técnico para continuar o levantamento e a sistematização dos dados. Vale destacar também os materiais de prevenção que elaboramos juntos, como o documento para as orientações de higiene nas doações de alimentos [ver: https://apiboficial.org/2020/04/13/apib-constroi-recomendacoes-de-higiene-para-apoio-nas-comunidades/], porque quando viam ali a APIB, com a parceria da Abrasco, Fiocruz, Projeto Xingu, todo mundo já sentia que havia segurança técnica para seguir os protocolos.
Entrevistadoras: Vimos também a rápida emergência de iniciativas em nível local e regional por parte das comunidades e organizações indígenas. Quanto dessas iniciativas se relaciona à autonomia dos povos indígenas e quanto foi resposta à omissão e à insuficiência da resposta governamental?
Guajajara: A todo momento nos preocupamos muito com isso, porque queríamos garantir a segurança e o cuidado, mas não assumir o papel do Estado. Acho que conseguimos discernir bem. O primeiro pedido de apoio que chegou para nós foi para alimentação nas aldeias. O povo sentiu necessidade de produzir seu próprio alimento e ter segurança alimentar de forma autônoma. Então, em relação àquilo que era nosso, que entrava de forma complementar [à responsabilidade estatal], nós buscamos apoio. Quanto ao que era [obrigação] do governo, buscamos apoio jurídico, mobilização para pressionar para ele assumir33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.. Nós separamos bem os papéis, fazendo o nosso, mas também cobrando o governo.
Entrevistadoras: Você pode comentar a campanha Vacina Parente e o trabalho de combate às fake news relativas à vacinação?
Guajajara: A campanha Vacina Parente [para informações acesse: https://emergenciaindigena.apib oficial.org/vacinaparente/ ] veio logo em seguida ao anúncio do início da campanha de vacinação contra a COVID-1933 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.. Nós nos antecipamos também na vacina quando incluímos essa demanda na ADPF [Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental] nº 709. Quando começou aquele aumento de mortes desenfreado, nós dissemos: “Estamos entre os grupos mais vulneráveis.” Portanto, tínhamos que estar também no grupo prioritário para a vacina. Vocês [Sônia se refere ao grupo de especialistas da Fiocruz e do GT Saúde Indígena da Abrasco que elaborou diversas notas técnicas para subsidiar a ação da União no enfrentamento da COVID-19 no contexto dos povos indígenas. As notas estão disponíveis em: https://www.abrasco.org.br/site/gtsaudeindigena/documentos/ ] ajudaram bastante na orientação do que deveria constar nas demandas da APIB na ADPF. Quando saiu a vacina, e nós estávamos no grupo prioritário, começamos a incentivar a vacinação. Não bastava estar como prioridade, tinha que ter clareza, informação do que seria essa vacina, se teria efeitos [adversos], como seria a aplicação. Então, fizemos todo um trabalho de incentivo à vacinação, com a campanha Vacina Parente, e para combater fake news. Porque eles [o governo] liberaram a vacina para nós, mas espalharam muita mentira, para que o povo não se vacinasse. Colocaram os indígenas no grupo prioritário e, logo em seguida, já disseram que iam destinar a vacina que era para nós para outros grupos, porque os indígenas não queriam, sendo que eles mesmos trabalharam fortemente para haver rejeição à vacina. Valeu muito a campanha toda. A mulherada se viu ali no mês de fevereiro [de 2021] com lives semanais para esclarecer e incentivar os indígenas a tomarem a vacina33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.. Onde ainda há negacionismo, seguimos orientando até hoje e comprovando que a vacina é a forma mais eficaz de acabarmos de vez com a pandemia.
Entrevistadoras: Como foi a construção da estratégia de que o caminho seria chegar ao STF para enfrentar a pandemia?
