“Eles vão certeiros nos nossos filhos”: adoecimentos e resistências de mães de vítimas de ação policial no Rio de Janeiro, Brasil

Verônica Souza de Araújo Edinilsa Ramos de Souza Vera Lucia Marques da Silva Sobre os autores

Resumo

Este artigo trata das experiências de mulheres negras organizadas em grupos de ativismo social para lutar por justiça pelas mortes dos seus filhos, vítimas da atuação violenta de agentes do Estado. Essas mortes são analisadas como parte do genocídio da população negra e são resultado da ação de um Estado que opera no modo necropolítico, em que o racismo é ferramenta ideológica para a produção de descartabilidade de corpos negros. Neste trabalho, a partir dos relatos de quatro mulheres residentes em territórios dominados pela violência armada no Rio de Janeiro, conhecemos a forma como elas se organizam politicamente na luta por justiça, memória e reparação; e também seus adoecimentos e estratégias de cuidado individual e coletivo. Observamos a ausência de abrigo das suas demandas pelo sistema de saúde e pelas políticas de assistência social, ao passo que o espaço do ativismo se destaca como produtor de cuidado e acolhimento.

Palavras-chave:
Maternidade negra; Genocídio negro; Movimento de mães; Racismo; Violência do Estado

Introdução

A violência possui um impacto cada vez maior sobre a saúde pública no Brasil. Ela não se manifesta apenas por meio da agressão direta (física, psicológica, sexual), mas está também imbricada no tecido social, “reproduzindo-se nas estruturas, nas relações e nas subjetividades, de maneira insidiosa e persistente”11 Minayo MC. Conceitos, teorias e tipologias de violência: a violência faz mal à saúde individual e coletiva. In: Njaine K, Assis SG, Constantino P, organizadoras. Impactos da violência na saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 21-42.(p.13). Em 2001, o Brasil reconheceu a violência como um problema de saúde e passou a desenhar políticas públicas para a redução do seu impacto sobre a morbimortalidade no país11 Minayo MC. Conceitos, teorias e tipologias de violência: a violência faz mal à saúde individual e coletiva. In: Njaine K, Assis SG, Constantino P, organizadoras. Impactos da violência na saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 21-42..

O último Atlas da Violência, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), evidenciou que as principais vítimas da letalidade violenta no país são jovens negros do sexo masculino. Em 2018, houve 57.956 homicídios no Brasil; desses, 75,7% eram pessoas negras (soma de pretos e pardos), o que perfaz uma taxa de mortalidade de 37,8 por 100 mil, ao passo que para o restante da população, aqui incluídos brancos, indígenas e amarelos, essa taxa é de 13,922 Cerqueira D, Bueno S, organizadores. Atlas da Violência 2020. Brasília: Ipea; 2020.. A taxa de homicídio vem apresentando um forte crescimento entre os negros nos últimos anos, e um decréscimo entre os brancos; além de negros, a maior parte das vítimas de homicídio no país, 53,3% do total, são jovens (o grupo entre 15 e 29 anos)22 Cerqueira D, Bueno S, organizadores. Atlas da Violência 2020. Brasília: Ipea; 2020.. Parte desses homicídios decorre de intervenção policial. A análise de 5.896 casos ocorridos entre 2015 e 2016 pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelou que, entre as vítimas cuja informação sobre raça/cor estava disponível, 76,2% eram negras33 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2018..

A pesquisadora baiana Vilma Reis cunhou a categoria jovens-homens-negros para denunciar a indissociabilidade destas dimensões identitárias. Para a autora, elas são “vivenciadas de maneira interseccionalizada, e quando uma ou duas dessas dimensões são ativadas pelas forças de segurança do Estado, em geral, a coletividade negra está em risco”44 Reis V. Atucaiados pelo Estado: as políticas de segurança pública implementadas nos bairros populares de Salvador e suas representações (1991-2001) [dissertação]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2013.(p.14).

As mães e demais familiares desses jovens são as pessoas que estão mais sujeitas aos adoecimentos que se instalam no entorno dessa perda violenta. Este artigo investiga os impactos do racismo e da violência do Estado sobre a saúde de mulheres que se organizam politicamente em busca de justiça após o homicídio dos seus filhos por agentes do Estado. Essas mulheres são negras, em sua maioria, e denunciam as mortes dos seus filhos como parte do genocídio da população negra. Argumentamos que o racismo ao qual essas mulheres estão submetidas se encontra na centralidade dos seus processos de adoecimento.

O objetivo deste estudo é conhecer as experiências de mães integrantes de grupos de ativismo social que perderam seus filhos pela ação de agentes do Estado, investigar seus adoecimentos, estratégias de cuidado individual e coletivo e a sua luta por justiça, reparação e direito à memória de seus entes queridos.

Método

Apresentamos aqui parte dos resultados da dissertação de mestrado defendida pela primeira autora em 2019, na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fiocruz. Trata-se de uma pesquisa qualitativa da qual participaram quatro mulheres moradoras de territórios marcados pela violência armada na cidade do Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense, todas elas ativistas em grupos, em geral, identificados como de mães de uma determinada localidade geográfica. Estes grupos se percebem como parte de um movimento maior, que inclui também familiares de vítimas da violência do Estado e que se autodenomina “Movimento de Mães e Familiares de Vítimas de Terrorismo do Estado”. Vale esclarecer que opta-se pelo uso do termo ativismo em detrimento de militância por se reconhecer sua proximidade com a forma de organização deste movimento: horizontal, em rede e que prioriza a construção de consensos55 Sales ALLF. Militância e Ativismo: Cinco ensaios sobre ação coletiva e subjetividade [tese]. Assis: Universidade Estadual Paulista; 2019..

