(Re)existência da população negra e o racismo brasileiro

(Re)existence of the Black population and Brazilian racism

Ivison Luan Ferreira Araújo Luiz Paulo Ribeiro Sobre os autores
2022

O mais recente livro¹ de Ynaê Lopes dos Santos, doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), é aberto com uma epígrafe instigante: “Para todos nós que, apesar dos pesares, somos (re)existência”. Esse apesar, no texto de Ynaê, traduz-se pelo tecer, pois é na própria trajetória de sua escrita que a autora reconstrói, costura e desvela as marcas do racismo e da (re)existência da população negra brasileira.

Ancorada em sua argumentação, na potencialidade de sua análise e no vasto e profundo conhecimento do tema, Ynaê adota em sua obra parte dos aspectos da história do racismo no Brasil, através de dois pontos: o ocidente e um país que reconhece a existência do racismo, mas onde ninguém se diz racista.

Na primeira parte do livro, a autora retoma o debate teórico-metodológico sobre a colônia e as questões raciais, como a legitimidade da escravização dos negros por parte da Igreja e de Portugal, além da organização do mundo colonial, como a aposta na escravidão e no tráfico transatlântico. Pontua as questões da mestiçagem e traz aspectos importantes de (re)existência da população negra nesse período, como os quilombos, além de algumas pontuações sobre a saúde dessa população, como as condições sanitárias nos navios, que ocasionaram fome, sede, doenças e tristezas, inclusive suicídios¹.

Para discutir com seus argumentos, trago os processos de quarentena, em que os higienistas recomendavam que as pessoas negras fossem conduzidas, após o desembarque, para uma quarentena entre 8 e 15 dias, mas essas orientações esbarravam no grande e lucrativo comércio de pessoas negras e as possíveis perdas econômicas², ou seja, diante do poder dos grandes comerciantes, o direito à saúde já era negado para a população negra.

Na segunda parte do livro, a autora se detém no Império do Brasil, por meio de um exame crítico dos processos de construção da raça e a escravização no mundo em revolução, como as revoltas e ressurreições em diferentes estados, além da construção do primeiro partido negro e das escolhas do Império pela escravização, ou seja, a ordem escravista continuou ditando boa parte das relações sociais, políticas e econômicas, mesmo com o abolicionismo. Entre os autores citados nessa segunda parte está Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista negra no Brasil, avançando e dando voz aos escravizados em sua escrita, além de suas experiências e seu ponto de vista em relação à escravização, trazendo uma proposta de recuperar o que historicamente foi negligenciado pela literatura oficial³.

Na última parte do livro, o foco da autora se dirige à implantação da República e à continuação da arquitetura da exclusão, mantendo dessa forma os lucros advindos da exploração do trabalho escravo e, ainda, o controle dos corpos negros e o embranquecimento da população. Desse modo o negro passaria de bom escravo a mau cidadão. Nesse momento, Ynaê traz aspectos sobre racismo científico, perseguições policiais, ausência de direitos políticos, sociais, trabalhistas e de saúde. Em relação à saúde, o Estado brasileiro fez uso recorrente de políticas públicas higienistas, sendo uma forma de controle da população negra por meio das forças policiais, dos hospícios e dos asilos. Dentro do processo de re(existência) desse período, foi formado o primeiro sindicato do Brasil, construído por pessoas negras para a garantia de direitos trabalhistas, além do samba e do carnaval, que hoje são expressões e manifestações culturais, mas também instrumentos de pertencimento e de luta política da população negra no Brasil.

Na Era Vargas, Ynaê destaca a eugenia e os processos higienistas na centralidade da medicina, e consequentemente da indústria farmacêutica. Já na área das artes existia uma movimentação dos artistas brancos para projetar e “pintar” um país no qual a mestiçagem e a negritude deixaram de ser uma mácula para se tornar brasilidade, mas ao mesmo tempo ainda existia a impossibilidade naturalizada da população negra de exercer profissões como a medicina e a advocacia.

O Estado Novo foi responsável por uma série de políticas públicas que transformaram a eugenia em ações do Estado nacional brasileiro, como a restrição de imigrantes com base em critérios raciais ou a guerra declarada pelo governo contra práticas de cura, perseguindo curandeiros e curandeiras que usavam saberes indígenas e africanos, além de formar psiquiatras eugenistas que classificavam diversos comportamentos como indesejáveis, tarjando-os como loucura. Ynaê, nesse momento, também traz aspectos da educação, em que o discurso é de que as culturas atrasadas (negras e indígenas) dificultavam a obra da educação e que o Brasil se tornasse uma nação ideologicamente branca, pregando um ensino acrítico e retirando informações dos livros sobre as populações negra e indígena.

