Resumo
O paradigma psicossocial no campo das drogas traz foco ao sujeito em sofrimento na relação com sua realidade social e valoriza a singularidade de usuários e profissionais para o desenvolvimento da atenção em saúde. O conceito que embasa essas características, proveniente de diversos arcabouços teóricos, é o de construção de autonomia. Porém, não há na literatura estudo que o sintetize em suas diferentes acepções. Este artigo objetivou sistematizar os conceitos de construção de autonomia sob o paradigma psicossocial no campo das drogas. A metodologia utilizada foi a revisão integrativa. Pesquisou-se, nas bases Psycinfo, PubMed, BVS e Web of Science, estudos que analisaram o processo de cuidado utilizando a construção de autonomia. Foram identificados esses conceitos e suas referências teóricas, e sistematizados seus fundamentos. Entre os 22 estudos, há conceitos embasados em seis teorias, como a saúde coletiva e a redução de danos. Pôde-se considerar que: a construção de autonomia é um processo que mobiliza diferentes ações, como a corresponsabilização e a atuação sociopolítica territorial; pode ser sistematizada em três dimensões interrelacionadas; e detém diferentes raízes epistemológicas, como a psiquiatria da desinstitucionalização.
Palavras-chave:
Autonomia; Drogas; Serviços de saúde mental
Introdução
Os serviços e ações direcionados ao cuidado em saúde a pessoas que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas se consolidaram no início dos anos 2000, sobretudo com a Política para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília: MS; 2003,22 Machado L, Boarini M. Políticas sobre drogas no Brasil: a estratégia de redução de danos. Psicol cienc prof 2013; 33(3):580-595.,33 Gomes-Medeiros D, Faria P, Campos G, Tofoli L. Política de drogas e saúde coletiva: diálogos necessários. Cad Saude Publica 2019; 35(7):e00242618. - mesmo que continuassem disputando espaço com as políticas proibicionistas e punitivistas vigentes22 Machado L, Boarini M. Políticas sobre drogas no Brasil: a estratégia de redução de danos. Psicol cienc prof 2013; 33(3):580-595.,33 Gomes-Medeiros D, Faria P, Campos G, Tofoli L. Política de drogas e saúde coletiva: diálogos necessários. Cad Saude Publica 2019; 35(7):e00242618.. Até então, as políticas de Estado relacionadas às drogas por muito tempo estiveram confinadas ao estreito e violento espaço das políticas policiais, carcerárias e/ou manicomiais (políticas de segurança pública e justiça), sendo que a abordagem aos usuários, quando ocorria, era feita pela lógica de controle e punição22 Machado L, Boarini M. Políticas sobre drogas no Brasil: a estratégia de redução de danos. Psicol cienc prof 2013; 33(3):580-595.,33 Gomes-Medeiros D, Faria P, Campos G, Tofoli L. Política de drogas e saúde coletiva: diálogos necessários. Cad Saude Publica 2019; 35(7):e00242618..
Esse novo direcionamento das políticas relativas às drogas fundamentado na Política para Atenção Integral1 efetivou um conjunto de teorias e práticas de cuidado que vinham sendo desenvolvidas em diferentes locais, como a atenção psicossocial (CAPS/NAPS) e as estratégias de redução de danos, alinhadas ao sistema público desenvolvido sob o campo da saúde coletiva. Conjunto que passou a ser compreendido como paradigma psicossocial, ou da saúde coletiva, no campo das drogas44 Santos V, Soares C. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saude Transform Social 2013; 4(2):38-54.,55 Assumpção AD, Alberti S. Do paradigma psicossocial à moral religiosa: questões éticas em saúde mental. Cien Saude Colet 2021; 26(1):285-295..
Esse conjunto detém em comum, como importante pilar, a contraposição ao modelo biomédico-psiquiátrico e moral, que associado a políticas econômico-liberais conforma a “Guerra às drogas”22 Machado L, Boarini M. Políticas sobre drogas no Brasil: a estratégia de redução de danos. Psicol cienc prof 2013; 33(3):580-595.,66 Hart C. Guerra às Drogas: por que não tentar diferente depois de tanto fracasso? Carta Maior 2014. [acessado 2019 Nov 19]. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/Guerra-as-drogas-por-que-nao-tentar-o-diferente-depois-de-tanto-fracasso-/5/30923
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria... . Este modelo foi muito criticado, nas últimas décadas do século XX, por apresentar-se ineficaz diante do perfil epidemiológico, das necessidades populacionais e na efetividade do planejamento em saúde77 Paim J, Almeida Filho N. Saúde coletiva: uma "nova saúde pública" ou campo aberto a novos paradigmas? Rev Saude Publica 1998; 32(4):299-316.,88 Buss P. Promoção da saúde e qualidade de vida. Cien Saude Colet 2000; 5(1):163-177..
Dessa forma, o novo paradigma baseado tanto em processos empíricos quanto no conceito ampliado de saúde desenvolveu novas concepções no terreno coletivo do cuidado. Colocou em evidência as condições de produção e reprodução da vida das populações, os vínculos estabelecidos sob essas condições e a singularidade dos sujeitos99 Campos G, Barros R, Castro A. Avaliação de política nacional de promoção da saúde. Cien Saude Colet 2004; 9(3):745-749.. Inaugura-se uma valorização das potencialidades de usuários e profissionais, o que proporcionou novas perspectivas de reflexão e ação1010 Czeresnia D. O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 43-58.,1111 Fleury-Teixeira P, Vaz F, Campos F, Álvares J, Aguiar R, Augusto T, Oliveira V. Autonomia como categoria central no conceito de promoção de saúde. Cien Saude Colet 2008; 13(2):2115-2122.. Compreendeu-se que não só as ações institucionais incidem sobre a saúde dos sujeitos e grupos, mas que as ações comunitárias podem e devem incidir sobre a saúde e a construção das práticas de cuidado. Conceito que unifica a importância da subjetividade e do protagonismo dos sujeitos é o de construção de autonomia1212 Kinoshita R. Contratualidade e reabilitação psicossocial. In: Pitta A, organizador. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 55-59.,1313 Merhy E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. E. Merhy E, Onocko R, organizadores. Agir em saúde. São Paulo: Hucitec; 2002. p. 71-112..
A construção de autonomia, em termos gerais, busca resgatar o valor social e o poder contratual dos usuários, e que estes sejam corresponsáveis no processo terapêutico1212 Kinoshita R. Contratualidade e reabilitação psicossocial. In: Pitta A, organizador. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 55-59.
13 Merhy E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. E. Merhy E, Onocko R, organizadores. Agir em saúde. São Paulo: Hucitec; 2002. p. 71-112.-1414 Onocko-Campos R, Campos G. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-688.. Amarante1515 Amarante P. Avaliação dos novos serviços de saúde mental: em busca de novos parâmetros. Revista Saúde em Debate 1996; 52:74-83., por exemplo, enfatiza que a principal maneira de avaliar os serviços provenientes da reforma psiquiátrica deve ser o grau de autonomia construído entre usuários, profissionais e sociedade, e que deve sempre ocorrer um estranhamento das ações e dos locais de cuidado, para evitar que a transformação da lógica de cuidado não se torne meramente uma reorganização tecnocrática e institucional.
