Resumo
O objetivo foi identificar os fatores facilitadores e coercitivos da organização da rede de atenção à saúde que intervêm sobre o acesso ao diagnóstico e tratamento do câncer bucal. Um estudo de caso da região de saúde Metropolitana I do estado do Rio de Janeiro, com coleta de dados em sistemas de informação e 26 entrevistas com gestores e profissionais. A análise dos dados foi realizada por meio das técnicas de estatística descritiva e análise temática, à luz da Teoria da Estruturação de Giddens. Identificou-se baixa cobertura de saúde bucal na atenção básica, com priorização do acesso a grupos prioritários e urgências, dificultando o acesso ao diagnóstico do câncer bucal neste nível de atenção. A presença da rede secundária em todos os municípios da região facilita o diagnóstico, porém há limites para o acesso ao tratamento. Faculdades de odontologia atuam no diagnóstico como rede informal, ação importante, mas não financiada. A regulação para o diagnóstico não foi restritiva, mas para o tratamento a regulação foi considerada pouco transparente e demorada, com falta de vagas. Apesar dos avanços, persistem fatores coercitivos estruturais e nas ações dos agentes que restringem diagnóstico e tratamento oportuno do câncer bucal.
Palavras-chave:
Neoplasias Bucais; Política de Saúde; Serviços de Saúde Bucal
Introdução
No âmbito normativo, a Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB)11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Coordenação Nacional de Saúde Bucal, Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004. e a Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer (PNPCC)22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Anexo IX da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de setembro de 2017. Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer. Diário Oficial da União 2017; 3 out. definem que os serviços da atenção básica são responsáveis pela detecção das lesões suspeitas de câncer bucal e pelo encaminhamento para confirmação diagnóstica.
Prioritariamente, o diagnóstico é realizado nos serviços de atenção ambulatorial especializada, como os Centros de Especialidades Odontológicas (CEO). Todos os CEO devem cumprir as atividades necessárias para o diagnóstico bucal33 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 599, de 23 de março de 2006. Define a implantação de Especialidades Odontológicas (CEO) e de Laboratórios Regionais de Próteses Dentárias (LRPD) e estabelece critérios, normas e requisitos para seu credenciamento. Diário Oficial da União 2006; 24 mar., dispondo, portanto, de estrutura para realização do exame clínico, biópsia e encaminhamento para análise em laboratórios de patologia, que servem como sistema de apoio22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Anexo IX da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de setembro de 2017. Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer. Diário Oficial da União 2017; 3 out..
Após a confirmação diagnóstica de câncer bucal, o usuário é encaminhado a uma unidade especializada hospitalar para o tratamento, de preferência em Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Unacon) com radioterapia ou em Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon)44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.399, de 17 de dezembro de 2019. Redefine os critérios e parâmetros referenciais para a habilitação de estabelecimentos de saúde na alta complexidade em oncologia no âmbito do SUS. Diário Oficial da União 2019; 19 fev.. Esse processo deve ser pactuado em planos regionais, com definição do mecanismo de regulação, otimizando a organização da oferta e promovendo a equidade22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Anexo IX da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de setembro de 2017. Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer. Diário Oficial da União 2017; 3 out..
Sabe-se, entretanto, que a rede idealizada pelas PNPCC e PNSB se transforma no cotidiano dos serviços. As relações institucionais não são tão claras e os agentes envolvidos, mesmo limitados pelas normas e recursos do Sistema Único de Saúde (SUS), têm margem de ação para inovar e buscar alternativas, tencionando as formas de organização normativamente definidas55 Cecilio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos "mais do mesmo". Saude Soc 2012; 21(2):280-289..
Para 2021, estima-se 15.190 casos novos de câncer bucal no Brasil66 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Estimativa 2020: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2019.. Em 2020, ocorreram 6.192 mortes por essa enfermidade77 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Atlas on-line da mortalidade [Internet]. [acessado 24 fev 2020]. Disponível em: https://mortalidade.inca.gov.br/MortalidadeWeb/.
https://mortalidade.inca.gov.br/Mortalid... . Esses números estão associados à manutenção de um quadro de diagnóstico tardio, mesmo que este tipo de câncer ocorra, geralmente, em região visualmente acessível para o profissional88 Torres-Pereira CC, Angelim-Dias A, Melo NS, Lemos-Jr CA, Oliveira EMF. Abordagem do câncer da boca: uma estratégia para os níveis primário e secundário de atenção em saúde. Cad Saude Publica 2012; 28(Supl. l):S30-S39.. As taxas de mortalidade por esse tipo de câncer aumentaram entre 2003 e 201299 Rocha TAH, Thomaz EBAF, Silva NCS, Queiroz RCS, Souza MR, Barbosa ACQ, Thumé E, Rocha VCM, Alvares V, Almeida DG, Vissoci JRN, Staton CA, Facchini LA. Oral primary care: an analysis of its impact on the incidence and mortality rates of oral cancer. BMC Cancer 2017; 17(1):706., a despeito de toda ampliação do aparato normativo e financeiro1010 Lima FLT, O'Dwyer G. Políticas de Prevenção e Controle do Câncer Bucal à luz da Teoria da Estruturação de Giddens. Cien Saude Colet 2020; 25(8):3201-3213..
Esse cenário, de origem multifatorial, necessita ser melhor compreendido. Apesar do acesso ao atendimento para o câncer bucal já ter sido objeto de outros estudos, esse artigo inova ao investigar esse acesso considerando a realidade dos diferentes componentes da rede assistencial sob a ótica de diferentes agentes nesse processo. Assim, o objetivo dessa pesquisa foi identificar os fatores facilitadores e coercitivos de organização da RAS que intervêm sobre o acesso ao diagnóstico e tratamento do câncer bucal na Região Metropolitana I do Rio de Janeiro.
