Resumo
Apresentamos os resultados de uma pesquisa inédita que analisou os processos e as estratégias de comunicação das entidades titulares do Conselho Nacional de Saúde, gestão 2018-2021. A produção autônoma de comunicação alternativa pela sociedade civil consiste num dos princípios fundamentais dos regimes democráticos para um importante autor norte-americano institucionalista (Robert Dahl). A emergência da Internet e das redes sociais trouxe novas necessidades para essas organizações divulgarem suas ideias e se fazerem presentes na sociedade em rede (Castells). O estudo teve como objetivo analisar em que medida essas entidades estão inseridas no meio digital e verificar se havia diferenças expressivas na capacidade de comunicação entre os segmentos representados no Conselho. Um inquérito foi aplicado às áreas de comunicação de 42 entidades do CNS de setembro de 2019 a fevereiro de 2020. Foram obtidas 34 respostas (81%). Os resultados mostram a existência de 3 níveis de desenvolvimento no trabalho de comunicação entre essas entidades, independentemente das categorias macro institucionais. Ao final, discute-se os resultados à luz dos modelos da poliarquia e da democracia digital, e são apontados novos passos para uma comunicação e participação efetivamente democráticas.
Palavras-chave:
Sociedade Civil; Comunicação e Saúde; Internet; Participação da Comunidade; Democracia
Introdução
Das múltiplas conceituações, a comunicação pode ser entendida como a capacidade humana de emitir, receber e circular fluxos de expressões, informações e interesses11 Matterlat A, Matterlat M. Histórias das teorias da comunicação. São Paulo: Edições Loyola; 2014., sendo uma das formas de ativação da produção de sentidos em sociedade22 Araújo IS, Cardoso JM. Comunicação e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2014.. Observado a partir desses conceitos, o campo da saúde é, per si, uma ininterrupta produção de comunicação, seja no aspecto individual das relações do cuidado, seja na dimensão coletiva do processo saúde-doença e na construção de sistemas de saúde, seja na expressão política do setor e sua articulação com diferentes atores da sociedade22 Araújo IS, Cardoso JM. Comunicação e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2014.,33 Paim JS. O que é o SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.. Este artigo se debruça sobre essa terceira dimensão, mais precisamente sobre a comunicação produzida pelas entidades da sociedade civil brasileira do setor saúde titulares do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
No final da década de 1970, o Movimento pela Reforma Sanitária brasileira (MRSB) foi um importante ator político na formulação de propostas para um sistema de saúde baseado na universalidade, na equidade e na participação da população33 Paim JS. O que é o SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.,44 Fleury S. Reforma do estado, seguridade social e saúde no Brasil. In: Matta GC, Lima JCF, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 49-87.. No esteio da luta pela redemocratização do Estado brasileiro, o MRSB valeu-se de estruturas estatais já existentes para exercer a crítica ao sistema de saúde de base previdenciária, vigente desde a Era Vargas e mantido pelos governos militares44 Fleury S. Reforma do estado, seguridade social e saúde no Brasil. In: Matta GC, Lima JCF, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 49-87.. O mecanismo das conferências foi uma dessas brechas do Estado utilizadas pelo MRSB, e que possibilitou a organização da 8ª Conferência Nacional de Saúde (8ª CNS).
Realizada de 17 a 21 de março de 1986, a 8ª CNS contou com ampla participação do movimento sanitário, representado por acadêmicos e profissionais da saúde, além de gestores e demais movimentos populares. A conferência promoveu o debate sobre as bases do que viria a ser o Sistema Único de Saúde (SUS), promulgado na Constituição Federal (CF) de 198833 Paim JS. O que é o SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.,44 Fleury S. Reforma do estado, seguridade social e saúde no Brasil. In: Matta GC, Lima JCF, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 49-87..
A partir da configuração dessa nova realidade democrática de inspiração pluralista55 Carvalho AI. Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania: a Reforma Sanitária como Reforma do Estado. In: Fleury S. Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial; 1997., a incidência política da sociedade civil foi institucionalizada com o estabelecimento de espaços de participação social66 Escorel S, Moreira MR. Participação Social. In: Giovanella L, organizadora. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Cebes; 2012., dentro dos diferentes setores e esferas de governo, ocupados por entidades e representações sociais anteriormente interditadas e/ou recém-criadas.
