“Espantosa mortandade”: desembarques, demografias e enfermidades africanas

Tânia Salgado Pimenta Flávio dos Santos Gomes Sobre os autores

Resumo

Este artigo contribui para conhecermos melhor as condições a que africanos estavam submetidos no imediato desembarque, estendendo o estudo para além do navio. Destaca a importância dos africanos orientais no Sudeste brasileiro no início do século XIX, o que deve ser considerado para o aprofundamento da análise sobre reinvenções identitárias, doenças e práticas de cura. As dores dessas pessoas tiveram como pano de fundo os debates e as negociações políticas em torno da proibição do tráfico atlântico e da independência do Brasil.

Palavras-chave:
História das doenças; Africanos; Tráfico atlântico; Escravizados

Introdução

Ainda na primeira década que experimentava contornos e limites do processo de separação política do Brasil (1822), quando autoridades, políticos e jornalistas discutiam projetos da nação, debatiam sobre soberania e civilização, o comércio de africanos e as enfermidades endêmicas mobilizavam médicos, comerciantes, autoridades sanitárias e representantes estrangeiros. Na Corte do Rio de Janeiro, em novembro de 1830, chegavam denúncias de “espantosa mortandade” nos desembarques dos navios Eliza, D. Estevão de Athaíde e Africano Oriental, que traziam africanos da costa oriental do continente. Denúncias alcançariam o encarregado de negócios da Inglaterra, que garantia existir “fortes provas para suspeitar que alguns escravos mortos” tinham sido “ilegalmente vendidos”. O governo imperial determinou “com toda a brevidade mandar proceder averiguações”11 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Fundo GIFI, 5 B, pacote 551, Ofício de 24 de novembro de 1830..

Durante quase seis meses, seriam realizadas investigações sobre o que teria provocado tamanha mortalidade. Autos de diligência seriam realizados para investigar detalhadamente as mortes nos navios Africano Oriental e Eliza. De acordo com as testemunhas, do embarque (520) para o desembarque (420), só do Eliza morreram 19% dos africanos. E no momento do depoimento haveria menos de 200, ou seja, 62% teriam morrido. A situação do navio Africano Oriental foi ainda mais dramática. Dos quase 370 africanos embarcados na costa oriental, apenas cerca de 260 desembarcaram no Rio de Janeiro, portanto 30% morreram na travessia. À época das diligências e investigações, somente 57 africanos tinham resistido - totalizando 85% de mortalidade - ao embarque, viagem, desembarque e período inicial de adaptação. Uma das testemunhas garantiu que sabia pelo cirurgião responsável que todos que faltavam tinham morrido. E que “lhe consta que a moléstia que tem causado esta mortandade tem sido principalmente disenterias escorbúticas”. Depois que o navio foi embargado, os africanos do Eliza que se achavam no Lazareto teriam passado para um dos armazéns do Valongo. O Lazareto passaria a receber os africanos enfermos do navio Athaíde, onde estava o restante dos africanos que vieram no Africano Oriental. Uma testemunha afirmou que os africanos tinham recebido “aquele tratamento que regularmente se costuma dar aos escravizados das Armações”. Mas com relação ao desenvolvimento da moléstia, não poderia atribuir a outras causas mais “do que a aquelas que geralmente costumam produzir moléstias e contágios a bordo das embarcações da África”. Finalizou seu depoimento definindo aquela atmosfera: “lhe consta que inda continua a grassar a moléstia e tanto que raro é o dia em que não morra algum”, e que para “os que têm morrido nesta Cidade consta-lhe que vão para a Misericórdia mas ignora donde têm sido sepultados os que têm morrido fora”22 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Fundo GIFI, 5 B, pacote 551, Ofício de 6 de maio de 1831..

Este artigo oferece reflexões - a partir da história das doenças e da demografia africana atlântica - que contribuem para conhecermos melhor as condições a que africanos - em especial orientais - estavam submetidos no imediato desembarque: imagens sobre doenças, experiências e mortalidade atlântica como possibilidades para investigações acerca de reinvenções identitárias, definições de corpo, doenças e práticas de cura.

Números e nomes de (da) dor

Vários estudos têm mostrado o impacto de doenças e morbidade nas travessias atlânticas. Ainda sabemos pouco sobre índices de mortalidade e a natureza das enfermidades no litoral africano, portanto bem antes dos embarques, e também daqueles que sucumbiam poucas semanas depois dos desembarques nas Américas. Se fossem capturados/vendidos na hinterland africana, estima-se que 10 a 12% podiam falecer nos barracões, feitorias e praias antes de serem embarcados33 Miller J. Legal Portuguese slaving from Angola. Some preliminary indications of volume and direction, 1760-1830. Rev Fr Hist Outre Mer 1975; 62(226-227):135-175.,44 Klein H, Engerman SL. Shippings patterns and mortality in the African slave trade to Rio de Janeiro, 1825-1830. Cah Etud Afr 1975; 59:381-398..