Metodologia
Trata-se de um estudo de caso, de caráter analítico, com coleta de dados de múltiplas fontes de informação, favorecendo uma visão holística sobre os acontecimentos1111 Creswell JW. Investigação Qualitativa & Projeto de Pesquisa: escolhendo entre cinco abordagens. Porto Alegre: Penso; 2014.. A coleta de dados ocorreu no segundo semestre de 2019. Escolheu-se a região de saúde Metropolitana I do estado do Rio de Janeiro para análise, por possuir a maior concentração da população urbana e de serviços para atenção ao câncer bucal no estado. Essa região possui mais de 9 milhões de habitantes e é composta por 12 municípios: Belford Roxo, Duque de Caxias, Itaguaí, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados, Rio de Janeiro, São João de Meriti e Seropédica.
Os serviços da atenção básica foram caracterizados pela variação da cobertura de atenção básica em saúde bucal nos anos 2009, 2014 e 2019, considerando o cadastro de profissionais na estratégia de saúde da família, postos de saúde, centros de saúde, unidades básicas de saúde, consultório isolado, unidade móvel fluvial ou unidade móvel terrestre, conforme critérios e dados do eGestor (https://egestorab.saude.gov.br/). Esses anos foram selecionados como forma de observar as alterações ao longo de 10 anos, com um intervalo no quinto ano.
Por meio do TABWIN, utilizou-se dos dados do Sistema de Informação Ambulatorial do SUS (SIA/SUS) para identificar os estabelecimentos de realização das biópsias de interesse ao diagnóstico bucal em 2019. Posteriormente, esses estabelecimentos foram classificados a partir de sua habilitação no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). Foram incluídos todos os procedimentos lançados pelos códigos 0201010232 (biópsia de glândula salivar), 0201010372 (biópsia da pele e partes moles) e 0201010526 (biópsia dos tecidos moles da boca) com indicação para CID-10 Principal C00 (Neoplasia maligna do lábio); C01 ( Neoplasia maligna da base da língua); C02 (Neoplasia maligna de outras partes e de partes não especificadas da língua); C03 (Neoplasia maligna da gengiva); C04 (Neoplasia maligna do assoalho da boca); C05 (Neoplasia maligna do palato); C06 (Neoplasia maligna de outras partes e de partes não especificadas da boca); C07 ( Neoplasia maligna da glândula parótida); C08 (Neoplasia maligna de outras glândulas salivares maiores e as não especificadas); C09 (Neoplasia maligna da amígdala); C10 (Neoplasia maligna da orofaringe); D10 (Neoplasia benigna da boca e da faringe); K00 (Distúrbios do desenvolvimento e da erupção dos dentes); K01 (Dentes inclusos e impactados); K02 (Cárie dentária); K03 (Outras doenças dos tecidos dentários duros); K04 (Doenças da polpa e dos tecidos periapicais); K05 (Gengivite e doenças periodontais); K06 (Outros transtornos da gengiva e do rebordo alveolar sem dentes); K07 (Anomalias dentofaciais (inclusive a maloclusão); K08 (Outros transtornos dos dentes e de suas estruturas de sustentação); K09 (Cistos da região bucal não classificados em outra parte); K10 (Outras doenças dos maxilares); K11 (Doenças das glândulas salivares); K12 (Estomatite e lesões correlatas); K13 (Outras doenças do lábio e da mucosa oral); K14 (Doenças da língua).
Utilizou-se dados do Sistema de Informação Hospitalar (SIH/SUS) para mapear os municípios responsáveis pelo tratamento do câncer bucal na região Metropolitana I do Rio de Janeiro no ano de 2019. Para tanto, buscou-se o número de Cirurgias em Oncologia (código 0416) realizadas para o tratamento do câncer bucal (CID-10 Principal C00 a C10).
Para compreender os mecanismos de gestão, foram entrevistadas 26 pessoas: três membros da equipe técnica da coordenação de saúde bucal da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ); cinco coordenadores municipais de saúde bucal e dezoito cirurgiões-dentistas de cinco municípios da região (doze da estratégia de saúde da família (eSB) e seis responsáveis pelo diagnóstico do câncer bucal em CEO). Todos os entrevistados deviam atuar, no mínimo, por um ano nos atuais serviços. A seleção dos municípios baseou-se em diferentes perfis populacionais: um com mais de um milhão de pessoas; dois entre um milhão e 500.000 de pessoas e; dois com menos de 500.000 pessoas.
O número de entrevistas foi considerado adequado pelos autores, considerando o princípio do “poder da informação”, que tem sido proposto como substituto ao de saturação, que estaria mais relacionado a estudos baseados na Teoria Fundamentada em Dados1212 Malterud K, Siersma VD, Guassora AD. Sample Size in Qualitative Interview Studies: Guided by Information Power. Qual Health Res 2016; 26(13):1753-1760.. Não havia vínculo prévio entre os participantes e o entrevistador, que se conheceram por meio de contato telefônico anterior à entrevista, onde foram explicados os objetivos da pesquisa e a motivação do pesquisador, além de realizado o agendamento das entrevistas. Não houve recusas para participação na pesquisa.
Utilizou-se da análise da conduta estratégica prevista na Teoria da Estruturação (TE) de Giddens1313 Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2003., dando-se primazia às consciências discursivas para elucidar os significados que os agentes têm sobre os motivos de suas ações e desvelar os fatores facilitadores e coercitivos para o acesso ao diagnóstico e tratamento do câncer bucal no âmbito do SUS. Essa modalidade de análise preconiza a integração entre as abordagens qualitativas e quantitativas, mesmo que dê maior ênfase à primeira1313 Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2003..
A TE tem se apresentado como um recurso teórico para análise das políticas públicas de saúde estruturadas com base na intencionalidade governamental e nas ações concretas de agentes na aplicabilidade dessas políticas1414 O'Dwyer G. Estudos de políticas e a Teoria da Estruturação de Giddens. In: Baptista TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas, Planejamento e Gestão em Saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p.173-192.. Baseia-se na “dualidade da estrutura”, onde as propriedades estruturais do sistema social são compreendidas, ao mesmo tempo, como meio e resultado das práticas que elas recursivamente organizam1313 Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2003.. Essa compreensão da relação entre estrutura e ação sinaliza que os sistemas sociais (entre eles os sistemas de saúde) são equilíbrio entre a influência da sociedade no indivíduo (estrutura coercitiva) e a liberdade do indivíduo para agir e influenciar a sociedade (liberdade de ação). Estrutura e ação estão, dessa forma, indissociavelmente ligadas, sem prioridade uma sobre a outra1313 Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2003.,1414 O'Dwyer G. Estudos de políticas e a Teoria da Estruturação de Giddens. In: Baptista TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas, Planejamento e Gestão em Saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p.173-192..
