Resumo
O artigo objetiva analisar aspectos da estruturação da rede de atenção à saúde nas regiões do estado de Mato Grosso e a narrativa sobre eles, de atores institucionais representantes da gestão, da prestação de serviços e da sociedade. Tem por base a pesquisa sobre governança e regionalização do SUS neste estado, de abordagem quantitativa e qualitativa, cuja base empírica contemplou dados secundários, documentos institucionais e entrevistas com atores-chave, estes representando a gestão, a prestação de serviços e a sociedade. Os aspectos da estrutura deste recorte focam: cobertura da ESF; disponibilidade de estabelecimentos/serviços de saúde; força de trabalho; despesas com saúde. Entre 2010 e 2018, em que pese a melhoria de vários indicadores explorados: a oferta e a distribuição de serviços e de profissionais evidenciam desigualdades regionais; há limitações financeiras, insuficiência de serviços e de profissionais. A Rede de Atenção à Saúde não está estruturada como regulamentada e sim como cada região - e seus municípios - a entendem e a adaptam, conforme sua capacidade instalada. A APS promoveu avanços, porém não tem conseguido ser efetiva e resolutiva frente às necessidades de saúde, não coordenando adequadamente o cuidado e tampouco orientando a RAS.
Key words:
Unified Health System (SUS); Regionalization; Public Health Services; Primary Health Care; Human Resources
Abstract
The article analyzes aspects of the structuring of the health care network in the regions of the State of Mato Grosso, and the narrative about them, by institutional actors representing management, service providers and society. It is based on research on governance and regionalization of the SUS in this state, with a quantitative and qualitative approach, the empirical basis of which included secondary data, institutional documents and interviews with key actors representing management, service providers and society. In this research, the focus was on coverage of the Family Health Strategy; availability of health services; workforce; expenses on health. Between 2010 and 2018, despite the improvement of several indicators examined: the supply and distribution of services and professionals reveal regional inequalities; there are financial limitations and a lack of services and professionals. The Health Care Network (HCN) is not structured as regulated, but rather as each region - and its municipalities - interprets and adapts it, according to its installed capacity. The PHC network has promoted advances, but it has not been able to be effective and resolute in terms of health needs, not providing care properly nor coordinating the HCN.
Key words:
Unified Health System (SUS); Regionalization; Public Health Services; Primary Health Care; Human Resources
Introdução
Ainda que a regionalização tenha sido uma diretriz do Sistema Único de Saúde, desde a sua instituição em 1988, ela só se implementa no país, de forma ampla, a partir de 200011 Ministério da Saúde. Portaria nº 373, de 22 de fevereiro de 2002. Aprova a Norma Operacional da Assistência à Saúde (Noas-SUS 01/2002). Diário Oficial da União 2002; 28 fev.
2 Lima LD, Viana ALd'Á, Machado CV, Albuquerque MV, Oliveira RG, Iozzi FL, Scatena JHG, Mello GA, Pereira AMM, Coelho APS. Regionalização e acesso à saúde nos estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Cien Saude Colet 2012; 17(11):2881-2892.-33 Chioro dos Reis A, Sóter APM, Furtado LAC, Pereira SSS. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1045-1054.. No entanto, iniciativas e experiências exitosas em alguns estados, como Ceará, Minas Gerais, Paraná e Mato Grosso22 Lima LD, Viana ALd'Á, Machado CV, Albuquerque MV, Oliveira RG, Iozzi FL, Scatena JHG, Mello GA, Pereira AMM, Coelho APS. Regionalização e acesso à saúde nos estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Cien Saude Colet 2012; 17(11):2881-2892.,44 Pereira AM. Dilemas federativos e regionalização na saúde: o papel do gestor estadual do SUS em Minas Gerais [dissertação]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009.
5 Kehrig RT, Martinelli NL, Spinelli MAS, Scatena JHG, Ono P, Silva MJV. Antecedentes da regionalização da saúde em Mato Grosso. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 111-133.-66 Goya N, Andrade LOM, Pontes RJS, Tajra FS. Regionalização da saúde: (in)visibilidade e (i)materialidade da universalidade e integralidade em saúde no trânsito de institucionalidades. Saude Soc 2016; 25(4):902-919., todas anteriores a 2000, evidenciavam que a regionalização seria o caminho para o SUS, como defendem Santos e Campos77 Santos L, Campos GW. SUS Brasil: a região de saúde como caminho. Saude Soc 2015, 24(2):438-446..
O processo de regionalização no país avançou consideravelmente com o Pacto pela Saúde88 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 399, de 22 de fevereiro de 2006. Aprova as diretrizes do Pacto pela Saúde. Diário Oficial da União 2006; 23 fev.. Publicações baseadas em pesquisa nacional multicêntrica sobre o processo de regionalização, no período dessa normativa, apontam mudanças importantes no exercício do poder, voltadas à política de saúde, destacando-se: introdução de novos atores, objetos, regras e processos, orientados por diferentes concepções e ideologias; relevância das Secretarias de Estado de Saúde na condução da regionalização com fortalecimento das suas instâncias de representação regional; criação de novas instâncias de coordenação federativa; revisão das formas de organização e representatividade dos Conselhos de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS) e das Comissões Intergestores Bipartites (CIB); revisão de acordos intergovernamentais estabelecidos na descentralização22 Lima LD, Viana ALd'Á, Machado CV, Albuquerque MV, Oliveira RG, Iozzi FL, Scatena JHG, Mello GA, Pereira AMM, Coelho APS. Regionalização e acesso à saúde nos estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Cien Saude Colet 2012; 17(11):2881-2892.,99 Viana ALd'Á, Lima LD. O processo de regionalização na saúde: contextos, condicionantes e papel das Comissões Intergestores Bipartites. In: Viana ALd'A, Lima LD, organizadores. Regionalização e Relações Federativas na Política de Saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. p. 11-24.,1010 Lima LD, Viana ALD, Machado CV. A Regionalização da saúde no Brasil: condicionantes e desafios. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora, 2014, p. 21-46..
Foi no contexto do Pacto pela Saúde, de maior impulso à regionalização, que se deu, no âmbito do SUS, a discussão1111 Kuschnir R, Chorny A. Redes de atenção à saúde: contextualizando o debate. Cien Saude Colet 2010; 15(5):2307-2316. e a regulamentação para a organização de Redes de Atenção à Saúde (RAS)1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde, no âmbito do SUS. Diário Oficial da União 2010; 30 dez.. Tal temática foi ratificada com a edição do Decreto Presidencial 7.5081313 Brasil. Decreto 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei 8.080. Diário Oficial da União 2011; 29 jun. que conferiu novo destaque à regionalização e às redes, estabelecendo instrumentos para sua efetivação.
A portaria que institui a RAS a concebe como “arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado”1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde, no âmbito do SUS. Diário Oficial da União 2010; 30 dez.. Isto implica na estruturação dos múltiplos pontos de atenção que a compõem e na integração/comunicação entre eles. Os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) devem ser apoiados e complementados por outros de diferentes densidades tecnológicas para a realização de ações especializadas (ambulatoriais e hospitalares), no lugar e tempo certos. As estratégias de integração garantem o conjunto de atributos que caracterizam um sistema de saúde organizado em rede, e nesta dinâmica a APS se destaca no papel de coordenadora do cuidado e de ordenadora da RAS1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde, no âmbito do SUS. Diário Oficial da União 2010; 30 dez.,1414 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Brasília: OPAS; 2011..