O episódio com os navios Eliza, D. Estevão de Athaíde e Africano Oriental acontece num momento em que se fecharia o Valongo e o tráfico se tornaria ilegal. A Grã-Bretanha condicionou o reconhecimento da independência brasileira a um novo tratado de abolição do tráfico de escravos, já que o Brasil não teria obrigação de cumprir os acordos anteriores. Após alguns anos de pressão externa e debates internos, em 1826 foi assinado um tratado de proibição do comércio de escravos, ratificado em 1827. Em novembro de 1831, foi aprovada a lei que proibia a importação de escravos para o país e punia os envolvidos na atividade ilegal.55 Mamigonian B. Africanos livres - a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; 2017. Além disso, o início do segundo quartel oitocentista coincide com o aumento da entrada massiva de africanos orientais nos portos cariocas.

No início do século XIX, cerca de quatro em cada cinco navios que partiram da África Oriental para portos com localizações especificadas desembarcaram em portos brasileiros, seguidos por Cuba e Rio da Prata, basicamente Montevidéu. Os africanos orientais que partiam para o sudeste oitocentista estavam saindo das localidades/portos de Sofala, Quilimane, Lourenço Marques, Inhambane e outros não determinados. As investigações de Klein e Karasch foram pioneiras. Usando notações alfandegárias, registros de navios negreiros apresados, de impostos, assentos prisionais e sepultamentos, Karasch66 Karasch M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras; 2000. (p. 46-47) destacou como africanos orientais já representavam quase 18% das importações negreiras na primeira metade do século XIX. Os dados do Slaves Voyages indicam sobremaneira o aumento da entrada africana oriental. Há registros de quase 3.500 viagens para o período do tráfico legal até 1831, e considerando cerca de 2.400 viagens para o sudeste até 1856 com informações sobre as regiões africanas dos portos de origem, verifica-se a predominância de africanos centrais (78,6%), seguidos por africanos orientais (18%) e, com a menor incidência, africanos ocidentais (3,4%)77 Slave Voyages. Comércio transatlântico de escravos - base de dados [Internet]. [acessado 2022 jan 10]. Disponível em: https://www.slavevoyages.org/voyage/database
https://www.slavevoyages.org/voyage/data...
. Era uma demografia crescente, pois entre 1817 e 1824 os africanos orientais eram 24,5%, enquanto no período de 1825-1830 eram 26,3%, conforme Karasch66 Karasch M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras; 2000. (p. 49, 52) e Klein88 Klein H. O tráfico de escravos africanos para o porto do Rio de Janeiro, 1825-1830. An Hist 1973; 85-101.

9 Klein H. The middlepassage (comparative studies in the Atlantic slave trade). New Jersey: Princeton University Press; 1978.
-1010 Klein H. Recent trends in study of the Atlantic slave trade. Hist Soc 1988; 1(1):123-142..

Para os cruzamentos entre aportamentos de navios negreiros e inventários post-mortem no Rio de Janeiro, investigações consistentes apareceram no estudo de Florentino. Os africanos orientais não alcançaram mais do que 3,1% no período de 1795 a 1810. Até 1811, o Rio de Janeiro concentrava no máximo 7% de navios que partiam da África Oriental, passando para 60% até 1830. No cômputo geral, entre 1790 e 1830, teriam desembarcado no Rio de Janeiro 110 mil africanos orientais. Foi também revelador a sua apuração sobre o perfil etário desse grupo, com base em amostras de inventários (1789-1832), verificando uma maior concentração de desembarcados homens e adultos (de 15 a 40 anos)1111 Florentino M. Aspectos socio-demográficos da presença dos escravos moçambicanos no Rio de Janeiro, c.1790-c.1850. In: Campos A, Fragoso, J, Florentino M, Sampaio ACJ, organizadores. Nas rotas do império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Brasília: EdUFES, Instituto de Investigações Científicas e Tropicais, CNPq; 2014. 177-224..

Uma forma de também verificar o impacto da entrada de africanos orientais nos portos cariocas são os registros eclesiásticos de batizados de africanos adultos nas cinco maiores paróquias urbanas do Rio de Janeiro (Candelária, Sacramento, Santa Rita, Santana e São José). Há a possibilidade de centenas de africanos terem desembarcado e sido enviados - sem batismos - imediatamente para freguesias do interior. O batismo dos africanos recém-chegados contemplava menos as autoridades, inclusive aquelas eclesiásticas que recolhiam impostos, e mais os proprietários de escravizados, mesmo aqueles provisórios. Sem descartar as dimensões simbólicas e rituais, os registros de batismos inventavam as primeiras relações de poder. Para o período de 1801 a 1830, até a proibição do tráfico, é possível esquadrinhar os universos de milhares de africanos entrando nos portos cariocas, sendo repartidos, alcançando todas as partes das áreas centrais da cidade, subúrbios, recôncavo e outras regiões mais interioranas. Num universo de quase 16 mil registros de batizados de africanos adultos (considerando as áreas/regiões africanas identificadas), localizamos os africanos orientais representados por 34,1% (5.693) nos batizados. A maior representação de nomenclatura de identificação desses africanos orientais é Moçambique, com mais de 89,5% (5.111), seguida por Quilimane com 9,2% (528) e Inhambane com quase 1% (53), nomes de dois importantes portos de tráfico nas margens do Oceano Índico1212 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Registros de batizados de africanos das paróquias da Candelária, Santana, São José, Santa Rita e Sacramento..