O meu primeiro contato com integrantes desse movimento ocorreu em 2017, a partir de uma oficina de autocuidado para mulheres negras que facilitei em Criola, uma organização da sociedade civil fundada em 1992, no Rio de Janeiro, que atua na defesa e promoção dos direitos das mulheres negras. Como desdobramento dessa experiência, passei a acompanhar atividades do movimento, como encontros, falas em eventos acadêmicos e julgamentos de policiais. Essa aproximação motivou o convite a algumas das ativistas para participarem da pesquisa. Cabe assinalar que eu, a primeira autora deste artigo, sou uma mulher negra, o que pode ter facilitado e mesmo viabilizado certas trocas e diálogos.

A pesquisa foi aprovada em junho de 2018 pelo Comitê de Ética em Pesquisa da ENSP, sob o parecer 2.703.350. Todas as participantes foram informadas sobre os objetivos do estudo, os eventuais riscos e formas de mitigá-los, bem como sobre seu direito à confidencialidade e à privacidade. Para tal, os nomes das interlocutoras e dos seus filhos foram alterados e os bairros onde residem foram omitidos, elas são aqui chamadas de Dandara, Lélia, Luíza e Carolina. Todas essas informações constam do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado pelas participantes. No Quadro 1, elencamos informações sobre as participantes deste estudo.

Quadro 1
Dados socioeconômicos das interlocutoras da pesquisa.

O material empírico foi coletado por meio de um grupo focal, no qual as participantes foram convidadas a falar sobre sua percepção acerca da sua relação com o Estado e os sentidos de luta, memória e reparação. Além disso, foram realizadas quatro entrevistas individuais semiestruturadas. Esse acervo foi abordado por meio da Análise de Conteúdo, proposta por Bardin66 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1979., à luz de epistemologias negras.

Este artigo está dividido em três partes. Na primeira, apresentamos uma discussão teórica sobre o racismo, seu impacto sobre a saúde e sobre a produção do genocídio da população negra. Na segunda, realizamos uma apresentação do Movimento de Mães. Na terceira parte, são abordados os adoecimentos acumulados por essas mulheres, suas estratégias de cuidado pessoal e coletivo e suas redes de apoio.

Racismo e genocídio da população negra

O conceito de raça é socialmente construído e serve a uma contingência, ao jogo de poder decisório que separa o Eu dotado de subjetividade do Outro construído como “Não-Ser”77 Carneiro S. Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2005.. Para Sueli Carneiro, a experiência negra no Brasil é marcada pelo assujeitamento da sua individualidade pela racialidade, produzida como marcador de inferioridade, de modo que a construção do negro como sujeito político passa “pela resistência a esse modo de subjetivação”77 Carneiro S. Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2005.(p.9). A reificação do negro no lugar do Outro, a sua animalização via produção de discursos e práticas racistas, culminando na própria interdição da sua existência são processos que engendram diversas formas de adoecimento entre pessoas negras inseridas em sociedades estruturalmente racistas, como é o caso da brasileira88 Almeida S. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento; 2018.

9 Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA; 2008.

10 Kilomba G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó; 2019.

11 Werneck J. Ou belo ou o puro? Racismo, eugenia e novas (bio)tecnologias. In: Rotania A, Werneck J, organizadoras. Sob o Signo das Bios: Vozes críticas da sociedade civil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2004. p. 49-62.
-1212 Werneck J. Racismo institucional e saude da população negra. Saude Soc 2016; 25(3):535-549..

Frantz Fanon afirma que “[u]ma criança negra, normal, tendo crescido no seio de uma família normal, ficará anormal ao menor contacto com o mundo branco”99 Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA; 2008.(p.129). Ele denuncia a experiência de existir em contato contínuo com o ódio racial e o seu potencial adoecedor:

Era a raiva; eu era odiado, detestado, desprezado, não pelo vizinho da frente ou pelo primo materno, mas por toda uma raça. Estava exposto a algo irracional. Os psicanalistas dizem que não há nada de mais traumatizante para a criança do que o contacto com o racional. Pessoalmente eu diria que, para um homem que só tem como arma a razão, não há nada de mais neurotizante do que o contato com o irracional99 Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA; 2008.(p.110).

No Brasil, a ideologia da supremacia branca reforçou o mito da democracia racial que obscurecia a posição social inferiorizada do negro1313 Souza NS. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal; 1990.. Essa mesma ideologia produziu discursos e práticas que estimulavam um processo de “branqueamento” da população negra, que resultaria em sua incorporação na sociedade brasileira via assimilação. Desse modo, os negros brasileiros, além de não encontrarem nenhuma concepção positiva sobre si, foram estimulados a buscar estratégias para a produção do seu próprio desaparecimento como forma de inserção social1313 Souza NS. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal; 1990..

