Resumo
Sendo a narrativa fundamental para a construção da experiência de adoecimento, apresentamos uma pesquisa que utilizou o método fotovoz, que articula fotografia e narrativa, concentrando-se nos relatos sobre discriminação, moradia e convivência no território de nove pessoas com a experiência vivida de sofrimento psíquico grave que atuaram como copesquisadores. Realizamos oito ciclos temáticos, que se traduziram em 63 entrevistas semiestruturadas, 20 encontros de grupo e um grupo avaliativo. Cada ciclo cumpriu as seguintes etapas: escolha do tema; realização da foto; entrevistas semiestruturadas individuais; e encontros de grupo, produzindo narrativas individuais e coletivas sobre as imagens. O material foi validado junto aos integrantes e exibido em uma exposição, uma ação cultural de combate ao estigma. Pensando que o comportamento discriminatório pode trazer um prejuízo maior do que a condição de saúde em si, objetivamos apresentar os desafios enfrentados pelos participantes na busca por uma vida significativa e produtiva na comunidade. Conclui-se que a atuação no território e a dimensão participativa deste trabalho, esse fazer e pensar junto com o usuário, devem ser compreendidas como uma espécie de ética norteadora da atenção psicossocial.
Key words:
Mental health; Qualitative research; Mental health services; Social discrimination; Sociocultural territory
Abstract
Taking the narrative as fundamental for the construction of the illness experience, we present a research that uses the photovoice method, which articulates photography and narrative, focusing on the reports on discrimination, housing and living in the territory of nine people with the lived experience of severe psychological distress who acted as co-researchers. We carried out eight thematic cycles, which translated into 63 semi-structured interviews, 20 group meetings and one evaluation group. Each cycle completed the following steps: choice of theme; taking the photo; individual semi-structured interviews; and group meetings, producing individual and collective narratives about the images. The material was validated with the members and displayed in an exhibition, a cultural action to combat stigma. Thinking that discriminatory behavior can cause greater harm than the health condition itself, we aim to present the challenges faced by participants in their quest for a meaningful and productive life in the community. It is concluded that the work in the territory and the participative dimension of this work, this doing and thinking together with the user, must be understood as a kind of guiding ethics of psychosocial care.
Key words:
Mental health; Qualitative research; Mental health services; Social discrimination; Sociocultural territory
Introdução
Compreendemos o adoecimento como uma ruptura que faz com que a pessoa perca seu mapa e seu destino, tendo de construir novos mapas, outras formas de estar no mundo11 Frank AW. The wounded storyteller: body, illness, and ethics. Chicago: The University Of Chicago Press; 1995.. A elaboração narrativa possui um papel central na construção da experiência da doença, sendo um esforço para dar forma à dor, nomear as suas origens no tempo e no espaço22 Good BJ. Medicine, rationality, and experience: an anthropological perspective. Cambridge: Cambridge University Press; 1994.. Todavia, a inclusão da experiência de adoecimento ainda é um desafio para a prática clínica33 Kleinman A. The illness narratives: suffering, healing, and the human condition. New York: Basic Books; 1988..
Patricia Deegan44 Deegan PE. Recovery and empowerment for people with psychiatric disabilities. Soc Work Health Care 1997; 25(3):11-24. se autodenomina uma sobrevivente do sistema de saúde mental. A autora aponta como o rótulo “esquizofrenia” informava sobre seus sintomas, mas não acessava como estava sofrendo, nem dava pistas para lidar com seu sofrimento. Em oposição a esse tipo de leitura, recovery (recuperação pessoal) se refere a um processo não linear, em que o usuário se torna um especialista do seu próprio cuidado, buscando o entendimento do que está acontecendo consigo e os recursos que podem ajudar44 Deegan PE. Recovery and empowerment for people with psychiatric disabilities. Soc Work Health Care 1997; 25(3):11-24.. Portanto, não se trata de um gráfico com uma linha ascendente, e sim de um percurso cheio de altos e baixos, marcado por períodos de intenso sofrimento55 Boevink W. Life beyond psychiatry. In: Rudnick A, editor. Recovery of people with mental illness: philosophical and related perspectives. Oxford: Oxford University Press; 2012. p. 15-29..
Reconhecer e incluir a voz dos usuários passa pelo resgate da cidadania do louco, o que compreende uma vida no território, componente essencial da luta antimanicomial. A reforma psiquiátrica brasileira endereça uma mudança assistencial, disposta em marcos legais como a Lei 10.216/0166 Brasil. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União 2001; 9 abr., mas, para além disso, propõe uma mudança paradigmática77 Bezerra Junior B. Desafios da reforma psiquiátrica no Brasil. Physis 2007;17(2):243-250. na medida em que pretende alcançar uma transformação do imaginário social e da compreensão cultural da loucura. Portanto, para além da implementação de dispositivos de base comunitária e da formação crítica e criativa de profissionais da saúde, é no plano sociocultural que acessamos a “dimensão existencial e humana que facilmente se esconde por trás dos jargões e protocolos médico-psicológicos”77 Bezerra Junior B. Desafios da reforma psiquiátrica no Brasil. Physis 2007;17(2):243-250. (p. 246). Neste sentido, Basaglia88 Basaglia F. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond; 2010. já nos alertava para a necessidade de “pôr ‘entre parênteses’ a doença e o modo pelo qual ela foi classificada” (p. 36) para alcançar a pessoa em sofrimento psíquico, bem como para descortinar os mecanismos de exclusão social.