Outra pesquisa nacional multicêntrica, que investigou regiões selecionadas nas cinco macrorregiões brasileiras, entre 2014 e 2016, com enfoque específico em “Regiões e Redes” do SUS1515 Viana ALd'Á, Bousquat A, Ferreira MP, Cutrim MAB, Uchimura LYT, Fusaro ER, Souza MR, Mota PHS, Pereira APCM, Iozzi FL, Albuquerque MV. Região e Redes: abordagem multidimensional e multinível para análise do processo de regionalização da saúde no Brasil. Rev Bras Saude Matern Infant 2017; 17(Supl. 1):S17-S26., gerou relevante produção que, para além da grande diversidade nacional da oferta de serviços, das formas de sua organização e gestão, e da natureza de prestadores, apontou: fragilidades da APS em assumir seu papel de coordenação do cuidado1616 Bousquat AE, Giovanella L, Campos EMS, Almeida PF, Martins CL, Mota PHS, Mendonça MHM, Medina MG, Viana ALd'Á, Fausto MCR, Paula DB. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuário. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1141-1154., também por influência de escassez, má distribuição e qualificação de profissionais1717 Bousquat AE, Giovanella L, Fausto MCR, Medina MG, Martins CL, Almeida PF, Campos EMS, Mota PHS. A atenção primária em regiões de saúde: política, estrutura e organização. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00099118.; importante circularidade de profissionais médicos, principalmente especialistas, interna e externamente às regiões1818 Seixas PHd'A, Ibañez N, Silva JA, Bueno ACV, Lima S. A circularidade dos médicos em cinco regiões de São Paulo, Brasil: padrões e fatores intervenientes. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00135018.; concentração da assistência ambulatorial especializada em municípios-polo, com participação majoritária de prestadores privados na alta complexidade1919 Lima LD, Scatena JHG, Albuquerque MV, Oliveira RAD, Martinelli NL, Pereira AMM. Arranjos de governança da assistência especializada nas regiões de saúde do Brasil. Rev Bras Saude Matern Infant 2017; 17(Supl. 1):S121-S133.; além da grande desigualdade espacial da assistência especializada, tanto ambulatorial quanto hospitalar2020 Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG, Melo ECP, Oliveira EXG, Carvalho MS, Pereira AMM, Oliveira RAD, Martinelli NL, Oliveira CF. Arranjos regionais de governança do Sistema Único de Saúde: diversidade de prestadores e desigualdade espacial na provisão de serviços. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00094618.. Com base nesta pesquisa nacional, Viana e Iozzi2121 Viana ALd'Á, Iozzi FL. Enfrentando desigualdades na saúde: impasses e dilemas do processo de regionalização no Brasil. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00022519. agrupam os desafios que se colocam à implementação da regionalização em cinco grandes dimensões, entre elas a estrutura, que além de “insuficiente em recursos físicos, financeiros e humanos, é agravada pela extensão dos vazios assistenciais do país”2121 Viana ALd'Á, Iozzi FL. Enfrentando desigualdades na saúde: impasses e dilemas do processo de regionalização no Brasil. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00022519.(p.7).
Especificamente no estado de Mato Grosso, entre 1995 e 2002 e de forma pioneira, deu-se um importante avanço na regionalização e na estruturação dos serviços de saúde, capitaneado pela Secretaria de Estado da Saúde (SES)2222 Müller Neto JS, organizador. A Regionalização da Saúde em Mato Grosso: em busca da integralidade da atenção. Cuiabá: Secretaria de Estado de Saúde; 2002.. Fomentaram tal avanço: a) a gestão estadual da saúde exercida por uma única pessoa (sanitarista histórico e defensor do SUS); b) a saúde concebida como política social prioritária e de Estado; c) o Plano Estadual de Saúde (PES) contemplando a regionalização; d) o fortalecimento das instâncias da SES nas regiões da saúde; e) a instituição de CIB Regionais; f) a criação de Consórcios Intermunicipais de Saúde (CIS); g) o estabelecimento de parceria com municípios e COSEMS; h) a instituição do Complexo Regulador; i) a elaboração do Plano Diretor de Regionalização (PDR); j) a criação de incentivos financeiros específicos; k) a implantação de hospitais regionais; l) a instituição de convênios com os setores públicos e privados para a oferta regional de serviços de média complexidade e UTI55 Kehrig RT, Martinelli NL, Spinelli MAS, Scatena JHG, Ono P, Silva MJV. Antecedentes da regionalização da saúde em Mato Grosso. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 111-133..
No entanto, a partir de 2003, ainda que se mantivessem vários dos avanços citados, houve desaceleração e mesmo retrocesso do processo de regionalização, com grande rotatividade de gestores da SES, que deixou de exercer seu protagonismo na condução desse processo. Várias pesquisas2323 Botti CS, Artmann E, Spinelli MAS, Scatena JHG. Regionalização dos Serviços de Saúde em Mato Grosso: um estudo de caso da implantação do Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região do Teles Pires, no período de 2000 a 2008. Epidemiol Serv Saude 2013; 22(3):491-500.
24 Assunção MAP, Müller Neto JS. A implantação da gestão regional da saúde: o caso da Região do Vale do Peixoto, Mato Grosso 2014. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 503-437.
25 Silva MJV, Spinelli MAS, Müller Neto JS. A Região Oeste Mato-grossense e a institucionalidade do Colegiado de Gestão Regional. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 391-445.
26 Martinelli NL, Viana ALd'Á, Scatena JHG. O Pacto pela Saúde e o processo de regionalização no estado de Mato Grosso. Saude Debate 2015; 39(n. esp.):78-90.-2727 Kehrig RT, Souza ES, Scatena JHG. Institucionalidade e governança da regionalização da saúde: o caso da região Sul Mato-Grossense à luz das atas do colegiado de gestão. Saude Debate 2015; 39(107):948-961., abordando distintas regiões deste estado, constataram, até 2013: baixa participação da SES nas questões relativas à regionalização da saúde; limitação e/ou atraso de repasse de recursos financeiros do estado aos municípios; não atualização do PDR e não estímulo à elaboração de Planos Regionais de Saúde; diminuição de acompanhamento e controle de hospitais regionais, com adoção de gestão por organizações sociais; valorização do prestador privado em detrimento de serviços públicos; redução de incentivos e coparticipação nos CIS.
Em 2012, atendendo à portaria ministerial de organização da RAS, a SES-MT inicia a formação de grupos condutores, principalmente da Rede Cegonha e da Rede de Urgência e Emergência (RUE), para a deflagração desse processo. Na mencionada pesquisa nacional sobre Região e Redes1515 Viana ALd'Á, Bousquat A, Ferreira MP, Cutrim MAB, Uchimura LYT, Fusaro ER, Souza MR, Mota PHS, Pereira APCM, Iozzi FL, Albuquerque MV. Região e Redes: abordagem multidimensional e multinível para análise do processo de regionalização da saúde no Brasil. Rev Bras Saude Matern Infant 2017; 17(Supl. 1):S17-S26., a região mato-grossense Baixada Cuiabana representou o Centro-Oeste. O relatório de pesquisa dessa região informa que a Rede Cegonha e a RUE foram as duas redes temáticas que, de alguma forma, avançaram. Além de muitos problemas de integração entre os pontos de atenção e da dificuldade da APS em exercer seu papel, o relatório também já apontava a estrutura como a dimensão que mais pesou no avanço da regionalização e implementação da RAS, destacando: baixo investimento na rede, insuficiência de recursos físicos e humanos e baixa cobertura da APS2828 Viana ALd'Á, coordenadora. Pesquisa: Política, planejamento e gestão das regiões e redes de atenção à saúde no Brasil. Relatório Baixada Cuiabana [Internet]. 2017 [acessado 2021 maio 13]. Disponível em: https://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2017/08/Relatorio_BaixadaCuiabana.pdf.
https://www.resbr.net.br/wp-content/uplo... .
Frente ao exposto, questiona-se como as redes de atenção foram estruturadas nas regiões de saúde deste estado e estão sendo operacionalizadas em algumas delas. O objetivo deste artigo é analisar aspectos da estruturação da rede de atenção à saúde nas regiões do estado de Mato Grosso e a narrativa sobre eles, de atores institucionais representantes da gestão, da prestação de serviços e da sociedade.
Método
Trata-se de recorte de uma pesquisa maior que, tendo a governança e a regionalização do SUS como foco, investigou estrutura, organização, coordenação e gestão da RAS. Este estudo teve como seu universo o estado de Mato Grosso, conformado por 141 municípios, que, desde 2012, estão organizados em 16 regiões de saúde.