Baseado nisso, utilizou-se de roteiros semiestruturados nas entrevistas, com questões a respeito da organização e cotidiano dos serviços a depender do perfil do participante e seu local de atuação, além de perguntas surgidas a partir das falas dos entrevistados1515 Gray DE. Pesquisa o mundo real. Porto Alegre: Penso; 2009.,1616 Yin RK. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso; 2016.. Houve preocupação de abordar questões relacionadas ao cotidiano dos serviços que pudessem, de forma direta ou indireta, desvendar os fatores facilitadores e coercitivos relacionados às estruturas (leis, recursos financeiros e recursos físicos) e ao papel dos agentes no desenvolvimento das ações relacionadas ao diagnóstico do câncer bucal, conforme orienta a Teoria da Estruturação1313 Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2003.. Os fatores estruturais e as ações dos agentes que se relacionam positivamente com o alcance dos objetivos traçados pelas pessoas e pelos serviços são considerados facilitadores. Por outro lado, os fatores que dificultam, ou inviabilizam, o alcance desses objetivos, são compreendidos como coercitivos1313 Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2003..
Todas as entrevistas foram feitas pelo mesmo pesquisador, que já possuía experiência na área de pesquisa qualitativa. Foram realizadas nos ambientes de trabalho dos participantes, de forma individual, gravadas e transcritas para análise no programa NVivo®. Não houve necessidade de repetição das entrevistas. Concomitante às entrevistas, o pesquisador realizou notas de campo, que serviram apenas de apoio para compreensão dos dados.
Utilizou-se da análise temática dos dados, de forma conjunta entre os diferentes perfis de participantes entrevistados. Os resultados e a discussão foram organizados a partir da categorização apriorística1717 Bardin L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. por componentes da RAS previstos na PNPCC: Atenção básica; Atenção especializada; Sistemas de apoio e Regulação. Para escrita deste artigo, utilizou-se do checklist COREQ1818 Tong A, Sainsbury P, Craig J, Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care 2007; 19(6):349-357..
Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foram identificados por siglas e números em ordem aleatória: coordenador municipal de saúde bucal (CMSB); cirurgião-dentista responsável pelo diagnóstico (CDD); cirurgião-dentista da saúde da família (CDeSF); área técnica da coordenação estadual de saúde bucal (CESB).
A pesquisa foi aprovada em Comitês de Ética em Pesquisa sob os CAAE 82201418.0.3001.5279 e 82201418.0.0000.5240.
Resultados e discussão
Os fatores facilitadores e coercitivos das condições estruturais e das ações dos agentes para o enfrentamento do câncer bucal identificados foram sintetizados no Quadro 1 e discutidos ao longo do texto. Por se tratar de uma região de grande importância no cenário estadual, e também nacional, esse conjunto de fatores pode servir de proxy para discussão e compreensão desse problema de pesquisa em outras regiões de saúde.
Atenção básica
A cobertura da saúde bucal na atenção básica da região Metropolitana I é a menor do estado, atingindo, em 2019, o máximo em Seropédica (63,81%) e mínimo em Belford Roxo (6,90%). Verificou-se que entre 2009 e 2014 houve expansão da atenção básica na região, porém, entre 2014 e 2019, houve pequena retração da cobertura, acompanhando a tendência no estado (Tabela 1). A cobertura de 22,12% na região foi considerada baixa pelos entrevistados.
A baixa cobertura foi considerada pelos entrevistados como coercitiva para o acesso dos usuários ao diagnóstico e ao tratamento do câncer bucal e foi relacionada pelos participantes ao grande porte populacional dos municípios, à deficiência de recursos e ao próprio processo histórico de ausência de serviços na região. Apesar da cobertura dos serviços bucais na atenção básica ter expandido após a PNSB, a histórica dívida de exclusão social pré-existente faz com que o resultado dessa expansão seja limitado1010 Lima FLT, O'Dwyer G. Políticas de Prevenção e Controle do Câncer Bucal à luz da Teoria da Estruturação de Giddens. Cien Saude Colet 2020; 25(8):3201-3213..
A baixa cobertura reflete diretamente na atenção aos pacientes com câncer bucal, considerando que a existência de eSB na eSF tem impacto positivo nas ações de campanha, acompanhamento, encaminhamento para especialistas e registro de casos suspeitos em todo o Brasil1919 Galante ML, Silva DPD, Gabriel M, Michel-Crosato E, Pucca Junior GA, Biazevic MGH, Carrer FCA. Brazilian Oral health teams in primary care and oral cancer: Results of a national evaluation. Braz Oral Res. 2021; 35:e116., o que pode estar contribuindo para a redução das taxas de mortalidade por câncer de boca e orofaringe no Brasil2020 Cunha ARD, Prass TS, Hugo FN. Mortality from oral and oropharyngeal cancer in Brazil: impact of the National Oral Health Policy. Cad Saude Publica 2019; 35(12):e00014319..