Entretanto, por mais que esse conceito, sob a égide de teorias diversas, seja fundamental e detenha semelhanças em suas diferentes acepções, estas detêm conformações históricas e genealogias distintas, e embasam ações diversas. Exemplos provêm em grande parte da atenção psicossocial, da promoção da saúde e dos preceitos da saúde coletiva. Tais como a humanização dos serviços99 Campos G, Barros R, Castro A. Avaliação de política nacional de promoção da saúde. Cien Saude Colet 2004; 9(3):745-749.,1010 Czeresnia D. O conceito de saúde e a diferença entre prevenção e promoção. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 43-58.,1414 Onocko-Campos R, Campos G. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-688., por meio da coconstrução de autonomia e cogestão1414 Onocko-Campos R, Campos G. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-688., compartilhamento de saberes populares e técnicos1313 Merhy E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. E. Merhy E, Onocko R, organizadores. Agir em saúde. São Paulo: Hucitec; 2002. p. 71-112.,1414 Onocko-Campos R, Campos G. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-688., potencialização de vínculos territoriais1212 Kinoshita R. Contratualidade e reabilitação psicossocial. In: Pitta A, organizador. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 55-59.,1515 Amarante P. Avaliação dos novos serviços de saúde mental: em busca de novos parâmetros. Revista Saúde em Debate 1996; 52:74-83., atuação dos ACS e equipes NASF1515 Amarante P. Avaliação dos novos serviços de saúde mental: em busca de novos parâmetros. Revista Saúde em Debate 1996; 52:74-83., e as estratégias de RD, como a distribuição de kits de aplicação segura nas cenas de uso de drogas.
Não há, porém, estudo que congregue as diferentes noções relativas à construção de autonomia no campo do cuidado a usuários de substâncias psicoativas. E o embate prático e político com o paradigma da guerra às drogas tem sido intenso, o que pode fazer com que o desenvolvimento da construção de autonomia, ocorrido nos anos de concretização do paradigma psicossocial, possa ser perdido. Exemplo desse embate é o esvaziamento da RD na política nacional sobre drogas, por meio do decreto presidencial nº 9.761/2019. Além de grandes investimentos públicos que vêm ocorrendo em comunidades terapêuticas, superando o financiamento de toda a Rede de Atenção Psicossocial RAPS1616 Ribeiro F, Minayo M. As mudanças na política brasileira de drogas: o avanço da lógica da justiça sobre a saúde. Revista Cultura y Droga 2020; 25(29):17-39..
Dessa forma, o objetivo deste estudo é apresentar os conceitos de construção de autonomia que embasam a produção científica acerca do cuidado a usuários de drogas no Brasil, possibilitando produzir uma importante sistematização conceitual, inclusive para embasar avaliações sobre mudanças em curso nas políticas de saúde mental e drogas.
Método
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo. Seguiu as etapas de realização de revisões integrativas de literatura1717 Souza M, Silva M, Carvalho R. Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein 2010; 8(1):102-106.,1818 Ercole F, Melo L, Alcoforado, C. Revisão integrativa versus revisão sistemática. REME 2014; 18(1):9-12..
A revisão integrativa objetiva determinar o conhecimento científico já desenvolvido acerca de um assunto por meio da análise e síntese de uma gama de estudos sobre o mesmo conteúdo. No campo saúde, propicia a sistematização não apenas de práticas e protocolos, mas uma compreensão crítica e conceitual, visto que pode integrar pesquisas de áreas e metodologias diversas1717 Souza M, Silva M, Carvalho R. Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein 2010; 8(1):102-106.,1818 Ercole F, Melo L, Alcoforado, C. Revisão integrativa versus revisão sistemática. REME 2014; 18(1):9-12.. Ercole et al.1818 Ercole F, Melo L, Alcoforado, C. Revisão integrativa versus revisão sistemática. REME 2014; 18(1):9-12. afirmam que a variedade na amostra, em conjunção com a multiplicidade de finalidades, proporcionam “um quadro de conceitos complexos, teorias ou problemas relativos ao cuidado na saúde” (p. 9). Assim, ao se adotar tal método, podem ser agregadas e analisadas compreensões diversas relativas à construção de autonomia no campo do cuidado a pessoas em uso abusivo de substâncias psicoativas.
Seleção e organização
No período de agosto a setembro de 2019 foram realizadas as buscas nas bases de dados Psycinfo, PubMed, BVS e Web of Science. As buscas seguiram um protocolo adequado a cada base, conforme descritores ou palavras-chave encontradas em seus thesaurus/Decs. Assim, cada uma delas foi acessada com os descritores a seguir, com termos no singular e no plural.
Protocolo em português: (Serviço de saúde mental, Serviço de higiene mental, Centro de atenção psicossocial, Centro de Tratamento de Abuso de Drogas, Caps, caps-ad, Consultório na rua, Unidade Básica de Saúde, Atenção Primária, Saúde da Família) AND (Usuário de drogas, dependente químico, drogadito, farmacodependente, drogas de abuso, drogas recreativas, drogas, crack, cocaína, álcool) AND (Autonomia, autonomia pessoal, empoderamento, cidadania, direitos do paciente, direitos civis).
Em inglês: (Mental Health Services, Mental Hygiene Services, Drug Rehabilitation Centers, Drug Treatment Centers, Psychosocial Care Centers, caps, Primary health care, Family health, Street clinic, Street outreach office) AND (Drug User, Drug Abuser, Addict, drug-dependent, stoner, junkie, drugs, crack, cocaine, alcohol, street drugs, drug abuse) AND (Personal autonomy, free will, self-determination, empowerment, freedom of choice, Civil rights, client Rights, Interpersonal control, autonomy, Patient’s rights).
Após a pesquisa nas bases com os protocolos e a retirada dos estudos duplicados no programa End-Note Web, foram aplicados os critérios de exclusão e inclusão. Foram cinco critérios de exclusão: 1) população não brasileira, 2) temática distinta do objetivo, 3) local de estudo não ser um serviço da RAPS, 4) não abordar ou possibilitar análise da autonomia e 5) não deter dados primários.
E foram selecionados estudos que: 1) abordassem o conceito de autonomia nos serviços brasileiros públicos de atenção a usuários de drogas e 2) detivessem dados primários. Após a verificação dos critérios, restaram 19 artigos. Foi realizada a leitura das referências desse conjunto e três outros estudos que satisfazem os critérios de seleção foram adicionados. A seleção está sintetizada na Figura 1.
Para os resultados aqui apresentados, seguimos os passos para análise de dados qualitativos desenvolvidos por Minayo1919 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa e saúde. São Paulo: Hucitec; 2008., que incluem: ordenação dos dados, classificação e análise final. A etapa de ordenação corresponde ao mapeamento dos dados encontrados. A etapa de classificação visa ao levantamento de informações relevantes acerca dos dados, com base em questionamentos que se sustentam na fundamentação teórica, podendo ser realizada a elaboração de categorias-síntese. Na etapa de análise final, busca-se articulações entre os dados e os referenciais teóricos, que devem ser direcionadas para os objetivos da pesquisa.