Cerca de uma década depois, uma emergente rede sociotécnica possibilitaria novas formas de comunicação e, consequentemente, novas interações e relações sociais77 Castells M. A Galáxia da Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2003.. A Internet propiciou um paulatino processo de digitalização, concentração de conteúdo e ampliação de canais e pontos de contato. A partir de 2006, as redes sociais alavancaram ainda mais a capacidade de produção e de disseminação de mensagens multimídia. Dados de 2020 indicam que 152 milhões de brasileiros - cerca de 80% da população com 10 anos ou mais - são usuários do meio, o que evidencia o impacto da web na sociabilidade contemporânea88 Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI). TIC domicílios 2020 - Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros. São Paulo: CGI; 2021..
Se a Internet ganha cada vez mais relevância para o conjunto da sociedade, a produção digital da sociedade civil do setor saúde merece ser observada. A facilidade da difusão de notas, posicionamentos, eventos e atividades fez com que a web passasse a ser central para essas organizações. De modo geral, todas falam, e cada vez mais, de saúde, direitos e vida. Entretanto, em que condições? Basta estar presente na esfera virtual para haver igualdade ou semelhança na forma e na visão de comunicar? Essas são algumas perguntas que este artigo se propõe a elucidar.
Referenciais teóricos
Construir uma pesquisa que abarcasse complexidades entre campos aparentemente tão distintos e com foco em entidades tão diferentes convocou à elaboração de uma abordagem teórica e metodológica interdisciplinares, reunindo elementos da Ciência Política, da Comunicação e da Saúde Coletiva. Nesta parte serão debatidas as instituições da poliarquia que localizam as práticas da comunicação da sociedade civil e sua atualização conceitual frente ao debate da temática de Comunicação e Saúde; a constituição do modelo de participação social no SUS e as principais transformações sofridas pelos meios de comunicação e ativismo social com a consolidação da Internet.
A investigação a respeito da construção histórica da democracia na sociedade ocidental e as transformações nas formas da representação política fazem parte da obra do cientista político Robert Dahl. Em seus escritos, o autor mostra como as ideias e as práticas do “governo do povo” foram estabelecidas e transformadas de maneira fragmentada e advinda de diversas experiências - muitas delas contraditórias. Para entender a variação dos regimes políticos e suas limitações, Robert Dahl cunhou o termo poliarquia.
Esse constructo é definido como “resultado histórico dos esforços pela democratização e liberalização das instituições políticas do Estado-nação”99 Dahl R. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes; 2012.. De maneira instrumental, o conceito abarca sete instituições tomadas como indicadores para avaliar, medir e parametrizar as práticas políticas das sociedades, relacionando a existência dessas instituições a critérios que versam sobre qualidade dos processos políticos por elas praticados.
Enquanto as quatro primeiras instituições (funcionários eleitos; eleições livres e justas; sufrágio inclusivo, e direito de concorrer a cargos eletivos) elencam condições para a realização de eleições livres, os três demais - agrupados sobre o critério Compreensão Esclarecida - abordam necessidades coletivas para o exercício democrático.
A autonomia associativa garante a possibilidade de indivíduos se organizarem coletivamente em torno de ideias e reivindicações comuns. A garantia de indivíduos ou coletivos exporem quaisquer ideias - críticas ou não - aos sentidos oficiais promovidos por autoridades e pelo Estado é validada pela instituição da liberdade de expressão.
Tanto a autonomia associativa como a liberdade de expressão mobilizam a capacidade de organizações investirem esforços na produção de meios próprios de comunicação, como jornais impressos, programas de rádio ou televisão e produtos digitais - sites, redes sociais, podcasts, canais de streaming e aplicativos para celular. A este terceiro termo, Dahl nomeou inicialmente na sua trajetória acadêmica como “Fontes Alternativas de Informação1010 Dahl R. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: EdUSP; 2005.”, e posteriormente, “Informação Alternativa”99 Dahl R. A Democracia e seus críticos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes; 2012..
Cabe aqui uma necessária atualização desse termo à luz das discussões da temática da Comunicação e Saúde. O norte-americano Robert Dahl foi contemporâneo também dos norte-americanos Claude Shannon e Warren Weaver, autores da teoria matemática da informação ou modelo informacional11 Matterlat A, Matterlat M. Histórias das teorias da comunicação. São Paulo: Edições Loyola; 2014.,22 Araújo IS, Cardoso JM. Comunicação e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2014.. A ideia da transmissão de unidades de informação entre emissores e receptores, com entradas, saídas e ruídos, foi largamente utilizada e replicada nas produções acadêmicas anteriores ao debate da Nova Ordem de Informação e Comunicação (Nomic), ao Relatório MacBride1111 Stevanin LF, Murtinho R. Direito à Comunicação e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021. e também na Ciência Política praticada nos EUA11 Matterlat A, Matterlat M. Histórias das teorias da comunicação. São Paulo: Edições Loyola; 2014..