Guajajara: Nós tínhamos perdido muitas ações em outras instâncias. Quando elaboramos o Plano Emergência Indígena, determinamos que teríamos alguns eixos principais: o eixo da comunicação, para dar visibilidade a tudo que estávamos fazendo; o eixo jurídico, para acessar todas as instâncias, para cobrarmos e pressionarmos o governo; e o eixo da articulação internacional, para o fortalecimento de uma rede internacional para continuar com a pressão22 Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Nossa luta é pela vida: covid-19 e povos indígenas, o enfrentamento das violências durante a pandemia. Brasília: Apib; 2020.,33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.. Cada um dos eixos foi se organizando com aliados das várias áreas e elaborou uma estratégia. Assim, fomos construindo coletivamente o plano como um todo. Nessa discussão ampla e coletiva, chegamos à definição de que era importante ir ao STF. E, é claro, é preciso registrar aqui a atuação do doutor Luiz Eloy Terena e de toda a equipe da assessoria jurídica da APIB, com uma sabedoria e um profissionalismo muito grandes33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.,44 Alarcon DF, Pontes ALM, Cruz FSM, Santos RV, organizadores. A gente precisa lutar de todas as formas: povos indígenas e o enfrentamento da covid-19 no Brasil. São Paulo: HUCITEC; 2022.. Nós tínhamos que atuar em alto nível para demonstrar a competência de articulação dos povos indígenas. E comprovar a fragilidade, a desarticulação do governo. Para nós, foi apostar alto, e deu muito certo. E o doutor Eloy Terena foi o grande mestre dessa ação.
Entrevistadoras: Em relação à ADPF nº 709, qual a sua avaliação?
Guajajara: A ADPF foi um fenômeno na luta do movimento indígena44 Alarcon DF, Pontes ALM, Cruz FSM, Santos RV, organizadores. A gente precisa lutar de todas as formas: povos indígenas e o enfrentamento da covid-19 no Brasil. São Paulo: HUCITEC; 2022.. Só de ser acatada já foi um ganho, porque foi a primeira vez na história que o STF acatou uma representação feita pelo próprio movimento indígena[ver: https://apiboficial.org/2020/08/01/adpf-709-no-supremo-povos -indigenas-e-o-direito-de-existir/]. O segundo ganho foi todo o conjunto de medidas que conseguimos articular ali e que foi acatado em seus principais pontos pelo Supremo. Um deles foi a determinação de que o governo federal criasse uma sala de situação para tratar especificamente dos povos isolados e de recente contato e de suas barreiras sanitárias. O outro, a criação de um grupo de trabalho para elaborar o plano de enfrentamento [à pandemia] da União, com representantes indígenas e parceiros, como o grupo de especialistas da Fiocruz e do GT Saúde Indígena da Abrasco. Outros pedidos foram a retirada dos invasores dos territórios yanomami e munduruku, e a vacinação para os indígenas em contexto urbano. Mesmo que o ministro [Luís Roberto] Barroso tenha indicado essa extensão somente para onde houvesse barreiras de acesso ao SUS [Sistema Único de Saúde], foi uma recomendação clara para que os indígenas na cidade fossem vacinados, e isso ajudou bastante. Outro ponto importante foi a vacina para os povos que estavam fora das áreas demarcadas, porque inicialmente o governo restringiu a prioridade para quem estava em área demarcada, mas a ADPF determinou o acréscimo de recurso para disponibilizar ações para os indígenas nas demais áreas. Então a ADPF nº 709 foi importantíssima44 Alarcon DF, Pontes ALM, Cruz FSM, Santos RV, organizadores. A gente precisa lutar de todas as formas: povos indígenas e o enfrentamento da covid-19 no Brasil. São Paulo: HUCITEC; 2022..
Entrevistadoras: Gostaríamos que você comentasse um pouco a incidência no campo político partidário e no Congresso. A deputada federal Joênia Wapichana é a primeira mulher indígena eleita e, em 2018, você foi candidata a vice-presidente pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Como avalia essas estratégias e conquistas?