Processo de análise
Após leitura exaustiva, foram ordenados os conceitos de construção de autonomia e suas referências. Eles estão apresentados no Quadro 1. Após apresentação dos conceitos, estes são explanados, buscando-se evidenciar seus fundamentos, seguindo sua teoria de base: atenção psicossocial, promoção de saúde e saúde coletiva, campo prático-teórico da RD, teoria das redes de suporte e teoria do cuidado.
Posteriormente, foram destacadas categorias que emergiram da explanação dos conceitos e que sintetizam a construção de autonomia. Por exemplo: “resgate de poder contratual”, “corresponsabilidade”, “desenvolvimento de vínculos de emprego ou geração de renda”, entre outros. Essas categorias foram organizadas por meio de três dimensões, sendo apresentadas no ponto “Síntese dos conceitos” e por meio da Figura 2.
Resultados e discussão
Inicialmente, apresentamos no Quadro 1 os 22 estudos selecionados, junto aos conceitos de construção de autonomia, a teoria que os fundamenta e a referência teórica.
A atenção psicossocial foi campo teórico para nove conceituações a respeito da construção de autonomia. A estratégia de RD apareceu em seis. A promoção de saúde fundamenta um conceito. Outros dois detêm influência da promoção da saúde e da saúde coletiva. Esta última embasa outros dois conceitos. Outras duas teorias embasaram outros dois conceitos, a teoria das redes de suporte e a teoria do cuidado em enfermagem. São explanados a seguir os fundamentos desses conceitos encontrados, conforme suas referências.
Atenção psicossocial: entre as referências encontradas sob o campo da atenção psicossocial estão Kinoshita1212 Kinoshita R. Contratualidade e reabilitação psicossocial. In: Pitta A, organizador. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 55-59., Costa-Rosa et al.2020 Costa-Rosa A, Luzio C, Yasui S. Atenção psicossocial: rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva. In: Amarante P, organizador. Archivos de Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Nau; 2003. p. 13-44., Luzio et L’abatte2121 Luzio C, L'abbate S. A reforma psiquiátrica brasileira: aspectos históricos e técnico-assistenciais das experiências de SP, Santos e Campinas. Interface (Botucatu) 2006; 10(20):281-298., Yasui2222 Yasui S. Rupturas e encontros: desafios da reforma psiquiátrica brasileira [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca; 2006., a Política Nacional de Atenção Integral33 Gomes-Medeiros D, Faria P, Campos G, Tofoli L. Política de drogas e saúde coletiva: diálogos necessários. Cad Saude Publica 2019; 35(7):e00242618., a Portaria 3088/112323 Brasil. Portaria 3.088, 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede Atenção Psicossocial. Diário Oficial da União 2011; 23 dez. e o relatório Saúde Mental no SUS2424 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde mental no SUS: os centros de atenção psicossocial. Brasília: MS; 2004..
Luzio e L’abbate2121 Luzio C, L'abbate S. A reforma psiquiátrica brasileira: aspectos históricos e técnico-assistenciais das experiências de SP, Santos e Campinas. Interface (Botucatu) 2006; 10(20):281-298., ao descreverem as experiências das redes de Santos, São Paulo e Campinas, destacam o processo direcionado a transformar a prática terapêutica nesses municípios, antes centrada na concepção de doença ou distúrbio, e com vistas à promoção de autonomia. Definem a necessidade de uma terapêutica centrada na vida cotidiana dos usuários, na relação com as instituições de saúde e a sociedade. Expressam que a proposta dos novos serviços fora criar uma rede de sociabilidade capaz de fazer emergir a instância terapêutica. Logo, era necessário uma coletividade na qual houvesse “a circulação da fala e da escuta, da experiência, do fazer concreto e da troca, do desvelamento dos sentidos, da elaboração e tomada de decisão”2121 Luzio C, L'abbate S. A reforma psiquiátrica brasileira: aspectos históricos e técnico-assistenciais das experiências de SP, Santos e Campinas. Interface (Botucatu) 2006; 10(20):281-298. (p. 285).
As autoras expressam, ainda, a importância de instâncias para além dos serviços, como as associações de usuários. Um exemplo é a Associação Franco Basaglia, criada por usuários e profissionais do CAPS Luiz da Rocha. Sua finalidade era “promover a autonomia e maior abrangência da clientela, incentivar a participação da família e de outros segmentos sociais, viabilizar a gestão extraclínica da vida dos usuários (de forma a ampliar o poder contratual e as possibilidades de trocas afetivas e materiais)”2121 Luzio C, L'abbate S. A reforma psiquiátrica brasileira: aspectos históricos e técnico-assistenciais das experiências de SP, Santos e Campinas. Interface (Botucatu) 2006; 10(20):281-298. (p. 285).
Essas noções foram aos poucos sendo consolidadas pelos órgãos públicos, como a prefeitura de São Paulo, que no programa de saúde mental, à época, apresentava duas premissas: “o sofrimento psíquico era parte integrante e indissociável do sofrimento global dos indivíduos submetidos a desigualdades sociais” e a política de saúde mental deveria romper “com o modelo hegemônico centrado nas internações psiquiátricas e práticas manicomiais”2121 Luzio C, L'abbate S. A reforma psiquiátrica brasileira: aspectos históricos e técnico-assistenciais das experiências de SP, Santos e Campinas. Interface (Botucatu) 2006; 10(20):281-298. (p. 286).
De maneira muito semelhante, Costa-Rosa et al.2020 Costa-Rosa A, Luzio C, Yasui S. Atenção psicossocial: rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva. In: Amarante P, organizador. Archivos de Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Nau; 2003. p. 13-44. destacam termos como a valorização do sujeito, a emancipação e o poder de contratualidade social. Assim, também se direciona à abordagem de Yasui2222 Yasui S. Rupturas e encontros: desafios da reforma psiquiátrica brasileira [tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca; 2006., que expressa que a Reforma Psiquiátrica fora uma disputa política que visava uma transformação social, contrapondo ideias de autonomia e solidariedade a controle e segregação. A Política Nacional33 Gomes-Medeiros D, Faria P, Campos G, Tofoli L. Política de drogas e saúde coletiva: diálogos necessários. Cad Saude Publica 2019; 35(7):e00242618. também preconiza ações territoriais e a construção de redes de suporte. Expressa que é dever do SUS proporcionar a construção da corresponsabilidade e de uma perspectiva ampliada da clínica33 Gomes-Medeiros D, Faria P, Campos G, Tofoli L. Política de drogas e saúde coletiva: diálogos necessários. Cad Saude Publica 2019; 35(7):e00242618. (p. 11).