A construção do mito do “homem negro bandido” por teóricos do racismo científico, como Nina Rodrigues, a partir da segunda metade do século XIX, teve importante papel para a construção de uma criminologia que colocava o negro como principal suspeito das contravenções cometidas no país1414 Rocha LO. Outraged Mothering: Black women, racial violence, and the power of emotions in Rio de Janeiro's African diaspora [tese]. Austin: University of Texas; 2014.. Ideias como as de Rodrigues serviram para justificar a perseguição policial contra homens negros no pós-abolição imediato, e foram essenciais para naturalizar as práticas de extermínio da população jovem negra ainda hoje vigentes no país.

O uso do termo genocídio para se referir aos diversos tipos de violência sofrida pelos afrodescendentes no Brasil é uma bandeira do Movimento Negro brasileiro há décadas1515 Nascimento A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva; 1978.. Essa reivindicação parte da premissa de que o racismo estrutura a violência no país e que esta possui cor, gênero e classe social1515 Nascimento A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva; 1978.

16 Rocha LO. Black mothers' experiences of violence in Rio de Janeiro. Cult Dyn 2012; 24(1):59-73.

17 Smith CA. Facing the Dragon: Black Mothering, Sequelae, and Gendered Necropolitics in the Americas. Transform Anthropol 2016; 24(1):31-48.
-1818 Vargas JC. A diáspora negra como genocídio: Brasil, Estados Unidos ou uma geografia supranacional da morte e suas alternativas. Rev ABPN 2010; 1(2):31-66..

Vargas1818 Vargas JC. A diáspora negra como genocídio: Brasil, Estados Unidos ou uma geografia supranacional da morte e suas alternativas. Rev ABPN 2010; 1(2):31-66. afirma que o genocídio antinegritude brasileiro conta com outros fenômenos além da violência letal policial, tais como: elevados índices de mortalidade infantil; morte prematura decorrente de falta de acesso a serviços de saúde; restrição de oportunidades educacionais e econômicas; altos e persistentes índices de desemprego; incidência aumentada de doenças infecciosas; encarceramento em massa e depressão crônica. A esterilização desproporcional de mulheres negras efetivada nos anos 1980 e 19901919 Scavone L. Direitos reprodutivos, políticas de saúde e gênero. Estud Sociol 2007; 5(9):1-18., bem como a maior taxa de mortalidade materna nesse grupo - cujas causas são preveníveis em cerca 92% dos casos2020 Ferreira L. Mães mortas: onde falha o sistema de saúde que negligencia a vida das mulheres negras [Internet]. Gênero e Número; 2018 [acessado 2020 out 10]. Disponível em: http://www.generonumero.media/racismo-mortalidade-materna/.
http://www.generonumero.media/racismo-mo...
-, também são aspectos do genocídio negro.

Esse conjunto de agravos compõe parte do continuum do genocídio negro, noção elaborada pela antropóloga Nancy Sheper-Hughes, definida como um fenômeno “socialmente ratificado e frequentemente percebido por autores, colaboradores, espectadores - e mesmo pelas próprias vítimas - como esperado, rotineiro e até mesmo justificado”1818 Vargas JC. A diáspora negra como genocídio: Brasil, Estados Unidos ou uma geografia supranacional da morte e suas alternativas. Rev ABPN 2010; 1(2):31-66.(p.47). Portanto, parte da estrutura que permite que o genocídio negro continue operando se deve à naturalização das práticas que compõem esse continuum, algo que também se observa no sistema de saúde, quando se naturaliza a desigualdade na distribuição das doenças segundo raça/cor.

O Ministério da Saúde instituiu, em 2009, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNAIPN), por meio da Portaria GM/MS nº 992. Essa política é um reconhecimento, ainda que tardio, pelo Estado brasileiro da necessidade de se implementar mecanismos de promoção da saúde da população negra e de enfrentamento ao racismo institucional no Sistema Único de Saúde (SUS).

Entretanto, esse mesmo Estado é um dos principais perpetradores da violência letal contra jovens-homens-negros33 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 2018.. A violência policial contra a população negra reitera as desigualdades estruturais geradas pelo racismo, a partir da institucionalidade, repercutindo sobre toda essa comunidade. Habitualmente, essa violência é banalizada pelos veículos de mídia e pelo senso comum, de modo que mortes de jovens negros nas favelas e em outras áreas dominadas pela violência armada provocam pouca ou nenhuma comoção social, nem mesmo estranheza2121 Biancharelli A. A morte vista da redação: como os jornalistas lidam com a morte. In: Franco MHP, organizador. Uma jornada sobre o luto: a morte e o luto sob diferentes olhares. Campinas: Livro Pleno; 2002..

Do luto ao ativismo

No início da década de 1990, como reação ao crescente número de assassinatos e desaparecimentos de jovens em grandes cidades, teve início a organização de um ativismo de mães em torno da luta por investigação e justiça. Os grupos precursores desse movimento foram as Mães de Acari (1990) e as Mães da Cinelândia (1993), no Rio de Janeiro2222 Graça AMB. Da casa às ruas: o movimento de mães em São Paulo [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2014.. Além desses grupos, por força da continuidade de ações violentas, também por agentes do Estado, produzindo novos homicídios e chacinas, outros grupos se organizaram, a exemplo das Mães de Manguinhos, Mães da Maré, Mães da Baixada e Movimento Moleque. Elas trazem em suas falas um discurso cada vez mais impregnado pela luta antirracista, como se observa na fala de Mônica Cunha, uma das ativistas mais atuantes do Movimento de Mães do Rio de Janeiro: “porque esse é o objetivo, colocar para o mundo que o Brasil é um país racista, e que o primeiro motivo para os nossos filhos terem sido mortos é serem negros, filhos de mulheres negras”2323 Sansão L. Projeto de Lei que homenageia vítimas de violência de Estado é aprovado no RJ [Internet]. Ponte Jornalismo; 2017 [acessado 2018 jan 5]. Disponível em: https://ponte.org/projeto-de-lei-que-homenageia-vitimas-de-violencia-de-estado-e-aprovado-no-rj/.
https://ponte.org/projeto-de-lei-que-hom...
(p. sp).