Se os assentos paroquiais de batismos oferecem informações sobre os padrões e perfis da entrada de africanos no Rio de Janeiro, os despachos de escravizados e passaportes são igualmente reveladores. Os africanos recém-chegados ao Rio de Janeiro no século XIX eram remetidos para diversas áreas interioranas da então província - especialmente o vale cafeeiro e a planície açucareira. Estudo de João Fragoso e Roberto Guedes quantificou as informações produzidas pela Intendência da Polícia da Corte entre 1809 e 1833. Em torno de 43 volumes de códices foram analisados, representando registros de passaportes para os escravizados que entravam no porto do Rio de Janeiro e eram remetidos para o interior, incluindo as localidades de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul.

Seguindo uma legislação da Polícia da Corte, tornava-se obrigatório a emissão de passaportes para viajantes que partiam da Corte em direção a outras regiões. Surgem informações sobre vendedores, compradores, mercadorias, proprietários, despachantes, destinos e, principalmente, número de escravizados, se africanos, nascidos no Brasil, sexo, novos ou ladinos, e também as nomenclaturas de identificação1313 Guedes R, Fragoso J. Alegrias e artimanhas de uma fonte seriada. Os códices 390, 421, 424 e 425: despachos de escravos e passaportes da Intendência de Polícia da Corte, 1819-1833. In: Botelho TR, Seminário de História Quantitativa e Serial, organizadores. História quantitativa e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: ANPUH-MG; 2001. p. 238-279.,1414 Guedes R, Fragoso J. Tráfico interno de escravos e relações comerciais no Sudeste do Brasil [CD-ROM]. IPEA; 2001.. A partir dessas fontes é possível ir além das análises sobre a distribuição desses africanos por mercados regionais”. Perspectivas da demografia africana ganham outras referências a partir deste segundo movimento migratório, quase sucedâneo ao tráfico atlântico. Africanos desembarcados e quantificados genericamente pelos aportamentos dos navios - não necessariamente ou obrigatoriamente batizados - eram identificados em registros policiais. As dimensões de controle e fiscalização mercantis e policiais também produziam ou reproduziam códigos, sentidos, signos e símbolos para milhares de africanos que fariam uma nova viagem após o desembarque nos portos cariocas.

Dezenas de volumes dos códices 390, 421, 424 e 425 sugerem variações e\ou confirmam padrões demográficos africanos. Segundo a quantificação realizada no referido estudo, são registrados, em remessas anuais, 187 mil escravizados, entre cativos novos, ladinos, “crias” (filhos/crianças) e também marinheiros. Dos “escravizados novos”, fundamentalmente africanos, mais de 149 mil apenas para os anos de 1819 a 1833, representando 79,4% dos cativos despachados ou de passaportes emitidos para o transporte deles. A maior parte era enviada para Minas Gerais, 39,6%, e o interior do Rio de Janeiro, 34%; seguida por São Paulo e Rio Grande do Sul, com respectivamente 15,7% e 6,9%. Fragoso e Guedes chamaram a atenção para importantes variações sazonais, taxas de impostos diferenciadas, flutuações, omissões, sub-registros e repetições que podem ser verificadas nessas fontes1313 Guedes R, Fragoso J. Alegrias e artimanhas de uma fonte seriada. Os códices 390, 421, 424 e 425: despachos de escravos e passaportes da Intendência de Polícia da Corte, 1819-1833. In: Botelho TR, Seminário de História Quantitativa e Serial, organizadores. História quantitativa e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: ANPUH-MG; 2001. p. 238-279.,1414 Guedes R, Fragoso J. Tráfico interno de escravos e relações comerciais no Sudeste do Brasil [CD-ROM]. IPEA; 2001..

Os padrões dos africanos desembarcados no Rio de Janeiro são confirmados nesses números. É possível propor um movimento de desagregação mais amplo dos registros sobre despachos, remessas e passaportes de africanos. Consideramos os códices 390, 421 e 425, além do 411 (adicionando mais de 22 mil registros à amostra)1515 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Códices 390, 411, 421 e 425.. Entre os anos de 1809 e 1833, temos em torno de 255 mil escravizados despachados, remetidos e com passaportes, incluindo escravizados novos, ladinos, crias e marinheiros. Desses selecionados, quase 14 mil possuíam algum tipo de identificação e\ou “nação”. Podemos verificar cerca de 12 mil africanos - os chamados “escravos novos” - despachados da Corte para várias regiões do Rio de Janeiro (interior), São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande no período de 1809 a 18311313 Guedes R, Fragoso J. Alegrias e artimanhas de uma fonte seriada. Os códices 390, 421, 424 e 425: despachos de escravos e passaportes da Intendência de Polícia da Corte, 1819-1833. In: Botelho TR, Seminário de História Quantitativa e Serial, organizadores. História quantitativa e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: ANPUH-MG; 2001. p. 238-279.

