Resumo
O município de São Paulo historicamente foi marcado pela heterogeneidade da implementação pela coexistência de modelos conflitivos de gestão do SUS e de atenção na Atenção Primária à Saúde (APS). Consolidou-se a administração via contratos de gestão dos serviços de saúde, associada a uma lógica produtivista. Durante a pandemia de COVID-19, as fragilidades de uma APS seletiva tendem a ser pronunciadas. Assim, o presente artigo tem como objetivo analisar a gestão do trabalho e o cuidado na APS durante a pandemia de COVID-19 no município de São Paulo, em pesquisa qualitativa multicêntrica, ancorada no referencial teórico Paideia. Foram realizadas 31 entrevistas em profundidade com usuários e trabalhadores da APS e observação participante. Observou-se postura autoritária e gerencialista da gestão municipal na condução das respostas, com pouco espaço para escuta e diálogo. Notou-se enfraquecimento dos espaços coletivos e do vínculo entre serviço e comunidade; burocratização e precarização dos processos de trabalho e desmantelamento do NASF. Neste cenário, o cuidado caracterizou-se pela redução expressiva da clínica ampliada, compartilhada e pelo distanciamento das diretrizes da APS de base territorial e comunitária.
Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; Gestão em Saúde; Sistema Único de Saúde
Introdução
No Sistema Único de Saúde (SUS), a Atenção Primária à Saúde (APS) desempenha papel fundamental na organização da rede de atenção à saúde e a Estratégia Saúde da Família (ESF) é considerada um modelo capaz de garantir a consolidação e ampliação da cobertura, devendo incluir ações individuais, familiares e coletivas visando à promoção e proteção da saúde, a prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças e agravos, além de ações de reabilitação, redução de danos, cuidados paliativos e vigilância em saúde. De base territorial e comunitária, tem como orientação atuar numa perspectiva interdisciplinar, interprofissional e intersetorial11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União; 2017..
Na pandemia de COVID-19, em alguns municípios, a APS teve um papel fundamental, com destaque à atuação multiprofissional das equipes de ESF, com Agentes Comunitários de Saúde (ACS) desenvolvendo ações de vigilância, busca ativa, acompanhamento e monitoramento da saúde da população22 Giovanella L, Franco CM, Almeida, PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1475-1482..
Mesmo antes da pandemia, a APS brasileira estava em processo de descaracterização, com paulatino desmonte do modelo da ESF, que fortalece a abordagem territorial e comunitária, com a priorização da chamada Atenção Básica tradicional, como observado nos desdobramentos da última edição da Política Nacional de Atenção Básica33 Melo EA, Mendonça MHMD, Oliveira JRD, Andrade GCLD. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saude Debate 2018; 42:38-51.. Na esfera federal, a agenda de austeridade radicalizada a partir de 2016 - com a Emenda Constitucional nº 95, congelou os gastos públicos44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União; 2016.. Houve avanço da lógica neoliberal e mercantil sobre a gestão da APS no SUS, com a implantação do Programa Previne Brasil, alterando normas para o financiamento da APS, além de instituir e regulamentar a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS)55 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 3.222, de 10 de dezembro de 2019. Dispõe sobre os indicadores do pagamento por desempenho, no âmbito do Programa Previne Brasil. Diário Oficial da União 2019; 11 dez.,66 Brasil. Lei nº 13.958, de 18 de dezembro de 2019. Institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da atenção primária à saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), e autoriza o Poder Executivo federal a instituir serviço social autônomo denominado Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps). Diário Oficial da União 2019; 19 dez..
No município de São Paulo, a implantação do SUS e a história de construção da APS caracterizam-se por constantes rupturas. Ao mesmo tempo que foi precursor entre 1989 e 1992 em implantar o SUS, em 1996, na gestão de Paulo Maluf, a gestão municipal retrocede na implantação do SUS para adotar o Plano de Atendimento à Saúde (PAS), como modelo de gestão. O PAS segue o ideário do Banco Mundial que traz para as políticas sociais a precedência da razão econômica, em que a produção e serviços eram entregues a cooperativas médicas com financiamento público. Concomitantemente, parte das UBS eram do governo do estado e organizadas sob Centros de Saúde. Em 1996, ao mesmo tempo em que o município havia adotado o modelo do PAS, que regride em sua entrada na gestão plena do SUS, é implantado pelo governo do estado as primeiras unidades do Programa de Saúde da Família (PSF) no extremo leste, em Itaquera77 Pinto NRS, Tanaka OY, Spedo SM. Política de saúde e gestão no processo de (re)construção do SUS em município de grande porte: um estudo de caso de São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(4):927-938..