Além dessas mães organizadas no Rio de Janeiro, há outros grupos semelhantes em outros estados do país, como as Mães de Maio de São Paulo, as Mães do Xingu, as Mães do Ceará, entre outros que não serão abordados neste artigo, mas que marcam a nacionalização desse movimento social.

Esses grupos surgem em face da ausência de respostas dos órgãos oficiais diante das mortes e desaparecimentos dos seus filhos. As mães buscam na ação coletiva uma forma de pressionar agentes públicos e de denunciar para os demais setores da sociedade as frequentes violações de direitos a que estão submetidas. As principais pautas desse movimento são a denúncia do encarceramento em massa e a luta por justiça, memória e reparação para casos de desaparecimento forçado e homicídios praticados por agentes do Estado.

Nesse percurso, essas mulheres são frequentemente caracterizadas como “mães de bandidos”, denominação repetida nos espaços policiais em que circulam em busca de justiça, bem como em programas de televisão de abrangência nacional2222 Graça AMB. Da casa às ruas: o movimento de mães em São Paulo [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2014.,2424 Araújo FA. Do luto à luta: A experiência das mães de Acari [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2007.. Esta designação tem o objetivo de deslegitimá-las diante da opinião pública e desmobilizar suas lutas.

Três das participantes desta pesquisa tiveram seus filhos jovens mortos por agentes de segurança pública do Estado. A quarta mãe com quem conversamos não soube informar se os responsáveis pela morte eram milicianos ou agentes policiais, em função de uma interposição dos dois grupos no território onde reside. Todas elas partiram para a luta por justiça após a perda violenta dos seus filhos.

No Brasil, assim como em outros países da diáspora africana, os grupos de mães e familiares de vítimas de terrorismo do Estado são formados quase que na sua totalidade por mulheres1616 Rocha LO. Black mothers' experiences of violence in Rio de Janeiro. Cult Dyn 2012; 24(1):59-73.,1717 Smith CA. Facing the Dragon: Black Mothering, Sequelae, and Gendered Necropolitics in the Americas. Transform Anthropol 2016; 24(1):31-48.. São mães, irmãs, avós e filhas de uma maioria dos jovens-homens-negros, que são as principais vítimas desse tipo de violência. Esse ativismo é marcado por uma clara cisão de gênero - de um lado estão os homens sistematicamente assassinados; do outro, as mulheres, principalmente as mães, lutando por justiça, memória e reparação.

Quando questionadas sobre a ausência dos pais ou outros companheiros na luta, elas não têm uma resposta específica, mas todas relataram o afastamento do pai após a morte do filho, principalmente após se aproximarem do ativismo. Para Carolina, “o homem é mais seco, já a mulher não, a mulher é mais frágil, tem mais sentimento. Ou é porque é mãe, eu não sei. [...] Os homens, pra eles, acabou. Enterrou, acabou. É vida que segue”.

Enquanto acompanhei esse movimento social, tanto em atos quanto nos encontros nacionais, observei a presença de apenas um pai de vítima de violência do Estado entre as ativistas, um universo de dezenas de mulheres. Todavia, o presente estudo não teve como um dos seus objetivos a busca por respostas para essa ausência, lacuna que merece ser preenchida por outras investigações.

A categoria “luta” é diversas vezes acessada como a síntese das linguagens corporais, de afetos, das idas a julgamentos, das manifestações em espaços públicos, enfim, do conjunto de ações que fazem parte da vivência ativista2525 Vianna A, Farias J. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cad Pagu 2011; 37:79-116.. O filósofo camaronês Achille Mbembe define a luta como o trabalho necessário para escapar da morte e também para denunciá-la, promovendo a cura de si e da comunidade. Essa definição está ancorada na leitura que Mbembe faz dos papéis da violência e da luta na obra fanoniana:

Estritamente falando, a vida é aquilo que a luta tiver produzido. A luta, enquanto tal, tem uma tripla dimensão. Em primeiro lugar, visa destruir aquilo que destrói, amputa, desmembra, cega e provoca medo e raiva. A seguir, tenta tratar e, eventualmente, curar aqueles e aquelas que o poder feriu, estuprou, torturou, encarcerou ou, simplesmente, fez enlouquecer. Sua função participa, portanto, do processo geral da cura. Por fim, busca sepultar todos que tombaram, “abatidos pelas costas”. Desse ponto de vista, desempenha uma função de sepultamento2626 Mbembe A. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1; 2018.(p.291-292).