14 Guedes R, Fragoso J. Tráfico interno de escravos e relações comerciais no Sudeste do Brasil [CD-ROM]. IPEA; 2001.
-1515 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Códices 390, 411, 421 e 425..

Um olhar comparativo entre os registros paroquiais e os lançamentos de despachos de “escravizados novos” aparece para os africanos orientais. Eles somam 31,4% dos batizados das paróquias urbanas entre 1801-1860, sendo que em 1801-1830 alcançam 34,1%. Esses índices caem quando analisamos todos os registros para as paróquias, urbanas e rurais, entre 1801-1860: 26,8%. A questão central que pode emergir nessas comparações iniciais é sobre o mercado de escravizados em função de sua oferta, demanda e padrões africanos, além das próprias enfermidades e apreensões sobre elas1616 Johnson W. Soul by Soul. Life inside the Antebellum Slave Market. Cambridge: Harvard University Press; 1999. (p. 186).

As variações de aportamentos, batizados e despachos devem ser cruzadas com os índices de mortalidade e suas flutuações, em especial nos anos finais do tráfico legal. No Rio de Janeiro urbano, no cemitério do Valongo, contíguo à área de desembarque, somente entre 1825 e 1829 foram sepultados 5.826 “pretos novos”. O estudo completo de Júlio Pereira com registros de sepultamentos entre 1824 e 1830 sugere o impacto da mortalidade articulado com o aumento da demografia dos africanos orientais. Para os anos de 1828-1829, os africanos orientais somavam 26,8% dos africanos sepultados. Os números dos sepultamentos desses africanos entre 1824 e 1829 tiveram grande crescimento, passando de cinco óbitos em 1824 para 146, em 18291717 Pereira JCMS. À Flor da Terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de Janeiro, Garamond; 2007..

Relatos dramáticos ganhariam força na literatura de viajantes, e mesmo numa memória antiescravista, já na primeira metade do século XIX. Pascoe Grenfell Hill ofereceu um relato único de sua permanência por quase dois meses em um navio negreiro capturado que fazia a rota de Moçambique ao Brasil. Detalhes de seu relato já são definidos pela contabilidade fúnebre. Mais de um quarto dos africanos morreram, totalizando 177, isto é, 27%. Hill descreveu o que classificou como “o maior sofrimento físico” no caso, a “sede violenta e insaciável”. As “gotas de chuva que ficam nas velas” e os “mastros molhados” eram disputados por lábios e gargantas secas. Para aqueles que adoeciam, a falta de água era ainda pior. Ele viu “alguns doentes lambendo o convés depois que este foi lavado com água do mar” 1818 Hill PG. Cinquenta dias a bordo de um navio negreiro. Rio de Janeiro: José Olympio; 2006.. O Progresso, navio de aproximadamente 140 toneladas foi capturado pela Marinha inglesa e levado para Freetown, em Serra Leoa. Partindo de Paranaguá - litoral paranaense - com destino à África Oriental e com retorno planejado para o Rio de Janeiro, essa embarcação foi apresada em 1842. Mais especificamente, a embarcação saía das proximidades do litoral de Quilimane quando foi interceptada. Tratava-se de um negreiro com bandeira brasileira, atuando em plena vigência do tráfico ilegal, sob a direção do capitão Antônio Rodrigues Chaves. Quem capturou foi o navio H.M.S. Cleópatra, do comandante inglês C. Wyvill. Estava bem carregado, com 444 escravizados - fora tripulação de dez pessoas entre capitão, marinheiros e cozinheiros. A tragédia costumeira, com índices de mortalidade que giravam em torno de 20 a 30%, foi ampliada ainda mais. Havia nele 189 homens, 45 mulheres e 213 crianças. Considerando apenas os adultos, havia quase 24% de mulheres. Mas no computo final, 177 africanos tinham morrido de varíola, disenteria e outras causas, ou seja, praticamente 40% morreram.

Publicado com o título “Cinquenta dias a bordo de um navio negreiro”, o diário de Pascoe Hill descreve - em primeira pessoa - dias, horas e noite de mortes, gritos, dores e clima de terror generalizado1818 Hill PG. Cinquenta dias a bordo de um navio negreiro. Rio de Janeiro: José Olympio; 2006.. Capela demonstrou que a mortalidade do tráfico de africanos orientais podia oscilar de 25% a 35%. Em 1819, um relatório feito por Dom Frei Bartolomeu dos Mártires sobre navios que partiam de Moçambique para os portos de Rio de Janeiro, Pernambuco e Salvador sugere 20% de mortos em terra (antes dos embarques) e mais 25% mortos em viagens19 (p. 260-261, 263).