A construção de autonomia na atenção psicossocial, portanto, concebe que os sujeitos devem ser considerados detentores de valor social e poder de decisão; que esses se modificam com a qualidade dos vínculos com a alteridade; além disso, esses vínculos se desenvolvem sob condições sociais que garantem mais, ou menos, possibilidades de vida. Esse conjunto de concepções encontra as principais raízes epistemológicas, conforme Amarante1515 Amarante P. Avaliação dos novos serviços de saúde mental: em busca de novos parâmetros. Revista Saúde em Debate 1996; 52:74-83.,2525 Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007. e Nicácio e Campos2626 Nicácio F, Campos, G. Afirmação e produção de liberdade: desafio para os centros de atenção psicossocial. Rev Ter Ocup 2007; 18(3):143-151., na psiquiatria da desinstitucionalização. Essa raiz epistemológica é apresentada a seguir2727 Jervis G. Manuale Critico di Psichiatria. Milão: LaFeltrinelli; 1975.
28 Ongaro F. Rovesciamento Istituzionale e Finalità Comune. In: Basaglia F, organizador. L'istituzione Negata. Milão: Baldini & Castoldi; 2018. p.321-335.
29 Basaglia F. As instituições da violência. In: Basaglia F, organizador. A instituição negada. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1985. p. 99-134.-3030 Basaglia F. A utopia da realidade. In: Amarante P, organizador. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond; 2010. p. 225-236..
Para os autores desse movimento, o que demarca o que é designado como loucura e descontrole é a relação conflituosa da sociedade com os indivíduos no desenvolvimento concreto de suas vidas2727 Jervis G. Manuale Critico di Psichiatria. Milão: LaFeltrinelli; 1975.,2929 Basaglia F. As instituições da violência. In: Basaglia F, organizador. A instituição negada. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1985. p. 99-134.. Giovanni Jervis, autor do Manual crítico de psiquiatria, expressa que o distúrbio é resultado “de uma condição existencial global. Essa condição de vida é em geral dominada pelas contradições materiais, antes de ser dominada pelas contradições psicológicas. Pode-se reconhecer que existe uma série de fatores com uma importância grande na determinação dos distúrbios mentais”2727 Jervis G. Manuale Critico di Psichiatria. Milão: LaFeltrinelli; 1975. (p. 132). Entre esses fatores, expressa a miséria com suas dificuldades materiais e morais, a violência doméstica, a educação opressora, condições alienantes de trabalho etc.
A esses indivíduos, a sociedade e suas instituições, na impossibilidade de readaptação à mesma norma que acarreta adoecimento, resguarda a estigmatização e exclusão - em vez de acolher a existência em sofrimento e proporcionar a transformação coletiva dessa realidade. Isso ocorre sobretudo para aqueles que não possuem poder e valor socioeconômico, com os quais poderiam se contrapor ao estigma de descontrolados ou doentes2727 Jervis G. Manuale Critico di Psichiatria. Milão: LaFeltrinelli; 1975.,3030 Basaglia F. A utopia da realidade. In: Amarante P, organizador. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond; 2010. p. 225-236..
A psiquiatria da desinstitucionalização, portanto, baseia-se no resgate de uma vida autônoma, restituir o poder contratual do indivíduo frente ao inevitável contrato com a sociedade2929 Basaglia F. As instituições da violência. In: Basaglia F, organizador. A instituição negada. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1985. p. 99-134.,3030 Basaglia F. A utopia da realidade. In: Amarante P, organizador. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond; 2010. p. 225-236.. Pois sob o diagnóstico de descontrole psicológico, a ciência médica destitui o indivíduo de poder sobre si, ficando sobre o crivo dos profissionais que executam o tratamento. Para aqueles em processo de institucionalização mais profunda, decorrente de uma vida de diagnósticos e internações, Basaglia3030 Basaglia F. A utopia da realidade. In: Amarante P, organizador. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond; 2010. p. 225-236. expressa ser necessário, antes de tudo, resgatar a inconformidade: “Seria mais importante que nos esforçássemos para despertar nele um sentimento de oposição ao poder que até agora o determinou e institucionalizou, antes mesmo de construir em torno dele o espaço acolhedor e humano do qual necessita”2929 Basaglia F. As instituições da violência. In: Basaglia F, organizador. A instituição negada. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1985. p. 99-134. (p. 116).
Assim, o resgate de poder perpassa uma dimensão evidentemente relacional. Pois tão somente com o reconhecimento enquanto pessoas (e não objetos) os indivíduos não encontram a situação de liberdade; encontram na verdade um vazio2828 Ongaro F. Rovesciamento Istituzionale e Finalità Comune. In: Basaglia F, organizador. L'istituzione Negata. Milão: Baldini & Castoldi; 2018. p.321-335.,2929 Basaglia F. As instituições da violência. In: Basaglia F, organizador. A instituição negada. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1985. p. 99-134.. Têm que realizar a reconstrução de vínculos, exercer na prática seu valor. Pois frente às instituições sociais, aos papéis a serem desempenhados, as decisões de uma pessoa podem afetar outras, bem como as decisões de grupos afetam o indivíduo. É necessário, na promoção de autonomia, um tensionamento processual dessa relação frente à realidade social: “a transformação institucional deveria agir no contexto da relação que une os termos opostos dessa relação, para negar a oposição evidente. Isso significa que termos contraditórios como escravidão e liberdade, dependência e autonomia, não podem ser entendidos como um oposto ao outro”2828 Ongaro F. Rovesciamento Istituzionale e Finalità Comune. In: Basaglia F, organizador. L'istituzione Negata. Milão: Baldini & Castoldi; 2018. p.321-335. (p. 149).
Isto é, desenvolver relações autônomas exige responsabilidade para com o outro. Na desinstitucionalização, por exemplo, seja o usuário, o profissional ou o familiar, é necessário buscar lidar com as tensões das relações, enfrentando o retorno à autoridade/autoritarismo.
O tensionamento entre os papéis no tratamento ainda perpassa a tomada de consciência2727 Jervis G. Manuale Critico di Psichiatria. Milão: LaFeltrinelli; 1975.,3131 Basaglia F. Crimini di pace - ricerche sugli intellettuali e sui tecnici come addetti all'oppressione. Roma: G. Einaudi; 1975.. Basaglia, baseado em Gramsci, assim desenvolve seu pensamento quando expressa que os técnicos de saúde devem se contrapor ao próprio poder. O autor vincula o termo “técnico” ao de “funcionário do consenso”: os intelectuais legitimadores da violência institucional. Em contraposição, é necessário que os profissionais preocupados com a pessoa em sofrimento disputem a hegemonia do poder onde esse acontece, no território junto aos sujeitos.
A construção de autonomia na teoria da atenção psicossocial, portanto, tem raiz em concepções que enfatizam o combate à violência institucional, que concebem a relação intrínseca entre autonomia e responsabilidade coletiva, e desenvolvem essa construção no interior dos serviços e tratamentos, mas também no âmbito da sociedade institucionalizada.