Em 2001, com uma nova gestão, São Paulo retorna à gestão plena do SUS, inicia o processo de municipalização das UBS com expansão do PSF, buscando priorizá-lo como modelo municipal. Amplia-se, neste momento, através de convênios, as parcerias com as Organizações Sociais de Saúde (OSS) para contratação de recursos humanos. Em 2005, é implantado um novo serviço chamado Assistência Médica Ambulatorial (AMA) acoplado às UBS, com contratação de médicos plantonistas. As UBS deixaram de realizar o atendimento à demanda espontânea, ficando a cargo da AMA, que se baseia em um modelo assistencial pautado no queixa-conduta, desarticulado ao acompanhamento longitudinal, trazendo importantes repercussões para a APS77 Pinto NRS, Tanaka OY, Spedo SM. Política de saúde e gestão no processo de (re)construção do SUS em município de grande porte: um estudo de caso de São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica 2009; 25(4):927-938..
Somado a isso, instaura-se de modo contundente a lógica gerencialista e produtivista na condução dos contratos de gestão entre a secretaria municipal e as OSS. Metas e indicadores de desempenho passam a ser estabelecidas de forma por vezes arbitrária, sem a participação dos trabalhadores e usuários, e descoladas das necessidades de saúde locais. Predomina, portanto, a Racionalidade Gerencial Hegemônica que intensifica a reprodução da alienação dos trabalhadores e prejudica o cuidado, com atores sociais que não mais reconhecem o valor de uso ou finalidade de seu processo de trabalho88 Mendes Á, Melo MA, Carnut L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cad Saude Publica 2022; 38(2):e00164621..
Considerando a importância da atuação da APS no contexto de pandemia da COVID-19 e complexo histórico de gestão da saúde no município de São Paulo, este artigo tem como objetivo compreender a gestão do trabalho na APS na capital paulista durante a pandemia e analisar o cuidado oferecido, na perspectiva de usuários e trabalhadores.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com produção dos dados mediante observação participante com registro em diário de campo e realização de entrevistas em profundidade. A pesquisa esteve ancorada no referencial Paideia99 Campos GWS, Cunha GT, Figueiredo MD. Práxis e formação Paideia: apoio e cogestão em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013., que opera com a tríplice finalidade de: ampliar a compreensão sobre algum tema, realizar uma análise institucional e das relações de poder, bem como proporcionar que as pessoas se pensem como agentes singulares dessa rede social.
O presente artigo deriva do estudo multicêntrico “Estratégias de abordagem dos aspectos subjetivos e sociais na APS no contexto da pandemia”, que envolveu coletas de dados nos municípios de São Paulo, Rio de Janeiro e Campinas. Os resultados aqui apresentados são referentes ao município de São Paulo.
A amostra se deu por conveniência. A coordenação da pesquisa realizou contato prévio com uma das Coordenadorias Regionais de Saúde da cidade de São Paulo a fim de facilitar o acesso ao campo, e as UBS foram selecionadas junto com a gestão da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) e das respectivas OSS, segundo os critérios: contemplar quatro territórios distintos, possuírem equipe ESF e estarem localizadas em território de vulnerabilidade social. A caracterização das UBS encontra-se no Quadro 1 e, para garantir o anonimato, foram atribuídos nomes fictícios: Ametista, Esmeralda, Ruby e Turmalina.
Considerando o papel ativo do pesquisador nessa modalidade de estudo qualitativo, que valoriza a interação com os sujeitos, foi realizada, em um primeiro momento, uma imersão e reconhecimento do funcionamento da UBS, com registro em diário de campo, fornecendo dados complementares para a análise1010 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em Saúde. 4ª ed. São Paulo: Hucitec; 2010.. Quatro pesquisadores de campo ficaram responsáveis por vincular-se a uma das UBS para imersão e realização de entrevistas. Este processo iniciou-se em agosto de 2021, e a realização das entrevistas foi finalizada em março de 2022. Cabe destacar que os pesquisadores entraram nas unidades durante o início da vacinação contra COVID-19.
Uma vez que os pesquisadores estavam imersos no contexto do estudo, foram identificados os informantes chave capazes de indicar participantes, dentre as equipes de saúde e usuários, para as entrevistas. Foi solicitado que os informantes considerassem os seguintes critérios de inclusão: 1) para usuários: homens e mulheres, com dezoito anos ou mais, moradores do território adscrito pela UBS; preferencialmente, mulheres líderes de família e/ou ativistas, moradores em situações de vulnerabilidade social relacionadas a trabalho, renda, precarização dos vínculos familiares e sociais; vítimas de violência; com dificuldade de acesso a equipamentos das políticas de proteção social; população negra; pessoas com deficiência; população LGBTQIA+ ou indivíduos que apresentassem algum adoecimento psíquico. 2) para trabalhadores: profissionais de UBS com modelo ESF, do Núcleo Ampliado à Saúde da Família (NASF) e Consultório na Rua, estar há pelo menos um ano trabalhando no território e estar ligado ao cuidado dos usuários indicados.
Procedendo deste modo, participaram das entrevistas um total de 15 trabalhadores e 16 usuários. Adotamos como critério de finalização da coleta de dados a saturação teórica, isto é, por redundância e repetição dos conteúdos de interesse.
As entrevistas iniciavam-se a partir de uma pergunta disparadora: para os trabalhadores era questionado “Para você, trabalhador do SUS e da APS, o que mudou no seu trabalho a partir da pandemia?” e para os usuários “A partir da Pandemia, o que aconteceu com você e sua família?”. Um mapa temático que abordava aspectos subjetivos e sociais serviu de guia aos pesquisadores de campo, a fim de sensibilizá-los para a escuta e aprofundamento das experiências trazidas pelos entrevistados.