Reconhecer essa baixa cobertura, e consequente sobrecarga de atividades, possibilitou a compreensão sobre as formas de organização da atenção básica na região descritas pelos entrevistados. Segundo os entrevistados, há diferentes formas de organização do acesso aos serviços de saúde bucal na atenção básica: listas de espera por indivíduo e família; demanda espontânea; encaminhamento da equipe multiprofissional; busca ativa em escolas ou domicílios; e grupos operativos. O tempo de espera para a primeira consulta de rotina, descrito pelos entrevistados, variou de 3 a 12 meses. Foi nítida a situação de sobrecarga pela qual a atenção básica em saúde bucal passa nessa região. Segundo os entrevistados, mesmo que a população de referência de uma unidade esteja coberta por uma eSB, o acesso real aos serviços é limitado, já que uma eSB está, frequentemente, referenciada à quatro ou mais eSF (dez a quinze mil usuários). Essa situação não é exclusiva deste estudo, já tendo sido identificada situação semelhante de sobrecarga e centralidade no atendimento às demandas espontâneas2121 Warmling CM, Baldisserotto J, Rocha ET. Acolhimento & acesso de necessidades de saúde bucal e o agir profissional na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu) 2019; 23:e180398..
Devido à sobrecarga, tem havido priorização do atendimento individual, em prejuízo às atividades coletivas. As dificuldades para realização de atividades de promoção e prevenção contribuem para a manutenção da alta demanda por tratamento individual:
Eles estão querendo aproximar isso aqui do que era o antigo posto de saúde, que você chega e é atendido. Primeiro porque há o sucateamento das UPAS, que não dão mais conta das coisas que davam, e isso vai sobrar aqui, vai desaguar aqui. Na verdade, já está desaguando e sempre desaguou (CDeSF6).
O modelo antigo, concentrado na livre demanda e anterior à adoção da eSF, foi considerado pelos participantes como “enxugador de gelo”, onde a busca por desordens potencialmente malignas2222 Van Der Waal I. Potentially malignant disorders of the oral and oropharyngeal mucosa: present concepts of management. Oral Oncol 2010; 46(6):423-425. acaba sendo negligenciada pelos profissionais, que diante de uma rotina estafante, não fazem o exame clínico com atenção às partes moles da boca. Mesmo com o reconhecimento das qualidades do novo modelo frente ao antigo, na prática os entrevistados apresentaram dificuldades para essa mudança, em especial devido à baixa cobertura da atenção primária e à demanda individual acumulada:
O dentista tem que cumprir 20 atendimentos por dia (para se alcançar a meta), então muitas vezes ele tem que acelerar e as coisas acabam passando. O lado positivo é que ele consegue ter um número maior de atendimentos e satisfazer aquela região. O lado negativo é a atenção que você tem que dar a cada paciente. Aí a gente não faz uma anamnese bem-feita (CMSB3).
Segundo os participantes, como a população de referência é em número acima da capacidade da equipe, a priorização de atendimento a alguns grupos, como gestantes, crianças e diabéticos, resulta em uma consequência impremeditada de exclusão de outros grupos populacionais, como o de homens com mais de 40 anos, etilistas e tabagistas que pouco procuram o serviço, considerado o principal grupo de risco para o câncer bucal2323 Kumar M, Nanavati R, Modi TG, Dobariya C. Oral cancer: Etiology and risk factors: A review. J Cancer Res Ther 2016; 12(2):458-463.:
Gestante, diabético, criança até um ano de idade e acamado é prioridade. Por mês tenho 20 novas gestantes em uma equipe e 12 na outra. Qual é o horário que sobrou para quem não tem prioridade nenhuma? A prioridade é quase exclusividade de acesso (CDeSF6).
A postura passiva dos serviços foi verificada no Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) em 2012, onde apenas 62,1% das eSB da região Metropolitana I relataram registrar e acompanhar os casos suspeitos de câncer de boca encaminhados para diagnóstico e, desses, somente 51,6% conseguiam comprovar esse registro2424 Casotti E, Monteiro ABF, Castro-Filho EL, Santos MP. Organização dos serviços públicos de saúde bucal para diagnóstico precoce de desordens com potencial de malignização do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1573-1582..
A sobrecarga de atividades da eSB, segundo os entrevistados, agravou-se após 2014, dada a conjuntura político-econômica brasileira, com reflexos sobre a cobertura e serviços, conforme já relatado na literatura2525 Probst LF, Pucca-Junior GA, Pereira, AC, Carli AD. Impacto das crises financeiras sobre os indicadores de saúde bucal: revisão integrativa da literatura. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4437-4448.. Justificada pela crise financeira enfrentada nos municípios, houve redução da cobertura no estado do Rio de Janeiro e na região Metropolitana I, com grande variação entre os municípios (Tabela 1).
Segundo os dados das entrevistas, a partir de 2016, além da redução da cobertura formal, houve interrupção de serviços por demissões, salários atrasados, greve, quebra de equipamentos sem manutenção, falta de material e problemas na infraestrutura sem previsão de obra. A cobertura, já baixa, se agrava quando consideramos as unidades que realmente estão em funcionamento:
Os postos estão funcionando em condições extremamente precárias e a maioria nem funcionando. Muitos postos paralisados porque o compressor, ou foi roubado, está quebrado, ou funciona muito mal, ou a luz está ruim, ou a sala do profissional está com ar-condicionado queimado (CDD6).
Como forma de enfrentamento às dificuldades de compras nesse período de crise financeira, alguns coordenadores passaram a adotar, como uma conduta estratégica, a troca de materiais entre os municípios. Trata-se de uma importante estratégia para resolver problemas pontuais, mas essas interações informais, devido ao caráter de pessoalidade, dificilmente cobrirão as necessidades em longo prazo.
Além disso, diante da escassez generalizada, os gestores tiveram que construir critérios de priorização de serviços para recebimento do material, ficando a atenção básica, muitas vezes, em segundo plano:
Tudo foi afetado. Hoje, por exemplo, você tem material para todos os dentistas? Não. Se chega anestésico, priorizo hospital e CEO (CMSB2).
Diante das crises econômicas, a saúde bucal passa a não ser prioridade, e as medidas restritivas impactam no acesso ao cuidado dos estratos sociais menos favorecidos2525 Probst LF, Pucca-Junior GA, Pereira, AC, Carli AD. Impacto das crises financeiras sobre os indicadores de saúde bucal: revisão integrativa da literatura. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4437-4448., que são o grupo de maior risco para o câncer bucal:
Você perde o enfoque na prevenção. Não pode deixar sucatear a atenção primária como a gente vê que está acontecendo (CDD5).