É no cotidiano da cidade que se pode afirmar um novo lugar social para a loucura. O presente artigo faz um recorte do material produzido por uma pesquisa utilizando o método fotovoz, realizada entre 2017 e 2019, tendo como participantes pessoas com a experiência vivida de sofrimento psíquico grave, concentrando-se em narrativas sobre discriminação, moradia e convivência no território. Temos como objetivos ilustrar os desafios enfrentados na busca por uma vida significativa e produtiva na comunidade; apresentar a forma como tecem suas redes de apoio; e elucidar suas estratégias de enfrentamento para ultrapassar os obstáculos, o estigma da loucura em especial. Por fim, buscamos traçar as consequências do que os participantes nos ensinam para o campo da atenção psicossocial.
Metodologia
Se o processo de recuperação pessoal reforça a importância do protagonismo dos usuários, como utilizar os tradicionais métodos de pesquisa que colocam os indivíduos em uma posição passiva? O método fotovoz99 Wang C, Burris MA. Photovoice: concept, methodology, and use for participatory needs assessment. Health Educ Behav 1997; 24(3):369-387., inserido no campo da pesquisa-ação participativa e fortemente influenciado pelo pensamento de Paulo Freire1010 Freire P. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra; 2014.,1111 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015., aparece como uma alternativa pertinente, pois salienta a agência dos indivíduos, que atuam como copesquisadores, permitindo pensar a diferença de poder contratual na pesquisa e o vínculo entre o conhecimento produzido na academia e a prática clínica.
No método fotovoz, os participantes produzem fotos e narrativas individuais, que são posteriormente discutidas em grupo99 Wang C, Burris MA. Photovoice: concept, methodology, and use for participatory needs assessment. Health Educ Behav 1997; 24(3):369-387.,1212 Wang C, Burris MA, Ping XY. Chinese village women as visual anthropologists: a participatory approach to reaching policymakers. Soc Sci Med 1996; 42(10):1391-1400.. A coleta de dados é dirigida pelo participante, fora do alcance do pesquisador. Isso reconfigura a balança de poder entre participante e pesquisador, ao elevar a voz e a interpretação do integrante, que está no comando dos tópicos abordados1313 Creighton G, Oliffe JL, Ferlatte O, Bottorff J, Broom A, Jenkins EK. Photovoice ethics: critical reflections from men's mental health research. Qual Health Res 2018; 28(3):446-455..
A fase de recrutamento iniciou com a divulgação da proposta aos usuários de um Centro Universitário de Saúde Mental (CUSM) da cidade do Rio de Janeiro. A seguir realizamos treinamentos para o uso das câmeras fotográficas, fornecidas pela pesquisa99 Wang C, Burris MA. Photovoice: concept, methodology, and use for participatory needs assessment. Health Educ Behav 1997; 24(3):369-387.. Privilegiamos a representatividade e o significado das fotos sobre a qualidade técnica das mesmas1414 Wang CC; Redwood-Jones YA. Photovoice ethics: perspectives from Flint photovoice. Health Educ Behav 2001; 28(5):560-572..
Os aspectos éticos foram abordados durante a prática dos treinamentos e, posteriormente, discutidos em encontro específico99 Wang C, Burris MA. Photovoice: concept, methodology, and use for participatory needs assessment. Health Educ Behav 1997; 24(3):369-387.. Pensando que a pesquisa se daria no território, enfatizamos que a segurança dos participantes devia estar acima da realização de uma boa imagem1313 Creighton G, Oliffe JL, Ferlatte O, Bottorff J, Broom A, Jenkins EK. Photovoice ethics: critical reflections from men's mental health research. Qual Health Res 2018; 28(3):446-455.. Além de textos acadêmicos, a pesquisa também produziu uma exposição das fotos e narrativas1414 Wang CC; Redwood-Jones YA. Photovoice ethics: perspectives from Flint photovoice. Health Educ Behav 2001; 28(5):560-572..
A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa, com CAAE 51105215.0.0000.5263. Os nomes dos participantes foram substituídos por pseudônimos, mas alguns optaram por utilizar o nome do registro civil. Além do termo de consentimento livre e esclarecido, também utilizamos uma autorização de cessão de imagem, para fotografar pessoas, e um termo de cessão de direitos autorais, específico para a exposição1414 Wang CC; Redwood-Jones YA. Photovoice ethics: perspectives from Flint photovoice. Health Educ Behav 2001; 28(5):560-572., um compartilhamento dos resultados que atinge o público em geral, para além dos pares acadêmicos, o que revela o engajamento da pesquisa com o território.
A pesquisa começou com nove integrantes, seis homens e três mulheres. Oito se mantiveram até o final1515 Wang CC. Photovoice: a participatory action research strategy applied to women's health. J Womens Health 1999; 8(2):185-192.. A média de idade foi de 58 anos, variando entre 46 e 65. Sete se autodenominaram pardos, um branco e um negro. Dois relataram ensino fundamental incompleto, três ensino médio completo, um ensino superior incompleto e três ensino superior completo. Dois são divorciados ou separados, quatro solteiros e três casados ou em união estável. Todos têm uma longa trajetória na saúde mental e competência narrativa para contar sua própria história.
Realizamos oito ciclos, organizados pelas seguintes etapas: escolha do tema a ser fotografado e narrado, realização da fotografia, entrevistas individuais e encontros de grupo, totalizando 63 entrevistas e 20 grupos. Ao final, tivemos um grupo avaliativo do trabalho de campo. Todo o material foi audiogravado e transcrito.
