Resumo
O objetivo desse artigo é avaliar a associação entre segregação residencial racial e mortalidade por homicídios em Minas Gerais (MG). Trata-se de estudo ecológico, com os municípios de MG como unidades de análise. O desfecho foi óbitos por homicídio ocorridos de 2008 a 2012 e a exposição a medida de segregação residencial índice de interação racial, estimada para 2010 a partir dos dados do censo demográfico; outras covariáveis foram renda média per capita e índice de Gini. As variáveis foram apresentadas em mapas temáticos e a associação entre elas foi investigada por modelos hierárquicos bayesianos. Houve associação negativa entre o índice de interação racial e a mortalidade por homicídios (coeficiente=-1,787; IC95%=-2,459; -1,119), em modelo ajustado pela renda per capita. Os municípios de MG com maior interação racial tiveram em média uma menor mortalidade por homicídios.
Palavras-chave:
Segregação social; Causas externas; Análise espacial; Disparidades nos níveis de saúde
Introdução
Um dos determinantes sociais da saúde que vem sendo mais estudado ultimamente é a segregação residencial, que expressa a separação das pessoas e a exclusão de segmentos da população por razões econômicas, sociais, culturais, raciais, étnicas ou outras11 Smets P, Salman T. The multi-layered-ness of urban segregation. Habitat Int 2016; 54:80-87.. A percepção de que apenas fatores individuais não explicam integralmente o processo saúde-doença nas populações gerou o interesse de estudar o contexto em que as pessoas vivem. O estudo de características da vizinhança permite isso, por possuir atributos tanto sociais, quanto físicos, que podem ser vistos como determinantes da saúde. Uma área com especial interesse é a que estuda disparidades sociais e raciais em saúde, uma vez que o lugar de residência tem grande influência da posição social e da raça/etnia. Quando se pensa a promoção da saúde como ações intersetoriais, com impacto nas condições de vida e de trabalho das pessoas e populações, um dos focos é o lugar onde as pessoas habitam22 Diez-Roux AV, Mair C. Neighborhoods and health. Ann N Y Acad Sci 2010; 1186:125-145.. Medidas de segregação residencial locais têm maior sensibilidade para detectar associação com desfechos em saúde33 Krieger N, Feldman JM, Waterman PD, Chen JT, Coull BA, Hemenway D. Local Residential Segregation Matters: Stronger Association of Census Tract Compared to Conventional City-Level Measures with Fatal and Non-Fatal Assaults (Total and Firearm Related), Using the Index of Concentration at the Extremes (ICE) for Racial, Economic, and Racialized Economic Segregation, Massachusetts (US), 1995-2010. J Urban Health 2017; 94(2):244-258..
A segregação residencial é um fenômeno multidimensional. Enquanto as medidas de segregação mostram o quanto dois ou mais grupos vivem separadamente no espaço, as dimensões mostram diferentes aspectos desta separação, embora haja um elevado grau de sobreposição destas medidas no nível empírico das pesquisas. A dimensão “exposição” representa o grau de contatos potenciais entre os grupos sociais nas áreas de residência e o índice de interação é um dos indicadores mais usados desta dimensão44 Massey DS, Denton NA. The Dimensions of Residential Segregation. Soc Forces 1988; 67(2):281-315..
No Brasil as causas externas correspondem à terceira principal causa de morte, ressaltando-se os homicídios e os acidentes de transporte, sendo mais frequentes nos grupos etários de 1 a 49 anos. Na América do Sul, o Brasil apresenta a terceira maior mortalidade por homicídios dentre os países, com taxa de mortalidade até dez vezes maior que a de países de alta e média renda55 Malta DC, Minayo MCS, Soares Filho AM, Silva MMA, Montenegro MMS, Ladeira RM, Morais Neto OL, Melo AP, Mooney M, Naghavi M. Mortalidade e anos de vida perdidos por violências interpessoais e autoprovocadas no Brasil e Estados: análise das estimativas do Estudo Carga Global de Doença, 1990 e 2015. Rev Bras Epidemiol 2017; 20:142-156..