Diante do quadro de restrição de acesso, os profissionais das eSB utilizam estratégias para ampliação do alcance de suas ações. Dentre as estratégias mapeadas, destacaram-se as campanhas de exame bucal e exames em grupos antitabagismo.
Em 2012, 65,5% das eSB da região Metropolitana I relataram fazer campanhas de detecção de lesões bucais2424 Casotti E, Monteiro ABF, Castro-Filho EL, Santos MP. Organização dos serviços públicos de saúde bucal para diagnóstico precoce de desordens com potencial de malignização do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1573-1582.. Apesar da importância de ampliar o acesso à exames orais, esse tipo de campanha é, geralmente, pontual e esporádico, direcionada a um público que geralmente já participa de atividades na unidade e que não é o grupo de maior risco2626 Nemoto RP, Victorino AA, Pessoa GB, Cunha LLG, Silva JAR, Kanda JL, Matos LL. Oral cancer preventive campaigns: are we reaching the real target? Braz J Otorhinolaryngol 2015; 81(1):44-49..
Há pouca reflexão sobre o resultado dessas campanhas. Durante as entrevistas, nenhum participante conseguiu apresentar quantas pessoas foram examinadas nas últimas campanhas, qual o perfil dos participantes, quantas lesões foram identificadas, quantos exames foram realizados, quais os resultados desses exames e se houve encaminhamento dos casos. Além disso, há grande estranhamento da população:
Mutirão de avaliação oral, para tentar identificar câncer de boca. Onde esbarra. Reclamam com a gente “E você vai só olhar, e meu dente furado, você não vai mexer?”. Eu vou resolver o problema de todos eles? Não dou conta (CDeSF6).
A segunda estratégia é o exame de grupos em tratamento do tabagismo. A partir das entrevistas, verificou-se o enfraquecimento do grupo por baixa procura ou por rotatividade dos profissionais. Essa ação possui mérito por se concentrar em um grupo de pessoas que estão expostos ao principal fator de risco para o câncer bucal2727 Andrade MAC. Busca ativa de lesões malignas e desordens potencialmente malignas da cavidade bucal em quatro unidades de saúde da família (USF) na cidade de Piracicaba [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2010., devendo ser estimulado. Entretanto, conforme sinalizaram alguns profissionais da atenção básica, apesar desse grupo ser de tabagistas, são pessoas que desejam parar de fumar e frequentam a unidade de saúde, tendo menor risco do que os tabagistas convictos que só frequentam as unidades em situações de emergência. Para este último grupo de risco altíssimo, é necessária estratégia complementar e acesso ampliado na atenção básica.
Atenção especializada
Compõem a atenção especializada para o câncer bucal os CEO, as UNACON e os CACON11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Coordenação Nacional de Saúde Bucal, Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004.,22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Anexo IX da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de setembro de 2017. Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer. Diário Oficial da União 2017; 3 out..
O CEO é o espaço prioritário para realização de biópsias e confirmação diagnóstica do câncer bucal11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Coordenação Nacional de Saúde Bucal, Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004.. O financiamento federal dos CEO foi apontado pelos entrevistados como principal fator determinante para implantação desses serviços. Apesar de todos os municípios da região Metropolitana I possuírem CEO, a ampliação da atenção primaria, mesmo que restrita, gerou aumento da demanda para a atenção secundária, que não cresceu no mesmo ritmo1010 Lima FLT, O'Dwyer G. Políticas de Prevenção e Controle do Câncer Bucal à luz da Teoria da Estruturação de Giddens. Cien Saude Colet 2020; 25(8):3201-3213..
Estudos destacam que houve avanços na atenção secundária em saúde bucal, mas que ela ainda é limitada aos grandes municípios e pior nos pequenos, estando os CEO localizados em municípios com melhores indicadores sociais2828 Frazão P, Narvai PC. Saúde bucal no Sistema Único de Saúde: 20 anos de lutas por uma política pública. Saude Debate 2009; 33(81):64-71.. Uma possível solução, descrita pela equipe estadual entrevistada, seria a implantação de serviços regionais, mas haveria dificuldades no deslocamento dos usuários pelos municípios:
A gente sempre pensou no CEO regional, mas é muito difícil. O que alegam, e com razão, é que o meu munícipe não tem condições financeiras de ir para outro município. Tem muito município pequeno que pede CEO, e a gente sabe que não vai cumprir metas (CESB1).
Mesmo com as limitações, em 2019, os CEO foram os principais responsáveis por realizar as biópsias de lesões de interesse ao diagnóstico do câncer bucal no estado e na região estudada. Verifica-se, também, que a partir dos dados do SIA/SUS, nenhum procedimento de biópsia foi realizado em unidades básicas de saúde (Tabela 2). Esses dados confirmam o cenário descrito pelos participantes, onde caberia à atenção básica a identificação da lesão e o posterior encaminhamento para a confirmação diagnóstica, o que ocorre sem grandes barreiras devido à existência de CEO em todos os municípios da região.
Destaca-se, na Tabela 2, que alguns municípios não realizaram o lançamento de procedimentos de biópsia durante o ano analisado. Entende-se que essa ausência de dados se refere mais à deficiência na oferta e registro dos procedimentos no SIA/SUS, do que à ausência de demandas por parte da população. Como também não há um indicador pactuado para acompanhar formalmente e especificamente a produção do serviço de diagnóstico bucal do CEO11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Coordenação Nacional de Saúde Bucal, Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004., apesar da obrigatoriedade de sua oferta, a ausência de informação pode ser um fator limitante para as tomadas de decisão do gestor, que não poderão ser embasadas na série histórica de necessidades da população.
Foi relatado pelos entrevistados que os serviços dos CEO possuem grandes filas para atendimento (espera de 6 meses), exceto para o diagnóstico bucal, onde o tempo de espera médio relatado pelos participantes foi de dez dias. Na região Metropolitana I, segundo dados do PMAQ-AB de 2012, o acesso ao especialista demorava, em média, 14 dias para a capital, e 50 dias para os demais municípios2424 Casotti E, Monteiro ABF, Castro-Filho EL, Santos MP. Organização dos serviços públicos de saúde bucal para diagnóstico precoce de desordens com potencial de malignização do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1573-1582..