A pesquisa teve abordagens quantitativa e qualitativa, abrangeu o universo das regiões do estado e, de forma mais aprofundada, contemplou três regiões-caso. A base empírica de análise foi obtida mediante: dados secundários, documentos institucionais e questionários semiestruturados ou roteiros, estes últimos aplicados a informantes-chave das regiões-caso, do nível central estadual e do COSEMS-MT.
Os dados secundários foram extraídos de bancos institucionais nacionais (disponibilizados pelo Datasus), permitindo o cálculo de inúmeros indicadores, dos quais, são destacados neste recorte: cobertura da ESF; disponibilidade de estabelecimentos/serviços de distintos níveis e complexidades (da atenção básica a leitos hospitalares), bem como de médicos e enfermeiros; e despesas com saúde. Tais indicadores abrangeram o período de 2010 a 2018 e foram calculados por 100, por 1000 ou por 10.000 habitantes, dependendo da forma de apresentação, exceto as despesas com saúde, que focaram aquelas sob gestão municipal (independentemente da origem do recurso, se da União, do estado ou do município) e foram deflacionadas com base no Índice de Preço ao Consumidor Amplo (IPCA/IBGE), tendo como referência o mês de dezembro de 2018.
Para o presente recorte, a base documental levantada - planos de governo, pautas e resoluções da CIB, legislação, entre outros - praticamente não ofereceu contribuição à análise.
As três regiões de saúde investigadas em profundidade foram selecionadas a partir de duas tipologias: uma de âmbito estadual, elaborada por Scatena et al.2929 Scatena JHG, Oliveira LR, Galvão ND, Neves MAB. O uso de indicadores compostos para classificação das regiões de saúde de Mato Grosso. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 169-190., que teve por base indicadores compostos que ranquearam as 16 regiões segundo nível socioeconômico, disponibilidade da rede e relação público-privada; uma segunda, de âmbito nacional, elaborada por Ferreira e Dini3030 Ferreira MP, Dini NP. Tipologia nacional dos Colegiados de Gestão Regional. In: Viana ALd'Á, Lima LD, organizadores. Regionalização e Relações Federativas na Política de Saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. p. 67-80., para o estudo dos então Colegiados de Gestão Regional, que definiu cinco grupos para as regiões, com base em desenvolvimento econômico e oferta de serviços, variando de alto desenvolvimento socioeconômico e alta oferta de serviços (Grupo 5) a baixo desenvolvimento socioeconômico e baixa oferta de serviços (Grupo 1). Considerados esses aspectos, foram selecionadas como regiões-caso:
Baixada Cuiabana: Macrorregião Centro Sul, Grupo 43030 Ferreira MP, Dini NP. Tipologia nacional dos Colegiados de Gestão Regional. In: Viana ALd'Á, Lima LD, organizadores. Regionalização e Relações Federativas na Política de Saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. p. 67-80. (alto desenvolvimento/média oferta), classificando-se como 1ª em disponibilidade, 3ª em nível socioeconômico e 16ª na relação público-privada2929 Scatena JHG, Oliveira LR, Galvão ND, Neves MAB. O uso de indicadores compostos para classificação das regiões de saúde de Mato Grosso. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 169-190.. Composta por 11 municípios, com 1.000.139 habitantes (2018), variando de 2.676 a 607.153 e distantes de 11 a 258 km. da sede regional (Cuiabá). Concentram-se nesta região as principais referências estaduais, ambulatoriais e hospitalares, de maior densidade tecnológica, localizadas nos dois maiores municípios do estado: Cuiabá e Várzea Grande.
Sudoeste Mato-grossense: Macrorregião Oeste, Grupo 23030 Ferreira MP, Dini NP. Tipologia nacional dos Colegiados de Gestão Regional. In: Viana ALd'Á, Lima LD, organizadores. Regionalização e Relações Federativas na Política de Saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. p. 67-80. (médio desenvolvimento socioeconômico e baixa oferta de serviços), 14ª em disponibilidade, 7ª em nível socioeconômico e 14ª na relação público-privada2929 Scatena JHG, Oliveira LR, Galvão ND, Neves MAB. O uso de indicadores compostos para classificação das regiões de saúde de Mato Grosso. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 169-190.. Com 118.435 habitantes (2018), a região tem 10 municípios, cujas populações variam de 3.128 a 45.093 habitantes, e se localizam entre 46 e 622 quilômetros do município sede (Pontes e Lacerda). A distância deste município às sedes das regiões que lhe são referências também é grande: Oeste Mato-grossense (230 km.) e Baixada Cuiabana (450 km.). A região faz fronteira com Bolívia e Rondônia.
Araguaia Xingu: Macrorregião Leste, Grupo 13030 Ferreira MP, Dini NP. Tipologia nacional dos Colegiados de Gestão Regional. In: Viana ALd'Á, Lima LD, organizadores. Regionalização e Relações Federativas na Política de Saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. p. 67-80. (baixo desenvolvimento socioeconômico e baixa oferta de serviços), 12ª em disponibilidade, 12ª em nível socioeconômico e 7ª na relação público-privada2929 Scatena JHG, Oliveira LR, Galvão ND, Neves MAB. O uso de indicadores compostos para classificação das regiões de saúde de Mato Grosso. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 169-190.. A região tem 89.370 habitantes (2018) e conta com sete municípios, de população variando entre 2.495 e 29.471. O município sede (Porto Alegre do Norte) tem 12.347 habitantes e localiza-se a 1135 km., pela via terrestre mais utilizada, da capital do estado e principal referência em saúde. Dentro da região, a distância dos municípios à sede varia de 28 a 188 km. Concentra a maior parcela da população indígena do estado e faz divisa com os estados de Tocantins e Pará.
Foram entrevistados 57 atores-chave dessas três regiões (20 em Araguaia-Xingu, 24 na Baixada Cuiabana e 13 no Sudoeste Mato-grossense), mediante questionários semiestruturados ou roteiros específicos. Eles atuavam na gestão municipal ou regional (secretário municipal de saúde, diretor de escritório regional de saúde/ERS, secretário executivo da CIR, coordenador da APS, coordenador da regulação, médico regulador, apoiador do COSEMS na região); na prestação de serviços (gerentes ou enfermeiros de UBS/ESF, secretário executivo do consórcio/CIS, dirigentes dos serviços de referência, diretor de hospital de referência regional); ou representavam a sociedade (conselheiros e ouvidores de saúde).
Complementando a base empírica de informações, foram conduzidas entrevistas com cinco informantes-chave do nível estadual, representando a gestão estadual: Secretaria Estadual de Saúde (SES), Secretaria Executiva da CIB, Gerência de AB, Gerência da Regionalização; e o conjunto dos municípios, na figura do representante do COSEMS-MT.
Considerando as perguntas abertas dos questionários semiestruturados ou dos roteiros utilizados, deu-se a busca por respostas dos informantes-chave àquelas questões que se relacionavam aos indicadores de estrutura acima mencionados. As narrativas dos entrevistados foram transcritas e analisadas à luz da Análise de Conteúdo do tipo Temática, que permite desvendar os núcleos de sentido na comunicação, em outras palavras, os vários significados do objeto em estudo3131 Minayo MCS. O desafio do conhecimento. São Paulo: Hucitec Editora; 2010.. Buscou-se a coerência, a concordância e a confluência de seus sentidos, quer explicando os achados quantificáveis, quer clareando o entendimento acerca da temática investigada.
Foram utilizadas neste texto as narrativas que predominaram em mais de 50% das manifestações, quer no geral, ou por categoria de entrevistado (gestor, trabalhador ou sociedade). A todos os entrevistados foi solicitado seu consentimento e foi garantida a confidencialidade, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A pesquisa que originou este recorte foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Júlio Müller (parecer nº 2.437.262, emitido em 14 de dezembro de 2017), atendendo à Resolução CNS nº 466/2012. O relatório completo da pesquisa e os vários instrumentos utilizados para a coleta de dados encontra-se disponível no sítio do Instituto de Saúde Coletiva da UFMT (https://www.ufmt.br/instituto-faculdade/isc).