A violência tem se tornado um fator importante na geração de impactos nos sistemas de saúde, na economia dos países e na saúde física e emocional das pessoas. Ressalta-se que a distribuição das taxas de mortalidade por homicídios é heterogênea, apresentando-se mais elevada nas regiões Norte e Nordeste do país. Com maior frequência, a mortalidade por causas externas acomete homens jovens e exacerba-se em condições de desigualdades estruturais, socioeconômicas e no contexto de práticas ilícitas55 Malta DC, Minayo MCS, Soares Filho AM, Silva MMA, Montenegro MMS, Ladeira RM, Morais Neto OL, Melo AP, Mooney M, Naghavi M. Mortalidade e anos de vida perdidos por violências interpessoais e autoprovocadas no Brasil e Estados: análise das estimativas do Estudo Carga Global de Doença, 1990 e 2015. Rev Bras Epidemiol 2017; 20:142-156.,66 Modesto JG, Alves AYM, Santos LV, Archanjo CCC, Araújo GS. Fatores que influenciam na mortalidade de jovens por causas externas no Brasil: Uma revisão da literatura. Rev Multidebates 2019; 3(2):137-155.. Dentro do estado de Minas Gerais, também se verifica uma heterogeneidade na distribuição espacial das taxas de mortalidade por homicídios e de crimes violentos em geral77 Gomes CE, Evangelista TF, Lima RL, Parré JL. Determinantes do crime nos municípios de Minas Gerais e seus possíveis spillovers espaciais. Econ Ensaios 2017; 31(2):201-228..
Apesar da importância deste tema de pesquisa, não encontramos nenhum estudo empírico feito no Brasil que tenha investigado a relação entre medidas de segregação residencial e de mortalidade por homicídios. Em razão da importância desta causa de mortalidade e sua relação com o contexto social, o objetivo deste estudo foi estimar a associação entre o índice de interação racial e a taxa de mortalidade por homicídios em municípios de Minas Gerais (MG), estado que se caracteriza por sua grande dimensão e heterogeneidade regional, refletindo, de certa forma, as grandes diversidades nacionais.
Métodos
Foi realizado um estudo ecológico transversal, no qual as unidades de análise foram os municípios de Minas Gerais (MG). A variável dependente (desfecho) foi a soma de óbitos por homicídios no período de 2008 a 2012 obtido no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) na plataforma do Departamento de Informática do SUS (DATASUS) em 27/11/2019. Foi utilizado um período de 5 anos de dados de óbito para reduzir a variação aleatória relacionada a dados de pequenas áreas, pois muitos municípios apresentam pequenas populações e poucos óbitos.
A exposição de interesse foi o índice de interação racial (IIR), uma medida de segregação residencial da dimensão “exposição”44 Massey DS, Denton NA. The Dimensions of Residential Segregation. Soc Forces 1988; 67(2):281-315.. Este indicador, que varia de 0 (menor interação) a 1 (maior interação), foi estimado para os municípios a partir de dados do Censo Demográfico 2010, baixados da página do IBGE na área de Estatísticas (https://www.ibge.gov.br/estatisticas/downloads-estatisticas.html) em 10/11/2019. Nesta página, foi selecionado o diretório Censos, seguido de Censo_Demográfico_2010, Resultados_do_Universo e por fim Agregados_por_Setores_Censitários. Deste último diretório foi baixado o arquivo compactado “MG_20171016.zip”, tendo sido utilizado o arquivo “Pessoa03_MG.csv” para obter o número de pessoas residentes totais e por raça/cor (variáveis v001 a v006) por setores censitários. Posteriormente, os dados foram agregados por municípios, pois para o cálculo do índice de interação racial para os municípios são necessários dados em ambos os níveis geográficos, setores censitários e municípios. Foi criada a categoria de raça/cor “negra” como a soma de “preta” e “parda”, para comparação com a categoria “branca”. O cálculo do IIR foi feito pela equação88 Sparks CS. Calculating indices of residential segregation [Internet]. [cited 2021 maio 19]. Available from: https://rpubs.com/corey_sparks/473785.
https://rpubs.com/corey_sparks/473785... :
Em que: IIR=índice de interação racial; ai=população do grupo A (branca) na subárea i; bi=população do grupo B (negra) na subárea i; B=população do grupo B na área maior; ti=população total na subárea i; subárea=setores censitários; área maior=município.