Do outro lado desse embate, encontra-se o Estado, que, a exemplo do observado por Vianna e Farias2525 Vianna A, Farias J. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cad Pagu 2011; 37:79-116., passa a assumir uma posição quase corporificada e masculina. Ele passa a ser apontado pelas mães como o responsável por ter trazido a “guerra” para dentro das suas casas, por ter assassinado seus filhos, por ter destruído suas famílias. Estabelece-se uma relação de contraste Mãe x Estado, estruturalmente desigual e extremamente violenta contra essas mães, seus filhos e sua coletividade, como denunciou Dandara:

Essa rede de mães se organiza e isso vai muito contra o Estado, porque eles vão certeiros nos nossos filhos. Esse Estado, esse sistema criminoso é bem organizado. No momento em que eles tiram a vida dos nossos filhos, eles desestruturam toda a família. E aí a gente se levanta, essas mães que eles queriam que fossem embora junto com os filhos, “o negócio é elas adoecerem também, a família adoecer e morrer!”. Acho que é uma forma de acabar com os pobres, os favelados, os periféricos. Esse mesmo Estado que não ajuda a gente em nada, é o mesmo Estado que tira a vida dos nossos filhos, destrói a nossa família, nos adoece. Qual a relação positiva que eu vou ter com esse Estado? (Dandara para o Grupo Focal).

Essa constatação elaborada por Dandara se correlaciona com a noção de necropolítica, cunhada por Mbembe2727 Mbembe A. Necropolítica. Arte Ensaios 2016; 32:122-151., definida como as práticas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte e que reconfiguram profundamente as relações de resistência, sacrifício e terror. Para o filósofo, o Estado exerce o seu poder de soberania definindo quais vidas são descartáveis:

A expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder2727 Mbembe A. Necropolítica. Arte Ensaios 2016; 32:122-151.(p.123).

No modo necropolítico de exercício do poder estatal, “a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado”2727 Mbembe A. Necropolítica. Arte Ensaios 2016; 32:122-151..

Os Movimentos de Mães identificam a raça como um dos principais elementos para a descartabilidade das vidas dos seus filhos e comunidades. O processo de construção de consciência racial dessas mulheres é muitas vezes marcado pela observação da semelhança racial entre as que são chamadas de “mães de bandido”, as que se organizam em filas para visitar os filhos encarcerados e as que choram a morte dos seus filhos vítima de violência do Estado.

O seu ativismo representa, também, uma tentativa de resgate, no debate público, da humanidade negada aos seus filhos. A busca por reparação moral diante da opinião pública ganha, para essas mulheres, um lugar tão importante quanto a luta por punição dos envolvidos nesses crimes. A preservação da memória de seus filhos é uma das razões que as fazem continuar no ativismo. Elas costumam repetir que seus filhos estão vivos por meio das suas vozes1414 Rocha LO. Outraged Mothering: Black women, racial violence, and the power of emotions in Rio de Janeiro's African diaspora [tese]. Austin: University of Texas; 2014.,2525 Vianna A, Farias J. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cad Pagu 2011; 37:79-116.,2828 Caramante A. Mães em Luta: Dez anos dos crimes de maio de 2006. São Paulo: Ponte Jornalismo; 2016.:

Quando meu filho morreu, ele foi chamado de bandido pelo Wagner Montes. Uma pessoa que acordava às quatro da manhã ser tachada de bandido? (Lélia, entrevista individual).

Quando ele foi assassinado, o Wagner Montes falou na televisão que meu filho era bandido. Eu me desesperei vendo o rostinho dele na TV, meu filho morreu uma segunda vez ali. [...] Eles tratam sempre de colocar como se as pessoas que moram na favela pudessem ser mortas. Uma das coisas que eu mais me ponho de pé nessa luta é eu poder colocar a camisa com a foto do meu filho, estampar o rosto dele no meu peito e levar ele pras pessoas saberem. Ele tem família, ele tem mãe, ele tem amigos, pessoas que sofrem até hoje pela ausência dele. A gente não tem que se esconder, quem tem que se esconder são esses assassinos (Dandara, entrevista individual).

Essas mães enfrentam a exposição em programas de televisão que acompanham as notícias policiais, amplificando e naturalizando a violência. O que se observa é a produção de um populismo penal midiático que lucra com a exploração de crimes e estimula a vingança contra um Outro construído como “bandido”, quase sempre pobre, negro e anônimo2121 Biancharelli A. A morte vista da redação: como os jornalistas lidam com a morte. In: Franco MHP, organizador. Uma jornada sobre o luto: a morte e o luto sob diferentes olhares. Campinas: Livro Pleno; 2002..

Para Carolina, cujo filho já havia sido preso em ocasião anterior, a entrada na luta foi ainda mais difícil, tendo sido desencorajada por diversas vezes. Ela conta que chegou a ouvir de vizinhos “vai lutar por quê, sua filha da puta? se ele era envolvido?”, mas relata que seu ativismo é também para encorajar outras mulheres:

Se ele foi abordado e depois foi morto, então aquela mãe tem que tá sim na luta. Não é porque tava traficando, que ela tem que deixar pra lá. [...] A gente vê muito caso disso, que ele já rendido, foi morto, mas tava roubando, aí a mãe não cai na luta (Carolina, entrevista individual).