Resultados
Optou-se pela descrição, primeiramente em âmbito geral do estado, dos aspectos estruturais de base quantitativa, selecionados como panorama da capacidade instalada estadual, para, em seguida destacar narrativas acerca dela, com maior detalhamento das três regiões-caso.
Ainda que restritos a aspectos estruturais específicos, os indicadores selecionados permitem uma visão geral da capacidade instalada no estado e em suas 16 regiões, no que tange à infraestrutura para os distintos níveis de atenção, à força de trabalho e ao financiamento.
Em Mato Grosso, a elevação da cobertura de ESF tem sido discreta nos últimos nove anos, se mantendo sempre abaixo de 70,0% (Tabela 1), mas varia entre as regiões, sendo que onze delas tiveram coberturas acima de 80,0% no último biênio, cinco das quais acima de 90,0%. A Baixada Cuiabana, historicamente, mantém as mais baixas coberturas.
Em relação ao nível secundário e terciário de atenção, há no estado uma moderada elevação de unidades prestadoras de assistência ambulatorial especializada e de SADT, e certa estabilidade na oferta de leitos hospitalares, mas a situação nas regiões é diversificada (Tabela 2). Nas regiões Sudoeste e Teles Pires as unidades ambulatoriais especializadas dobraram, enquanto na Baixada Cuiabana e Noroeste se mantiveram praticamente estáveis. Diferente dos SADT, que embora tenham se elevado em muitas regiões, tiveram queda em três delas, inclusive na Baixada Cuiabana. Em relação aos leitos hospitalares, a tendência foi de redução (13 regiões), enquanto a elevação se deu na Baixada Cuiabana, Garças Araguaia e Médio Araguaia (Tabela 2).
A força de trabalho no SUS, embora seja multiprofissional, foi representada neste estudo pelos médicos e enfermeiros, cuja disponibilidade no estado aumentou nos últimos nove anos, todavia, a relação de um profissional para cada mil habitantes só foi alcançada em 2018 (Tabela 3). Tal relação, no entanto, é influenciada por poucas regiões, geralmente as mais populosas, ou que têm municípios-polo melhor estruturados, destacando-se a Baixada Cuiabana. O que chama a atenção é que, de modo geral, o aumento de enfermeiros tem sido maior que os de médicos, ainda que a disponibilidade de ambos seja baixa. Em 2010, na maioria das regiões o número de médicos por habitante era maior que o de enfermeiros, mas isso se inverteu em 2018 (Tabela 3).
Em relação ao financiamento da saúde, as despesas efetuadas sob gestão municipal, mesmo não representando todo o gasto com saúde no SUS, são um bom indicador do comprometimento dos municípios com a saúde e de sua capacidade arrecadatória, posto que parte considerável de tais recursos é oriunda do orçamento próprio, que em todas as regiões têm se mantido entre 20,0% e 29,0% (dados trabalhados, mas não apresentados em sua totalidade, neste recorte). No período analisado, a elevação real dessas despesas com saúde no estado, foi da ordem de 40,0%, mas ainda assim, não se atingiu R$ 1.000 por hab./ano, valor observado apenas em cinco regiões, em 2018 (Tabela 4).
Ainda que as três regiões-caso sejam contempladas nas Tabelas 1 a 4, a Figura 1 condensa o conjunto de indicadores ao longo dos nove anos analisados, salientando-se que, exceto as despesas com saúde, cujos valores são orientados pelo eixo y secundário (da direita), a disponibilidade de serviços, leitos e profissionais tem como referência o eixo y principal.
Evolução temporal de indicadores selecionados, nas três regiões de saúde caso. Mato Grosso, 2010 a 2018.Nota: o eixo y secundário (Direita) só é referência para as Despesas com Saúde (R$/Hab).
No que tange às despesas com saúde, elas se elevaram nas três regiões, mas historicamente a Baixada Cuiabana detém um volume consideravelmente maior, enquanto Araguaia Xingu tem os menores gastos. Nos outros indicadores, a Baixada Cuiabana se destaca das demais na maior disponibilidade de leitos, médicos e enfermeiros, ainda que seu incremento seja discreto e o número de médicos por mil habitantes se mantenha superior ao de enfermeiros. Nas regiões Araguaia Xingu e Sudoeste Mato-Grossense destacam-se: maior disponibilidade de unidades de ESF (coerente com a maior cobertura expressa na Tabela 1); maior disponibilidade e incremento de estabelecimentos prestadores de assistência ambulatorial especializada e de SADT; e maior número e incremento de enfermeiros por habitantes.
Segundo a maioria de gestores e coordenadores entrevistados, em MT não se instituiu uma RAS como a normalizada pela Portaria 4.279/2010 e não houve condução estadual para discutir e estruturar a oferta dos serviços nas regiões, conforme previsto no Decreto 7.508/2011, fazendo com que cada município, ao seu modo, organizasse sua rede. Também relatam que os serviços estão organizados para responder ao modelo de atenção focado na doença e, mais especificamente, em eventos agudos. Entretanto, afirmam que há uma estrutura organizada que responde às demandas e, de forma mais satisfatória àquelas relacionadas à Rede Cegonha e RUE. Por outro lado, a maior parte desses atores, assim como os conselheiros entrevistados, referem insuficiência de todos os serviços que compõem a rede, destacando-se os de apoio diagnóstico e os de alta complexidade, majoritariamente concentrados em Cuiabá e ofertados principalmente pelo setor privado. Há poucos hospitais estaduais regionais e, mesmo quando a SES estabelece convênios com hospitais municipais, filantrópicos ou privados, para atuarem como referência estadual, a maioria desses estabelecimentos não oferece serviços de maior complexidade. Outro aspecto referido é a baixa informatização do SUS, com consequentes prejuízos no acesso à telemedicina e ao e-SUS, na implementação do prontuário eletrônico e na integração entre todos os pontos de atenção da rede.
São reconhecidas pelos entrevistados as fortalezas da APS (capilaridade da estrutura, cobertura, força de trabalho), mas referem que faltam incentivos financeiros, apoio, valorização e clareza por parte da gestão municipal (coordenadores) para reorganizar o modelo de atenção, tendo a APS como coordenadora do cuidado (gestores, coordenadores). Isso compromete seu funcionamento e principalmente sua integração com os demais pontos de atenção da rede. Os gestores entrevistados também reconhecem que as dificuldades do financiamento em saúde espraiam-se pelos três níveis de governo, destacando algumas: municípios com baixa receita e no limite de sua capacidade de aplicação; baixa participação do estado; e vinculação de parte do orçamento federal às emendas parlamentares.
Nas regiões-caso Sudoeste Mato-grossense e Araguaia Xingu, as narrativas dos informantes-chave abrangeram aspectos comuns ou que se complementavam: boa cobertura da ESF, mas baixa articulação com os demais pontos de atenção; sobrecarga das equipes de saúde, por atenderem uma população além do estabelecido para o território de abrangência; incipiência dos serviços especializados, inclusive no setor privado, fomentando encaminhamentos para outras regiões e consequentes problemas relativos a acesso oportuno e deslocamento; importância do Consórcio Intermunicipal de Saúde para fortalecer a RAS, reduzir encaminhamentos e custo por procedimento, ampliar os serviços e captar especialistas, apesar da carência de recursos financeiros e profissionais, que limita a cota dos serviços disponíveis para cada município integrante. Acrescentam ainda: concentração dos serviços mais especializados no município sede; dificuldades financeiras, boa parte em função de gastos com encaminhamentos para fora da região; dificuldades de atrair, remunerar e fixar profissionais, principalmente especialistas; insuficiência de leitos gerais e inexistência de leitos de UTI. Na região Araguaia Xingu foram referidas demandas de outros estados, geralmente não pactuadas, que comprometem os serviços de saúde e que deveriam ser mediadas e regulamentadas pelos estados envolvidos.