Outras covariáveis usadas nas análises, para controle de confundimento, foram a renda per capita familiar e o índice de Gini no ano de 2010, também obtidas do Censo Demográfico 2010 do IBGE.
A distribuição estatística das variáveis foi apresentada em tabela. Foram elaborados mapas temáticos com a distribuição por quintis dos indicadores e estimada a medida de correlação espacial geral índice de Moran global99 Ord JK. Estimation methods for models of spatial interaction. J Am Stat Assoc 1975; 70:120-126..
Foram estimadas as razões de mortalidade padronizada (RMP) (em inglês SMR - Standardized Mortality Ratio), pela divisão entre os óbitos observados (Oi) e esperados (Ei) em cada município99 Ord JK. Estimation methods for models of spatial interaction. J Am Stat Assoc 1975; 70:120-126.. Para levar em conta as diferenças de estrutura etária entre os municípios, os óbitos esperados foram estimados como o somatório dos valores esperados em cada faixa etária, obtidos multiplicando as taxas específicas por faixa etária do estado (rj s) pela população específica da faixa etária em cada município (nj):
Em que: Ei=valor esperado de óbitos em cada município i; rj=taxa de mortalidade específica em cada faixa etária j; nj=população específica em cada faixa etária j.
Para analisar a associação entre o IIR e os óbitos por homicídios, foram ajustados modelos hierárquicos bayesianos, com estimação de um efeito aleatório não estruturado (que permite ajustar para a superdispersão e captar o efeito de fatores não mensurados) e de um efeito aleatório estruturado espacial (que permite ajustar para a dependência espacial entre as observações). Este componente estruturado espacial foi modelado com uma distribuição autorregressiva condicional (em inglês: conditional autoregressive - CAR), que suaviza os dados de acordo com uma estrutura de adjacência dada por uma matriz de vizinhança entre os municípios, neste caso por contiguidade1010 Moraga P. Small area disease risk estimation and visualization using R. RJ 2018; 10(1):495-506..
Foi utilizada como variável offset nos modelos os valores esperados de óbitos (Ei), desta forma o modelo estima a RMP para cada município, resultados da divisão dos óbitos observados (Oi) pelos esperados (Ei), ajustados pelas covariáveis. Foi utilizado o método de estimação bayesiana INLA (Integrated Nested Laplace Approximation), com uso da biblioteca INLA (http://www.r-inla.org/) do programa R (https://cran.r-project.org/). Foi especificada uma distribuição a priori não informativa, usada quando se espera que a informação dos dados seja dominante no ajuste dos modelos. Foram estimados modelos com e sem as covariáveis renda per capita e índice de Gini. São apresentadas nas tabelas, para cada coeficiente das variáveis, as médias e os percentis 2,5 e 97,5 da distribuição a posteriori (intervalo de credibilidade de 95% - IC95%). Para a escolha do modelo final foi utilizado o critério de informação DIC (Deviance Information Criterion). O modelo é descrito a seguir:
Em que: y=variável resposta observada (óbitos); µ=média estimada da variável resposta; θ=parâmetros estimados do modelo; e=valor esperado para a variável resposta; RMP=ρ=razão de mortalidade padronizada estimada; x=variável explicativa; β=coeficientes estimados pelo modelo; σ=variância; φ=efeito aleatório não estruturado; υ=efeito estruturado espacial.
Os dados foram tabulados no programa TabWin 4.1.52 e todas as análises feitas no programa R 3.5.2.