O componente hospitalar especializado da PNPCC, responsável pelo tratamento do câncer, é composto pelos UNACON e CACON. Na região Metropolitana I, estão localizados 17 dos 32 estabelecimentos habilitados em oncologia no estado. Desses, 14 são de administração pública, o que a diferencia das demais regiões do estado e do país44 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.399, de 17 de dezembro de 2019. Redefine os critérios e parâmetros referenciais para a habilitação de estabelecimentos de saúde na alta complexidade em oncologia no âmbito do SUS. Diário Oficial da União 2019; 19 fev.. Esse fato foi compreendido como facilitador no processo de negociação entre os gestores públicos envolvidos, apesar de poder ser também coercitiva, quando o contexto político não é favorável à negociação solidária entre os entes públicos envolvidos.
Segundo dados do SIH/SUS, das 303 cirurgias para tratamento do câncer bucal realizadas no estado no ano de 2019, 211 (69,8%) foram realizadas na Região Metropolitana I, sendo 44 (20,8%) em usuários de outras regiões. Esse dado representa a importância da região para o atendimento da demanda do estado. Ampliar e descentralizar esse serviço, considerando os critérios de escala e escopo previstos na PNPCC22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Anexo IX da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de setembro de 2017. Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer. Diário Oficial da União 2017; 3 out., poderia contribuir com a diminuição da fila de espera para tratamento na Metropolitana I.
Apesar da constatação da limitação dos serviços hospitalares, é importante reconhecer os avanços. Sabe-se que, em pouco tempo, estruturou-se uma nova realidade para o controle do câncer no país. Apesar dos recursos alocativos continuarem sendo fator dificultador para a atenção terciária, tem havido expansão de serviços terciários, o que pode ser um facilitador para o acesso ao tratamento2929 Silva MJS, Lima, FLT, O'Dwyer G, Osório-De-Castro CGS. Política de Atenção ao Câncer no Brasil após a Criação do Sistema Único de Saúde. R Bras Canc 2017; 63(3):177-187..
Sistema de Apoio e Regulação
Os laboratórios de patologia fazem parte do sistema de apoio previsto na PNPCC22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Anexo IX da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de setembro de 2017. Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer. Diário Oficial da União 2017; 3 out.. Apesar de necessidade da existência desse laboratório para a confirmação diagnóstica, não há previsão na PNSB11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Coordenação Nacional de Saúde Bucal, Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004. de financiamento para estruturação desses serviços.
Nas entrevistas, evidenciou-se a reorganização recente dos municípios para a confirmação diagnóstica em laboratórios de patologia. Em algumas cidades, opta-se pelo envio do material para o laboratório de patologia que já realiza esse serviço para outros tipos de lesões, o que foi apresentado como um problema pelos entrevistados:
Uma grande questão é a qualidade do laudo, não só para fechar o diagnóstico, mas também o tempo que se ganha quando você tem um profissional muito capacitado para olhar lâminas (CDD6).
Nesse cenário, os laboratórios universitários de patologia oral têm ganhado destaque, pois realizam esse trabalho de forma rápida, gratuita e com qualidade, segundo os entrevistados. Essa relação cooperativa tem sido verificada em outros cenários3030 Fonte DCB, Siqueira RA, Castro JFL, Perez DEC, Carvalho EJA. Padrão das biópsias e fichas de solicitação de exame histopatológico encaminhados para o laboratório de patologia oral da Universidade Federal de Pernambuco. Odontol Clín-Cient 2015; 14(1):575-578., o que qualifica a RAS e o cuidado prestado:
A primeira biópsia deu displasia, mas não deu câncer. Tirei uma foto da lesão, mandei para o professor patologista. Ele falou “faça outra, porque já tem área alterada aí”. A gente refez a biópsia e deu malignidade (CDD6).
Diante das dificuldades com os laboratórios terceirizados e das experiências exitosas com os laboratórios das faculdades, a área técnica de saúde bucal da SES/RJ relatou estimular os municípios para a utilização dos laboratórios universitários. O processo foi avaliado como positivo pelos entrevistados, pois o laudo é qualificado e emitido em entre 5 e 10 dias. Por outro lado, ainda segundo os entrevistados, a informalidade do processo tem resultado na ausência de repasse financeiro às faculdades. É urgente se pensar na sustentabilidade desse processo, pois as demandas estão aumentando e uma possível redução de recursos nas faculdades poderá inviabilizar essa parceria e afetar diretamente no tempo de espera para o diagnóstico do câncer.
Quanto ao processo de regulação dos casos, identificou-se pelas entrevistas diferenças entre a regulação para o diagnóstico e para o tratamento do câncer bucal. A primeira é que a regulação do diagnóstico é de responsabilidade municipal e feita, principalmente, via Sistema Nacional de Regulação (SISREG), enquanto a regulação do tratamento é de responsabilidade da SES e realizada via Sistema Estadual de Regulação (SER).
O acesso ao diagnóstico é bastante heterogêneo, inclusive no mesmo município. De uma forma geral, cabe à eSB o encaminhamento ao CEO. Porém, outras formas foram identificadas nas entrevistas, como encaminhamentos por urgências hospitalares e pronto-atendimentos e, até mesmo, por livre demanda. Esse aspecto retrata o entendimento de que o regime de regulação formal do acesso via complexos reguladores é apenas uma das múltiplas formas de acesso aos serviços de saúde55 Cecilio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos "mais do mesmo". Saude Soc 2012; 21(2):280-289.:
É consenso que a estomatologia precisa ser livre demanda. Porque se um paciente está com uma lesão na boca e não sabe o que é, precisa ter o acesso a um profissional capacitado para diagnosticar aquilo (CDD1).