No caso específico da Baixada Cuiabana, para a maioria dos gestores, coordenadores, conselheiros entrevistados, ela possui particularidades: baixa cobertura da ESF, principalmente influenciada por Várzea Grande e Cuiabá; ausência de consórcio intermunicipal em saúde; maior e melhor estrutura de serviços especializados e hospitalares do estado, mas as demandas provenientes das demais regiões dificultam o acesso por parte dos usuários dos municípios integrantes da própria região.
Discussão
Os resultados mostram que no período de 2010 a 2018, acompanhando a política de saúde instituída, as regiões seguiram arranjos organizativos para operacionalizar as redes de atenção, mas a baixa resolutividade sobrecarregou o sistema de referência, desafiando a política estadual na sua implementação, como apontado em outros estudos2424 Assunção MAP, Müller Neto JS. A implantação da gestão regional da saúde: o caso da Região do Vale do Peixoto, Mato Grosso 2014. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 503-437.
25 Silva MJV, Spinelli MAS, Müller Neto JS. A Região Oeste Mato-grossense e a institucionalidade do Colegiado de Gestão Regional. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 391-445.
26 Martinelli NL, Viana ALd'Á, Scatena JHG. O Pacto pela Saúde e o processo de regionalização no estado de Mato Grosso. Saude Debate 2015; 39(n. esp.):78-90.-2727 Kehrig RT, Souza ES, Scatena JHG. Institucionalidade e governança da regionalização da saúde: o caso da região Sul Mato-Grossense à luz das atas do colegiado de gestão. Saude Debate 2015; 39(107):948-961..
Na APS, mesmo que os indicadores de cobertura da ESF tenham apresentado alguma melhora, seguindo o encontrado no cenário nacional3131 Minayo MCS. O desafio do conhecimento. São Paulo: Hucitec Editora; 2010., os estudos de caso revelam que estes continuam insuficientes para atender as necessidades da população. O papel da APS pouco se alterou na configuração da RAS, mas vale destacar que este nível de atenção se configura como aquele onde se efetiva um primeiro e fundamental passo para a concretização de qualquer rede, a adscrição da população, e a integralidade do cuidado só se viabiliza quando a gestão do sistema é direcionada para suas necessidades de saúde1414 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Brasília: OPAS; 2011..
Nas regiões, mesmo que a estrutura disponível não responda plenamente às necessidades de atenção e a APS não ordene a rede por fatores limitantes, como população adscrita acima do programado, falta de profissionais e insuficiência de demais serviços da RAS, são notórios as experiências exitosas e o reconhecimento de sua contribuição para o cuidado e o acesso ao sistema. Sua influência na organização da RAS se dá, sobretudo, pelas demandas que gera, mas ainda está distante da função de ser a ordenadora da rede e garantir a integralidade do cuidado. Assim como em outros estudos, verificou-se que a APS trouxe avanços na melhoria das condições de vida e saúde da população, porém ainda não consegue ser efetiva e resolutiva frente a várias necessidades de saúde1616 Bousquat AE, Giovanella L, Campos EMS, Almeida PF, Martins CL, Mota PHS, Mendonça MHM, Medina MG, Viana ALd'Á, Fausto MCR, Paula DB. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuário. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1141-1154.,3232 Giovanella L, Bousquat A, Schenkman S, Almeida PF, Sardinha LMV, Vieira MLFP. Cobertura da Estratégia Saúde da Família no Brasil: o que nos mostram as Pesquisas Nacionais de Saúde 2013 e 2019. Cien Saude Colet 2020; 26(Supl. 1):2543-2556.,3333 Cecílio LCO, Chioro dos Reis AA. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cad Saude Publica 2018; 34(8):e00056917..
A Baixada Cuiabana é a região com menor cobertura da ESF, reproduzindo o cenário brasileiro de baixa cobertura da atenção básica em capitais e grandes centros, como informa o Datasus (http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?pacto/2015/cnv/coapmunbr.def). É importante destacar que a centralidade da APS na rede de atenção determina suas possibilidades de exercer a função de coordenadora do cuidado e ordenadora da RAS, e propicia o acesso oportuno e adequado aos serviços, em que pesem as mudanças que vêm sendo3434 Almeida PF, Santos AM, Santos VP, Silveira Filho RM. Integração assistencial em região de saúde: paradoxo entre necessidades regionais e interesses locais. Saude Soc 2016; 25(2):320-335.,3535 Almeida PF, Medina MG, Fausto MCR, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHM. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saude Debate 2018; 42(n. esp.):244-260., sendo a capacidade instalada condição essencial para avançar na resolutividade da APS e da RAS.
Das narrativas emergiu a dificuldade de articulação da APS com outros pontos da RAS municipal e para a dimensão regional ela apresentou-se quase inexistente, fato que inviabiliza sua atuação como coordenadora do cuidado. Os desafios para a implementação da rede nas regiões estudadas passam pelo fortalecimento da APS, uma vez que, mesmo em cenários de deficiência estrutural, o aumento na sua cobertura propicia avanços em indicadores de saúde da população e redução nas desigualdades regionais1616 Bousquat AE, Giovanella L, Campos EMS, Almeida PF, Martins CL, Mota PHS, Mendonça MHM, Medina MG, Viana ALd'Á, Fausto MCR, Paula DB. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuário. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1141-1154..
Quanto aos serviços de assistência ambulatorial especializada, SADT e leitos hospitalares no estado, apesar da discreta melhoria da disponibilidade dos dois primeiros e estabilidade do último, as entrevistas realizadas nas regiões-caso revelam a manutenção da insuficiência desses serviços, inclusive no setor privado, e principalmente nas regiões mais afastadas da capital. A dificuldade de acesso aos serviços de média e alta complexidade também é um problema em outras localidades do Brasil3636 Aguilera LVU, França BHS, Moysés ST, Moysés SJ. Articulação entre os níveis de atenção dos serviços de saúde na Região Metropolitana de Curitiba: desafios para os gestores. Rev Adm Publica 2013; 47(4):121-139.,3737 Silveira Filho RM, Santos AM, Carvalho JA, Almeida PF. Ações da Comissão Intergestores Regional para gestão compartilhada de serviços especializados no Sistema Único de Saúde. Physis 2016; 26(3):853-878.. Esta condição promove a descontinuidade do cuidado e reflete a fragmentação ou inexistência da rede de saúde1414 Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Brasília: OPAS; 2011..
As entrevistas também confirmam o predomínio do setor privado na oferta dos serviços de média e alta complexidade. Essa situação espelha a realidade brasileira2020 Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG, Melo ECP, Oliveira EXG, Carvalho MS, Pereira AMM, Oliveira RAD, Martinelli NL, Oliveira CF. Arranjos regionais de governança do Sistema Único de Saúde: diversidade de prestadores e desigualdade espacial na provisão de serviços. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00094618., destacando que, apesar do país contar com um sistema público e universal de saúde, este sempre foi dependente do setor privado, principalmente de serviços conveniados/contratados de maior complexidade3838 Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: oferta, acesso e utilização de serviços de saúde nos últimos 30 anos. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1751-1762..
Segundo Teixeira3939 Teixeira CF. Por uma análise política dos impasses da regionalização do SUS. Cad Saude Publica 2019; 35 (Supl. 2):e00077019., os efeitos das relações que se estabelecem entre a rede básica de serviços, predominantemente estatal e sob gestão pública, e os serviços de média e alta complexidades, majoritariamente privados ou sob gestão alternativa, além de dificultar a organização de redes orientadas pela APS, fortalecem uma estruturação subordinada à assistência especializada e hospitalocêntrica, e ao mercado da saúde, que visa a lucratividade. Ressalta-se ainda, que boa parte dos serviços privados do Brasil dependem dos recursos públicos por atenderem exclusivamente ao SUS ou serem de uso misto3838 Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: oferta, acesso e utilização de serviços de saúde nos últimos 30 anos. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1751-1762..