O número de encontros necessários para percorrer o roteiro proposto, em cada entrevista individual, variou entre um e três, pois em alguns casos foi necessário retomar o diálogo para aprofundar ou esclarecer algum ponto. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas, com o consentimento dos participantes.
Os pesquisadores de campo, a partir de sua imersão nas unidades, realizaram o convite diretamente aos trabalhadores para serem entrevistados, após apresentação do projeto e acordo com a gestão local sobre realização das entrevistas nas dependências das UBS e durante o horário de trabalho. Já em relação aos usuários, selecionados com base nos critérios supracitados, o convite foi realizado durante visitas domiciliares, contando com o apoio das equipes de saúde para a apresentação da pesquisa e oferta da possibilidade de participação. Diversos espaços comunitários foram utilizados, desde espaços públicos até o ambiente de suas residências. Para compreensão mais detalhada acerca das características da população entrevistada consultar o Quadro 2.
Para a análise, recorreu-se à construção de narrativas e com a validação entre pares, sendo estes os pesquisadores de campo e os coordenadores do projeto1111 Onocko-Campos R, Furtado JP. Narrativas: apontando alguns caminhos para sua utilização na pesquisa qualitativa em saúde. In: Onocko-Campos R, Furtado JP, Passos E, Benevides R, organizadores. Pesquisa avaliativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 321-334.,1212 Onocko-Campos R. Inovações para o estudo e a produção de consensos: além do Delphi. In: Onocko-Campos R, Furtado JP. Desafios de avaliação de programas e serviços em saúde. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp; 2011.. Os pesquisadores de campo ficaram responsáveis por construir uma narrativa (independente do número de encontros realizados) para cada pessoa que entrevistou. Outro membro do grupo de pesquisa, escutava o(s) áudio(s) da entrevista, fazia a leitura da narrativa e sugeria alterações em sua forma e/ou conteúdo1111 Onocko-Campos R, Furtado JP. Narrativas: apontando alguns caminhos para sua utilização na pesquisa qualitativa em saúde. In: Onocko-Campos R, Furtado JP, Passos E, Benevides R, organizadores. Pesquisa avaliativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 321-334.,1212 Onocko-Campos R. Inovações para o estudo e a produção de consensos: além do Delphi. In: Onocko-Campos R, Furtado JP. Desafios de avaliação de programas e serviços em saúde. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp; 2011.. A versão final era apresentada a todo grupo de pesquisa do Campo São Paulo.
Na sequência, as narrativas foram inseridas em grades interpretativas e distribuídas em sete núcleos argumentativos, dentre os quais selecionamos quatro para discutir neste artigo: i) aspectos sociais e subjetivos durante a pandemia: fatores de produção de subjetividade e cuidado em saúde; ii) agravos associados à pandemia; iii) relação usuários-profissionais-APS/SUS: relações de poder, democracia institucional, gestão e cuidado em saúde; e iv) potencialidades e entraves para a realização de uma clínica ampliada e compartilhada na APS.
A análise foi realizada a partir da triangulação entre o material das entrevistas e os diários de campo dos pesquisadores, e discutidos à luz dos documentos publicados pela SMS-SP e do referencial Paideia.
Foram cumpridos os procedimentos previstos pela Resolução nº 466/2012 CNS/MS e complementares. A pesquisa, CAAE: 40699120.2.0000.5404, foi aprovada pelo Comitê de ética da Universidade Estadual de Campinas e pelo Comitê de ética da SMS-SP, sob parecer de número 4.520.254.
Resultados
As narrativas de trabalhadores e usuários apontam significativas mudanças na organização do trabalho das UBS no município de São Paulo, reverberando em prejuízos na produção do cuidado.
Gestão do Trabalho
Em março de 2020, as UBS receberam recomendações municipais1313 São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde. Portaria nº 154, de 20 de março de 2020. Determina a suspensão parcial e temporária de consultas, exames, procedimentos e cirurgias de rotina, a partir de 23 de março de 2020, nos Ambulatórios Hospitalares e na Rede de Atenção Básica. Diário Oficial da União; 2020.,1414 São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde. Portaria nº 182, de 14 de abril de 2020. Altera a Portaria 154/2020-SMS-GAB, que determinou a suspensão parcial e temporária das consultas, exames, procedimentos e cirurgias de rotina, a partir de 23 de março de 2020, nos Ambulatórios Hospitalares e na Rede de Atenção Básica, para dar outras providências. Diário Oficial da União; 2020. para suspender os agendamentos das consultas de rotina, os grupos educativos, e os encaminhamentos para especialidades e cirurgias eletivas. Não houve nenhum tipo de alinhamento ou explicações para os trabalhadores e usuários:
Numa sexta estava tudo funcionando, na segunda seguinte quando os usuários começaram a chegar não havia mais atendimento para todos... Todo dia era um protocolo diferente, com sintomas diferentes e formas distintas de organização do fluxo [...] tudo mudava muito rápido (Narrativa Trabalhador 2, UBS Esmeralda).