A realidade que o Movimento de Mães enfrenta é a de impunidade. Segundo relatório da Anistia Internacional, estima-se que apenas 5% a 8% dos homicídios no país sejam elucidados2929 Anistia Internacional. Você matou meu filho!: Homicídios cometidos pela Polícia Militar na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anistia Internacional; 2015.. Nos casos registrados como “homicídio decorrente de intervenção policial”, a impunidade é mais acentuada, muito em decorrência de graves falhas no processo de investigação2929 Anistia Internacional. Você matou meu filho!: Homicídios cometidos pela Polícia Militar na Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anistia Internacional; 2015.. A responsabilização legal dos agentes públicos, além da reparação financeira, exerce um papel de efetivação da justiça e de combate à cultura de impunidade, que encoraja a ação violenta dos agentes de segurança nas favelas.

Para Carolina, a impunidade é um fator diretamente ligado à repetição de casos similares ao seu. Ela segue argumentando que a sua luta por justiça é também contra a impunidade, mas que a observação das repetições dos casos a desanima:

Queria que eles pagassem pelo erro deles, porque ia saber que não era pra tá fazendo isso com outras pessoas, mas parece que quanto mais prende, mais eles faz. Não adianta nada a gente querer pedir justiça porque vão prender, depois os cara solta, começa a matar de novo. Se expulsar vai virar miliciano. Aí que vai matar com toda força! Às vezes a gente se sente inútil, porque tá lutando, tá lutando, tá lutando e vê essas coisas acontecendo (Carolina, entrevista individual).

Em face dessa realidade tão adversa, para Smith1717 Smith CA. Facing the Dragon: Black Mothering, Sequelae, and Gendered Necropolitics in the Americas. Transform Anthropol 2016; 24(1):31-48., se a necropolítica antinegritude, empregada como política transnacional, busca exterminar corpos negros, então, a maternidade negra é a antítese deste processo, dada a sua inerente função de reprodução e preservação das vidas negras. Como apontado por Audre Lorde, “[n]ão era para termos sobrevivido”, mas mães negras sempre criaram estratégias de sobrevivência1414 Rocha LO. Outraged Mothering: Black women, racial violence, and the power of emotions in Rio de Janeiro's African diaspora [tese]. Austin: University of Texas; 2014.(p.192).

A morte brinca com balas nos dedos gatilhos dos meninos. Dorvi se lembrou do combinado, o juramento feito em voz uníssona, gritado sob o pipocar dos tiros: - A gente combinamos de não morrer!3030 Evaristo C. Olhos d'água. Rio de Janeiro: Pallas; 2014.(p.99).

Violência e adoecimento

Uma das únicas publicações dedicadas à saúde da mulher negra no Brasil, O Livro da saúde das Mulheres Negras, possui um capítulo dedicado exclusivamente às perdas para a violência e suas consequências para a saúde. Neste capítulo, Davis descreve experiências de desassistência compartilhadas por sua comunidade:

Acredito que as mulheres negras estão profundamente acostumadas com a tragédia. Nós esperamos a tragédia. A morte não é uma estranha em nossas vidas, em nossos mundos. Perdemos nossos pais devido a hipertensão e ataques do coração; perdemos nossos maridos e amantes vitimados pela violência policial; perdemos nossos filhos nas prisões ou no tráfico de drogas3131 Davis BM. Falando da perda: Hoje estou mal, espero que você entenda. In: Werneck J, Mendonça M, White EC, organizadoras. O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Pallas; 2006. p. 103-110.(p.108-109).

A literatura científica se refere aos familiares e amigos de vítimas de homicídio como co-vítimas ou sobreviventes de homicídio3232 Miranda AO, Molina B, MacVane SL, Coping with the murder of a loved one: Counseling survivors of murder victims in groups. J Spec Group Work 2003; 28(1):48-63.. Por se tratar de um crime perpetrado com ódio e intenção de matar, o processo de compreensão e ressignificação da morte é muito difícil para os familiares. As falas das nossas interlocutoras mostram que esse sofrimento se prolonga por tempo indeterminado, sendo recorrente a afirmação de que essa é uma dor que nunca vai passar:

Isso de dizer que vai esquecer é tudo mentira. Porque cada dia que passa a gente lembra mais dos nossos filhos, a dor piora mais. [...] Tem hora que você se levanta e fica abafada, parece que você vai morrer (Luíza, entrevista individual).

Em revisão sistemática sobre sobreviventes de homicídio3333 Connolly J, Gordon R. Co-victims of Homicide: A Systematic Review of the Literature. Trauma Violence Abuse 2015; 16(4):494-505., os autores observaram que os efeitos psicológicos são os mais comuns, principalmente o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e ansiedade. Eles observaram também que o processo de luto tende a ser prolongado, por ter sido restringido ou obstruído por eventos relacionados ao homicídio, como procedimentos da justiça criminal, ameaças e estigma.

A perda de um filho em situação de violência, especialmente em um contexto que gera pouca solidariedade da opinião pública, impõe a essas mulheres um luto interrompido, suprimido, abafado. Piaza-Bonin et al.3434 Piazza-Bonin E, Neimeyer RA, Burke LA, McDevitt-Murphy ME, Young A. Disenfranchised Grief Following African American Homicide Loss: An Inductive Case Study. OMEGA (Westport) 2015; 70(4):404-427. chamam esse luto de disenfranchised grief, aqui traduzido como luto sem direitos, vivenciado quando a perda não pode ser abertamente reconhecida, publicamente lamentada ou não tem apoio da sociedade no seu entorno. Ele ocorre quando a comunidade deslegitima o luto das mães cujos filhos tinham envolvimento com o crime, ou quando a opinião pública aceita a criminalização da vítima como um fato e culpa a mãe pela morte do seu filho.