Assim como neste estudo, em outras regiões a ampliação da oferta de serviços especializados também se deu com a criação dos Consórcios Intermunicipais de Saúde (CIS) regionalizados, que visam interação entre os diferentes níveis assistenciais e municípios de diversos portes4040 Pinafo E, Carvalho BG, Nunes EFPA. Descentralização da gestão: caminho percorrido, nós críticos e perspectivas. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1511-1524.. Os CIS têm contribuído para superar a dificuldade de fixar profissionais especializados, como também para facilitar o acesso aos serviços na região, ainda que alguns serviços sejam ofertados de forma limitada4141 Viegas SMF, Penna CMM. O SUS é universal, mas vivemos de cotas. Cien Saude Colet 2013; 18(1):181-190.,4242 Almeida PF, Giovanella L, Martins Filho MT, Lima LD. Redes regionalizadas e garantia de atenção especializada em saúde: a experiência do Ceará, Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4527-4540.. Entretanto, vale considerar que os CIS, por si só, não garantem a integração do sistema em rede4343 Shimizu HE, Cruz MS, Bretas Júnior N, Schierholt SR, Ramalho WM, Ramos MC, Mesquita MS, Silva EN. O protagonismo dos Conselhos de Secretários Municipais no processo de governança regional. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1131-1140..
Em relação à disponibilidade de profissionais nas regiões, a desigualdade se dá especialmente para a categoria médica, e tem gerado problemas no acesso e cuidado1818 Seixas PHd'A, Ibañez N, Silva JA, Bueno ACV, Lima S. A circularidade dos médicos em cinco regiões de São Paulo, Brasil: padrões e fatores intervenientes. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00135018.. A disponibilidade de médicos por habitantes se elevou na maioria das regiões, porém permanece aquém de um profissional para cada mil habitantes e está abaixo da média encontrada na região Centro-Oeste (1,13/1000)4444 Scheffer M. Demografia Médica no Brasil: Cenários e indicadores de distribuição [relatório de pesquisa]. São Paulo: Conselho Regional de Medicina/SP, Conselho Federal de Medicina; 2013.. Entre esses profissionais, além da rotatividade e da dificuldade de fixação, principalmente em regiões mais distantes dos grandes centros, é alta sua circularidade1818 Seixas PHd'A, Ibañez N, Silva JA, Bueno ACV, Lima S. A circularidade dos médicos em cinco regiões de São Paulo, Brasil: padrões e fatores intervenientes. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00135018..
No que diz respeito à disponibilidade de enfermeiros por habitantes, o aumento foi generalizado e superou o número de médicos no estado e na maioria das regiões estudadas. O aumento no número de cursos de formação desses profissionais, a maior oferta de postos de trabalho no SUS e a ampliação do leque de sua atuação, da assistência à gestão, são algumas possibilidades explicativas4545 Beraldo M. Enfermagem: uma força que transforma o SUS. Enferm Rev COREM-SP 2016; 16:24-29..
A estrutura assistencial, a distância, as vias de acesso e o nível de desenvolvimento das regiões têm relação com o custo e a fixação de profissionais, principalmente os médicos. Como a qualidade de vida, a segurança, o lazer e a oferta educacional em tais locais também são fatores condicionantes, há necessidade de arranjos institucionais regionalizados que facilitem a contratação de médicos, que considerem as distintas realidades e que possam romper com a lógica do modelo de atenção que fragmenta o cuidado4646 Girardi SN, Carvalho CL, Araújo JF, Farah JM, Der Maas LW, Campos LAB. Índice de escassez de médicos no Brasil: estudo exploratório no âmbito da Atenção Primária. In: Pierantoni CR, Dal Poz MR, França T, organizadores. O trabalho em saúde: abordagens quantitativas e qualitativas. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/UERJ, ObservaRH; 2011. p. 171-186.
47 Van Stralen ACS, Massote AW, Carvalho CL, Girardi SN. Percepção de médicos sobre fatores de atração e fixação em áreas remotas e desassistidas: rotas da escassez. Physis 2017; 27(1):147-172.-4848 Tasca R. Recomendações para o fortalecimento da atenção primária à saúde no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2020; 44:e4..
Nos municípios de pequeno porte, mais dependentes de transferências de recursos financeiros federal e estadual, e com mais restrições orçamentárias, a dificuldade de fixação de profissionais, especialmente de médicos, é um dos principais problemas enfrentados pelos gestores4949 Magnano C, Pierantoni CR Cenário de contratações para a Estratégia Saúde da Família no município do Rio de Janeiro: análise dos anos 2000. J Prim Manag Health Care 2013; 4(2):116-125.. Embora o mercado de trabalho em saúde no âmbito do SUS tenha avançado nos últimos anos com a institucionalização de políticas indutoras da gestão do trabalho5050 Machado MH, Oliveira ES, Moyses NMN. Tendências do mercado de trabalho em saúde no Brasil. In: Pierantoni CR, Dal Poz MR, França T, organizadores. O trabalho em saúde: abordagens quantitativas e qualitativas. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/UERJ, ObservaRH; 2011. p. 103-116., ainda há muito a se fazer para enfrentar os desafios na implantação e implementação dessas políticas. Diante disso, a centralidade do papel dos trabalhadores constitui grande desafio para a implementação da APS, pois é a partir das relações que se estabelecem entre trabalhador-usuário, usuário-trabalhador e trabalhador-trabalhador que ocorre a possibilidade de mudanças e melhorias na prática do cuidado e dos serviços5151 Nunes EF, Santini SML, Carvalho BG, Cordoni Junior L. Força de trabalho em saúde na Atenção Básica em Municípios de Pequeno Porte do Paraná. Saude Debate 2015; 39(104):30-42..
Quanto ao financiamento, o SUS exige planejamento e relação interfederativa de cooperação na sua implementação, com o governo estadual atuando como o protagonista de sua organização para minimizar as desigualdades regionais. A maior parte dos municípios de MT é de pequeno porte, com população menor que 20.000 habitantes, cuja arrecadação e disponibilidade de recursos financeiros, ainda que crescentes, não acompanham as necessidades populacionais, e por vezes, frente às responsabilidades municipais, requerem a destinação de recursos além dos limites constitucionais5252 Santos L. SUS-30 anos: um balanço incômodo? Cien Saude Colet 2018; 23(6):2043-2050.. As desigualdades na oferta e distribuição dos serviços refletem as dificuldades financeiras e a escassez de serviços locais e levam os gestores a optarem pela compra dos serviços disponíveis na região, o que torna significativa a composição do mix-público privado1919 Lima LD, Scatena JHG, Albuquerque MV, Oliveira RAD, Martinelli NL, Pereira AMM. Arranjos de governança da assistência especializada nas regiões de saúde do Brasil. Rev Bras Saude Matern Infant 2017; 17(Supl. 1):S121-S133.,2020 Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG, Melo ECP, Oliveira EXG, Carvalho MS, Pereira AMM, Oliveira RAD, Martinelli NL, Oliveira CF. Arranjos regionais de governança do Sistema Único de Saúde: diversidade de prestadores e desigualdade espacial na provisão de serviços. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00094618..
Nas regiões-caso, os municípios com população inferior a 5.500 habitantes e com serviços quase exclusivos de APS tiveram as maiores despesas anuais per capita, algo já destacado na literatura1717 Bousquat AE, Giovanella L, Fausto MCR, Medina MG, Martins CL, Almeida PF, Campos EMS, Mota PHS. A atenção primária em regiões de saúde: política, estrutura e organização. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00099118.. Isso sugere um modelo ainda centrado no município e a necessidade de planejar e organizar a rede integrada de atenção regional, que gere economia de escala na provisão de serviços públicos em geral.
Nestas regiões, não houve aporte de novos recursos para a conformação das redes regionalizadas, e nem investimentos para ampliá-las e ou qualificá-las; o arranjo regional restringiu-se aos limites dos recursos financeiros da Programação Pactuada Integrada (PPI) e aos limites orçamentários dos municípios para financiar a atenção integral, situação também apontada por Almeida et al.3535 Almeida PF, Medina MG, Fausto MCR, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHM. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saude Debate 2018; 42(n. esp.):244-260..