Redução de danos: entre os autores que abordaram a construção de autonomia na RD, encontramos McLeod e Sherwin3232 Mcleod C, Sherwin S. Relational autonomy, self-trust and health care for patients who are oppressed. In Mackenzie C, Stoljar N, editors. Relational autonomy: feminist perspectives on autonomy, agency & the social self. Oxford: Oxford University Press; 2000. p. 259-269., Santos et al.3333 Santos V, Soares C, Campos C. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis 2020; 20(3):995-1015. e Sodeli3434 Sodelli M. A abordagem proibicionista em desconstrução: compreensão fenomenológica existencial do uso de drogas. Cien Saude Colet 2010; 15(3):637-644..
Na concepção apresentada por Santos et al.3333 Santos V, Soares C, Campos C. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis 2020; 20(3):995-1015., os usuários não devem ser vistos como dependentes das drogas ou doentes e destituídos de racionalidade sobre seus atos. E as ações de RD devem se voltar para orientar os usuários acerca das consequências do uso em relação ao seu contexto de vida, integrando condições de saúde, moradia, vínculos familiares e sociais. Assim, desenvolve o protagonismo do usuário em relação ao seu processo terapêutico3333 Santos V, Soares C, Campos C. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis 2020; 20(3):995-1015.. A noção de RD se direciona também para a transformação do contexto sociocultural a partir dos serviços de cuidado, visto que o uso abusivo é encarado como consequência do impacto gerado pelas condições de existência3333 Santos V, Soares C, Campos C. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis 2020; 20(3):995-1015..
Sodeli3434 Sodelli M. A abordagem proibicionista em desconstrução: compreensão fenomenológica existencial do uso de drogas. Cien Saude Colet 2010; 15(3):637-644., com base na fenomenologia existencial, direciona esses raciocínios para a construção de possibilidades de escolha. Expressa que o ser humano se constitui enquanto detentor de uma esfera de liberdade, pois sempre pode tomar decisões. O uso de drogas é uma das possíveis formas de se aliviar angústias existenciais. Logo, o autor rejeita a compreensão proibicionista de que o uso de drogas é sempre um comportamento desviante ou patologia. Pois se é uma escolha, os indivíduos a princípio não se sentem mal com isso. O autor expressa que é fato que o uso pode se tornar abusivo, mas não necessariamente. Dessa maneira, é necessário construir junto ao outro possibilidades de escolhas mais autênticas, no sentido da diminuição de vulnerabilidades. Defende-se a educação a respeito das drogas (prevenção primária), inclusive antes do uso3434 Sodelli M. A abordagem proibicionista em desconstrução: compreensão fenomenológica existencial do uso de drogas. Cien Saude Colet 2010; 15(3):637-644..
Dois estudos com base em McLeod e Sherwin3232 Mcleod C, Sherwin S. Relational autonomy, self-trust and health care for patients who are oppressed. In Mackenzie C, Stoljar N, editors. Relational autonomy: feminist perspectives on autonomy, agency & the social self. Oxford: Oxford University Press; 2000. p. 259-269. relacionam a perspectiva da RD de empoderamento dos usuários à perspectiva de autonomia relacional da ética feminista. Esta leva em consideração as diversas determinações que atuam sobre a vida de cada pessoa, o que implica a possibilidade ou não de praticar ações autônomas. Isto é, detêm destaque as características sociais, como opressões estruturais e identitárias que agem nas relações interpessoais, como racismo e machismo. Só refletindo acerca dessas determinações e havendo a construção de ações que as contraponham é que poderia se falar em autonomia.
Outra abordagem nesse sentido é a da International Harm Reduction Association (IHRA)3535 International Harm Reduction Association (IHRA). O que é redução de danos? Uma posição oficial da IHRA. Londres: IHRA; 2010. que expressa o protagonismo dos usuários numa dimensão comunitária. Ou seja, defende que o público das ações de RD deve fazer parte da elaboração dessas ações, discutir seus objetivos. E não apenas os usuários de drogas, mas seus familiares, além dos gestores das políticas. Logo, apresenta uma concepção baseada na saúde pública, sendo o não adoecimento e a manutenção da vida objetivos claros.
A RD é frequentemente explicada3636 Subrinho L, Sena E, Santos V, Carvalho P. Cuidado ao consumidor de drogas: percepção de enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. Saude Soc 2018; 27(3):834-844.,3737 Souza T. A norma da abstinência e o dispositivo "drogas": direitos universais em territórios marginais de produção de saúde [tese]. Campinas: Unicamp; 2013., como base epistemológica, pela compreensão de saúde-doença de Canguilhem, em Normal e patológico3838 Canguilhem G. O normal e o patológico. Barueri: Forense Universitária; 1995.. Segundo Canguilhem, o ser humano dispõe da capacidade de criar novas normas a partir das mudanças que enfrenta no decorrer da vida. Isso porque a vida é de natureza processual e variável. Nesse sentido, o autor se contrapõe à premissa biomédica de que saúde é o contrário de doença e que equivale a uma norma objetiva. Cada indivíduo está sempre produzindo sentidos de seu corpo-existência em relação ao meio com o qual convive, justamente para executar seu modo de andar a vida. O patológico corresponderia à inércia normativa, na medida em que, se essa normatividade ocorre, há processo de saúde.
Essa concepção reverbera nas noções desenvolvidas, por exemplo, por Marlatt3939 Marlatt G. Redução de danos: estratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; 1999. e Lancetti40 acerca da abstinência enquanto obrigatoriedade de tratamento. Marlatt expressa que a abstinência não é um imperativo, e que qualquer ação de RD à saúde deve ser apoiada. Há uma flexibilidade, de acordo com a relativização do uso que cada pessoa deseja e suporta realizar a cada momento. Lancetti4040 Lancetti A. Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec; 2015. afirma que a RD é antagônica ao combate às drogas, pois não é a droga que está em questão, mas o sujeito. E enquanto ação de saúde pública, a RD apresenta congruência com todo ato de cuidado que visa a defesa da vida3939 Marlatt G. Redução de danos: estratégias práticas para lidar com comportamentos de alto risco. Porto Alegre: Artes Médicas Sul; 1999.,4040 Lancetti A. Contrafissura e plasticidade psíquica. São Paulo: Hucitec; 2015..
Promoção de saúde e saúde coletiva: os autores que embasaram a construção de autonomia sob o campo teórico da promoção da saúde foram Labonte4141 Labonte R. Health promotion and empowerment: reflection on professional practice. Health Education Quarterly 1994; 21(2):253-268. e Israel et al.4242 Israel B, Checkoway B, Schulz A, Zimmerman M. Health education and community empowerment: conceptualizing and measuring perceptions of individual, organizational and community control. Health Education Quarterly 1994; 21(2):149-170.. Os conceitos de Carvalho4343 Carvalho, S. Os múltiplos sentidos da categoria empowerment no projeto de Promoção à Saúde. Cad Saude Publica 2004; 20(4):1088-1095. e Campos4444 Campos G. Comentários sobre analogias e diferenças entre os métodos Paidéia e o "interrogativo". Interface (Botucatu) 2007; 11(22):345-363. têm influência da saúde coletiva e da promoção de saúde. E a produção de Merhy1313 Merhy E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. E. Merhy E, Onocko R, organizadores. Agir em saúde. São Paulo: Hucitec; 2002. p. 71-112.,4545 Merhy E. Em busca da qualidade dos serviços de saúde: os serviços de porta aberta para a saúde e o modelo tecno-assistencial em defesa da vida In: Cecílio L, organizador. Inventando a mudança na saúde. São Paulo: Hucitec; 1994. p. 117-160. está compreendida sob o campo teórico da saúde coletiva. Abordam-se ambos os campos teóricos nesse mesmo ponto, visto que esses se aproximaram na conformação do campo da saúde no Brasil77 Paim J, Almeida Filho N. Saúde coletiva: uma "nova saúde pública" ou campo aberto a novos paradigmas? Rev Saude Publica 1998; 32(4):299-316..