Nessas diversas ambiências - praias e litoral na África, porões dos navios, portos de improvisados desembarques e romaria até os trapiches -, não deviam faltar personagens atlânticos: cozinheiros, sangradores, marinheiros, negociantes, meirinhos, fiscais de alfândega - muitos dos quais africanos, que já estavam inseridos nas redes do tráfico. Em muitas situações, foram esses os primeiros tradutores de milhares de africanos que chegavam cada vez mais em grupos, que nem sempre viravam multidões. Bernardo deve ter desempenhado esse papel, pois seu proprietário pedia licença, em 1828, para que o cativo pudesse atuar como sangrador na viagem da galera Novo Comerciante para Moçambique, alegando que ele já fizera “diferentes viagens aos portos da África”. Não conseguimos descobrir se Bernardo era também de Moçambique, nem mesmo se era africano, como os 61% dos sangradores autorizados pela Fisicatura-mor2020 Pimenta TS. A arte da sangria. Circularidade de ideias e práticas (Rio de Janeiro, I metade do século XIX). In: Beneduzi LF, Dadalto MC, organizadores. Mobilidade humana e circularidade de ideia. Diálogos entre a América Latina e a Europa. Veneza: Edizioni Ca' Foscari; 2017. p. 161-171.. Sabemos que o Novo Comerciante foi para a África Oriental em 1829 e desembarcou no final do ano com 474 dos 550 africanos escravizados embarcados em Quilimane77 Slave Voyages. Comércio transatlântico de escravos - base de dados [Internet]. [acessado 2022 jan 10]. Disponível em: https://www.slavevoyages.org/voyage/database
https://www.slavevoyages.org/voyage/data...
. É provável que Bernardo tenha contribuído para a sobrevivência de alguns entre os que conseguiram colocar os pés no Rio de Janeiro.

Expectativas pós-desembarques foram inúmeras. Indo da imediata venda dos portos para negociantes varejistas, ou senhores mais afoitos à procura de mercadorias encomendadas, ou mesmo a distribuição - quem sabe já realizada na montagem do investimento negreiro - para determinados fazendeiros e negociantes. Seria um tempo intenso, imediato e complexo das primeiras experiências dos africanos na diáspora.

Doenças e curas atlânticas

Epidemias e péssimas condições navegavam juntas, alcançando portos de desembarques. Em 1808, Manoel Vieira da Silva, o primeiro físico-mor e provedor-mor - cargos instituídos após a vinda da Corte portuguesa -, apontava que as embarcações negreiras se caracterizavam pela “falta de asseio, de tratamento, e de grande número de indivíduos, que a ambição obriga a ajuntar em um curto espaço”2121 Silva MV. Sobre alguns dos meios propostos por mais conducentes para melhorar o clima da cidade do Rio de Janeiro, 1808. In: Silva MV, Peixoto DRG. A saúde pública no Rio de Dom João. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio; 2008. p. 64-82. (p. 77). Já em 1820, o cirurgião-mor Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto alertava sobre a proliferação de “moléstias” - que produzia “grande mortandade” - ainda durante a travessia, descrevendo escravizados “acumulados em armazéns pequenos e muito pouco ventilados”. Tal situação acabaria por favorecer “o desenvolvimento do chamado maculo, ou corrupção, da disenteria, diarreia, oftalmias rebeldes, febres mucosas e catarrais, escorbuto, edema, reumatismo o fibroso, tumores purulentos, o mal de estômago, bexigas, sarampo, sarna, que apresenta o caráter contagioso, e outras erupções de pele, que se fazem crônicas”2222 Peixoto DRG. Aos sereníssimos príncipes reais do Reino Unido de Portugal e do Brasil, e Algarves, os senhores D. Pedro de Alcântara e D. Carolina Josefa Leopoldina oferecem, em sinal de gratidão, amor, respeito, e reconhecimento estes prolegômenos, ditados pela obediência, que servirão às observações, que for dando das moléstias cirúrgicas do país, em cada trimestre, Domingos Ribeiros dos Guimarães Peixoto, cirurgião da Câmara de El-Rei Nosso Senhor. In: A saúde pública no Rio de Dom João. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio; 2008. p. 84-118. (p. 109-110).

Índices de mortalidade, lucros, oferta elástica, avanços de tecnologias náuticas e demandas escravistas conviveriam. Desde o fim do século XVII, havia tentativas, por meio de Alvarás, de regular a quantidade de africanos por navios, o número de refeições diárias, o volume de água por dia, medicamentos e até capelão a bordo para rezar missas e dar extrema-unção aos moribundos. Misturar o quantitativo da carga negreira, com água, duração do tempo de viagem, correntes marítimas, qualidade dos alimentos, pilotos com destreza e tripulação experiente variava entre riscos presumidos ou retumbantes êxitos comerciais. A ampliação do tempo de viagem versus condições de insalubridade aumentava geometricamente as médias de mortes2323 Rediker M. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras; 2011. (p. 280-283).