Os ciclos foram temáticos, ou seja, os participantes deveriam produzir um material, fotográfico e narrativo, sobre o mesmo assunto, mas partindo da vivência de cada um. O tema do primeiro ciclo - experiência de adoecimento, tratamento e/ou recuperação pessoal em saúde mental - foi sugerido pela pesquisa como uma ambientação à proposta de trabalho. A reflexão dos usuários sobre o tema começava já no processo da escolha do que fotografar. Assim, os participantes alinhavavam uma narrativa, que era costurada durante a entrevista semiestruturada, que tinha como roteiro: por que você tirou esta foto? Que história esta foto conta, o que ela representa? Nos encontros de grupo, cada integrante mostrava sua foto, cujo significado era debatido pelos colegas, dividindo experiências e reflexões a respeito do tema, além das estratégias utilizadas para lidar com as situações apresentadas99 Wang C, Burris MA. Photovoice: concept, methodology, and use for participatory needs assessment. Health Educ Behav 1997; 24(3):369-387.,1515 Wang CC. Photovoice: a participatory action research strategy applied to women's health. J Womens Health 1999; 8(2):185-192..
Ao final de cada ciclo, os participantes sugeriam novos temas, que eram votados pelo grupo. Assim, o tema eleito orientava o ciclo seguinte. Portanto, do segundo ciclo em diante, os usuários escolheram os seguintes temas: discriminação; moradia; música; fé; morte; tratamento medicamentoso e oficinas terapêuticas. O último ciclo teve tema livre, cada participante escolhendo individualmente o assunto que desejava abordar. Todos os temas foram desenvolvidos na sua relação com a experiência na saúde mental e apresentados na ordem cronológica da execução do trabalho de campo. Além desses temas transversais, identificamos dois temas longitudinais - “trabalho” e “território e convivência na comunidade”.
Por fim, realizamos a etapa de validação das fotos e narrativas para a exposição. Após leitura exaustiva das transcrições, a primeira autora destacou os trechos das entrevistas (narrativas individuais) e dos grupos (narrativas coletivas) que tinham maior conexão com o tema trabalhado. Em seguida, os trechos pré-selecionados foram discutidos junto ao segundo autor para uma nova seleção. Realizamos oito grupos, um para cada ciclo, nos quais as narrativas individuais foram escolhidas somente pelo autor da foto e as coletivas foram votadas pelo grupo. Durante essa escolha, os usuários foram incentivados a propor as modificações que considerassem necessárias, para que se sentissem confortáveis com o material a ser exibido.
Na análise de conteúdo empreendida pelo pesquisador, o material é qualificado em unidades temáticas preliminares, posteriormente identificadas e classificadas em unidades de significado - as categorias - norteadas pela base teórica utilizada na pesquisa, podendo as categorias ser divididas em subcategorias. Em seguida, os conteúdos, condensados em categorias, são sintetizados em descrições e conceitos, produzindo histórias que elucidam as questões da pesquisa1616 Malterud K. Systematic text condensation: a strategy for qualitative analysis. Scand J Public Health 2012; 40(8):795-805..
Ainda que esta forma de análise contemple o rigor científico, não reflete a criatividade com a qual os usuários conduziram os ciclos. Assim, por mais que o próprio desenho da pesquisa em ciclos já organize o material em grandes temáticas, como forma de fazer prevalecer a orientação participativa do método, privilegiamos nesta análise o estilo narrativo dos usuários, nos aproximando de um texto literário. Sempre que possível, tentamos manter o caráter dialógico da pesquisa, tanto no que diz respeito às trocas entre os participantes (e destes com o território) quanto à discussão teórica, que será introduzida na análise quando for conveniente.
Resultados
Discriminação
Thornicroft1717 Thornicroft G. Shunned: discrimination against people with mental illness. Oxford: Oxford University Press; 2006. aponta que ser alvo de comportamento discriminatório pode trazer um prejuízo maior do que a condição de saúde mental em si, com consequências diretas em vários domínios: relações interpessoais, educação, trabalho e moradia. Compreendemos a discriminação como a consequência comportamental do estigma, ou seja, como as pessoas agem com quem foi estigmatizado. Talvez esse seja o impacto mais direto e palpável do que é ser um usuário da saúde mental. Não por acaso, o tema da discriminação foi o primeiro a ser escolhido pelo grupo.
Tania fotografou um carrinho de mão de brinquedo sem um dos braços (Figura 1). Sua imagem traz à tona a peculiaridade do estigma baseado em uma diferença que não se dá por uma marca física. [...] É o preconceito da pessoa ser discriminada de alguma forma, por apresentar um defeito. [...] Mas nós não temos deficiência, nós temos transtorno mental, aí o único que me lembrou assim foi o carrinho. [...] que era da minha irmã [...] mas a minha irmã ainda não se desfez dele. Está lá. Assim é a gente, quando dá problema, deixa pra lá, não tem conserto mesmo. A gente antes tinha opinião, agora não faz mais valer a nossa opinião, não sabe de nada. A gente tem problema mental, é discriminado.
O conceito de “injustiça epistêmica” nos ajuda a interpretar a narrativa de Tania, pois se refere às injustiças feitas a alguém quando se concede um grau menor de credibilidade ao seu testemunho1818 Fricker M. Epistemic injustice: power and ethics in knowing. Oxford: Oxford University Press; 2007.. As pessoas com transtornos mentais, afetadas de forma persistente por estereótipos negativos, são mais vulneráveis à injustiça epistêmica. Seus relatos tendem a ser tomados como não verdadeiros, suas narrativas, escutadas com suspeita, levando a atitudes de desconfiança que tendem a provocar o isolamento da pessoa que sofre de esquizofrenia1919 Crichton P, Carel H, Kidd IJ. Epistemic injustice in psychiatry. BJPsych Bull 2017; 41(2):65-70..