Onocko-Campos e Campos1414 Onocko-Campos R, Campos G. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-688., ao abordarem as necessidades de reformulação do campo da saúde trazidas pela compreensão ampliada do conceito de saúde, consideram que a construção de autonomia deve ser central na política, na gestão e no trabalho em saúde, sendo objetivo fundamental de todo sistema.
A principal destas mudanças refere-se à redefinição do “objeto” do trabalho em saúde, refere-se a pensar esse “objeto” como uma síntese entre problemas de saúde (riscos, vulnerabilidade e enfermidade) sempre encarnados em sujeitos concretos. Esta valorização do “sujeito” e de sua singularidade altera radicalmente o campo de conhecimento e de práticas da saúde coletiva e da clínica (p. 669)1414 Onocko-Campos R, Campos G. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-688..
Seria fundamental que todo planejamento do sistema e dos serviços de saúde buscasse uma autonomia compartilhada, uma coconstrução de autonomia: “a coconstrução de capacidade de reflexão e de ação autônoma para os sujeitos envolvidos nesses processos, trabalhadores e usuários”1414 Onocko-Campos R, Campos G. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-688. (p. 669). Essa concepção de autonomia não corresponde a valores absolutos, mas relativos, correspondentes a cada realidade. Concebem-na como a capacidade de os sujeitos ou o coletivo lidarem com sua rede de dependências. Isto é, capacidade de compreenderem e agirem sobre si mesmos e sobre o contexto4444 Campos G. Comentários sobre analogias e diferenças entre os métodos Paidéia e o "interrogativo". Interface (Botucatu) 2007; 11(22):345-363.. Logo, os sujeitos necessitam de informação e de poder utilizá-la para agir sobre o mundo. Portanto, a autonomia está intimamente vinculada à capacidade de o sujeito enfrentar conflitos, realizar e organizar contratos e compromissos pessoais e coletivos1414 Onocko-Campos R, Campos G. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-688..
Merhy1313 Merhy E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. E. Merhy E, Onocko R, organizadores. Agir em saúde. São Paulo: Hucitec; 2002. p. 71-112. expressa que o processo de autonomização corresponde a uma tecnologia do cuidado/trabalho vivo em saúde e que é também uma tecnologia de produção de relações. Faz parte da categoria de tecnologias leves, necessariamente relacionada ao acolhimento e ao vínculo. Expressa que o desenvolvimento dessas tecnologias se direciona para o aumento do grau de autonomia no modo de andar a vida das pessoas, que, em nível individual e coletivo, possibilita um maior controle dos riscos de adoecer ou agravar os problemas de saúde. Esse processo, ao ser realizado pelo profissional de saúde em vínculo com o usuário, por si só já acarreta tratamento terapêutico1313 Merhy E. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. E. Merhy E, Onocko R, organizadores. Agir em saúde. São Paulo: Hucitec; 2002. p. 71-112..
A conceituação de empowerment da promoção da saúde, com base em Labonte4141 Labonte R. Health promotion and empowerment: reflection on professional practice. Health Education Quarterly 1994; 21(2):253-268. e Israel et al.4242 Israel B, Checkoway B, Schulz A, Zimmerman M. Health education and community empowerment: conceptualizing and measuring perceptions of individual, organizational and community control. Health Education Quarterly 1994; 21(2):149-170., apresenta similaridades com as concepções abordadas. Expressam que o empowerment provém do processo de indivíduos agirem conjuntamente para decidirem sobre suas próprias vidas, pensando de maneira crítica em relação à realidade. Por exemplo: quando os próprios usuários dos serviços, organizados, podem influenciar nas várias dimensões de sua saúde, desde a mudança de hábitos individuais e de comunidades até as condições de organização dos serviços4141 Labonte R. Health promotion and empowerment: reflection on professional practice. Health Education Quarterly 1994; 21(2):253-268.,4242 Israel B, Checkoway B, Schulz A, Zimmerman M. Health education and community empowerment: conceptualizing and measuring perceptions of individual, organizational and community control. Health Education Quarterly 1994; 21(2):149-170..
Entretanto, Carvalho4343 Carvalho, S. Os múltiplos sentidos da categoria empowerment no projeto de Promoção à Saúde. Cad Saude Publica 2004; 20(4):1088-1095. expressa que o termo empowerment é utilizado por diversas linhas teóricas, nem sempre homogêneas. Ao abordar o histórico da promoção da saúde, expressa que algumas das concepções se baseiam em uma noção ideal de autonomia. Essa concepção compreende sujeitos que por si só podem tomar decisões autônomas, sem deter conhecimento acerca das determinações que sobre ele incidem. Carvalho4343 Carvalho, S. Os múltiplos sentidos da categoria empowerment no projeto de Promoção à Saúde. Cad Saude Publica 2004; 20(4):1088-1095. argumenta que termos como risco e empowerment estão vinculados às “políticas públicas saudáveis” ou “políticas contemporâneas de prevenção”:
A autonomia possível é, quase sempre, uma autonomia regulada uma vez que os indivíduos tendem a seguir regras e normas concebidas por expertos e pelos parâmetros construídos pelas Políticas Públicas Saudáveis. [...] muitas das narrativas de progresso que suportam as estratégias da Nova Saúde Pública deixam intocadas as discussões sobre relações desiguais de poder na relação entre especialistas e não-especialistas, populações dos países ricos “desenvolvidos” e populações dos países pobres “em desenvolvimento”, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais masculinos e lésbicas (p. 674)4343 Carvalho, S. Os múltiplos sentidos da categoria empowerment no projeto de Promoção à Saúde. Cad Saude Publica 2004; 20(4):1088-1095.. O termo empowerment carrega, portanto, o caráter ambíguo de algumas premissas da promoção da saúde. Assim, pode acabar por limitar a construção de autonomia. Ou seja, é uma concepção de empoderamento liberal, que pode fazer o Estado se ausentar das responsabilidades frente à população4343 Carvalho, S. Os múltiplos sentidos da categoria empowerment no projeto de Promoção à Saúde. Cad Saude Publica 2004; 20(4):1088-1095.. O autor conclui que o termo “empowerment comunitário” seria mais indicado, pois traz a noção de disputa pelo controle de recursos e a redistribuição de poder.