Na conformação da RAS, entre as responsabilidades dos entes federativos para operacionalizar as redes, o financiamento deveria estar explicitado no Contrato Organizativo da Ação Pública de Saúde e ter o estado como protagonista na condução, tanto do processo de regionalização, como se dera no passado, quanto da viabilização da RAS. Por aquele passado “virtuoso” entre 1995 e 2002, destacado no início deste artigo, Mato Grosso foi bem avaliado em pesquisa nacional multicêntrica, que o considerou em condições “Favoráveis” à regionalização nos três contextos analisados: Histórico-estrutural, Político-institucional e Conjuntural22 Lima LD, Viana ALd'Á, Machado CV, Albuquerque MV, Oliveira RG, Iozzi FL, Scatena JHG, Mello GA, Pereira AMM, Coelho APS. Regionalização e acesso à saúde nos estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Cien Saude Colet 2012; 17(11):2881-2892.. No entanto, as várias pesquisas conduzidas desde então55 Kehrig RT, Martinelli NL, Spinelli MAS, Scatena JHG, Ono P, Silva MJV. Antecedentes da regionalização da saúde em Mato Grosso. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 111-133.,2323 Botti CS, Artmann E, Spinelli MAS, Scatena JHG. Regionalização dos Serviços de Saúde em Mato Grosso: um estudo de caso da implantação do Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região do Teles Pires, no período de 2000 a 2008. Epidemiol Serv Saude 2013; 22(3):491-500.
24 Assunção MAP, Müller Neto JS. A implantação da gestão regional da saúde: o caso da Região do Vale do Peixoto, Mato Grosso 2014. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 503-437.
25 Silva MJV, Spinelli MAS, Müller Neto JS. A Região Oeste Mato-grossense e a institucionalidade do Colegiado de Gestão Regional. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 391-445.
26 Martinelli NL, Viana ALd'Á, Scatena JHG. O Pacto pela Saúde e o processo de regionalização no estado de Mato Grosso. Saude Debate 2015; 39(n. esp.):78-90.-2727 Kehrig RT, Souza ES, Scatena JHG. Institucionalidade e governança da regionalização da saúde: o caso da região Sul Mato-Grossense à luz das atas do colegiado de gestão. Saude Debate 2015; 39(107):948-961. evidenciaram a não continuidade daquele processo, por motivos diversos, com destaque à grande rotatividade de gestores na SES e a rebaixada valorização do SUS. A regionalização pouco avançou, a rede de atenção não foi viabilizada, a base financeira continua fragilizada e persistem alguns desafios: conflitos intergestores; expressivos vazios assistenciais; e dificuldades para regular e assegurar o acesso às referências e promover o cuidado em tempo hábil, como já apontado pela literatura5353 Ouverney AF, Ribeiro JM, Moreira MR. O COAP e a Regionalização do SUS: os diversos padrões de implementação nos estados brasileiros. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1193-1207.,5454 Santos L. Região de saúde e suas redes de atenção: modelo organizativo-sistêmico do SUS. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1281-1289..
Consideram-se como as principais limitações deste estudo: a restrição do número de indicadores aqui utilizados, em virtude do recorte adotado; a impossibilidade, por tempo, logística e aceitação, de inclusão de maior número de entrevistados; e a impossibilidade de generalização das evidências levantadas nas três regiões-caso. Quanto a essas evidências, pela diversidade das regiões investigadas, acredita-se que seja grande a probabilidade de elas refletirem várias outras regiões, do estado e do país. Mas sugere-se a realização de estudos que persistam na temática, ampliando as questões aqui levantadas e aprofundando sua análise, na expectativa, infelizmente nem sempre alcançada, de que tal produto seja utilizado pelos gestores de saúde.
Considerações finais
Este estudo evidenciou que as regiões de Mato Grosso, à sua maneira, têm organizado a estrutura de seus serviços para responder às demandas da população e viabilizar o acesso, mas também revelou a persistência de problemas estruturais e organizacionais e a necessidade de alinhar o modelo de gestão e de atenção à saúde às diretrizes orientadoras da RAS. Além disso, os achados reforçam a importância do apoio e coordenação do estado para o fortalecimento da gestão compartilhada e interfederativa para a governança regionalizada.
A crise sanitária e econômica provocada pela COVID-19 reitera a necessidade de implementar a RAS nas regiões e fortalecer o papel da APS como coordenadora do cuidado e ordenadora da rede, a fim de desenvolver ações de vigilância, prevenção e tratamento integral em tempo oportuno.
Referências
- 1Ministério da Saúde. Portaria nº 373, de 22 de fevereiro de 2002. Aprova a Norma Operacional da Assistência à Saúde (Noas-SUS 01/2002). Diário Oficial da União 2002; 28 fev.
- 2Lima LD, Viana ALd'Á, Machado CV, Albuquerque MV, Oliveira RG, Iozzi FL, Scatena JHG, Mello GA, Pereira AMM, Coelho APS. Regionalização e acesso à saúde nos estados brasileiros: condicionantes históricos e político-institucionais. Cien Saude Colet 2012; 17(11):2881-2892.
- 3Chioro dos Reis A, Sóter APM, Furtado LAC, Pereira SSS. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1045-1054.
- 4Pereira AM. Dilemas federativos e regionalização na saúde: o papel do gestor estadual do SUS em Minas Gerais [dissertação]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009.
- 5Kehrig RT, Martinelli NL, Spinelli MAS, Scatena JHG, Ono P, Silva MJV. Antecedentes da regionalização da saúde em Mato Grosso. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 111-133.
- 6Goya N, Andrade LOM, Pontes RJS, Tajra FS. Regionalização da saúde: (in)visibilidade e (i)materialidade da universalidade e integralidade em saúde no trânsito de institucionalidades. Saude Soc 2016; 25(4):902-919.
- 7Santos L, Campos GW. SUS Brasil: a região de saúde como caminho. Saude Soc 2015, 24(2):438-446.
- 8Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 399, de 22 de fevereiro de 2006. Aprova as diretrizes do Pacto pela Saúde. Diário Oficial da União 2006; 23 fev.
- 9Viana ALd'Á, Lima LD. O processo de regionalização na saúde: contextos, condicionantes e papel das Comissões Intergestores Bipartites. In: Viana ALd'A, Lima LD, organizadores. Regionalização e Relações Federativas na Política de Saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. p. 11-24.
- 10Lima LD, Viana ALD, Machado CV. A Regionalização da saúde no Brasil: condicionantes e desafios. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora, 2014, p. 21-46.
- 11Kuschnir R, Chorny A. Redes de atenção à saúde: contextualizando o debate. Cien Saude Colet 2010; 15(5):2307-2316.
- 12Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde, no âmbito do SUS. Diário Oficial da União 2010; 30 dez.
- 13Brasil. Decreto 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamenta a Lei 8.080. Diário Oficial da União 2011; 29 jun.
- 14Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Brasília: OPAS; 2011.
- 15Viana ALd'Á, Bousquat A, Ferreira MP, Cutrim MAB, Uchimura LYT, Fusaro ER, Souza MR, Mota PHS, Pereira APCM, Iozzi FL, Albuquerque MV. Região e Redes: abordagem multidimensional e multinível para análise do processo de regionalização da saúde no Brasil. Rev Bras Saude Matern Infant 2017; 17(Supl. 1):S17-S26.
- 16Bousquat AE, Giovanella L, Campos EMS, Almeida PF, Martins CL, Mota PHS, Mendonça MHM, Medina MG, Viana ALd'Á, Fausto MCR, Paula DB. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuário. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1141-1154.
- 17Bousquat AE, Giovanella L, Fausto MCR, Medina MG, Martins CL, Almeida PF, Campos EMS, Mota PHS. A atenção primária em regiões de saúde: política, estrutura e organização. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00099118.
- 18Seixas PHd'A, Ibañez N, Silva JA, Bueno ACV, Lima S. A circularidade dos médicos em cinco regiões de São Paulo, Brasil: padrões e fatores intervenientes. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00135018.
- 19Lima LD, Scatena JHG, Albuquerque MV, Oliveira RAD, Martinelli NL, Pereira AMM. Arranjos de governança da assistência especializada nas regiões de saúde do Brasil. Rev Bras Saude Matern Infant 2017; 17(Supl. 1):S121-S133.