Para Butler3535 Butler J. Precarious life: the powers of mourning and violence. London, New York: Verso; 2004., o luto consiste num processo tanto individual quanto social. A perda inaugura o surgimento de um novo “eu” que passa a existir sem um “você”, de modo que, para além da solidão pessoal, o luto é experimentado no exercício das relações interpessoais e comunitárias. No caso das famílias de vítimas de homicídio que se encontram aguardando a resolução judicial do caso, o luto pode ser vivido como um processo sem fim, o que modifica os laços familiares e tem profundo impacto sobre suas relações.

As nossas interlocutoras relataram que a necessidade da repetição das histórias das mortes dos seus filhos, como parte da vivência ativista, afasta-as do convívio com alguns amigos e familiares, como contou Lélia sobre a perda de contato com suas irmãs e sua mãe. Carolina disse que o relacionamento com seu companheiro ficou insustentável após a morte do filho. E todas as entrevistadas relataram o afastamento do pai após terem ingressado no ativismo. Esses relatos evidenciam a solidão que marca a vivência desse tipo de luto.

Outra experiência compartilhada pelas mães foi o temor de que algo ruim pudesse acontecer com seus filhos. Lélia relatou que saiu da favela onde morava com os filhos ainda crianças, por medo de que eles fossem vítimas da violência, que começava a se intensificar no início dos anos 2000. Carolina também temia pela segurança do filho, porém ela refere um medo “do asfalto, da cidade”, em contraposição à segurança que sentia na favela, até a chegada da Unidade de Polícia Pacificadora:

Eu ficava tranquila, sabia que era um local que ele poderia andar tranquilo, nunca imaginei que ele ia ser morto dentro da favela. Poderia ser quando ele fazia as artes dele na rua, vinha na minha mente: “ele vai acabar sendo morto na cidade, como que vou achar esse moleque?” (Carolina, entrevista individual).

Rocha1414 Rocha LO. Outraged Mothering: Black women, racial violence, and the power of emotions in Rio de Janeiro's African diaspora [tese]. Austin: University of Texas; 2014. definiu esse temor como “iminência ansiosa”(p.155), que compreende o período em que as mães tentam desesperadamente tirar seus filhos da criminalidade ou outros processos perigosos que podem levá-los à morte. Esse medo parece pairar de forma constante sobre mães negras em sociedades racistas, gerando um estado de alerta que produz um cuidado recortado pelo medo da tragédia, da morte iminente. Esse é um medo fundamentado na realidade, parte do olhar sobre si e sobre o seu entorno.

Muitas vezes, essas mulheres permanecem vendo casos parecidos com os seus se repetindo e são obrigadas a “reviver” o enredo das violências a que foram submetidas. De modo que o diagnóstico de ansiedade, ou mesmo de síndrome do pânico, como o que foi recebido por Carolina, não dão conta de evidenciar as raízes dessa ansiedade, desse temor, que são fruto de injustiças e violências racialmente determinadas e naturalizadas na sociedade brasileira.

Todas as interlocutoras da pesquisa relataram ter recebido o diagnóstico de depressão após a perda dos seus filhos. Elas costumam usar o termo “queda” como sinônimo de depressão, ou de uma tristeza profunda que pode impossibilitar a mãe de seguir na luta. Em contrapartida, a categoria “levantar” se refere ao retorno ou entrada na luta após um período de depressão:

Quando a gente se levanta, a gente percebe que a gente tem força [...]. A minha preocupação hoje é com a saúde, porque a gente tem visto muitas mães morrendo, muitas mães adoecendo, é preciso ter saúde pra poder seguir nessa caminhada (Dandara, grupo focal).

O movimento é bom porque é uma levantando a outra (Carolina, grupo focal).

Assim como a depressão, o TEPT é um diagnóstico comum entre as co-vítimas de homicídio3333 Connolly J, Gordon R. Co-victims of Homicide: A Systematic Review of the Literature. Trauma Violence Abuse 2015; 16(4):494-505., sendo caracterizado por insônia, ataques de pânico, flashbacks, isolamento social, estado de alerta constante, entre outros sintomas. A tipificação desse transtorno surgiu para abordar os quadros apresentados por pessoas que vivenciaram eventos violentos, como soldados em guerra, vítimas de estupro ou de catástrofes naturais3636 Soares GAD, Miranda D, Borges D. As vítimas ocultas da violência na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2006.. Atualmente, esse diagnóstico também se aplica a situações traumáticas da vida cotidiana, como assaltos e sequestros. Em geral, os indivíduos acometidos por TEPT estão apartados da violência que gerou o trauma.

As mães ouvidas nessa pesquisa relataram vários desses sintomas. Elas vivem em territórios dominados pela violência armada, realidade de boa parte das mulheres que perdem seus filhos para a violência do Estado. Nesse contexto, sua tristeza, ansiedade, pensamentos intrusivos e medo são respostas a um contexto social adoecido. A situação traumática não se encerra no passado, ela é parte do que tece o seu presente. Portanto, elaborar diagnósticos psiquiátricos que não levam em conta os processos que estruturam a realidade social dessas mulheres não parece dar conta de suas experiências de vida.