A estadualização da regulação do tratamento foi apresentada como positiva pelos entrevistados, pois teria facilitado o acesso dos demais municípios ao tratamento nas unidades da capital e o acompanhamento pela equipe técnica da SES/RJ:
Antes era o SISREG que fazia a regulação e quem tinha esse controle era o município do Rio. Para os outros municípios entrarem, era aquela coisa alucinada de entrar de madrugada. Hoje essa coisa se tornou mais justa (CESB1).
Outra diferença destacada pelos entrevistados é o tempo de espera para o diagnóstico e tratamento. Enquanto para o diagnóstico o tempo de espera é de até uma semana, para a início do tratamento tem sido entre 4 e 6 meses. Sabe-se que esse tempo, desde a suspeita diagnóstica, até o início do tratamento, é fundamental para o prognóstico do usuário, estando associado à diminuição da sobrevida e aumento da recorrência da lesão3131 Liao DZ, Schlecht NF, Rosenblatt G, Kinkhabwala CM, Leonard JA, Ference RS, Prystowsky MB, Ow TJ, Schiff BA, Smith RV, Mehta V. Association of Delayed Time to Treatment Initiation with Overall Survival and Recurrence Among Patients With Head and Neck Squamous Cell Carcinoma in an Underserved Urban Population. JAMA Otolaryngol Head Neck Surg 2019; 145(11):1001-1009..
As longas filas para o tratamento fazem com que seja essencial a existência de regras claras, definidas pela própria unidade terciária, tendo os reguladores pouca autonomia para inovação. O pequeno número de unidades habilitadas para tratamento do câncer no estado e a alta demanda por tratamento foram apontados pelos entrevistados como principais fatores de restrição do acesso ao tratamento. Em estudo nacional, identificou-se declínio de 18,3% no número de CEO que tinham hospitais para encaminhar os casos confirmados de câncer bucal entre os anos de 2014 e 20183232 Thomaz EBAF, Costa EM, Queiroz RCS, Emmi DT, Ribeiro AGA, Silva NCD, Hugo FN, Figueiredo N. Advances and weaknesses of the work process of the oral cancer care network in Brazil: A latent class transition analysis. Community Dent Oral Epidemiol 2022; 50(1):38-47..
As longas filas para tratamento, que antes eram presenciais na porta dos hospitais, passaram a ser virtuais no SER. Essa situação, apesar de gerar conforto físico a quem espera sua vaga, diminui os constrangimentos políticos para a gestão, pois diminui a visibilidade social sobre o problema. Além disso, a ausência de transparência sinalizada nas entrevistas, além de levantar dúvidas sobre as diferentes influências no processo de regulação55 Cecilio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos "mais do mesmo". Saude Soc 2012; 21(2):280-289., está em desacordo com o que prevê a própria PNPCC, que afirma a necessidade de se garantir a transparência e a equidade no acesso22 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Anexo IX da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de setembro de 2017. Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer. Diário Oficial da União 2017; 3 out..
No sentido oposto, a informalidade e a pessoalidade dos processos foram características centrais nos encaminhamentos para diagnóstico. A motivação dos agentes é facilitar, ao máximo, o acesso do usuário, buscando reduzir o tempo de espera. A ausência de filas afrouxou as exigências formais, diferentemente do sistema estadual para tratamento:
Quando é algo que precisa ser muito rápido eu faço pelo WhatsApp. Pergunto onde é mais rápido e elas falam “coloca no sistema que já libero aqui agora”. Daí uns 10 minutos a vaga já está liberada (CDeSF8).
Apesar de atender a necessidade de encaminhamento do usuário, essa forma informal pode, por outro lado, trazer fragilidades na coordenação do itinerário pela rede assistencial, como ausência de registro em prontuário e consequente dificuldades para monitoramento dos casos encaminhados e seus desfechos3333 Casotti E. Rede de cuidado ao paciente com câncer de boca na Cidade do Rio de Janeiro. Diversitates Int J 2019; 11(2):33-48..
Considerações finais
Identificou-se, sob a ótica da Teoria da Estruturação, fatores facilitadores e coercitivos que têm intervindo sobre o acesso ao diagnóstico e ao tratamento do câncer bucal na região de saúde Metropolitana I do Rio de Janeiro. A atenção primária, apesar da expansão após a PNSB, ainda possui baixa cobertura em saúde bucal, o que resulta em sobrecarga e dificuldade de acesso a grupos não reconhecidos como prioritários. A existência de CEO em todos os municípios da região e o processo de regulação tem facilitado o acesso à biópsia para diagnóstico. A parceria com as faculdades de Odontologia tem servido como fator facilitador de diagnóstico, porém a ausência de financiamento dessas ações coloca em dúvida a sua sustentabilidade em longo prazo. O acesso ao tratamento tem sido dificultado pelo número de unidades terciárias no estado, o que resulta em um processo de regulação mais rígido e demorado.
Os limites desse estudo estão relacionados, principalmente, à sua limitação espacial de uma região de saúde e à limitação dos participantes da pesquisa ao não incluir a narrativa dos usuários. Apesar disso, devido às múltiplas fontes de dados, têm-se informações importantes para reflexão, alteração e aperfeiçoamento das práticas.
Referências
- 1Brasil. Ministério da Saúde (MS). Coordenação Nacional de Saúde Bucal, Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília: MS; 2004.
- 2Brasil. Ministério da Saúde (MS). Anexo IX da Portaria de Consolidação nº 2, de 28 de setembro de 2017. Política Nacional para Prevenção e Controle do Câncer. Diário Oficial da União 2017; 3 out.
- 3Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 599, de 23 de março de 2006. Define a implantação de Especialidades Odontológicas (CEO) e de Laboratórios Regionais de Próteses Dentárias (LRPD) e estabelece critérios, normas e requisitos para seu credenciamento. Diário Oficial da União 2006; 24 mar.
- 4Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 1.399, de 17 de dezembro de 2019. Redefine os critérios e parâmetros referenciais para a habilitação de estabelecimentos de saúde na alta complexidade em oncologia no âmbito do SUS. Diário Oficial da União 2019; 19 fev.