Resultados
A RMP por homicídio variou de 0 a 4,67, com mediana de 0,50. A renda per capita variou de R$ 168 a R$ 1.710, com média de R$ 482, enquanto o índice de Gini apresentou o valor médio de 0,48, com desvio padrão de 0,05. Além disso, o índice de interação racial (IIR) expressou o valor médio de 0,43, com desvio padrão de 0,05. Todas as variáveis tiveram autocorrelação espacial positiva, com maiores valores para o IIR, a renda per capita e a RMP (Tabela 1).
Todos os indicadores apresentaram uma distribuição espacial heterogênea. A RMP apresentou valores mais elevados em municípios localizados mais ao norte e no centro do estado, áreas com valores mais baixos do índice de interação racial e da renda per capita (Figura 1).
Nos modelos de regressão, o modelo selecionado, que apresentou menor valor de DIC, foi o modelo C2, com as variáveis IIR e renda per capita e com a inclusão de efeitos aleatórios não estruturado e estruturado espacial. Houve uma associação negativa entre o IIR e o risco de óbito, ou seja, quanto maior a interação racial menor foi o risco de óbito por homicídio nos municípios (Tabela 2). As RMP estimadas para os municípios, ajustadas pelas variáveis de exposição, tiveram uma distribuição semelhante às da RMP não ajustadas, o que sugere que o modelo capta bem a distribuição (Figura 2). Na Figura 3 são apresentadas as distribuições a posteriori dos coeficientes do modelo C2, com a maior massa da distribuição fora do valor nulo, o que corrobora a significância dos efeitos.
Mapas da distribuição espacial da razão de mortalidade padronizada bruta (RMP) e ajustada (RMPa) de óbito por homicídios nos municípios de Minas Gerais.
Discussão
Este foi o primeiro estudo realizado no Brasil que identificou uma associação entre maior interação racial no nível dos municípios e menor mortalidade por homicídios. Em um estudo de revisão sobre causas contextuais dos homicídios, os autores apontaram uma grande diversidade de indicadores sociais associados à taxa de homicídios, como o índice de Gini e indicadores de renda ou de pobreza, mas nenhum avaliou algum indicador de segregação residencial1111 Sousa CAM, Silva CMFP, Souza ER. O efeito do contexto sobre a incidência de homicídios: existem evidências suficientes? Interface (Botucatu) 2018; 22(66):915-927..
O contexto social em que as pessoas vivem e trabalham é um importante determinante do seu nível de saúde. Em um artigo clássico, Schwartz apontava como o individualismo metodológico da epidemiologia da época levou a um relativo desconhecimento desta importância e, consequentemente, a uma menor efetividade das medidas de prevenção e controle de doenças1212 Schwartz S. The fallacy of the ecological fallacy: the potential misuse of a concept and the consequences. Am J Public Health 1994; 84(5):819-824.. Em outra publicação, que se tornou clássica, Diez-Roux clamou por modelos de causalidade em saúde que integrassem os vários níveis da realidade, valorizando os determinantes estruturais do processo saúde-doença1313 Diez-Roux AV. Bringing context back into epidemiology: variables and fallacies in multilevel analysis. Am J Public Health 1998; 88(2):216-222.. Mais recentemente, outros autores têm feito considerações nesta linha, apontando a necessidade de a epidemiologia investigar a estrutura e a rede de causalidade que levam a uma maior frequência de doenças na população, e não apenas os efeitos isolados de fatores individuais1414 Keyes KM, Galea S. Commentary: The Limits of Risk Factors Revisited: Is It Time for a Causal Architecture Approach? Epidemiol Camb Mass 2017; 28(1):1-5.. Em uma revisão sistemática da literatura, os autores apontaram um crescimento recente das pesquisas sobre os efeitos do contexto de residência na saúde das populações, com maiores evidências nas áreas de saúde mental e violência1515 Arcaya MC, Tucker-Seeley RD, Kim R, Schnake-Mahl A, So M, Subramanian SV. Research on neighborhood effects on health in the United States: A systematic review of study characteristics. Soc Sci Med 2016; 168:16-29.. Algumas pesquisas têm demonstrado a segregação residencial socioeconômica e racial como um dos fatores contextuais importantes na causalidade de disparidades em saúde33 Krieger N, Feldman JM, Waterman PD, Chen JT, Coull BA, Hemenway D. Local Residential Segregation Matters: Stronger Association of Census Tract Compared to Conventional City-Level Measures with Fatal and Non-Fatal Assaults (Total and Firearm Related), Using the Index of Concentration at the Extremes (ICE) for Racial, Economic, and Racialized Economic Segregation, Massachusetts (US), 1995-2010. J Urban Health 2017; 94(2):244-258.,1616 Kershaw KN, Albrecht SS. Racial/ethnic residential segregation and cardiovascular disease risk. Curr Cardiovasc Risk Rep 2015; 9(3):1-12.