A mortalidade era impactada também pela duração das viagens negreiras. A extensão média de uma viagem de Luanda para o Rio de Janeiro podia ser de 33 a 40 dias, enquanto para os portos de Moçambique, Inhambane e Quilimane - África Oriental - podia alcançar 76 dias1515 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Códices 390, 411, 421 e 425.. Fazia todo sentido a preocupação com a quantidade de africanos mortos a bordo dos navios Eliza, D. Estevão de Athaíde e Africano Oriental. Já no final de 1830, foi realizada rigorosa averiguação, não devendo ficar “imunes os que se acharem criminosos de alguma fraude, atentado, desleixo, ou outra qualquer coisa que tenha concorrido para um tão triste resultado” 2424 Correio Mercantil 1830; 1 dez. p. 3.. As diligências para averiguar a mortandade no D. Estevão de Athaide - ocorridas durante a viagem, sobretudo aquelas por ocasião dos depósitos antes da venda - constataram que havia 286 africanos na embarcação quando a mesma passou pela alfândega, isso em 30 de outubro. Dessa data até 6 de novembro, entrada no depósito, foram contabilizados cinco mortos. Porém, no início de dezembro, falava-se de uma carga de apenas 190 a 180 africanos. Isso significava uma baixa que cerca 34%, considerando os que chegaram vivos no Rio de Janeiro. A explicação inicial do encarregado foi de que havia muitos doentes por ocasião do desembarque, sendo muitos enviados para os armazéns do Lazareto, enquanto outros tantos seguiram para serem tratados em suas casas e também fora da cidade, em Praia Grande, para onde teriam ido quase 30 deles. A maior parte teria falecido - argumentou - de escorbuto e diarreia, tendo sido tratada pelo cirurgião-mor Jose Maria, ajudado por um barbeiro que já estava no navio2323 Rediker M. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo: Companhia das Letras; 2011.. Entre as testemunhas, houve quem garantisse que a embarcação já apresentava muita contaminação durante a viagem. Foram contabilizadas 76 óbitos de africanos nos primeiros 30 dias, depois que passaram do Cabo de Boa Esperança. Dizia que “toda a armação” viera doente dos olhos e quase 60 africanos apresentavam a moléstia chamada de Olanda, “de sorte que já não se mexiam e que muitos dos escravizados existentes inda se acham doentes dos olhos e da dita moléstia de Olanda”. É possível considerar algum erro do escrivão ou do depoente, provavelmente se referiam ao chamado “mal de Luanda”, uma denominação para o escorbuto.

José Francisco Xavier Sigaud (1796-1856)2525 Sigaud JFX. Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste Império. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009 [1844]., um dos mais importantes médicos do período, chamou atenção para as enfermidades. Um dos fundadores da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, criada em 1829, Sigaud apontava a oftalmia e o escorbuto como enfermidades especialmente relacionadas ao tráfico atlântico. Defendeu a tese de que a oftalmia importada da África por meio dos navios do tráfico produzira - em diversos momentos - verdadeiras “devastações epidêmicas”, rapidamente se espalhando e sendo acompanhada por catarros, disenteria e febres intermitentes. Observador da época, conhecera tudo de perto, garantindo ter presenciado episódios em “ocasiões frequentes de verificar suas devastações” tanto a bordo dos negreiros como no mercado do Valongo. Ainda para 1830, comentaria sobre “dois carregamentos de negros contaminados”, descrevendo um com “grande número de oftalmias benignas”. Ele se referia aos navios Eliza, D. Estevão de Athaíde e Africano Oriental? Sigaud destacou que foram realizadas “sangrias gerais” e, posteriormente, “os emeto-catárticos, os banhos emolientes e as loções adstringentes”. Ainda assim, o quadro de cegueira continuaria grande2525 Sigaud JFX. Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste Império. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009 [1844]. (p. 255-256). A cegueira tinha várias causas, como glaucoma, catarata, deficiência de vitamina A, além de se associar a enfermidades como varíola, sarampo, sífilis e lepra. Devido às mãos contaminadas, bactérias chegavam aos olhos, muitas vezes determinando a perda de visão. No caso de africanos, associa-se a oftalmia ao tracoma ou à oncocercose. Também associada às condições de higiene, o tracoma era uma doença virótica, que atacava a conjuntiva e a córnea, deixando cicatrizes que prejudicavam a visão, causando cegueira. A oncocercose era uma infestação parasítica de filária, cujos sintomas eram nódulos na cabeça e no tronco, lesões na pele e forte coceira. Contudo, a doença demorava a se desenvolver, em comparação com o tracoma, sendo improvável que causasse quadros agudos de cegueira nos navios do tráfico, de acordo com Karasch66 Karasch M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras; 2000. (p. 229-230).

Especificamente sobre o escorbuto, Sigaud concordava que fora “frequentemente introduzido nas costas do Brasil pelos navios negreiros”, mas ressaltava que raras vezes havia se propagado, “limitando sua ação funesta aos negros amontoados a bordo desses navios, os quais, ao desembarcar, mal tocavam o solo e a morte lhes colhia subitamente”. Ele ofereceu testemunho próprio afirmando ter visto, em 1829, na praia do Morro da Saúde, o desembarque de “um carregamento de negros escorbúticos”. Em sua descrição trágica, à “medida que tiravam aqueles infelizes da posição horizontal e que se envidavam esforços para mantê-los de pé, a lipotimia súbita sobrevinha e em poucos minutos os negros expiravam sem convulsões”2525 Sigaud JFX. Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste Império. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009 [1844].,2626 Rodrigues J. De costa a costa. Escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras; 2005.. Esse relato detalhado sugere pensar como doenças, sintomas, aspectos corpóreos e mentais dos africanos eram observados e imediatamente traduzidos - em avaliações e relatórios - por médicos e cirurgiões. Percepções de doenças e suas origens, assim como expectativas de intervenções médicas, eram anotadas em busca de definições, diagnósticos e tratamentos. As observações de Sigaud - e talvez informações que buscava junto a capitães de navios, marinheiros e quem sabe sangradores - transformavam-se em experiência clínica.