O fluxo da APS foi reorganizado para atendimento de pessoas com sintomas respiratórios, suspeitos de infecção pela COVID-19. O número dessa modalidade de atendimento aumentou exponencialmente, e demandou a remoção de pacientes, tamanha a gravidade dos casos:
Até que chegou uma fase, entre maio-julho de 2020, que passamos a atender por semana 30, 40, 50 casos suspeitos de COVID, e logo passamos a acionar a Remoção três, quatro, cinco vezes por dia (Narrativa Trabalhador 2, UBS Esmeralda).
No segundo semestre de 2020, houve a reabertura progressiva das agendas1515 São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde. Portaria nº 260, de 18 de junho de 2020. Altera a determinação de suspensão parcial de consultas, exames, procedimentos, regulamentada pela portaria SMS.G nº 154/2020 e estabelece o retorno gradual aos atendimentos agendados nas UBS, CAPS, URSI, PAI, CEO, EMAD, CER, CECCO e Unidades de Práticas Integrativas e Complementares em conformidade com as normas de biossegurança e distanciamento social até retorno de 100% das atividades conforme o cenário da pandemia COVID 19. Diário Oficial da União; 2020.. As orientações visavam a priorização dos fluxos de atendimento a sintomáticos respiratórios leves, e mantinham a focalização das ações de prevenção e promoção da saúde, sob a forma de: orientações individualizadas via telemedicina, teleconsulta e telemonitoramento; manejo comunitário, com intervenções de educação em saúde para a população; manutenção dos fluxos de separação entre pessoas com sintomas respiratórios e o restante da população. Além disso, foram retomados atendimentos pontuais a alguns grupos prioritários, como gestantes e puérperas, crianças (puericultura), pessoas com doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e de notificação compulsória e ampliação da validade das receitas de medicamentos de uso contínuo (de 2 para 6 meses). De acordo com os trabalhadores, essas diretrizes foram incorporadas de forma heterogênea e singular em cada equipe.
Já em 2021, com o surgimento de novas variantes do vírus, as normativas1616 São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde. Portaria nº 117, de 5 de março de 2021. Determina a restrição temporária do atendimento de consultas presenciais, exames, procedimentos, a partir de 08 de março de 2021, na Rede de Atenção Básica e Especializada. Diário Oficial da União; 2021.,1717 São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde. Portaria nº 124, de 17 de março de 2021. Altera a redação da Portaria SMS-G nº 117, de 5 de Março de 2021, que determinou a restrição temporária do atendimento de consultas presenciais, exames, procedimentos, a partir de 08 de março de 2021, na Rede de Atenção Básica e Especializada, quanto à prestação assistencial na Rede de Atenção Especializada. Diário Oficial da União; 2021. retomavam as restrições anteriormente impostas. Em paralelo, foi iniciada a vacinação, em janeiro de 2021 com a primeira dose, e no final de 2022, a vacina também foi disponibilizada para crianças, juntamente com a distribuição da terceira dose para adultos e idosos. As mudanças e orientações e a publicação de documentos de diretrizes acompanhavam as mudanças epidemiológicas de transmissão.
Os ACS que têm papel fundamental dentro da proposta da ESF tiveram o processo de trabalho descaracterizado. Além das mudanças nas visitas domiciliares, em que os ACS não podiam mais entrar nas casas das famílias, em 2021, passaram a auxiliar a vacinação, dando suporte administrativo.
Outro processo que fragilizou as equipes e o cuidado foi o desmantelamento da proposta do NASF. Em meio à pandemia, a gestão municipal reorientou psicólogos e psiquiatras que trabalhavam na APS para a formação de Polos de Saúde Mental, enquanto o restante dos profissionais do NASF foi alocado em unidades específicas1818 São Paulo. Coordenadoria de Atenção Básica. Secretaria Municipal de Saúde. Documento Norteador da equipe multiprofissional da atenção básica [Internet]. EMAB; 2023 [acessado 2023 maio 10]. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/atencao_basica/index.php?p=340460.
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/... :
[...] parece que está se estruturando uma equipe multiprofissional em um modelo ambulatorial, completamente oposto do que tentávamos construir como NASF. O matriciamento está acabando. Não querem que a gente se organize para discutir casos, realizar visitas, organizar a devolutiva (Narrativa Trabalhador 4, UBS Turmalina).
Cuidado: reflexos na relação com os usuários e entre trabalhadores
Apesar de todas as unidades terem organizado o fluxo de atendimento presencial para as pessoas com sintomas respiratórios, observou-se formas distintas de restrição em relação ao atendimento das demais demandas e necessidades da população:
Para os casos já conhecidos, dizíamos a eles para continuar tomando o remédio. E, para os que ainda não tinham diagnóstico, não era a hora de descobrir (Narrativa Trabalhador 1, UBS Esmeralda).