17 Krieger N, Waterman PD, Spasojevic J, Li W, Maduro G, Van Wye G. Public Health Monitoring of Privilege and Deprivation With the Index of Concentration at the Extremes. Am J Public Health 2016; 106(2):256-263.-1818 Barber S, Diez-Roux AV, Cardoso L, Santos S, Toste V, James S, Barreto S, Schmidt M, Giatti L, Chor D. At the intersection of place, race, and health in Brazil: Residential segregation and cardio-metabolic risk factors in the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health (ELSA-Brasil). Soc Sci Med 2018; 199:67-76..
A maior causa de mortalidade por causas externas em países de alta renda é o suicídio, seguido por acidentes de trânsito e quedas. Em contrapartida, países com renda média e baixa nas Américas têm como principais causas o homicídio e os acidentes de trânsito. Evidencia-se a pobreza como um fator de risco para a mortalidade por causas externas, manifestada através de condições piores de vida, trabalho e transporte1919 World Health Organization (WHO). Injuries and violence: the facts 2014 [Internet]. Geneva: WHO; 2014 [cited 2021 maio 19]. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/149798.. Nos Estados Unidos, tem-se observado como fatores de risco para mortes violentas o pertencimento a grupos minoritários, baixo grau de coesão comunitária, a criminalidade e o uso de substâncias, principalmente o álcool2020 Jack SPD. Surveillance for Violent Deaths - National Violent Death Reporting System, 27 States, 2015. MMWR Surveill Summ 2018; 67(11):1-32.. Outro estudo relacionou a segregação residencial ao aumento da mortalidade decorrente de ações policiais2121 Johnson O, Vil CS, Gilbert KL, Goodman M, Johnson CA. How neighborhoods matter in fatal interactions between police and men of color. Soc Sci Med 2019; 220:226-235.. Além disso, fatores relacionados à vizinhança projetam influência negativa sobre a criminalidade, como a baixa renda, baixo índice de Gini, alta porcentagem de afro-americanos, famílias apenas com pai ou mãe e a porcentagem de desempregados. Em contrapartida, o número de famílias vivendo em casas próprias, a coesão social e o controle informal demonstraram reduzir o crime violento2222 Brisson D, Roll S. The effect of neighborhood on crime and safety: a review of the evidence. J Evid-Based Soc Work 2012; 9(4):333-350.. Em países de renda baixa e média, a desigualdade de renda relacionou-se a homicídios, agressão autorreferida e roubo2323 Wolf A, Gray R, Fazel S. Violence as a public health problem: An ecological study of 169 countries. Soc Sci Med 2014; 104:220-227.. Ao avaliar países como Brasil, Colômbia, Equador e México, observa-se que, se a mortalidade por causas externas fosse suprimida, esses países seriam os que mais ganhariam anos de vida2424 Calazans JA, Queiroz BL. The adult mortality profile by cause of death in 10 Latin American countries (2000-2016). Rev Panam Salud Publica 2020; 44:1-9..