Na ditadura militar, a aposta foi na falsa democracia racial, falsa pelo fato de não ter alterado as engrenagens racistas que moviam o Brasil, as violências físicas e psicológicas, além das espionagens e do monitoramento de movimentos e associações negras, bem como a atuação de órgãos de repressão contra a população negra. Mas durante esse período, as populações negra e indígena denunciavam o racismo que ordenava as relações sociais, econômicas e políticas, descontruindo o discurso de harmonia racial.

As (re)existências continuavam de várias formas, entre elas a construção da Frente Negra Brasileira e do Movimento Negro Unificado, que discutiam e combatiam o racismo, da União dos Homens de Cor, atuando na imprensa, oferecendo assistência médica e jurídica e alfabetização à população negra, o Teatro Experimental Negro (TEN) de Abdias do Nascimento, trazendo o debate racial para resgatar a cultura negro-africana, de degradados e negados pela colônia, imbuída de conceitos pseudocientíficos sobre a inferioridade da raça negra44 Nascimento A. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estud Av 2004; 18(50):209-224.. O TEN também formou atores e atrizes negros, e houve, com (re)existência, a construção dos bailes black e de afoxé, como o Ilê Aiyê.

Ynaê traz também um marco importante de garantia de direitos para a população negra, a Constituição Federal de 1988, garantido desenhos de grandes políticas públicas, como o Sistema Único de Saúde (SUS), a Previdência Social e as diretrizes da educação pública. Nesse momento, houve manifestações, como a marcha contra a farsa da abolição, o surgimento de ONGs, como Geledés e Criola, além do racismo passar a ser tipificado como crime inafiançável e do entendimento na luta antimanicomial de que a loucura e os comportamentos que foram classificados como tal era atravessados pelo racismo. Não é de se espantar que a maior concentração de pessoas em hospícios e colônias eram de pessoas negras.

Todavia, essas garantias não atingem de fato toda a população negra, e essas conquistas estão longe de transformar de forma profunda nosso país, afinal ainda temos a necropolítica, com uma fusão entre um Estado racista e uma população animalizada socialmente, em que o Estado passa a encarnar essa população como inimigo ficcional, gerando violência e morte como mecanismos de segurança55 Pereira JM. A teoria da necropolítica e a colonialidade no Brasil contemporâneo. Horiz Antropol 2019; 25(55):367-371.. Ynaê finaliza sua obra com um epílogo, informando que vivemos em um tempo de crise mais também de verdades, como o racismo e sua dimensão estrutural no período pandêmico da COVID-19, na morte de George Floyd, João Hélio, Miguel, João Alberto e tantas outras pessoas. O racismo estrutural atravessa toda a nossa história, mas a boa notícia é que sempre houve re(existência), mesmo em um sistema de poder perverso.

Em seu livro, Ynaê traz as marcas do racismo no Brasil e os processos de (re)existência, por meio da análise e interpretação de fatos e discursos, trazendo para os leitores grandes possibilidades e recuperando uma pluralidade de sentidos possíveis; um texto que se desdobra sobre a nossa história como sociedade brasileira e racista, que aguça e enriquece nossa percepção do passado e do presente.

Os processos de (re)existência que Ynaê aborda em sua obra corroboram alguns processos importantes no desenrolar da história, principalmente na saúde da população negra, como a aprovação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) no Conselho Nacional de Saúde em 2006, efetivada pela Portaria MS nº 992\200966 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. Brasília: MS; 2017.. Ela traz marcos de análises em relação aos impactos das construções sociais do racismo no Brasil, sobre condições de saúde e de acesso a esse direito, dessa forma combatendo iniquidades e democratizando a saúde para a população negra77 Batista LE, Santos MPA, Cruz MM, Silva A, Passos SCS, Ribeiro EE, Toma TS, Barreto JOM. Produção cientifica brasileira de saúde da população negra: revisão de escopo rápida. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3849-3860..

Referências

  • 1
    Santos YL. Racismo brasileiro: uma história da formação do país. São Paulo: Todavia; 2022.
  • 2
    Carvalho MJM, Albuquerque AEDB. Os desembarques de cativos africanos e as rotinas médicas no Porto do Recife antes de 1831. Almanack 2016; 12:44-64.
  • 3
    Pedroso RF. Maria Firmina dos Reis, Mãe Suzana e Túlio: três corpos estranhos na literatura brasileira. Rev Firminas 2021; 1(1):106-116.
  • 4
    Nascimento A. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estud Av 2004; 18(50):209-224.
  • 5
    Pereira JM. A teoria da necropolítica e a colonialidade no Brasil contemporâneo. Horiz Antropol 2019; 25(55):367-371.
  • 6
    Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma política para o SUS. Brasília: MS; 2017.
  • 7
    Batista LE, Santos MPA, Cruz MM, Silva A, Passos SCS, Ribeiro EE, Toma TS, Barreto JOM. Produção cientifica brasileira de saúde da população negra: revisão de escopo rápida. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3849-3860.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2023
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