Logo, um conceito que historicamente reforça uma compreensão redutora e concentradora do processo comunicacional não supre a complexidade dos processos analisados. Recorreremos ao conceito “comunicação alternativa”, que entende a comunicação como parte dos processos de mobilização dos movimentos sociais em conformidade com suas capacidades de organização e recursos disponíveis. Nessa visão, os produtos comunicacionais são evidências do exercício do direito à comunicação1212 Peruzzo CMK. Comunicação nos movimentos sociais: o exercício de uma nova perspectiva de direitos humanos. Contemp Comunic Cult 2013; 11(1):138-158.. Além disso, a palavra “alternativa” guarda sentido próximo ao utilizado por Dahl ao destacar tais processos comunicativos à margem do Estado.
Ao tomarmos essas lentes, o processo deflagrado pelo Movimento da Reforma Sanitária, com a criação de diversas organizações voltadas ao debate e à mobilização pelo direito à saúde, expressa, no escopo da teoria de Dahl, o fortalecimento da autonomia associativa, da liberdade de expressão e da comunicação alternativa da sociedade civil no setor saúde.
Fundadas no final da década de 1970, entidades como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)1313 Fleury S. Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial; 1997.; a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco)1414 Paiva CHA, Fonseca CMO. A Abrasco na Construção do SUS (1979-1990): ação política na saúde. In: Lima NT, Santana JP, Paiva CHA, organizadores. Saúde coletiva: a Abrasco em 35 anos de história. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015.; o Movimento Amigos de Bairro de Nova Iguaçu (MAB)1515 Pires-Alves FA, Lima NT, Paiva CHA. Na Baixada Fluminense, à sombra da 'Esfinge do Rio': lutas populares e políticas de saúde na alvorada do SUS. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1849-1858. e o Movimento de Saúde da Zona Leste (MSZL)1616 Palma J. Lutas Sociais e Construção do SUS. São Paulo: Hucitec Editora/Sobravime; 2015., entre outras, engendraram uma crescente participação social de lideranças e segmentos identificados com o setor saúde e que se encontravam excluídos do debate institucional.
A mobilização do MRSB na 8ª CNS e na Assembleia Constituinte foi importante para a redação do capítulo da Seguridade Social da CF 1988, que definiu no artigo 198 a participação da comunidade como uma das diretrizes do SUS. Por leis complementares1717 Brasil. Lei nº 8.080 de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 19 set.,1818 Brasil. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 31 dez. o antigo Conselho Nacional de Saúde transformou-se num instrumento de participação social integrante de uma nova visão de sistema de saúde, qualificando a inserção da sociedade dentro das engrenagens do Estado1919 Cortes SV, Silva MK, Réos JC, Barcelos M. Conselho Nacional de Saúde: histórico, papel institucional e atores estatais e societais. In: Cortes SV, organizadora. Participação e Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009.. Tais instrumentos foram instituídos a partir do advento da Nova República, reforçando as marcas de uma visão pluralista, o que Carvalho classificou como “miragem de Estado neutro”55 Carvalho AI. Conselhos de Saúde, Responsabilidade Pública e Cidadania: a Reforma Sanitária como Reforma do Estado. In: Fleury S. Saúde e democracia: a luta do CEBES. São Paulo: Lemos Editorial; 1997.. Atualmente, o CNS conta com 48 conselheiros titulares e 96 suplentes.
Além da participação social, a ação política dessas entidades também se realiza enquanto produtos e práticas de comunicação. A sociedade civil brasileira tem tradição na produção de seus próprios instrumentos de comunicação, com panfletos e jornais distribuídos nas portas das primeiras fábricas instaladas no país no início dos 19002020 Ferreira MN. Imprensa Operária no Brasil. São Paulo: Ática; 1988.. Ao longo de mais de 80 anos de história, sindicatos, movimentos populares e associações buscaram acompanhar o desenvolvimento dos meios de comunicação - suas tendências, formatos e produtos - e promover a profissionalização e capacitação de dirigentes, militantes e ativistas na busca de linguagens próprias1212 Peruzzo CMK. Comunicação nos movimentos sociais: o exercício de uma nova perspectiva de direitos humanos. Contemp Comunic Cult 2013; 11(1):138-158.,2121 Gianotti V. O que é o jornalismo Operário? São Paulo: Brasiliense; 1988.. Esse processo de comunicação que se instaura na esfera pública, exprime e é atravessado por vozes e demandas da sociedade e do governo é nomeado comunicação pública2222 Brandão EP. Usos e significados do conceito comunicação pública. In: Núcleo de Pesquisa Relações Públicas e Comunicação Organizacional do VI Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. Brasília; 2006.. Apesar das diferentes percepções acerca desse conceito, sua principal característica é a conformação de um espaço de negociação entre diferentes atores e seus interesses.