Tania nos fornece um exemplo disso quando discorre sobre sua voz na família: É que eu tinha voz ativa, né, eu falava, discutia, agora tudo que eu falo é porque eu sou maluca, porque eu sou doente mental. Perguntada sobre como reage quando isso acontece, responde: Eu fico na minha, fico isolada. Evito falar o que eu penso, pra evitar discussão, mas tem hora que o pote enche, né. Aí tem que desabafar de alguma forma. Aí eles não vê [sic] isso como uma coisa normal, de discutir, vê logo da doença.
As narrativas de Tania e Guilherme elucidam como a pessoa com transtorno mental é lida pelo referencial da doença44 Deegan PE. Recovery and empowerment for people with psychiatric disabilities. Soc Work Health Care 1997; 25(3):11-24., qualquer revés é interpretado como sinal do transtorno55 Boevink W. Life beyond psychiatry. In: Rudnick A, editor. Recovery of people with mental illness: philosophical and related perspectives. Oxford: Oxford University Press; 2012. p. 15-29.,1717 Thornicroft G. Shunned: discrimination against people with mental illness. Oxford: Oxford University Press; 2006.. Aí qualquer coisa que eu sinta diferente [...] ela [irmã] já acha que eu estou entrando em crise. Que eu falo mais alto, alguma coisa que eu expresso fora dos padrões normais, das coisas que eu faço em casa, já acha que eu estou pirando (Tania).
Qualquer coisinha, no menor problema que tiver. “Ah, o Guilherme tá [sic] ouvindo muita música e tá [sic] passando a madrugada aí orando. [...] Ah, eu vou falar pro seu irmão.” Quando ela [mãe] fala isso, ai meu Deus! Meu irmão é novo, então tem muita voz ativa, né, se meu irmão falar, então, “Tem que internar ele, mãe, vamos internar” [usa uma voz de vilão], aí eu fico a-pa-vo-ra-do!” (Guilherme).
Comentando a fotografia de Tania, Barnabé utiliza o termo “mutilações” para dizer justamente do impacto da discriminação. O verbo “revitalizar” aparece em sua narrativa como forma de fazer frente a esse estigma, que não deve ser internalizado pelo usuário. [...] Porque às vezes nós somos mutilados e às vezes nós nos mutilamos, há uma mutilação interna. Isso nós não podemos deixar acontecer, entendeu. “Ah... Você não vai conseguir”. [...] Então, nós temos que fazer revitalização interna, como esse brinquedo pode ser revitalizado.
Guilherme trouxe uma foto de si mesmo: [...] Eu simbolizo uma discriminação. A minha própria existência, a minha própria imagem. [...]. Ele discorre sobre como o seu jeito de ser provoca a intolerância das pessoas, que se incomodam com seu tom de voz elevado. Refletindo sobre isso, ele pontua que os profissionais não conseguem compreender a experiência espiritual transcendental que teve, pois foge ao entendimento e ao formalismo científico.
Por meio da Figura 2, Gabriela expressa a discriminação que sofre na própria família. Essa bolsa que está aqui, sabe o que que é? É porque, além de tudo que eu ouvi na vida, eu ouvi também: “Eu vou ter que carregar essa mala o resto da minha vida!” E eu me coloquei dentro da mala. Eu não consigo ficar sem bolsa e eu fico com medo de perder. E tudo, tudo que tem em volta na minha vida foi minha conquista. [...] Eu me coloquei dentro da mala, eu me carrego e me sinto bem leve.
Barnabé dialoga com essa fala destacando o tempo como um fator importante para a recuperação pessoal. Vou dar o exemplo de uma borboleta. [...] Mas eu quero reportar para o que tem de bagagem, de boa bagagem dentro da mochila. Essa mochila, para ser aberta, precisa de um tempo. Essa mochila precisa ser aberta e os dons e os talentos estão dentro dessa mochila.
As narrativas de Gabriela e Barnabé, repletas de metáforas, ilustram a habilidade de transitar pelos diferentes níveis de significado de uma palavra, do literal para o figurativo, trazendo abertura para novos significados, conferindo valência positiva2020 Corin E. The thickness of being: intentional worlds, strategies of identity, and experience among schizophrenics. Psychiatry 1998; 61:133-146. a uma palavra que inicialmente carregava uma característica negativa, “subjuntivando’”22 Good BJ. Medicine, rationality, and experience: an anthropological perspective. Cambridge: Cambridge University Press; 1994.,2121 Bruner J. Fabricando histórias: direito, literatura, vida. São Paulo: Letra e Voz; 2014. a realidade pela narrativa, em uma potência criativa que abre espaço para múltiplas perspectivas do que poderia ter sido e para o que ainda está por vir.
Não por acaso, o senso de esperança é uma dimensão importante do processo de recuperação pessoal. A esperança carrega um nível de incerteza, mas ao mesmo tempo nos permite assumir riscos e seguir lutando, traçando objetivos que podem ser modificados ao longo do caminho2222 Schrank B, Wally J, Schmidt B. Recovery and hope in relation to schizophrenia. In: Rudnick A, editor. Recovery of people with mental illness: philosophical and related perspectives. Oxford: Oxford University Press; 2012. p. 133-144..
Gabriela apontou como esse processo de recuperação pessoal é atravessado pelo estigma da loucura e da injustiça epistêmica, pela lente da incapacidade: [...] E me diziam assim que: “Você está lendo, nunca vi doido ler. E você está escrevendo, né. Maluco lê, maluco escreve”.
Por intermédio da Figura 3, ao falar sobre discriminação, Barnabé denunciou os tratamentos desumanos que isolaram da sociedade, muitas vezes por toda vida, as pessoas em sofrimento psíquico. Barnabé relatou nunca ter sido internado. Sua fotografia está ancorada no histórico da psiquiatria pré-reforma que ele viu em um documentário.
Barnabé faz menção à luta antimanicomial e sublinha que, para além do desenvolvimento de novas técnicas tecnológicas, a tônica do cuidado na saúde mental deve se fundar no amor ao próximo.