Dessa forma, a promoção da saúde concebe que o aumento da capacidade de analisar e atuar sobre seus próprios problemas não deve ser relegado somente aos indivíduos e suas comunidades, esses devem ter participação efetiva na formulação de políticas e distribuição de recursos, exercendo poder socialmente.
Teoria das redes de suporte: Lacerda4646 Lacerda A. Redes de apoio social no Sistema da Dádiva: um novo olhar sobre a integralidade do cuidado no cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde [tese]. Rio Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2010. expressa que as redes de suporte que se conformam no cotidiano em diversos âmbitos sociais “se traduzem em saúde” (p. 76), uma vez que os sujeitos e coletivos integrantes passam a deter maior autonomia no modo de andar a vida. Isso ocorre em função de seus participantes compartilharem bens simbólicos e materiais. O compartilhamento desses bens alimenta os vínculos, faz com que os sujeitos influenciem e sejam influenciados, em uma dinâmica de circulação e preocupação mútua.
Logo, baseado na teoria da dádiva de Mauss, explicita-se que não se trata simplesmente de dar e receber para benefício próprio, baseando-se numa visão utilitarista dos sujeitos e das redes. A dádiva, ou dom, compreende um sistema de ação social que envolve o movimento triplo de dar, receber e retribuir os bens simbólicos e materiais. A dimensão da autonomia, nas redes de apoio, é construída de maneira dialética entre sujeitos e seus vínculos diversos. Em síntese, redes possibilitam suporte e cidadania não apenas a pessoa ou coletivo que dá apoio e a quem recebe apoio, geram também um compartilhamento que circula, influenciando as relações micro e macro da vida social.
Assim, é relevante expressar, com base em Amarante e Lancetti4747 Amarante P, Lancetti A. Saúde mental e saúde coletiva. In: Campos G, organizador. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 615-634., a potencialidade do fortalecimento dos vínculos com as redes de apoio no contexto da atenção primária e nos demais níveis de atenção em saúde. Porque o apoio social como promotor da saúde possibilita a abertura para análise do modelo de saúde-doença-cuidado, em vez da análise baseada somente na saúde-doença. O apoio social possibilita considerar a saúde-doença não como um estado biológico vivido pelos sujeitos, mas um processo que modifica a saúde-doença por meio da ação e consciência de todos os membros do coletivo social4646 Lacerda A. Redes de apoio social no Sistema da Dádiva: um novo olhar sobre a integralidade do cuidado no cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde [tese]. Rio Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2010..
Teoria do cuidado: na teoria geral do cuidado, desenvolvida pela enfermeira Dorothea Orem, a autonomização da pessoa ocorre quando ela atua de forma consciente, isto é, intencional, além de atuar com ações efetivas para preservar a saúde e o bem-estar4848 Orem D. Nursing: concepts of practice. Londres: Mosby; 2001.. Leva-se em conta que faz parte da autonomização a adaptação e o aprendizado em novas situações fisiológicas, como gestação e velhice, e em situações patológicas. A atenção profissional adentra na autonomização dos sujeitos, visto que é comum o vínculo de apoio para desenvolvimento do cuidado.
A respeito da relação dos indivíduos com o profissional de saúde, pode ser de três tipos: totalmente compensatório (autocuidado não pode ser realizado pela pessoa); cuidado empreendido com auxílio parcial; e cuidado em que há foco no apoio e na educação para a adaptação. É importante destacar que nas demandas terapêuticas não se leva em consideração apenas a dimensão individual, mas em relação ao ambiente, à sociedade. Isto é, o cuidado é organizado de acordo com as características das pessoas como membros de grupos de determinado tempo e espaço4949 Remor A, Brito I, Petters V, Santos E. A teoria do autocuidado e sua aplicabilidade no sistema de alojamento conjunto. Rev Bras Enf 1986; 39(2/3):6-11.. Segundo Remor et al.4949 Remor A, Brito I, Petters V, Santos E. A teoria do autocuidado e sua aplicabilidade no sistema de alojamento conjunto. Rev Bras Enf 1986; 39(2/3):6-11., o funcionamento do homem está ligado ao seu ambiente e juntos formam um todo funcional, um sistema.
Logo, a teoria de Orem expressa que o estabelecimento do vínculo entre profissional e pessoa sob cuidados se estabelece para a superação do processo de adoecimento por meio de ações de adaptação e autocuidado, além de considerar aspectos socioambientais para a produção de autonomia cotidiana, o que demonstra a relativização de ideais de saúde a serem alcançados - manifestando certa superação em relação ao modelo biomédico.
Síntese conceitual e discussão
A partir dos conceitos de construção de autonomia apresentados e seus respectivos arcabouços teóricos, fica evidente a interrelação entre as teorias que embasam o paradigma da saúde coletiva no campo do cuidado a pessoas em uso abusivo de substâncias psicoativas. Entre as práticas e os fundamentos desse conjunto, destacam-se a importância da participação social e a promoção coletiva das ações de cuidado, o que fundamenta, por exemplo, ações como oficinas e grupos de promoção em saúde e serviços como os consultórios na rua. Além das noções de territorialidade e atenção integral. Sendo que esse conjunto busca superar a vulnerabilidade e as iniquidades em saúde dessa população, tendo como plano de fundo a compreensão de determinação social dos processos de saúde e adoecimento.
Levando em conta essa confluência de teorias, buscou-se sintetizar sua complexidade e pluralidade. Para isso, associamos as categorias que emergiram da explanação teórica por meio de três dimensões: (1) dimensão da singularidade: resgate de autonomia no processo terapêutico; (2) dimensão dos vínculos: construção corresponsável de autonomia; e (3) dimensão social e política: construção de autonomia em amplitude coletiva.
Foi constatado, ainda, que essas categorias provêm de uma necessidade de superação de algo oposto ou ausente. A RD, por exemplo, é oposta à concepção biomédica que detém foco nas drogas ao invés dos sujeitos, reiterando a necessidade da abstinência. Assim, considerou-se o que é propositivo para desenvolver autonomia como âmbito construtivo, e o que é necessário ser superado como âmbito de negação. Esses elementos e suas dimensões são apresentados na Figura 2.
Também ficou evidente que a construção de autonomia depende de múltiplas ações em cada dimensão, sendo essas três interrelacionadas. Na da singularidade, os elementos que constituem o processo dizem respeito a trazer à tona o ser humano em sofrimento, proporcionando resgate de sua condição de indivíduo detentor de valor para si mesmo e para a alteridade. Isso possibilita superar práticas baseadas em concepções de saúde que têm como objeto a doença, as drogas, a inadaptabilidade individual, e culpabilizam os sujeitos pelo uso abusivo.