Tal percepção de espaço público negocial marcou também a consolidação da internet. À medida que, a partir do final da década de 1990, movimentos globais e organizações da sociedade civil criavam páginas eletrônicas e suas publicações ganhavam versões digitais2323 Gohn MG. Movimentos sociais e rede de mobilizações civis no Brasil contemporâneo. Petrópolis: Vozes; 2010., diferentes visões emergiram sobre o futuro da democracia nesse novo mundo digital. Segundo o cientista político norte-americano Mathew Hindman, a primeira década dos anos 2000 foi marcada por uma perspectiva integrada e utópica, na qual a web seria uma arena pública virtual e virtuosa, onde a política seria a “sua mais importante promessa, a mais barulhentamente declarada”244 Fleury S. Reforma do estado, seguridade social e saúde no Brasil. In: Matta GC, Lima JCF, organizadores. Estado, sociedade e formação profissional em saúde: contradições e desafios em 20 anos de SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 49-87.. Outras leituras apostavam numa web apocalíptica e distópica, uma ferramenta de controle social a serviço das grandes corporações, enquanto visões mais mercadológicas confiavam que o meio seria o território do hype, expressão da língua inglesa que identifica o que há de novo, de tendência2525 Fragoso S, Recuero R, Amaral A. Métodos de pesquisa para internet. Porto Alegre: Sulina; 2015..
Estas perspectivas, entre outras, foram tematizadas pelo sociólogo espanhol Manuel Castells, que cunhou o conceito sociedade em rede2626 Castells M. A Sociedade em Rede. 7ª ed. São Paulo: Paz e Terra; 2003. para sintetizar o conjunto de transformações na organização da produção do valor e das relações sociais, atravessando Estado, mercado e sociedade civil. Convergência tecnológica; aumento da concentração econômica, política e cultural dos meios; aumento da capacidade de disseminação de conteúdo; centralidade de processos e produtos nativos da comunicação digital; precarização das relações trabalhistas, e ativismo promotor de discursos identitários e críticos à visão classista são alguns dos aspectos discutidos em sua obra.
O mapeamento desse conjunto de elementos na atual estrutura produtiva da comunicação no ativismo social serviu para a elaboração das categorias de análise que estruturaram o instrumento qualitativo utilizado no campo da pesquisa.
Metodologia
O percurso de leituras e discussões teóricas que orientaram a construção da metodologia será detalhado em suas etapas: elaboração das categorias de análise; montagem e testagem do instrumento; critérios de validação dos respondentes, e coleta dos dados.
Para a realização da pesquisa foi escolhida a abordagem qualitativa por permitir, segundo Minayo2727 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13ª ed. São Paulo: Hucitec; 2013., “desvelar processos sociais ainda pouco conhecidos a referentes a grupos particulares, propiciar a construção de novas abordagens, revisão e criação de novos conceitos e categorias durante a investigação”2727 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13ª ed. São Paulo: Hucitec; 2013..
A elaboração dessas categorias de análise levou em conta aspectos que possibilitassem entender o processo da comunicação das instituições por diferentes dimensões e, dentro de cada uma dessas dimensões, localizar singularidades por meio de atributos, identificando lógicas internas da produção comunicativa da sociedade civil do setor saúde.
O perfil dos respondentes compôs a primeira dimensão, buscando tipificar o/a participante a partir de critérios que serão apresentados mais à frente. Na sequência, a dimensão da estrutura do departamento de comunicação buscou elencar elementos que dizem respeito às condições processuais para o desenvolvimento das atividades de comunicação, envolvendo vínculo trabalhista, regime de execução do trabalho, número de pessoas na equipe etc.
Já a dimensão das práticas digitais disse diretamente sobre a presença das entidades na Internet e o grau de apropriação e utilização das ferramentas digitais. A dimensão político-comunicacional referiu-se ao exercício da comunicação enquanto produtora e resultante de sentidos, levando em conta instrumentos de política editorial; percepção de público-alvo; temas prioritários, presença do SUS e do CNS nas publicações, entre outros.