- 5Cecilio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos "mais do mesmo". Saude Soc 2012; 21(2):280-289.
- 6Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Estimativa 2020: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2019.
- 7Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Atlas on-line da mortalidade [Internet]. [acessado 24 fev 2020]. Disponível em: https://mortalidade.inca.gov.br/MortalidadeWeb/.
» https://mortalidade.inca.gov.br/MortalidadeWeb - 8Torres-Pereira CC, Angelim-Dias A, Melo NS, Lemos-Jr CA, Oliveira EMF. Abordagem do câncer da boca: uma estratégia para os níveis primário e secundário de atenção em saúde. Cad Saude Publica 2012; 28(Supl. l):S30-S39.
- 9Rocha TAH, Thomaz EBAF, Silva NCS, Queiroz RCS, Souza MR, Barbosa ACQ, Thumé E, Rocha VCM, Alvares V, Almeida DG, Vissoci JRN, Staton CA, Facchini LA. Oral primary care: an analysis of its impact on the incidence and mortality rates of oral cancer. BMC Cancer 2017; 17(1):706.
- 10Lima FLT, O'Dwyer G. Políticas de Prevenção e Controle do Câncer Bucal à luz da Teoria da Estruturação de Giddens. Cien Saude Colet 2020; 25(8):3201-3213.
- 11Creswell JW. Investigação Qualitativa & Projeto de Pesquisa: escolhendo entre cinco abordagens. Porto Alegre: Penso; 2014.
- 12Malterud K, Siersma VD, Guassora AD. Sample Size in Qualitative Interview Studies: Guided by Information Power. Qual Health Res 2016; 26(13):1753-1760.
- 13Giddens A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2003.
- 14O'Dwyer G. Estudos de políticas e a Teoria da Estruturação de Giddens. In: Baptista TWF, Azevedo CS, Machado CV, organizadores. Políticas, Planejamento e Gestão em Saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015. p.173-192.
- 15Gray DE. Pesquisa o mundo real. Porto Alegre: Penso; 2009.
- 16Yin RK. Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso; 2016.
- 17Bardin L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.
- 18Tong A, Sainsbury P, Craig J, Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care 2007; 19(6):349-357.
- 19Galante ML, Silva DPD, Gabriel M, Michel-Crosato E, Pucca Junior GA, Biazevic MGH, Carrer FCA. Brazilian Oral health teams in primary care and oral cancer: Results of a national evaluation. Braz Oral Res. 2021; 35:e116.
- 20Cunha ARD, Prass TS, Hugo FN. Mortality from oral and oropharyngeal cancer in Brazil: impact of the National Oral Health Policy. Cad Saude Publica 2019; 35(12):e00014319.
- 21Warmling CM, Baldisserotto J, Rocha ET. Acolhimento & acesso de necessidades de saúde bucal e o agir profissional na Atenção Primária à Saúde. Interface (Botucatu) 2019; 23:e180398.
- 22Van Der Waal I. Potentially malignant disorders of the oral and oropharyngeal mucosa: present concepts of management. Oral Oncol 2010; 46(6):423-425.
- 23Kumar M, Nanavati R, Modi TG, Dobariya C. Oral cancer: Etiology and risk factors: A review. J Cancer Res Ther 2016; 12(2):458-463.
- 24Casotti E, Monteiro ABF, Castro-Filho EL, Santos MP. Organização dos serviços públicos de saúde bucal para diagnóstico precoce de desordens com potencial de malignização do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2016; 21(5):1573-1582.
- 25Probst LF, Pucca-Junior GA, Pereira, AC, Carli AD. Impacto das crises financeiras sobre os indicadores de saúde bucal: revisão integrativa da literatura. Cien Saude Colet 2019; 24(12):4437-4448.
- 26Nemoto RP, Victorino AA, Pessoa GB, Cunha LLG, Silva JAR, Kanda JL, Matos LL. Oral cancer preventive campaigns: are we reaching the real target? Braz J Otorhinolaryngol 2015; 81(1):44-49.
- 27Andrade MAC. Busca ativa de lesões malignas e desordens potencialmente malignas da cavidade bucal em quatro unidades de saúde da família (USF) na cidade de Piracicaba [dissertação]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2010.
- 28Frazão P, Narvai PC. Saúde bucal no Sistema Único de Saúde: 20 anos de lutas por uma política pública. Saude Debate 2009; 33(81):64-71.
- 29Silva MJS, Lima, FLT, O'Dwyer G, Osório-De-Castro CGS. Política de Atenção ao Câncer no Brasil após a Criação do Sistema Único de Saúde. R Bras Canc 2017; 63(3):177-187.
- 30Fonte DCB, Siqueira RA, Castro JFL, Perez DEC, Carvalho EJA. Padrão das biópsias e fichas de solicitação de exame histopatológico encaminhados para o laboratório de patologia oral da Universidade Federal de Pernambuco. Odontol Clín-Cient 2015; 14(1):575-578.
- 31Liao DZ, Schlecht NF, Rosenblatt G, Kinkhabwala CM, Leonard JA, Ference RS, Prystowsky MB, Ow TJ, Schiff BA, Smith RV, Mehta V. Association of Delayed Time to Treatment Initiation with Overall Survival and Recurrence Among Patients With Head and Neck Squamous Cell Carcinoma in an Underserved Urban Population. JAMA Otolaryngol Head Neck Surg 2019; 145(11):1001-1009.
- 32Thomaz EBAF, Costa EM, Queiroz RCS, Emmi DT, Ribeiro AGA, Silva NCD, Hugo FN, Figueiredo N. Advances and weaknesses of the work process of the oral cancer care network in Brazil: A latent class transition analysis. Community Dent Oral Epidemiol 2022; 50(1):38-47.
- 33Casotti E. Rede de cuidado ao paciente com câncer de boca na Cidade do Rio de Janeiro. Diversitates Int J 2019; 11(2):33-48.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Mar 2023 - Data do Fascículo
Mar 2023
Histórico
- Recebido
23 Mar 2022 - Aceito
13 Set 2022 - Publicado
15 Set 2022