Moradia e convivência no território
As noções de território e de rede se tornam imprescindíveis. O território diz sobre os espaços por onde a vida e as relações sociais do usuário se dão, fala de seus recursos, seu poder de troca; já a rede diz sobre as linhas de conexão que o sujeito desenvolve no território, podendo se articular e se desarticular com o andar da vida. Esses conceitos trazem importantes implicações para o cuidado, que deve se constituir a partir da relação que o sujeito desenvolve com o social, levando em conta o modo singular de ser e estar no mundo das pessoas com transtornos mentais graves. Desconsiderar as particularidades desses indivíduos imporia ao sujeito um modelo de ser e estar no mundo ao qual terá de se adaptar, suscitando um outro processo de alienação dessas pessoas2323 Leal EM, Delgado PGG. Clínica e cotidiano: o CAPS como dispositivo de desinstitucionalização. In: Pinheiro R, Guljor AP, Gomes A, Mattos RA, organizadores. Desinstitucionalização na saúde mental: contribuições para estudos avaliativos. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/LAPPIS, ABRASCO; 2007. p. 137-154..
Deegan44 Deegan PE. Recovery and empowerment for people with psychiatric disabilities. Soc Work Health Care 1997; 25(3):11-24. nos lembra que o percurso único de recuperação pessoal não está relacionado apenas à superação dos sintomas do transtorno mental, mas dos rótulos psiquiátricos, do estigma internalizado e de práticas desumanizadoras. A autora argumenta que mudar os sistemas de saúde mental é a parte mais fácil. Difícil é a mudança de valores. Serviços de base comunitária podem ter sido implementados, mas comunidade não é um lugar, e sim o modo de se relacionar com o outro. Somente quando as pessoas com transtornos mentais forem vistas por sua humanidade, e não pela doença, teremos uma mudança efetiva. Portanto, falar em recuperação pessoal é falar de um movimento pelos direitos civis das pessoas com transtornos mentais graves2424 Davidson L, Rakfeldt J, Strauss J. The roots of the recovery movement in psychiatry: lessons learned. New Jersey: Wiley-blackwell; 2010..
Nesta seção, vamos caminhar pelo território junto com os integrantes. Partiremos da casa e seguiremos para ruas e praças, acompanhando como os participantes tecem suas relações e quais estratégias utilizam para dar conta das pedras no meio do caminho.
Gustavo mora sozinho e contrata os serviços de uma colaboradora para ajudá-lo nas tarefas domésticas, produzindo uma mudança grande em sua rotina. Sua fotografia, intitulada a casa dos remédios, mostra como ela arrumou os seus medicamentos em um recipiente. Segundo Gustavo, a organização do lar produz bem-estar, em especial quanto à alimentação: [...] eu estava comendo muito hambúrguer [...] Mas agora eu voltei a comer comida, assim, feita mais saudável [...]. E conclui que a comida tem uma influência imensa na sua psique.
Gustavo relata que sua antiga colaboradora desqualificava sua fala, não se reportando a ele, só à sua filha, que indicou os seus serviços. Neste exemplo de injustiça epistêmica, dois elementos se cruzam: ser usuário da saúde mental e faixa etária. [...] eu lavo louça, fruta e, assim, respinga sabão no canto, junto da parede. Então ela falou: “Ah, [...] o senhor está deixando cair muito sabão aí do lado e também está fazendo mancha no fogão”. Aí ela chega e fala assim: “Vê se o senhor melhora, que senão a Raquel [filha de Gustavo] vai achar ruim comigo”.
Gustavo identifica o quanto sua “colaboradora” o infantilizava e retirava sua autonomia: [...] Ela achava que eu era a criança de cinco anos da Raquel. Então, quem gerencia mesmo é a Raquel, não sou eu. [...], razão pela qual optou por dispensar os serviços dela.
Diferentemente de Gustavo, Gabriela não conta com recursos financeiros para contratar uma ajuda. [...] é muito difícil pra mim porque eu também não sei se um dia eu poderei pagar alguém... Mas eu já tenho dificuldade pra subir e limpar uma janela. [...] Os vizinhos às vezes me ajudam... E, eu digo assim, que não tenho dinheiro, mas eles me ajudam e eu ajudo eles [sic], e eu vou procurando sobreviver [voz embargada] [...].
Luiz Eduardo fotografou o prédio onde mora para trazer uma outra dimensão da dinâmica doméstica. [...] Estou achando essa experiência de morar sozinho muito legal. É porque em casa eu faço tudo que eu quero. Faço as minhas orações. Fico brincando de falar assim: “Luizinho, uma voz amiga na [nome do bairro]”. [Risos] Aí fico sozinho lá. Aí passa um vizinho, eu converso com o vizinho. Domingo eu converso com o pessoal da igreja. Quando der eu converso com os meus parentes, para não sufocar. Mas eu faço o que eu quero. [...] Que se a gente está na casa de uma pessoa, a gente tem que fazer a regra da casa, né. [...].
Apesar de gostar de morar só, ele trouxe um contraponto a ser considerado: o sentimento de solidão. [...] eu gosto de ficar sozinho lá em casa. Eu fico sozinho assim, eu fico louco pra ligar pra uma pessoa [...], pra interagir, sei lá. Aí eu fico parado no corredor olhando as pessoas passarem. Tem horas que me dá uma certa solidão e tem horas que me dá uma sensação de liberdade de estar sozinho [...].