Vários fatores individuais estão associados à maior frequência de casos de violência e mortalidade por causas externas no Brasil, como sexo masculino, idade jovem, raça/cor negra, baixa renda, estado civil solteiro, menor nível de escolaridade e condições precárias de vida. Do ponto de vista do contexto social, as atividades ilícitas, como o tráfico de drogas, a receptação de produtos roubados, a invasão de terras e a ausência de um Estado que possibilite as conquistas sociais, são alguns dos principais eventos responsáveis pelo aumento das mortes por causas externas no Brasil66 Modesto JG, Alves AYM, Santos LV, Archanjo CCC, Araújo GS. Fatores que influenciam na mortalidade de jovens por causas externas no Brasil: Uma revisão da literatura. Rev Multidebates 2019; 3(2):137-155.. A segregação residencial resulta na formação de vizinhanças com altos níveis de pobreza, contribuindo para o aumento da mortalidade2525 Araújo EM, Costa M CN, Oliveira NF, Santana FS, Barreto ML, Hogan V, Araújo TM. Spatial distribution of mortality by homicide and social inequalities according to race/skin color in an intra-urban Brazilian space. Rev Bras Epidemiol 2010; 13(4):549-560.. Outros fatores são a violência intrafamiliar, o desemprego, a precariedade da segurança pública, a violência policial e a urbanização. Residir em favelas associou-se à maiores taxas de mortalidade por homicídios, independente do sexo e da idade66 Modesto JG, Alves AYM, Santos LV, Archanjo CCC, Araújo GS. Fatores que influenciam na mortalidade de jovens por causas externas no Brasil: Uma revisão da literatura. Rev Multidebates 2019; 3(2):137-155..
Além disso, as políticas de austeridade, especialmente num contexto de crise econômica, podem afetar os desfechos relacionados às causas externas. Dessa forma, observou-se um aumento da mortalidade por homicídios e suicídios no território brasileiro durante a crise econômica iniciada em 2014, sendo mais expressivo nas regiões Norte e Nordeste2626 Machado DB, Pescarini JM, Araújo LFSC, Barreto ML. Austerity policies in Brazil may affect violence related outcomes. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4385-4394..
No Brasil, as causas externas correspondem à terceira principal causa de morte55 Malta DC, Minayo MCS, Soares Filho AM, Silva MMA, Montenegro MMS, Ladeira RM, Morais Neto OL, Melo AP, Mooney M, Naghavi M. Mortalidade e anos de vida perdidos por violências interpessoais e autoprovocadas no Brasil e Estados: análise das estimativas do Estudo Carga Global de Doença, 1990 e 2015. Rev Bras Epidemiol 2017; 20:142-156.. A mortalidade por agressões apresentou tendência decrescente no sexo masculino no país no período de 2005 a 2016, apesar de manifestar diferentes comportamentos entre as regiões: estabilidade nas regiões Norte e Centro-Oeste, aumento na região Nordeste e redução nas regiões Sudeste e Sul2727 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Saúde Brasil 2018 uma análise de situação de saúde e das doenças e agravos crônicos: desafios e perspectivas. Brasília: MS; 2019.. Possivelmente, políticas públicas, como o Estatuto do Desarmamento, conseguiram, de certa forma, refrear o crescimento descontrolado da mortalidade por armas de fogo no país2828 Waiselfisz JJ. Mapa da Violência 2016: Homicídios por arma de Fogo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Flacso Bra; 2016.. Em contrapartida, a taxa de homicídio de jovens no Brasil, bem como o número de homicídios de mulheres, aumentou de 2007 a 20172929 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Atlas da violência 2019 [Internet]. Brasília: IPEA; 2019 [acessado 2021 maio 19]. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/9489.. Tem-se observado uma tendência de interiorização da mortalidade por homicídios no país. Enquanto, na região Sudeste, Rio de Janeiro e São Paulo tiveram uma redução expressiva nessa mortalidade, Minas Gerais demonstrou um aumento, principalmente nas regiões centro-norte do estado, próximo à fronteira com a Bahia. Além disso, notou-se que municípios menores têm apresentado aumento nas taxas de mortalidade por homicídios, enquanto municípios com mais de 100 mil habitantes demonstram o padrão inverso3030 Soares Filho AM, Merchan-Hamann E, Vasconcelos CH. Expansão, deslocamento e interiorização do homicídio no Brasil, entre 2000 e 2015: uma análise espacial. Cien Saude Colet 2020; 25(8):3097-3105..