Já o Consultório na Rua, teve uma diretriz distinta, preservando suas ações cotidianas e realizando monitoramento dos casos suspeitos e confirmados de COVID-19, via busca ativa, com ações individuais e coletivas no território. O trabalho da equipe foi intensificado após imposição de realização de plantões aos finais de semana pela SMS.
Nas UBS, a população que buscava atendimento para as outras demandas e necessidades de saúde, esbarravam também na impossibilidade de coordenação do cuidado na rede. E, mesmo com o retorno dos agendamentos, usuários observaram modificação na forma como esse serviço foi ofertado:
As consultas e os exames ficaram parados, eu tenho hipertensão, hepatite, hérnia de disco, úlcera no estômago, varizes e estou precisando extrair um dente [...]. Estou há muito tempo sem tomar medicação para hepatite, pois é necessária a realização de um exame antes [...] não estou conseguindo dinheiro nem para me alimentar, muito menos para pagar passagem de ônibus para fazer exame [...]. A pessoa morre antes de conseguir fazer um exame (Narrativa Usuário 1, UBS Ametista).
Os profissionais entrevistados indicaram que, com a reabertura das agendas, perceberam o aumento de pessoas em sofrimento psíquico e agravamento de DCNT em decorrência de uma série de modificações na dinâmica psicossocial, introduzidas pela pandemia, como o isolamento social, aumento do desemprego e a mudança de ofertas das UBS:
Identifico um aumento enorme na demanda de saúde mental da população, muitas pessoas estão com depressão, desencadeadas principalmente por questões de dificuldade financeira e em decorrência do isolamento social. Muitos pacientes da UBS iniciaram tratamento psicofarmacológico após a pandemia (Narrativa Trabalhador 2, UBS Ametista).
Os trabalhadores já desorientados com a variedade de orientações e mudanças na organização do serviço, passaram a enfrentar a sobrecarga pela ampliação de suas atividades, que passaram a incluir ações de telemonitoramento, atendimento aos sintomáticos respiratórios leves, vacinação dentro da UBS e em alguns locais públicos, acolhimento e atendimento das outras questões de saúde da população com o retorno gradual dos agendamentos:
Apesar de querer ajudá-los, não é possível cuidar de tudo que esteve sem cuidado nesses dois anos, em uma única consulta (Narrativa Trabalhador 2, UBS Esmeralda).
A escassez do quadro de profissionais foi agravada por processos de demissão, afastamentos, adoecimentos e morte de trabalhadores. Somado a isso, foram canceladas as férias dos profissionais de saúde por um ano. E o direito aos afastamentos não pareceu equânime com tratamento desigual em caso de comorbidade para quem era do grupo de risco. Foi citado o aumento do trabalho burocrático e administrativo no cotidiano de trabalho. A confluência desses fatores gerou, na opinião deles, o esgarçamento das relações de trabalho entre os pares, em relação à instituição empregadora e até mesmo com a população:
Além do caos e incerteza que a pandemia trouxe, vieram também milhares de planilhas administrativas de monitoramento e a informatização de processos cotidianos básicos e já super enraizados da ESF. Eu amo ser enfermeira, amo a ESF, mas hoje me vejo muito mais como uma enfermeira administrativa (Narrativa Trabalhador 1, UBS Ruby).
Ganhou também destaque o sofrimento produzido entre os profissionais a respeito do medo de adoecer, dada a constante exposição e a falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), que provocavam também o medo de levar a doença para dentro de suas casas. Os equipamentos chegaram de forma tardia e os trabalhadores relataram que compraram com os EPI com recursos próprios:
[...] No começo nós não tínhamos EPI adequados e suficientes [...]. Eu cheguei a comprar máscaras N-95 com o meu dinheiro, pois cheguei (Narrativa Trabalhador 2, UBS Turmalina).
Neste cenário de precarização do trabalho houve algumas mobilizações dos profissionais, sendo a mais organizada a dos ACS que protestaram publicamente na rua exigindo melhorias salariais e nas condições de trabalho, mas no início de 2022, outras categorias profissionais também denunciaram as insalubres condições de trabalho e reivindicaram melhorias, através de carta aberta publicada pelo Sindicato da Saúde1919 Sindicato dos médicos de São Paulo. Carta aberta dos trabalhadores da saúde atuantes nas Unidades Básicas de Saúde do município de São Paulo - SP - Brasil [Internet]. 2022 [acessado 2023 abr 23]. Disponível em: https://outraspalavras.net/wp-content/uploads/2022/01/Carta-Sindicatos-da-Sau%CC%81de-APS.pdf.
https://outraspalavras.net/wp-content/up... e que gerou repercussão midiática:
Durante a pandemia nós também entramos em greve, pois não quiseram pagar alguns direitos que conciliamos em categoria. Fizemos uma paralisação no centro de São Paulo. Fiquei apreensiva porque ainda era pandemia e tinha muita gente e apesar de estar de máscara, fiquei receosa [...] (Narrativa Trabalhador 3, UBS Turmalina).