Guajajara: O ano de 2018 foi um marco para as lutas dos povos indígenas, porque tivemos a primeira presença indígena em uma chapa presidencial. Eu estive ali compondo e até hoje colhemos resultados significativos da participação no pleito. Os resultados eleitorais não foram os melhores, mas o resultado político foi muito importante para a ampliação das parcerias e da visibilidade da nossa luta. E ter a Joênia Wapichana eleita, a primeira mulher indígena deputada federal, também demarcou a presença indígena no Congresso. Nós temos parceiros e aliados lá dentro, mas ter a Joênia ali já fez uma grande diferença. A todo momento querem atacá-la e desqualificá-la, e ela tem resistido como uma gigante. Precisamos de mais vozes indígenas no Congresso, para ampliar a voz da Joênia. Nas eleições municipais passadas, foi um crescimento enorme na disputa eleitoral, tivemos o maior número de indígenas eleitos vereadores, e agora estamos articulando para que em 2022 tenhamos o maior número de candidaturas articuladas pelo movimento indígena. Isso se dá porque entendemos que, sendo o Congresso o lugar onde se decide sobre nossas vidas e nossos direitos, precisamos ter gente nossa ali. E, de fato, é uma contribuição importante para a democracia brasileira. A política institucional tem que ter a representação da diversidade brasileira e nós, indígenas, somos um desses segmentos que precisa ocupar a política institucional para ajudar na reconstrução deste país.
Entrevistadoras: Como você avalia a atuação de Joênia e da FPMDDPI no contexto da pandemia, particularmente na formulação da Lei nº 14.021/2020?
Guajajara: A construção do PL nº 1.142, que virou a Lei nº 14.021, teve nossa participação, enquanto APIB, e também das lideranças indígenas33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.. A atuação da deputada Joênia foi muito importante na construção [do PL]. Havia ali cinco ou seis projetos de lei [sobre a questão], e nós conseguimos apresentar apenas um e ter a deputada como relatora. Isso demonstrou nossa maturidade, a partir do diálogo com os parlamentares, para apresentar apenas uma proposta e ter possibilidade de aprová-la. Aprovamos na Câmara [dos Deputados], aprovamos no Senado [Federal] e, quando chegou ao Executivo, o presidente Bolsonaro vetou cerca de 22 pontos, entre os quais o acesso à água potável, a materiais de orientação sobre a COVID, a leitos de UTI. Enfim, isso foi só uma demonstração de que este governo realmente não tinha interesse em conter a pandemia, de que ele era conivente com todas as mortes e infecções entre os povos indígenas. Além disso, durante a passagem [do PL] pela Câmara, acrescentou-se a [autorização à] permanência de missionários nas áreas de povos isolados. Isso foi um nó que ficou nessa lei, bem prejudicial aos povos isolados, que estamos revertendo pelo Judiciário. Foi importante o processo todo, mas é uma lei que não saiu do papel, não conseguimos ver, de fato, uma implementação satisfatória.
Entrevistadoras: Como você vê a conexão entre aquilo que se faz nos corredores do Congresso, no STF, e a luta no chão, no território?
Guajajara: Tudo o que fazemos na luta do movimento é exatamente para o resultado chegar ao território. Se lutamos por direito é para que o nosso povo continue lá com direito a viver na aldeia, ter o seu território, sua liberdade. Se nós viemos para Brasília, é para que o nosso povo que quer ficar lá [nas aldeias] não saia. Nós queremos sair, mas queremos ter o direito de voltar. Para nós, o território é esse lugar sagrado, que continua sendo a bandeira de luta maior dos povos indígenas do Brasil. É uma relação de existência, uma relação mesmo de identidade. Nossa luta maior é esta: garantir o território para garantir a nossa existência, com a nossa identidade.
Entrevistadoras: Durante a pandemia, a APIB recorreu diversas vezes a organismos como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a ONU e, agora em agosto, o Tribunal Penal Internacional (TPI). Quais as expectativas da APIB para a incidência internacional na luta pelos direitos indígenas?