Em uma análise sobre a distribuição populacional por raça/cor e nível educacional, a partir do índice de dissimilaridade, realizada em três capitais brasileiras, dentre elas Belo Horizonte, observou-se que as pessoas autodeclaradas negras predominavam nas periferias, enquanto as brancas eram maioria nos centros, locais caracterizados por melhor infraestrutura. Além disso, foi observado que o grupo autodeclarado preto e pardo residia em regiões com piores índices socioeconômicos e mais segregadas3131 Amaral EFL. Racial and socioeconomic segregation: an analysis of three Brazilian Metropolitan areas. Redes St Cruz Sul Online 2013; 18(1):248-262.. Outro estudo que comparou segregação residencial por raça em quarenta das maiores áreas metropolitanas do Brasil, demonstrou que a segregação residencial entre brancos e pardos e pardos e negros diminuiu entre 1980 e 2010, especialmente em regiões de moradia mais precárias. Entretanto, ainda se mantém significativa em níveis de rendimento mais elevado, que oferecem uma maior variedade de opções habitacionais3232 Valente RR, Berry BJL. Residential Segregation by Skin Color: Brazil Revisited. Lat Am Res Rev 2020; 55(2):207-226..
Embora não tenhamos encontrado publicações sobre a associação entre índices de segregação residencial e a mortalidade por homicídios no Brasil, existem estudos com outros desfechos em saúde. Um estudo mostrou associação entre a segregação residencial e maior prevalência de hipertensão e diabetes mellitus, em análise ajustada para outros fatores sociodemográficos. Neste estudo, a probabilidade de pretos e pardos morarem em bairros segregados foi maior quando comparada com brancos. Segundo os autores, a segregação residencial corrobora a existência da desigualdade de renda e de raça/cor e interfere negativamente na saúde da população, uma vez que a segregação não se restringe aos indivíduos, mas incorpora, ainda, os recursos de infraestrutura e de saúde, comprometendo o acesso da população mais segregada1818 Barber S, Diez-Roux AV, Cardoso L, Santos S, Toste V, James S, Barreto S, Schmidt M, Giatti L, Chor D. At the intersection of place, race, and health in Brazil: Residential segregation and cardio-metabolic risk factors in the Brazilian Longitudinal Study of Adult Health (ELSA-Brasil). Soc Sci Med 2018; 199:67-76..
Um estudo que analisou a relação entre a violência policial letal e o desenvolvimento socioeconômico na cidade de São Paulo evidenciou a existência de vieses, tanto raciais quanto sociais, nessa associação. Demonstrou-se a existência de clusters espaciais com alta mortalidade e com dinâmicas distintas: quando se considerava o domicílio das vítimas, observou-se áreas com menor IDH; em contrapartida, ao se considerar o endereço de ocorrência dos eventos violentos, tinha-se áreas com maior IDH3333 Ryngelblum M, Peres MF. Social Segregation and Lethal Police Violence in the City of São Paulo (2014-2015). Cien Saude Colet 2020; 26(9):4275-4286..