Seu relato nos remete ao conceito de “retraimento positivo”2020 Corin E. The thickness of being: intentional worlds, strategies of identity, and experience among schizophrenics. Psychiatry 1998; 61:133-146., um modo particular de estar no mundo, no qual os momentos de retraimento social são positivados, revelando o quanto esses afastamentos são importantes e necessários, sem implicar que o usuário esteja excluído das relações sociais.
Tania fotografou uma casa feita de papel. Ela enumerou as diversas moradias que teve, sempre com familiares. Fotografar a representação de uma casa talvez fale sobre esse lugar provisório, um lugar que não é totalmente seu. [...]Aí eu fiquei lá morando com ela [irmã], mas em 2001 ela pediu que eu saísse da casa dela, me deu um prazo [...] eu frequentava o [Serviço de Saúde Mental] [...] uma psicóloga foi comigo ver se arrumava um quarto ou uma casa pra alugar. Eu tentei, mas não consegui, o que eu ganhava não dava pra me manter sozinha. Aí foi [sic] chamado os meus dois irmãos. Aí eles ficaram responsável [sic] por mim. [...]
Quando se mudou para a casa do irmão, outros impasses se apresentaram. [...] eu não estava me dando bem com a esposa dele. Na frente dele me tratava de um jeito, na ausência dele me tratava de outro. [...] Ela dizia que eu era um estorvo, que era pra mim [sic] ir pra casa da minha irmã. Até que um dia... choveu muito, alagou o quintal, que as minhas coisa [sic] ficava [sic] no quintal. Roupa, remédio, tudo que era meu ficava no quintal [...] molhou tudo. Aí eu tinha ido pra casa da minha irmã, comentei com ela, chorei. Aí ela disse assim: “Vem aqui morar comigo”. Aí eu fui morar com ela.
O CUSM aparece como um dispositivo que equilibra essa convivência familiar, aspecto também presente na narrativa de Guilherme. Quando a gente fica doente... a família não aceita muito, né. Então a gente acaba sendo um estorvo pra família, né, devido às coisas, que a gente fica sem tomar banho, sem dormir... dá preocupação, né. Aí eles não gostam muito que a gente fique só em casa. Agora tem o [CUSM] pra gente vir, é diferente, mas naquela época não tinha, tinha que ficar em casa (Tania).
Até que ela [mãe] falou: “Volta [pro CUSM] que eu não estou aguentando ficar de manhã à noite ouvindo essa musicoterapia”. [...] fiquei sensibilizado com o sofrimento dela. Falei: “É... se eu for [pro CUSM] eu vou chegar em casa cerca de seis horas da tarde, então já vai ser muitas horas dela ser poupada do barulho do meu quarto”. Então é o que eu estou fazendo (Guilherme).
Apesar das dificuldades familiares, Tania não vislumbra morar só. Ela entende que consegue cuidar de si, mas trata-se de uma autonomia sustentada com o apoio familiar, que não se resume ao suporte financeiro, mas principalmente emocional. [...] Eles me ajudam a cuidar de mim. Porque quando eu estou sozinha eu não tenho condições. Mesmo se tivesse condições financeiras, eu não teria condições emocional [sic] pra cuidar de mim, que eu ia me isolar, que era um passo pra entrar numa crise.
Ainda sobre residir com familiares, Guilherme contextualizou sua preocupação em relação ao futuro, quando sua mãe, com quem mora atualmente, falecer. [...] Ainda que ela sofra quando eu fico no quarto muitas horas... [...] ela não pressiona. Não bate de frente comigo. Ela não me coage de nenhuma forma. Eu tenho total liberdade com a minha mãe. É uma mãe excelente. Já os meus irmãos, eu percebo que eles já são mais rígidos... com o meu comportamento. Eles querem que eu faça o que eles acham que tem que ser feito. O que é certo na cabeça deles [...].
A relação com a vizinhança nos informa sobre as redes tecidas no território. Luiz Eduardo compartilhou sua sensação de pertencimento ao bairro, fruto do seu histórico com o local. Eu moro lá desde 1982. [...] Eu vi muita gente crescer. Gente que era garoto, hoje em dia está chefe de família. Eu me sinto bem lá. Eu não gostaria de me mudar de lá. Gostaria de fazer raízes lá. Os meus pais faleceram, mas tem muita gente que [me] conhece desde que eles eram vivos e tem um certo carinho por mim, né. Eu moro sozinho lá, mas é... volta e meia um vizinho puxa assunto. O pessoal da igreja puxa assunto também. Aí um leva um pratinho de alguma coisa às vezes, bem às vezes, né. Aí tem aquele clima gostoso, né. Eu não queria mudar dali porque se eu fosse pra um lugar não tinha aquele negócio de cresceu junto, eu ia me sentir um peixe fora d’água. [...] Aí, bem ou mal, lá todo mundo me conhece de uma certa maneira, né.
Ele se esforça para estabelecer novas amizades, necessárias nos momentos difíceis. Naquele tempo [das primeiras crises] o meu pai me deu uma assistência muito grande. [...] Que se for ver mesmo eu estou praticamente só. Eu tenho que conquistar mais pessoas... E eu peço a Deus pra não ter crise, não ter nada, porque nesse negócio pode entrar uma pessoa mal-intencionada. Até agora, nesses dois anos que o meu pai faleceu, eu estou comandando bem a minha vida, né.
Cada integrante encontrou a sua forma particular de aproximação com a vizinhança, respeitando o seu próprio limite e o do outro. Luiz Eduardo deu um exemplo: Assim, mexo com a rapaziada, faço uma brincadeira [...] “Oh, vamos vencer em nome de Jesus”, pra criar aquele clima legal, né. Entretanto, não são todos que respondem bem às suas tentativas de aproximação: Tem uns que gostam e tem umas crianças que ficam com um risinho de deboche. Tem uns que falam: “Canta uma música aí”. O meu apelido é Thundercat [desenho animado da década de 1980]. “Oh, Thundercat, canta uma música aí”. Quando eles não estão a fim: “Ah, vaza, vaza, vaza...” Entendeu?