É importante considerar que essas mulheres continuam a ser as principais responsáveis pela reprodução da vida nas suas famílias e comunidades, que também são afetadas pela morte precoce e violenta desses jovens. Assim, além de terem que lidar com a sua própria dor, essas mães ainda têm que cuidar de outros familiares, também em sofrimento profundo. O sofrimento por essa perda não é vivenciado de forma isolada, mas como parte do conjunto de violações que constituem o continuum do genocídio da população negra.

Dandara relata que sua filha mais nova passou a precisar de acompanhamento psicoterápico para tratar o trauma pela perda do irmão. Lélia também relatou que seu neto de 10 anos apresentou uma mudança brusca de comportamento após a perda do tio:

Ele diz que o tio ia voltar pra soltar pipa com ele e não voltou. Ele não solta mais pipa. [...] A professora chamou a minha filha na escola porque todas as vezes que fala de família na sala de aula ele chora (Lélia, entrevista individual).

As próprias mães, além do adoecimento psíquico, referem o surgimento ou agravamento de outras doenças, como hipertensão arterial sistêmica, diabetes, gastrite, dermatite e artrite reumatoide. A insônia e a perda de memória são condições que chamam particularmente a atenção, por terem sido relatadas por todas as mães.

Todas elas também relataram ter recebido pouco ou nenhum apoio institucional frente à perda do filho. Por outro lado, todas encontraram apoio em organizações comunitárias de combate à violência, as quais também foram as principais responsáveis pelo seu acesso a serviços de saúde. Uma das únicas instituições públicas que as acolheu foi a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Elas citaram nominalmente Marielle Franco, vereadora carioca assassinada em março de 2018, como uma das pessoas que intermediaram o acesso a cuidados de saúde, ao sistema de justiça e a grupos de mães ativistas.

Nesses grupos, elas encontram espaço para compartilhar uma dor que afirmam só poder ser experimentada por outra mãe na mesma situação. A possibilidade de ajudar outras mulheres parece ressignificar as suas vidas, num processo de construção de resistência frente à desumanização a que são continuamente submetidas.

Para além de um possível efeito terapêutico (individual e coletivo), a práxis forjada nessa luta é descrita pelas ativistas como um despertar para as questões subjacentes ao assassinato de seus filhos:

Às vezes a gente vê uma notícia de jornal aqui, outra ali, a gente não percebe, mas quando vai pros grupos e a gente se olha e as mães são negras, as mulheres que têm seus filhos assassinados são mulheres pretas, mulheres pobres. Às vezes tem uma minoria de mães brancas, mas acabam nesse mesmo contexto porque são pobres, são moradoras de favela e de periferia (Dandara, grupo focal).

Você acha que eles mataram meu filho porque ele era mais pretinho que eu? (Pergunta que me foi feita por uma mãe do Ceará, no III Encontro Internacional de Mães e Familiares de Vítimas de Terrorismo do Estado, em 2018).

Essa parece ser uma luta que só se conjuga no plural e que remete a questões estruturantes da sociedade brasileira. Assim, essas mães assumem, simbolicamente, um lugar de resistência de toda a comunidade negra.

Conclusão

A forma sofisticada como o racismo opera na sociedade brasileira, sustentando novas e antigas estratégias de genocídio, nos impõe a necessidade de produzir análises em saúde a partir de epistemologias negras, historicamente silenciadas. Por esse motivo, discutir essas estratégias de extermínio, apagamento e assimilação das pessoas negras usando as noções de genocídio da população negra e de necropolítica nos permite produzir análises racializadas da realidade que engendra experiências como as das mães que acompanhamos ao longo deste artigo.

Os processos de adoecimento aos quais essas mulheres estão submetidas diferem dos processos naturais que elas experimentariam caso não tivessem sido vítimas da ação violenta do Estado. Elas são mães que sofrem pela perpetuação da violência muito além da perda física de seus filhos: a elas é negado o direito à proteção da história de seus entes queridos, enfrentam o silenciamento e o esvaziamento de suas denúncias, sob a acusação de que seriam “mães de bandido”, portanto, descredibilizadas. Elas enfrentam uma realidade de impunidade e de ausência de acolhimento institucional das suas demandas sociais e de saúde.

A forma de atuação do Movimento de Mães se aproxima da noção que, na filosofia africana, recebe o nome de Ubuntu - “Eu sou porque nós somos”. Esse princípio norteador da vida coletiva parte do reconhecimento da humanidade de si e do outro, e se efetiva através do exercício da solidariedade política, como garantia de sobrevivência frente à escassez de apoio estatal.

Defendemos que uma proposta de cuidado para essas mães e familiares deve se basear no reconhecimento da sua humanidade e da determinação social das condições de gênero, classe, raça e território sobre seus adoecimentos. Tal proposta pode gerar um deslocamento do marco biomédico para práticas que priorizam o afeto, inspiradas nas próprias pedagogias de cuidado produzidas no seio desse ativismo, bem como a identificação e a denúncia das verdadeiras causas do seu sofrimento: a estrutura social racista brasileira.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Abr 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2020
  • Aceito
    08 Jun 2021
  • Publicado
    10 Jun 2021
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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