Na dimensão dos vínculos, a construção de autonomia não é apenas individual, depende da relação com a alteridade de forma corresponsável, para desenvolvimento do valor social. Essa segunda dimensão busca desenvolver o aumento do universo de dependências, noção trazida pela psiquiatria da desinstitucionalização2828 Ongaro F. Rovesciamento Istituzionale e Finalità Comune. In: Basaglia F, organizador. L'istituzione Negata. Milão: Baldini & Castoldi; 2018. p.321-335. e presente em Kinoshita1212 Kinoshita R. Contratualidade e reabilitação psicossocial. In: Pitta A, organizador. Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 55-59. e Onocko-Campos e Campos1414 Onocko-Campos R, Campos G. Co-construção de autonomia: o sujeito em questão. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 669-688.. Isto é, ao ser dependente de vários vínculos, cria-se a possibilidade de satisfação de necessidades diversas, não de uma única. Esse conjunto de dependências se expande ao participar não só do CAPS ou da Unidade de Saúde, mas na família, no centro de convivência e demais redes territoriais.
A terceira dimensão diz respeito à execução e ao desenvolvimento de autonomia de maneira social ampla, não só realizando o conjunto de trocas que a própria norma social já possibilita, mas expandindo direitos para superação de condições sociais por meio da garantia de trabalho, educação formal, melhoria do acesso em saúde, por exemplo. Busca também o poder de contrapor e transformar essa norma de maneira política, pelas reivindicações de associações de usuários e participação nos conselhos de saúde.
O que a presente revisão aponta, portanto, é que a promoção de autonomia ocorre tanto por meio da negação de processos de exclusão quanto na construção de políticas efetivas de participação social. Isso ocorre em certa medida pela rede de seguridade social, visto que a literatura ressalta a importância dos CAPS-AD, das unidades de saúde e consultórios na rua, por exemplo, principalmente quando se utilizam de tecnologias que buscam a autonomia, como projetos terapêuticos singulares, oficinas de redução de danos, grupos educativos e de promoção em saúde, e o próprio acesso aos serviços5050 Sena J. Produção do cuidado no Centro de Atenção Psicossocial de Fortaleza - Ce: limites e desafios na construção da autonomia do usuário [dissertação]. Ceará: Universidade do Estado do Ceará; 2010.
51 Londero M, Ceccim R, Bilibio L. Consultório de/na rua: desafio para um cuidado em verso na saúde. Interface (Botucatu) 2014; 18(49):251-260.-5252 Borges C D, Schneider DR. Trajetória do cuidado e o percurso ao CAPSad: com a palavra os usuários. CBSM 2018; 10(25):234-259.
Entretanto, o que a revisão também demarca é que a autonomia não se realiza apenas no interior dos serviços. Estes permeiam o território justamente para articulá-lo, descobrir e intensificar vínculos, assim como criar possibilidades de redes de apoio, dispositivos de garantia de direitos, de lazer e cultura4646 Lacerda A. Redes de apoio social no Sistema da Dádiva: um novo olhar sobre a integralidade do cuidado no cotidiano de trabalho do agente comunitário de saúde [tese]. Rio Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2010.,4747 Amarante P, Lancetti A. Saúde mental e saúde coletiva. In: Campos G, organizador. Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 615-634.. Pois o uso abusivo ocasiona perda de autonomia, seja por efeitos individuais diretos do uso abusivo, seja por dificuldades nas relações sociais, como conflitos familiares e laborais, além da invisibilidade por parte do Estado, que intensifica essa situação de vulnerabilidade3636 Subrinho L, Sena E, Santos V, Carvalho P. Cuidado ao consumidor de drogas: percepção de enfermeiros da Estratégia de Saúde da Família. Saude Soc 2018; 27(3):834-844.,5353 Paula M, Jorge MB, Vasconcelos M, Albuquerque R. Assistência ao usuário de drogas na atenção primária à saúde. Psicol Estud 2014; 19(2):223-233..
Contudo, o conjunto de ações abordado tem sido mitigado frente às políticas atuais. As últimas modificações na Política Nacional de Saúde Mental e Drogas, por meio do decreto presidencial nº 9.761/2019, por exemplo, define um esvaziamento da RD, ao mesmo tempo em que assevera a abstinência total. Ainda há grandes déficits de financiamento da RAPS e grandes investimentos públicos em comunidades terapêuticas1616 Ribeiro F, Minayo M. As mudanças na política brasileira de drogas: o avanço da lógica da justiça sobre a saúde. Revista Cultura y Droga 2020; 25(29):17-39.. Logo, as dimensões da corresponsabilização, e principalmente da participação sociopolítica, enfrentam muitas dificuldades, tanto pela falta de relação entre os dispositivos da rede como pela dificuldade de os profissionais estarem no território fortalecendo vínculos.
Essas limitações muitas vezes impossibilitam uma transformação prática da vida dos usuários, fazendo-os dependentes de CAPS, unidades de saúde e das comunidades terapêuticas em expansão, reoxigenando o processo conhecido como revolving-door, ou carreira de internamento5454 Rotelli F. A instituição inventada. In: Rotelli F, Leonardis O, Mauri D, Risio C, organizadores. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec; 1990. p. 89-99.. Isto é, a não transformação das condições de reprodução da vida diária dos usuários no processo de construção de autonomia faz que eles muitas vezes retornem ao mesmo local de tratamento, com as mesmas demandas.
Considerações finais
Foi possível evidenciar a pluralidade e complexidade da construção de autonomia na confluência dos arcabouços teórico-práticos que compõem o campo psicossocial. Ela [ela quem?] provém da fundamentação dessas escolas, perpassando a práxis do processo de cuidado e apontando para os objetivos desse conjunto: a autonomia de sujeitos e grupos no processo de promoção de saúde durante a reprodução da vida individual e coletiva.
A sistematização, em três dimensões indissociáveis, ainda possibilitou destacar que tal conceito se desenvolve junto ao paradigma da saúde coletiva, que também está em um processo em curso. Aponta-se a necessidade, portanto, de se avançar com a rede de cuidados, valorizando os serviços já desenvolvidos. É possível, inclusive, que novas concepções teóricas e práticas de cuidado se desenvolvam a partir do próprio desenvolvimento atual da RAPS e do sistema de saúde, por mais que haja barreiras e retrocessos a serem superados.
Foi possível apresentar uma descrição abrangente de conceitos relativos à construção de autonomia que vêm embasando as análises acerca dos serviços de cuidado no Brasil. Considera-se que os conceitos e suas teorias de base representam um conjunto coeso que potencializa o desenvolvimento de ações e serviços das políticas de saúde mental e drogas no país.
Fica evidente, por fim, que, para que seja posta em prática a diretriz da estratégia de construção de autonomia, é necessário maior investimento na RAPS, para de fato ocorrer o combate à marginalização dos usuários que fazem uso abusivo de drogas. Para além dos CAPS e das unidades de saúde, é necessário investir nos dispositivos que favoreçam a promoção da saúde, com moradia de qualidade, emprego e educação, para se contrapor aos impactos de uma sociedade que adoece.
Referências
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- 3Gomes-Medeiros D, Faria P, Campos G, Tofoli L. Política de drogas e saúde coletiva: diálogos necessários. Cad Saude Publica 2019; 35(7):e00242618.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
27 Maio 2022 - Data do Fascículo
Jun 2022
Histórico
- Recebido
29 Jul 2021 - Aceito
24 Nov 2021 - Publicado
26 Nov 2021