Não raras vezes, africanos - não necessariamente aqueles desembarcados - e aqueles escravizados nascidos no Brasil foram tratados no hospital da Santa Casa da Misericórdia. Funcionava ali como outro espaço de observação original, posto ser o mesmo local onde aconteciam as aulas práticas da Academia Médico-Cirúrgica. Em 1832, com a criação da Faculdade de Medicina, as aulas práticas foram mantidas naquele hospital. Pessoas, indivíduos e corpos de africanos escravizados sob condições de “enfermos” eram utilizados para a constituição de saberes, educação, formação e produção do conhecimento médico2727 Lima SCS. O corpo escravo como objeto das práticas médicas no Rio de Janeiro (1830-1850) [tese]. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz; 2011.. Muitos dos africanos que sucumbiram às doenças e às condições a que estavam submetidos foram enterrados no cemitério da Santa Casa da Misericórdia, tendo passado ou não por seu hospital. Seus corpos eram encaminhados para o sepultamento com ofícios de inspetores de quarteirão, juízes de paz ou com atestados de óbito assinados por médicos ou cirurgiões. Em investigação pioneira junto aos registros da Santa Casa ainda no final da década de 1970, Karasch ofereceu uma amostra sobre os africanos ali sepultados nos anos nas décadas de 1830 e 1840. Em 1833, no ápice, os africanos orientais representavam 24,8% dos sepultados, caindo para 16,8% em 1838 e 15,6% em 184966 Karasch M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras; 2000..

Uma hipótese que pode ser melhor testada foi proposta por Florentino ao analisar as faixas etárias, a mortalidade e as lógicas do tráfico dos africanos orientais. Segundo ele, havia uma “conta microbiana, tornando mais frágeis os afro-orientais no Brasil, ainda não totalmente adaptados do ponto de vista imunológico”1111 Florentino M. Aspectos socio-demográficos da presença dos escravos moçambicanos no Rio de Janeiro, c.1790-c.1850. In: Campos A, Fragoso, J, Florentino M, Sampaio ACJ, organizadores. Nas rotas do império: eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Brasília: EdUFES, Instituto de Investigações Científicas e Tropicais, CNPq; 2014. 177-224. (p. 211). Frequentemente, os historiadores têm aceitado a ideia de que as populações africanas trazidas nos tumbeiros foram responsáveis pela disseminação de doenças, muitas das quais desconhecidas dos continentes europeu e americano. Essa afirmação estaria fundamentada em consensos biológicos cristalizados na área da saúde. Diana Maul de Carvalho problematizou tal questão, lembrando da importância dos contextos no entendimento de doenças para estudos historiográficos. A autora critica tais consensos biológicos naturalizados, “aumentando o escopo de alternativas diagnósticas e de cenários possíveis em relação à saúde das populações estudadas”. Sua proposta é debater “até onde os indícios das variadas fontes podem nos levar na tentativa de distinção entre doenças existentes no território africano no século XIX que possam ter cruzado o Atlântico em qualquer dos dois sentidos a partir do século XVI, e se estabelecido na outra margem”. Além disso, torna-se importante atentar para as “doenças cujos agentes etiológicos já estavam presentes, mas a produção da doença é viabilizada ou amplificada pelo tráfico de escravizados”2828 Carvalho DM. Doenças dos escravizados, doenças africanas? In: Pôrto Â, organizadora. Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas [CD-ROM]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007. p. 1-21..

É importante matizar a visão que torna o tráfico atlântico exclusivamente como propagador de doenças e epidemias. Impactos microbianos tinham desdobramentos conjunturais e demográficos, sendo fundamental destacar o clima, regimes econômicos, demografia, padrões de propriedade, dieta alimentar, entre outras dinâmicas de morbidade e mortalidade2929 Eltis D. Mortality and voyage length in the middle passage: new evidence from the nineteenth century. J Econ Hist 1984; 44(2):301-308.

30 Eltis D. Fluctuations in mortality in the last half century of the transatlantic slave trade. Soc Sci Hist 1989; 13(3):315-340.

31 Engerman S, Haines R, Klein H, Shlomowitz R. Transoceanic mortality: the slave trade in comparative perspective. William Mary Q 2001; 58(1):93-118.
-3232 Miller J. Mortality in the atlantic slave trade: statistical evidence on causality. J Interdiscip Hist 1981; 11(3):385-423. Também podemos pensar num movimento contrário. Eltis argumentou que o impacto epidemiológico europeu no continente africano foi negligenciado nas abordagens históricas sobre o tráfico atlântico33 (p. 161).