Guilherme compartilha uma estratégia de aproximação. [...] Agora, já o outro vizinho, ele ia lá às vezes [...] levar goiaba da árvore. [...] Eu soube que ele gosta muito de futebol [...] um jornal, eu separo a parte de esportes... Aí vejo o time dele. Aí tá [sic] lá: “Fluminense teve prejuízo de quatro milhões com jogador que vendeu”. Aí eu chego lá quando eu chego do [CUSM]: “Francisco!” Aí ele: “O que que é?”. Aí eu: “Olha só que furada, rapá [sic]! O Fluminense perdeu quatro milhões com esse jogador! Olha aqui que absurdo! Não aceito isso, cara! Isso é revoltante!”. Aí dou o jornal pra ele ler e vou embora. Já faço assim há dois anos. Aí ele acabou acostumando. Entendeu? Só esse tipo de contato que eu tenho com ele.
Tania sublinha o fato de ser vista como uma pessoa qualquer pela vizinhança, e não como usuária da saúde mental. [...] tem uma passarela até chegar na minha casa. Tem os comerciantes. Aí eu cumprimento um a um. A moça do peixe, o senhor do armarinho... eles pensam que eu venho trabalhar, que eu saio no mesmo horário e chego, mais ou menos, no mesmo horário. “Ah! Você foi trabalhar?” “Não. Eu faço tratamento”. Mas nunca entrei em detalhes... eles não sabem que eu tenho esse problema. Pensam que eu saio para trabalhar.
Luiz Eduardo traz um outro tipo de experiência, no caso, a presença cotidiana do estigma: Aí tem um pessoal lá [na vizinhança] que fala até assim: “Oh, não esquece do remédio, não”. Ele vê na igreja um espaço de sociabilidade, mas nem sempre é fácil estabelecer relações. É que, na igreja, às vezes a pessoa não tá [sic] com o espírito santo dentro de si, aí fala uma palavra pesada, uma atitude grotesca. Uma má interpretação. Aí a gente fica sentido, né. Mas aí a gente toca a bola pra frente. É o que eu falo. No [CUSM], eu cuido da minha mente. Na igreja, eu cuido da minha alma. [...] Um complementa o outro. E na igreja eu sou recepcionista. Participo do grupo da família. Eu custei a achar um grupo que eu gostasse. Porque eu participava de um grupo de homens... E aí muita piadinha, muita brincadeirinha, muito “forinha” [sic]... Aí eu não gostei muito não.
A busca por amizades, pelo laço social, aparece de forma recorrente em sua narrativa. Às vezes eu fico chateado quando o pessoal esquece de mim, sabe? Fico no banco esquecido. [...] Tem um pessoal lá que vai casar e eu fico pensando “poxa, tomara que eles não esqueçam”. É claro que eu vou dar um presentinho. Não vou abusar da festa [...].
Luiz Eduardo mostra como percebe e sente as implicâncias das quais é alvo, mas toca a bola pra frente. Implicância evangélica, né? Ou um implica com o outro, um chateia o outro. Só que, se eu fico muito tempo sem ir, eu sinto falta. [...] Porque todo mundo vai, né? Arrumadinho e tal. E quando eu chego à igreja e eu vejo o pessoal chegando, eu fico tão feliz. [...] Aí de vez em quando eu falto porque tá [sic] de implicância, pro pessoal sentir falta de mim...
Alguns dispositivos podem favorecer a troca comunitária. Como mostra a Figura 4, Luiz Eduardo fotografou a Academia da Terceira Idade (aparelhos para a prática de exercícios disponibilizados em praças públicas). Segundo Barnabé, esse espaço funciona como um ponto de convivência, onde não há exclusão. [...] Existe dia do aniversariante, [...] o grupo de pessoas, né, promovia passeios. Ali rola uma familiarização, não é só o exercício. [...].
Barnabé também conta que faz parte da associação de moradores do seu bairro, um espaço de trocas sociais, onde se diverte e se exercita. Contudo, o comportamento que ele percebe como alegria parece ser visto como excessivo pelo time de futebol da associação, tendo causado sua suspensão por três meses. Sua fala diz de uma expectativa social de que seus comportamentos sejam disfarçados, numa espécie de mimetização da normalidade.
Estou no time da associação. Já fui suspenso. [...] Porque eu falo muito. [...] pelada é o nome popular que dá, é várzea, né, tem que ter alegria. Jogar contra surdos e mudos, eu já joguei, [...] quando eles fizeram um gol, como é que eles comemoram o gol? Bate [sic] palma [...] E eles querem que eu fique surdo, mudo, cego e tudo, jogando bola. Eu falei: “Não... não tenho... o meu temperamento não vai poder mudar”. [...] Não somos robô [sic]. O robô que é programado pra fazer só aquilo. [Risos] Porque a mesmice é tolice. Fazer a mesma coisa, o mesmo tempo. Eu acho isso tolo [risos].
No entanto, a medida disciplinar não foi capaz de barrar a sede de bola de Barnabé, que diz: eu fui no peito e na raça. Eu fui pra lá de manhã [...] o primeiro a chegar que coloca o nome lá na lista indiana. Aí botei o meu nome lá [...] sorte minha que faltou muita gente, não tinham outro artifício se não me colocasse. Ia [sic] jogar com menos um, menos dois, menos três. “É melhor botar ele [sic]. Deixa ele [sic] jogar.” Aí anistiaram. Aí domingo agora eu vou de novo [risos]. Aí eu acho que eu usei a sapiência. Eles vão me discriminar, mas não vão me tolhir [sic].