Guajajara: O espaço internacional tem sido fundamental para ampliarmos a visibilidade dos povos indígenas, e também a pressão. Internacionalmente, nós temos conseguido articular com a sociedade civil, com parlamentares, com organismos como a ONU e a OEA [Organização dos Estados Americanos], e também na relação com empresas, no sentido de conscientizar que tudo que eles fazem aqui ou em qualquer outro lugar tem um custo, um impacto direto. É preciso monitorar a cadeia de produção, financiamento e comercialização para verificar os impactos ao meio ambiente e aos direitos humanos. Isso tem ajudado também para que outras pessoas percebam que as empresas têm papel fundamental na mudança. E que a sociedade civil tem o papel de ajudar a pressionar tanto essas empresas, na sua cadeia, quanto os parlamentares nos seus países, para criarem leis para monitorar e garantir a rastreabilidade desses produtos e dessas empresas. É uma articulação grande, que tem resultado direto aqui. É uma articulação, porque não é somente você acessar essas instâncias para discursar, mas para denunciar, dar visibilidade e ganhar adesão da comunidade internacional para ajudar na pressão. E no TPI agora, entendemos que a APIB tinha que entrar também de forma direta, para acusar o governo Bolsonaro por crime de genocídio e ecocídio. Todas as práticas deste governo comprovam o genocídio e o ecocídio33 Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022. planejados institucionalmente. Tudo que nós temos feito tem tido impacto direto no governo. Eles podem não mudar a sua ação, mas tudo isso junto acaba enfraquecendo e constrangendo cada vez mais.
Entrevistadoras: Como você vê os impactos imediatos e futuros da COVID-19 para os povos indígenas?
Guajajara: Muitos anciãos, que eram detentores da cultura, morreram, então houve certo enfraquecimento. A pandemia deixou um rastro irreversível - tantas perdas, tantas mortes, tantas dores, e ainda não acabou. Eu acho que agora o impacto tem que ser positivo, porque nós temos que repensar a continuidade, inclusive das relações, da empatia, do cuidado, mas também ampliar a discussão sobre o rompimento deste modelo econômico. Não podemos mais seguir com a destruição da biodiversidade. Se seguirmos assim, outras pandemias virão, porque o desequilíbrio está aumentando cada vez mais, desestruturando toda a biodiversidade, os ecossistemas. Sem contar as mudanças climáticas, que estão cada vez mais crescentes. Nós precisamos trazer isso também como um problema grave, que precisa ser contido agora, para podermos garantir o futuro. É pensar o impacto de todas as perdas, das dores, mas tirar como aprendizado, como lição sobre a mudança de comportamento e de relações para evitarmos outras pragas e pandemias como esta.
Entrevistadoras: Neste contexto de problemas globais, como outras emergências sanitárias e a crise climática, como você percebe as articulações entre as ciências produzidas a partir das universidades e dos territórios indígenas?
Guajajara: A própria Declaração de Nova Iorque sobre as Florestas, de 2014, e o Acordo de Paris reconhecem o conhecimento dos povos indígenas e de comunidades tradicionais como conhecimento científico. O que falta fazer é implementar essas práticas, valorizar esses saberes e associá-los ao conhecimento científico, entender que um não anda sem o outro. É exatamente essa articulação dos dois saberes que vai garantir todas as mudanças necessárias para o mundo.
Referências
- 1Santos RV, Pontes AL, Coimbra CEA. Um “fato social total”: COVID-19 e povos indígenas no Brasil. Cad Saude Publica 2020; 36(10):e00268220.
- 2Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Nossa luta é pela vida: covid-19 e povos indígenas, o enfrentamento das violências durante a pandemia. Brasília: Apib; 2020.
- 3Terena LE. Povos indígenas e o judiciário no contexto pandêmico: a ADPF 709 proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Rio de Janeiro: Mórula; 2022.
- 4Alarcon DF, Pontes ALM, Cruz FSM, Santos RV, organizadores. A gente precisa lutar de todas as formas: povos indígenas e o enfrentamento da covid-19 no Brasil. São Paulo: HUCITEC; 2022.
Financiamento
Wellcome Trust - 203486/Z/16/Z.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Out 2022 - Data do Fascículo
Nov 2022
Histórico
- Recebido
24 Nov 2021 - Aceito
01 Dez 2021 - Publicado
03 Dez 2021