Os ACS que têm papel fundamental dentro da proposta da ESF tiveram o processo de trabalho descaracterizado. Além das mudanças nas visitas domiciliares, em que os ACS não podiam mais entrar nas casas das famílias, em 2021, passaram a auxiliar a vacinação, dando suporte administrativo. As mudanças promovidas no trabalho dos ACS produziram a percepção de não estar realizando um acompanhamento de qualidade aos usuários:
Deixamos a desejar nesse período, ainda mais quando a vacinação chegou, todos nós fomos dar suporte e, embora isso tenha sido muito importante para chegarmos na situação de esperança que estamos hoje, precisamos deixar outro lado descoberto: o da assistência (Narrativa Trabalhador 4, UBS Esmeralda).
Os usuários cobram muito até hoje e questionam o motivo das visitas não estarem acontecendo; sinto que não estou fazendo o que eu deveria, pois, nosso trabalho é na rua e em vez disso nos preocupamos em cumprir metas de atividades administrativas e burocráticas. É muito triste, às vezes dá vontade de desistir (Narrativa Trabalhador 2, UBS Ametista).
O distanciamento entre as equipes e a comunidade foi acentuada pelo processo de reterritorialização, determinado pela gestão do município, que consistiu na reorganização da quantidade de pessoas cadastradas para 4.000 pessoas por equipe de ESF. Cabe destacar que esta medida não estava associada à COVID-19, mas impactou fortemente o vínculo entre ACS e território, sendo este algo fundamental no enfrentamento da pandemia:
E não mudou só a área, mudou também nossos profissionais de referência: outro médico, outra enfermeira, tudo. Essa mudança repercute no nosso trabalho, eu me sinto mal, porque é meu serviço ter vínculo com o território, é meu trabalho construir vínculo e quando isso não flui, a gente fica com uma sensação ruim, de que a gente não está trabalhando direito (Narrativa Trabalhador 2, UBS Turmalina).
Alguns usuários confirmam e se ressentem pela fragilização do vínculo com a UBS. Sentiram-se abandonados, desamparados e sem acolhimento durante a pandemia, ao mesmo tempo que crescia o medo da contaminação:
Então, passamos a evitar os serviços de saúde e nos isolamos, mesmo que isso também significasse desassistência (Narrativa Usuário 2, UBS Esmeralda).
As alterações no processo de trabalho durante a pandemia impactaram também o planejamento e monitoramento das ações da ESF, devido à ausência das reuniões da equipe, reuniões gerais e espaços de apoio matricial para discussão de casos:
Antes trabalhávamos todo mês um assunto, a partir da identificação do que estava acontecendo no território, do que preocupava a nós ACS. Nós tínhamos encontros para compreender esse assunto, tirar nossas dúvidas junto com o restante da equipe, um espaço de formação mesmo, que depois nos ajudava a agir, a colocar em prática no território [...]. Essa perda do planejamento se deu também por conta das dificuldades em realizar as reuniões de equipe, muitas vezes por falta dos profissionais, como também por não termos mais permissão para as reuniões gerais, com toda a unidade (Narrativa Trabalhador 3, UBS Turmalina).
Em uma das UBS, alguns profissionais tentaram manter, no início da pandemia, o espaço de reunião do lado de fora, ao ar livre, para discussão dos documentos técnicos de orientação em relação à COVID-19; outra UBS manteve reuniões de matriciamento por videoconferência com o CAPS. Nos dois casos, porém, fala-se de encontros pontuais, pouco abrangentes e com frequência irregular. Mesmo com o retorno das reuniões, após meses de pandemia, os trabalhadores relatam mudanças na dinâmica desse espaço:
[...] Antes tínhamos reunião de equipe para discutir os casos, passar para a enfermeira e médico com participação ativa de todos os trabalhadores da equipe. Hoje as pessoas ficam em silêncio no espaço de reunião [...] (Narrativa Trabalhador 2, UBS Turmalina).
Essa gama de modificações gerou ainda o distanciamento afetivo entre trabalhadores e produziu importantes conflitos em um momento de muito medo e sofrimento:
Além disso, sem espaço para pensar junto, conhecer a opinião do outro, as fofocas começaram [...] foi nessa época que as brigas dentro da equipe começaram a ocorrer, gritos, choros, discussão na frente de todo mundo, ameaças de agressão física [...]. As relações afetivas foram quebradas e o profissionalismo passou a faltar. Conflitos foram criados, profissionais eram difamados [...]. A partir desse momento, o trabalho se realizou por conchavos, onde uns eram favorecidos em relação a outros. A parceria se esgotou. Os fluxos começaram a se embolar [...]. Acredito que essa seja uma das sequelas deixadas pela Pandemia, que precisarão de muito tempo para serem curadas, são feridas profundas (Narrativa Trabalhador 2, UBS Esmeralda).
Além dos espaços coletivos entre os trabalhadores, o Conselho Gestor, como dispositivo estratégico para o exercício da democracia junto às instituições de saúde, foi afetado e os entrevistados apontam para a mudança do formato das reuniões que passaram a ser realizadas virtualmente e redução da frequência e tempo dos encontros.