Alguns estudos têm procurado avaliar como políticas públicas podem atuar sobre a segregação residencial e suas consequências sociais e de saúde. Iniciativas que primavam por intervenções desde a primeira infância demonstraram que o início precoce de intervenções nas comunidades locais pode ter impactos positivos dramáticos ao longo da vida, principalmente, na saúde e em seus determinantes sociais. Com isso, famílias pobres e minoritárias aproveitarão de oportunidades reais, que refletem no aumento de renda, segurança e saúde física e mental3434 Williams DR, Cooper LA. Reducing Racial Inequities in Health: Using What We Already Know to Take Action. Int J Environ Res Public Health 2019; 16(4):606.. Por outro lado, políticas habitacionais podem estimular a segregação residencial, a partir da implantação de residências menos onerosas, em locais afastados dos centros urbanos, que tendem a ser adquiridos pela população de baixa renda. Nesse sentido, políticas de melhorias de infraestrutura e transporte não são, comumente, implantadas, fato que torna ainda menos viável a integração entre a população dessa área com a central3535 Silva JCTP, Cruz MCC, Souza MF. Análise geoestatística da segregação socioespacial em Divinópolis, Minas Gerais: o Programa Minha Casa Minha Vida em perspectiva. Rev Esp 2017; 6(2):27-35.. Estudos sugerem que retirar as pessoas pobres das suas vizinhanças não é a política ideal, de forma que a ênfase deveria estar em prover melhorias nas condições de vida nas vizinhanças mais pobres.
Este estudo apresenta como principal limitação o uso de dados de fontes secundárias, que, potencialmente, podem apresentar falhas nas etapas de coleta e/ou processamento nos sistemas de informação. Também é possível que tenha ocorrido sub registro de óbitos, principalmente nos municípios localizados nas regiões mais pobres do estado. No entanto, as fontes utilizadas, o DATASUS e o Censo Demográfico do IBGE, são oficiais do governo brasileiro e amplamente usadas em pesquisas epidemiológicas, tendo sua qualidade avaliada periodicamente. Uma vantagem do uso destas fontes é que são relativas à toda a população do estado de Minas Gerais, reduzindo a possibilidade de viés de seleção. Ademais, outra limitação é inerente ao desenho de estudo transversal, que não permite fazer inferência causal. Portanto, as medidas de associação encontradas levantam a hipótese de uma relação causal, que deverá ser testada em estudos longitudinais.
Este estudo evidenciou a presença de segregação residencial racial nos municípios de Minas Gerais e sua associação com a mortalidade por homicídios, apontando a necessidade de se considerar este fator nas políticas públicas voltadas para a prevenção e controle da violência no estado.
Referências
- 1Smets P, Salman T. The multi-layered-ness of urban segregation. Habitat Int 2016; 54:80-87.
- 2Diez-Roux AV, Mair C. Neighborhoods and health. Ann N Y Acad Sci 2010; 1186:125-145.
- 3Krieger N, Feldman JM, Waterman PD, Chen JT, Coull BA, Hemenway D. Local Residential Segregation Matters: Stronger Association of Census Tract Compared to Conventional City-Level Measures with Fatal and Non-Fatal Assaults (Total and Firearm Related), Using the Index of Concentration at the Extremes (ICE) for Racial, Economic, and Racialized Economic Segregation, Massachusetts (US), 1995-2010. J Urban Health 2017; 94(2):244-258.
- 4Massey DS, Denton NA. The Dimensions of Residential Segregation. Soc Forces 1988; 67(2):281-315.
- 5Malta DC, Minayo MCS, Soares Filho AM, Silva MMA, Montenegro MMS, Ladeira RM, Morais Neto OL, Melo AP, Mooney M, Naghavi M. Mortalidade e anos de vida perdidos por violências interpessoais e autoprovocadas no Brasil e Estados: análise das estimativas do Estudo Carga Global de Doença, 1990 e 2015. Rev Bras Epidemiol 2017; 20:142-156.
- 6Modesto JG, Alves AYM, Santos LV, Archanjo CCC, Araújo GS. Fatores que influenciam na mortalidade de jovens por causas externas no Brasil: Uma revisão da literatura. Rev Multidebates 2019; 3(2):137-155.
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Financiamento
Este estudo contou com o apoio da Universidade Federal de Juiz de Fora na forma de bolsa de iniciação científica.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Ago 2022 - Data do Fascículo
Set 2022
Histórico
- Recebido
23 Jun 2021 - Aceito
12 Abr 2022 - Publicado
14 Abr 2022