- 20Lima LD, Albuquerque MV, Scatena JHG, Melo ECP, Oliveira EXG, Carvalho MS, Pereira AMM, Oliveira RAD, Martinelli NL, Oliveira CF. Arranjos regionais de governança do Sistema Único de Saúde: diversidade de prestadores e desigualdade espacial na provisão de serviços. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00094618.
- 21Viana ALd'Á, Iozzi FL. Enfrentando desigualdades na saúde: impasses e dilemas do processo de regionalização no Brasil. Cad Saude Publica 2019; 35(Supl. 2):e00022519.
- 22Müller Neto JS, organizador. A Regionalização da Saúde em Mato Grosso: em busca da integralidade da atenção. Cuiabá: Secretaria de Estado de Saúde; 2002.
- 23Botti CS, Artmann E, Spinelli MAS, Scatena JHG. Regionalização dos Serviços de Saúde em Mato Grosso: um estudo de caso da implantação do Consórcio Intermunicipal de Saúde da Região do Teles Pires, no período de 2000 a 2008. Epidemiol Serv Saude 2013; 22(3):491-500.
- 24Assunção MAP, Müller Neto JS. A implantação da gestão regional da saúde: o caso da Região do Vale do Peixoto, Mato Grosso 2014. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 503-437.
- 25Silva MJV, Spinelli MAS, Müller Neto JS. A Região Oeste Mato-grossense e a institucionalidade do Colegiado de Gestão Regional. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 391-445.
- 26Martinelli NL, Viana ALd'Á, Scatena JHG. O Pacto pela Saúde e o processo de regionalização no estado de Mato Grosso. Saude Debate 2015; 39(n. esp.):78-90.
- 27Kehrig RT, Souza ES, Scatena JHG. Institucionalidade e governança da regionalização da saúde: o caso da região Sul Mato-Grossense à luz das atas do colegiado de gestão. Saude Debate 2015; 39(107):948-961.
- 28Viana ALd'Á, coordenadora. Pesquisa: Política, planejamento e gestão das regiões e redes de atenção à saúde no Brasil. Relatório Baixada Cuiabana [Internet]. 2017 [acessado 2021 maio 13]. Disponível em: https://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2017/08/Relatorio_BaixadaCuiabana.pdf
» https://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2017/08/Relatorio_BaixadaCuiabana.pdf - 29Scatena JHG, Oliveira LR, Galvão ND, Neves MAB. O uso de indicadores compostos para classificação das regiões de saúde de Mato Grosso. In: Scatena JHG, Kehring RT, Spinelli MAS, organizadores. Regiões de Saúde: diversidade e processo de regionalização em Mato Grosso. São Paulo: Hucitec Editora; 2014. p. 169-190.
- 30Ferreira MP, Dini NP. Tipologia nacional dos Colegiados de Gestão Regional. In: Viana ALd'Á, Lima LD, organizadores. Regionalização e Relações Federativas na Política de Saúde do Brasil. Rio de Janeiro: Contra Capa; 2011. p. 67-80.
- 31Minayo MCS. O desafio do conhecimento. São Paulo: Hucitec Editora; 2010.
- 32Giovanella L, Bousquat A, Schenkman S, Almeida PF, Sardinha LMV, Vieira MLFP. Cobertura da Estratégia Saúde da Família no Brasil: o que nos mostram as Pesquisas Nacionais de Saúde 2013 e 2019. Cien Saude Colet 2020; 26(Supl. 1):2543-2556.
- 33Cecílio LCO, Chioro dos Reis AA. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cad Saude Publica 2018; 34(8):e00056917.
- 34Almeida PF, Santos AM, Santos VP, Silveira Filho RM. Integração assistencial em região de saúde: paradoxo entre necessidades regionais e interesses locais. Saude Soc 2016; 25(2):320-335.
- 35Almeida PF, Medina MG, Fausto MCR, Giovanella L, Bousquat A, Mendonça MHM. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saude Debate 2018; 42(n. esp.):244-260.
- 36Aguilera LVU, França BHS, Moysés ST, Moysés SJ. Articulação entre os níveis de atenção dos serviços de saúde na Região Metropolitana de Curitiba: desafios para os gestores. Rev Adm Publica 2013; 47(4):121-139.
- 37Silveira Filho RM, Santos AM, Carvalho JA, Almeida PF. Ações da Comissão Intergestores Regional para gestão compartilhada de serviços especializados no Sistema Único de Saúde. Physis 2016; 26(3):853-878.
- 38Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: oferta, acesso e utilização de serviços de saúde nos últimos 30 anos. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1751-1762.
- 39Teixeira CF. Por uma análise política dos impasses da regionalização do SUS. Cad Saude Publica 2019; 35 (Supl. 2):e00077019.
- 40Pinafo E, Carvalho BG, Nunes EFPA. Descentralização da gestão: caminho percorrido, nós críticos e perspectivas. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1511-1524.
- 41Viegas SMF, Penna CMM. O SUS é universal, mas vivemos de cotas. Cien Saude Colet 2013; 18(1):181-190.
- 42Almeida PF, Giovanella L, Martins Filho MT, Lima LD. Redes regionalizadas e garantia de atenção especializada em saúde: a experiência do Ceará, Brasil. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4527-4540.
- 43Shimizu HE, Cruz MS, Bretas Júnior N, Schierholt SR, Ramalho WM, Ramos MC, Mesquita MS, Silva EN. O protagonismo dos Conselhos de Secretários Municipais no processo de governança regional. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1131-1140.
- 44Scheffer M. Demografia Médica no Brasil: Cenários e indicadores de distribuição [relatório de pesquisa]. São Paulo: Conselho Regional de Medicina/SP, Conselho Federal de Medicina; 2013.
- 45Beraldo M. Enfermagem: uma força que transforma o SUS. Enferm Rev COREM-SP 2016; 16:24-29.
- 46Girardi SN, Carvalho CL, Araújo JF, Farah JM, Der Maas LW, Campos LAB. Índice de escassez de médicos no Brasil: estudo exploratório no âmbito da Atenção Primária. In: Pierantoni CR, Dal Poz MR, França T, organizadores. O trabalho em saúde: abordagens quantitativas e qualitativas. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/UERJ, ObservaRH; 2011. p. 171-186.
- 47Van Stralen ACS, Massote AW, Carvalho CL, Girardi SN. Percepção de médicos sobre fatores de atração e fixação em áreas remotas e desassistidas: rotas da escassez. Physis 2017; 27(1):147-172.
- 48Tasca R. Recomendações para o fortalecimento da atenção primária à saúde no Brasil. Rev Panam Salud Publica 2020; 44:e4.
- 49Magnano C, Pierantoni CR Cenário de contratações para a Estratégia Saúde da Família no município do Rio de Janeiro: análise dos anos 2000. J Prim Manag Health Care 2013; 4(2):116-125.
- 50Machado MH, Oliveira ES, Moyses NMN. Tendências do mercado de trabalho em saúde no Brasil. In: Pierantoni CR, Dal Poz MR, França T, organizadores. O trabalho em saúde: abordagens quantitativas e qualitativas. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/UERJ, ObservaRH; 2011. p. 103-116.
- 51Nunes EF, Santini SML, Carvalho BG, Cordoni Junior L. Força de trabalho em saúde na Atenção Básica em Municípios de Pequeno Porte do Paraná. Saude Debate 2015; 39(104):30-42.
- 52Santos L. SUS-30 anos: um balanço incômodo? Cien Saude Colet 2018; 23(6):2043-2050.
- 53Ouverney AF, Ribeiro JM, Moreira MR. O COAP e a Regionalização do SUS: os diversos padrões de implementação nos estados brasileiros. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1193-1207.
- 54Santos L. Região de saúde e suas redes de atenção: modelo organizativo-sistêmico do SUS. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1281-1289.
Financiamento
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Mato Grosso.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Jan 2023 - Data do Fascículo
Fev 2023
Histórico
- Recebido
25 Abr 2022 - Aceito
15 Ago 2022 - Publicado
17 Ago 2022