A incorporação de novas tecnologias foi um legado da pandemia. Ela aparece ao mesmo tempo como algo que trouxe desafios e, também, a introdução de um novo instrumento de trabalho que não estava presente na APS. As equipes iniciaram com o telemonitoramento dos casos suspeitos de COVID-19, como forma de manter o isolamento e o acompanhamento dos casos suspeitos, assim como acompanhar sinais de gravidade dos sintomas. No início dos telemonitoramentos, as equipes tiveram que dispor de recursos próprios, devido à falta de infraestrutura e recursos das unidades:
No começo, todas essas ligações que falei eram realizadas por meio dos celulares dos próprios profissionais, às vezes fazíamos videochamada ou contato por WhatsApp. Ninguém estava preparado para pandemia ou fazer ligações assim (Narrativa Trabalhador 3, UBS Ametista).
Mesmo com os desafios em relação à falta de recursos e estrutura para iniciar o processo de telemonitoramento e teleconsulta nas UBS, a maior parte dos entrevistados entendeu que a incorporação desses recursos deveria se tornar permanentes no cotidiano das equipes.
Discussão
O modelo de gestão da APS do município de São Paulo provocou repercussões importantes para trabalhadores e usuários das UBS com ESF, como demonstram os resultados. Nota-se um processo de verticalização das normas para a construção do trabalho e da atenção, sem articulação da gestão municipal com os trabalhadores e população. Durante a emergência sanitária, manteve-se o modelo gerencialista, taylorista e burocrático, que é descrito pelos trabalhadores como sendo anterior ao surgimento da COVID-192020 O'Dwyer G, Daumas RP, Cunha DC, Izecksohn MMV. Desafios e repercussões na organização da atenção primária à saúde no contexto da covid-19: o caso do CSEGSF/Teias Manguinhos. In: Portela MC, Reis LGC, Lima, SML. Covid-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz; 2022. p. 427-442.. E, nos relatos dos usuários, fica reproduzido o viés autoritário da construção do cuidado. A ênfase está na dimensão administrativa, da gestão e da atenção, com pouca vazão para a escuta e acolhimento dos dilemas e reivindicações de profissionais, e sobretudo, da população.
A suspensão das reuniões de equipe, fator que impossibilitou o planejamento das ações para o acompanhamento da população, contribuiu significativamente para a desconstrução do trabalho coletivo, não apenas fragilizando-o em sua dimensão técnica, mas também em seu papel afetivo, de promoção trocas e empatia entre trabalhadores, em um momento de muito sofrimento, medo e sobrecarga dos trabalhadores de saúde, em que tais características poderiam ter sido úteis como medidas protetivas. A ruptura não se deu apenas no trabalho em equipe, mas na relação com a população e com o controle social, com profundos impactos derivados também da modificação das reuniões do conselho gestor, do cancelamento das atividades, da reterritorialização e desconstrução dos NASF.
Em um momento de pandemia que atinge de forma mais significativa a população em situação de maior vulnerabilidade social, a ESF tem um papel fundamental, pela sua capilaridade e proximidade com a população. Uma “APS forte”, termo utilizado pela OPAS, precisa assumir o seu papel de vigilância no rastreamento de casos suspeitos, monitoramento dos casos no território, rastreamento dos contatos e testagem bem como ações de prevenção e educação em saúde para a população. Em contrapartida, o que os resultados mostram é a ausência desse tipo de fortalecimento da APS, enfraquecendo seu potencial na vigilância epidemiológica do território22 Giovanella L, Franco CM, Almeida, PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1475-1482.,2121 Fernandez M, Carvalho W, Borges V, Klitzke D, Tasca R. A Atenção Primária à Saúde e o enfrentamento à pandemia da COVID-19: um mapeamento das experiências brasileiras por meio da Iniciativa APS Forte. APS Rev 2021; 3(3):224-234.,2222 Giovanella L, Bousquat A, Medina MG, Mendonça MHM, Facchini LA, Tasca R, Nedel FB, Lima JG, Mota PHS, Aquino R. Desafios da atenção básica no enfrentamento da pandemia de covid-19 no SUS. In: Portela MC, Reis LGC, Lima SML. Covid-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz; 2022. p. 201-2016.. O que se observou no município de São Paulo foi a fragilidade e descontinuidade desse cuidado, principalmente das pessoas com doenças crônicas2323 Duarte LS, Shirassu MM, Atobe JH, Moraes MA, Bernal RTI. Continuidade da atenção às doenças crônicas no estado de São Paulo durante a pandemia de Covid-19. Saude Debate 2022; 45(n. esp. 2):68-81.
24 Silva BRG, Corrêa APV, Uehara SCSA. Organização da atenção primária à saúde na pandemia de covid-19: revisão de escopo. Rev Saude Publica 2022; 56:94.-2525 Engstrom EM, Melo EA, Giovanella L, Pereira AMM, Grabois V, Mendonça MHM. Organização da atenção primária à saúde no SUS no enfrentamento da covid-19. In: Portela MC, Reis LGC, Lima SML. Covid-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz, Editora Fiocruz; 2022. p. 185-200..