A narrativa de Barnabé nos leva a pensar numa difícil balança. Viver em sociedade nos exige certas adaptações, necessárias ao convívio social, mas em que ponto a mesmice se torna tolice?
Este episódio é apenas um exemplo de outras situações que os usuários atravessam no seu cotidiano. Barnabé conseguiu furar a bolha da exclusão com sua sapiência, mas sabemos que nem todas as histórias são assim. O próprio Barnabé nos mostra o outro lado da moeda. Ele fotografou o muro que divide os fundos de sua casa com a casa da vizinha (Figura 5). Barnabé conta que ela reclamou da umidade e quis fechar integralmente a divisão entre as casas, impedindo a entrada de vento e sol na sua residência.
A reforma psiquiátrica conseguiu romper com os muros de isolamento das instituições asilares. Mas Barnabé aponta que nosso desafio maior é a reforma de mentalidades, cuja complexidade se mostra nessas vinhetas do cotidiano que tamponam ao invés de ventilar. Como nos diz Bezerra Júnior77 Bezerra Junior B. Desafios da reforma psiquiátrica no Brasil. Physis 2007;17(2):243-250.: “Mais do que buscar a aceitação de uma nova política assistencial, o desafio nesse campo é produzir uma nova sensibilidade cultural para com o tema da loucura e do sofrimento psíquico” (p. 247).
Barnabé busca entender que outros motivos podem ter influenciado a obra do muro. [...] Não sei se é por medo, eu não cheguei nem a questionar isso. Só vem em minha mente essa lembrança porque ela talvez saiba que eu tenho essa enfermidade mental, né, e eu tô [sic] correndo um risco pra garota [filha da vizinha]... alguma coisa... [emociona-se], mas nada, nada que eu deixei ultrapassar, assim, da minha integridade [...].
Barnabé também reflete sobre as ocasiões em que não foi o melhor dos vizinhos: [...] levei transtorno porque quis tocar... instrumento fora de hora [risos]. Aí veio o companheiro dela falar que ia chamar a polícia porque eu estava... burlando a lei do silêncio. [...] Natal eu acho que é alegria. Botei a música alta, toquei violão, toquei pandeiro [...]. Nem tudo são flores, mas Barnabé também relata situações de acolhimento da comunidade, como as aulas de violão que faz na Igreja.
Gustavo fotografou um caixa eletrônico de banco para dizer dos desafios para uma vida autônoma na comunidade. [...] o paciente psiquiátrico pra fazer um saque nessa máquina, ele tem que saber onde ele vai inserir o cartão, ele tem que, na tela, botar o dedo na opção correta porque na tela vai aparecer extrato, saldo, pagamento, saque. [...] Depois ele tem que saber a senha dele. Quer dizer, um paciente psiquiátrico, hoje em dia, é uma pessoa moderna.
Para Luiz Eduardo, a fala de Gustavo demonstra a importância da autonomia do usuário, em oposição a uma condição excessivamente tutelada. Eu acho que ele quis transmitir que ele tem uma certa autonomia de mexer no caixa eletrônico, ser independente, não precisar de cuidados exagerados [...].
Barnabé compartilhou sua dificuldade para mexer no caixa eletrônico, necessitando de ajuda. Apesar de perceber o incômodo dos funcionários, Barnabé segue utilizando seus serviços em uma atitude afirmativa da sua cidadania. Puxar extrato, eu já estou, como é que se diz? Autoconfiança. Mas para fazer o pagamento é que eu, todo mês, eu peço auxílio. Eu vou na mesma agência bancária [...] eu acho que eles já estão por aqui comigo, sabe, está quase transbordando [risos]. Mas eu continuo indo lá.
Tania verbalizou como essa ajuda do funcionário do banco não é emancipadora. Eu também peço [auxílio], mas ao invés dele ensinar pra gente, ele faz pra gente. [...] Eu queria aprender, mas eles não ensinam.
Considerações finais
O método fotovoz permitiu o acesso a lugares, pessoas e circunstâncias aos quais dificilmente um pesquisador teria algum tipo de entrada. Entretanto, fotografar algo que é de ordem subjetiva foi um desafio para os participantes, sintetizado na pergunta de Guilherme: “Como é que eu vou fotografar o que se passa na minha cabeça?” Contudo, ao longo da pesquisa os participantes nos mostraram justamente uma experiência que se passa fora dela, ou seja, na convivência com as pessoas e na relação com lugares e objetos, ressaltando a importância do território e das redes comunitárias. Esse dado nos revela que a experiência de mente, corpo e ambiente não se dá de forma separada, como habitualmente fomos educados a pensar, sendo nessa articulação que a saúde se vincula à prática da cidadania.
Outra importante consequência clínica foi justamente a dimensão participativa do trabalho de campo, esse fazer e pensar junto com o usuário como uma espécie de ética norteadora. Que esta pesquisa, ao elevar a voz dos usuários com transtornos mentais graves, possa contribuir para a valorização e inclusão da experiência de adoecimento na prática clínica. Se as narrativas dos participantes nos apontam que as respostas sociais ao transtorno podem ser piores do que o transtorno em si, então o profissional não deve atentar somente para sinais e sintomas. Deve se voltar também para o território, para as implicações que ser usuário da saúde mental traz para as relações que o sujeito estabelece com o seu entorno. Assim, a atuação do profissional não pode se restringir ao usuário, há de se ter uma atuação cultural, buscando uma reforma de mentalidades.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
11 Mar 2022 - Data do Fascículo
Mar 2022
Histórico
- Recebido
31 Out 2020 - Aceito
22 Nov 2021 - Publicado
24 Nov 2021