Em importantes estudos mais recentes, Kaori Kodama3434 Kodama K. Os debates pelo fim do tráfico no periódico O Philantropo (1849-1852) e a formação do povo: doenças, raça e escravidão. Rev Bras Hist 2008; 28(56):407-430., Dale Graden3535 Graden DT. Disease, resistance, and lies. The demise of the transatlantic slave trade to Brazil and Cuba. Baton Rouge, LA: Louisiana State University Press; 2014. e Manuel Barcia3636 Barcia M. The yellow demon of fever. Fighting disease in the nineteenth-century transatlantic slave trade. New Haven and London: Yale University Press; 2020. demonstraram os impactos epidemiológicos da febre amarela no tráfico atlântico, considerando a enfermidade, as percepções das autoridades, as lógicas comerciais realinhadas e as relações políticas. Significa pensar também as doenças para além dos primeiros impactos do tráfico e mortalidade, mas também diante de ondas epidemiológicas. No Rio de Janeiro, africanos então recém-comprados - que seguiam para as áreas cafeeiras de Vassouras e Valença - eram vitimados pelo cólera, que entre os anos de 1855 e 1856 provocou alta mortalidade na população escrava tanto no centro da cidade como no interior da província. Na Corte Imperial, das 4.899 vítimas do cólera, 2.523 eram escravas. Em meados de 1856, em apenas oito dias o cólera matou mais de 30 escravos na fazenda do Rio Seco, município de Rio Bonito. Em Barra Mansa, das 372 pessoas falecidas, 311 eram escravas. Já na Vila de São João do Príncipe, em apenas um mês e meio - no final do ano de 1855 e início de 1856 - 498 pessoas foram infectadas, sendo 164 livres e 334 cativos. Dos 160 mortos, 108 eram escravos3737 Rio de Janeiro. Relatório da Vice-Presidencia da Província do Rio de Janeiro, 1855. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert; 1856. (p. 28, 30-31, 35-36, 38, 81).

É possível pensar, para além dos tratamentos médicos, como os africanos recém-chegados enfermos eram vistos, em conjunto, com maior atenção, tanto diante de doenças contagiosas que podiam se propagar como em relação a cuidados com as condições a que estiveram submetidos, podendo desencadear ou agravar mais as enfermidades, como sugere o relato de Sigaud.

Considerações finais

Para além da quantificação, experiências africanas de morte no tráfico atlântico e nos primeiros períodos de adaptação, ou mesmo em cenários de plantation e de cidades negras, podem ser as portas de entradas para localizarmos cosmologias, reinvenções identitárias e as definições de corpo, doença e práticas de cura3838 Brown V. Social death and political life in the study of slavery. Am Hist Rev 2009; 14(5):1231-1249..

Há movimentos ainda invisíveis, porém muito importantes, que são os desembarques e, principalmente, o reenvio para as inúmeras casas de negócio, trapiches e galpões na parte central da cidade do Rio de Janeiro. Consistia em um movimento cíclico e intenso com vários picos anuais: a paulatina chegada de africanos, retirados dos navios negreiros, desfilando nas ruas da cidade para chegar aos armazéns e casas de negócio. Outra etapa, nem sempre obedecida, era aquela da inspeção sanitária e do envio para o Lazareto. Há um tempo providencial aí, quando em poucos dias os sofrimentos e as agruras da viagem são aumentados e acompanhados pela tortuosa expectativa da venda e o envio para as unidades de trabalhos, fossem nas áreas suburbanas ou rurais, mais afastadas. Tempo irreversível de transformações nas vidas de milhares de indivíduos. Ali, tais homens e mulheres - muitos bem jovens - passavam a ser africanos (no sentido desta identificação genérica), ganhavam nomes e certamente desenhavam as suas primeiras identidades3939 Alpers EA. 'Mozambiques' in Brazil: another dimension of the African diasporic in the Atlantic world. In: Curto JC, Soulodore-La France R, editors. Africa and the Americas: interconnections during the slave trade. Trenton and Asmara: Africa World Press; 2005, p. 43-68.. Para além do sofrimento, perdas e mortalidade, tais tempos - viagens, desembarques e envio para os trapiches - estariam marcados por dor e aventuras na diáspora.

Além da dimensão trágica, as travessias atlânticas revelam narrativas de corpos em disputas e interpretações em movimento. Já sabemos sobre as condições de viagens, mas pouco acerca das expectativas na travessia, e menos ainda sobre as primeiras visões nos desembarques. Tragédias marítimas se repetiram entre os séculos XVI e XIX, agravando-se com o tráfico ilegal.

O episódio da embarcação O Progresso, narrado por Hill, e as denúncias em torno dos desembarques e das epidemias nos navios Eliza, D. Estevão de Athaíde e Africano Oriental nos fazem refletir a respeito das limitações dos arquivos para pensar os impactos das doenças e as primeiras visões sobre elas. Nomes e personagens não foram menos importantes, e dores e traumas estão quase sempre invisíveis nas fontes. Viagens longas e trágicas, sob condições subumanas. Também lógicas africanas desses processos permanecem invisíveis40, 41.

Referências

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  • Financiamento

    Esse artigo foi desenvolvido com o financiamento dos editais CNPq/MCTI/FNDCT Nº 18/2021 e PROEP-COC CNPq.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Set 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2022
  • Aceito
    18 Abr 2022
  • Publicado
    20 Abr 2022
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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