Cabe destacar que estas descaracterizações do NASF e da reterritorialização ocorreram na APS de São Paulo durante a pandemia, mas estiveram em alinho com a política do governo federal. Em meio a uma emergência sanitária, as equipes de saúde da família foram impelidas pelo Previne Brasil para o cadastro de 4.000 pessoas, o que mobilizou a reterritorialização. Exemplo de uma tomada de decisão pautada em burocracia, que não considera a realidade e contexto do território e que não é tomada em cogestão com a população e com os profissionais de saúde. O mesmo raciocínio se aplica ao desmonte das equipes NASF, cujo financiamento foi suprimido no novo modelo, o do Previne Brasil. Assim, em vez de fortalecer o trabalho interdisciplinar em uma perspectiva de uma clínica ampliada, fundamental para a resposta à pandemia, o que ocorreu foi exatamente o oposto22 Giovanella L, Franco CM, Almeida, PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1475-1482.,2626 Silva WRDS, Duarte PO, Felipe DA, Sousa FDOS. A gestão do cuidado em uma unidade básica de saúde no contexto da pandemia de Covid-19 - RJ - Brasil. Trab Educ Saude 2021; 19:2-16.,2727 Mattos MP, Gutiérrez AC, Campos GWS. Construção do referencial histórico-normativo do Núcleo Ampliado de Saúde da Família. Cien Saude Colet 2022; 27(9):3503-3516..
E, embora a gestão municipal tenha se empenhado para organizar atualizações de portarias, considera-se que o conjunto de orientações e espaços de formação foram inadequados, pois, como sugerido por Biscarde et al.2828 Biscarde DGS, Souza EA, Pinto KA, Silva LA, Silva MA, Gusmão MEN. Atenção primária à saúde e covid-19: desafios para universidades, trabalhadores e gestores em saúde. Rev Baiana Enferm 2022; 36:e37824., as equipes poderiam, mediante processos de educação permanente e matriciamento, terem recebido suporte especializado da gestão, com o uso de reuniões virtuais ou videoaulas.
Conclusão
A partir do estudo realizado, identificamos no município de São Paulo o enfraquecimento dos atributos da APS: coordenação do cuidado, longitudinalidade, integralidade, acesso, abordagem familiar, comunitária e competência cultural2929 Blanco AS, Astier-Peña MP, Gómez-Bravo R, Fernández-García M, Bueno-Ortiz JM. El papel de la atención primaria en la pandemia COVID-19: Una mirada hacia Europa. Atencion Primaria 2021; 53(8):102134.. Este enfraquecimento parece estar intimamente articulado a uma modelo de gestão gerencialista e burocrático da APS, que vem descaracterizando o trabalho da ESF, aproximando de um modelo seletivo individualista, com apagamento de importantes aspectos da responsabilidade sanitária em relação a população adscrita. Apesar destas fragilidades já terem sido relatadas em estudos anteriores, identificou-se aqui sua intensificação na pandemia.
O modelo da ESF, historicamente em disputa no município, somado às metas por desempenho, que sempre estiveram presentes nas relações com as OSS e depois foram endossadas pelo Previne Brasil22 Giovanella L, Franco CM, Almeida, PF. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Cien Saude Colet 2020; 25(4):1475-1482.,3030 Medina MG, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHMD, Aquino R. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer? Cad Saude Publica 2020; 36(8):e00149720.,3131 Sala A, Luppi CG, Simões O, Marsiglia RG. Integralidade e Atenção Primária à Saúde: avaliação na perspectiva dos usuários de unidades de saúde do município de São Paulo. Saude Soc 2011; 20(4):948-960., dão ênfase às consultas e ao cuidado individual e parecem relacionar-se com a precarização do trabalho e do cuidado, gerando efeitos nefastos entre os trabalhadores e usuários. E, mesmo com experiências demonstrando a importância de potencializar a APS como forma de garantir todos os cuidados necessários à população, em São Paulo isto não se tornou regra, e tamanha precariedade gerou mobilização dos profissionais por melhores condições de trabalho, mas com resposta incipiente2020 O'Dwyer G, Daumas RP, Cunha DC, Izecksohn MMV. Desafios e repercussões na organização da atenção primária à saúde no contexto da covid-19: o caso do CSEGSF/Teias Manguinhos. In: Portela MC, Reis LGC, Lima, SML. Covid-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde. Rio de Janeiro: Observatório Covid-19 Fiocruz; 2022. p. 427-442.,3232 Rufino E, Carneiro Junior N. Caracterização do atributo acesso na Atenção Primária à Saúde nos Contratos de Gestão das Organizações Sociais de Saúde no município de São Paulo. Rev APS 2022; 25(1):22-31..
Assim, conclui-se que a modelo gestão do município de São Paulo repercutiu de forma significativamente negativa na construção do cuidado durante a pandemia da COVID-19, enfraquecendo e descaracterizando ainda mais o trabalho da ESF, cujo trabalho já estava em ritmo acelerado de desconstrução, pelo município e depois pelo governo federal.
Referências
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Financiamento
Open Society Foundations.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
01 Dez 2023 - Data do Fascículo
Dez 2023
Histórico
- Recebido
26 Abr 2023 - Aceito
22 Ago 2023 - Publicado
24 Ago 2023