A ferramenta escolhida para a montagem do inquérito eletrônico foi a plataforma Survey Monkey, por facilitar o alcance e a participação dos respondentes, bem como a tabulação dos dados. Intitulado “Organizar, Acolher ou Reproduzir? Um retrato dos departamentos de comunicação das entidades titulares do CNS - gestão 2018-2021”, o questionário traz a versão enxuta do Termo de Consentimento e Livre Esclarecido (TCLE); o aceite para a participação da pesquisa e 36 questões de diferentes formatos divididas nas quatro dimensões. O Quadro 1 detalha a matriz das categorias de análise, com os atributos e número de questões por dimensão.
Ao todo, foram elaboradas nove versões do instrumento de pesquisa. A versão final passou por duas fases de pré-testes. A primeira, durante a 16ª CNS, realizada entre 4 e 7 de agosto de 2019, quando o inquérito foi apresentado a jornalistas integrantes da cobertura colaborativa da Conferência e a alguns conselheiros nacionais. Após ajustes desse retorno, 11 profissionais de comunicação e pesquisadores parceiros foram convidados a responder e comentar o instrumento, suscitando os últimos ajustes. A etapa de pré-teste foi encerrada em 27 de setembro de 2019.
Além de ter servido ao pré-teste, a vivência da 16ª CNS também consolidou a decisão acerca dos critérios para identificação dos respondentes-chave. Optou-se pelo recorte das entidades com assento no pleno da gestão, ou seja, as que exercem a titularidade da composição, validando o universo da investigação em 42 entidades.
Na sequência, foram definidos os critérios de aceite dos respondentes e de validação da participação. Cada entidade titular deveria indicar apenas um/uma respondente. Preferencialmente, esse/a informante-chave deveria ser o/a profissional de comunicação responsável pelo departamento. Como opção secundária, poderia responder o/a dirigente responsável pela área de comunicação ou a ela mais afeito. Caso a entidade não tivesse nem profissional de comunicação nem dirigente destacado para a temática, o questionário poderia ser respondido pelo/a dirigente principal e/ou conselheiro/a nacional de saúde. Como critérios de validação e exclusão foram definidos enquanto válidos os questionários com mais de 50% das respostas, e como desclassificados aqueles devolvidos com menos da metade.
A coleta de dados foi realizada de 11 de setembro a 20 de dezembro de 2019, a partir de abordagem direta e individualizada, com envio do formulário pela plataforma Survey Monkey, por e-mail, mensagem instantânea e/ou mensagem de texto. Houve diálogo também junto à presidência e à comunicação do CNS. Em todos os contatos foram destacados a importância da investigação para o controle social e aspectos como privacidade e integridade da pesquisa.
Ao final do período, foram preenchidos 39 questionários - 31 completos, 3 incompletos e 5 zerados, rótulo dado aos formulários que tiveram unicamente preenchidos o aceite à participação da pesquisa (Q1), mas sem nenhuma resposta.
Em 8 de janeiro de 2020 foi retomado o contato apenas com as três entidades que apresentaram respostas incompletas. Houve a adequação de um novo respondente, com preenchimento integral do formulário. Mesmo incompletos, as outras 2 entidades haviam respondido mais de 76% do questionário, tendo suas participações validadas. A coleta de dados foi encerrada em 6 de fevereiro de 2020, com 34 respondentes no universo de 42 entidades titulares, o que corresponde a 81% de participação. A taxa de não-resposta ficou em 19%. A Tabela 1 traz composição total do CNS, com número de assentos titulares e percentuais por segmentos e tipologias, bem como a distribuição e participação percentual dos respondentes da pesquisa.
Resultados
Um conjunto de operações foi realizado para transformar os dados obtidos no inquérito em resultados, chegando ao total de 40 tabelas, num trabalho realizado de março a junho de 2020.
A análise das informações abriu chaves de leitura sobre o trabalho de comunicação das entidades titulares do CNS. Foi possível identificar características expressivas da produção comunicativa institucional, mapear a presença digital e propor uma ordenação e nivelamento do trabalho de comunicação das organizações pesquisadas. Uma vez constituídos esses elementos para apreciação, foi possível analisar o peso dos aspectos jurídico-legais das entidades nessas produções e compor um quadro-síntese.
Das respostas obtidas no campo da pesquisa emergiram aspectos inerentes do processo de organização e realização do trabalho de comunicação fortemente atravessados pela institucionalidade das entidades, constituindo quatro capacidades intrínsecas do trabalho de comunicação. São elas:
1) Organização do departamento de comunicação: Quando observada a organização interna, percebe-se que 28 entidades da sociedade civil e do movimento social da saúde possuem departamentos de comunicação minimamente definidos, com pessoas responsáveis por divulgar as posições de suas direções para o SUS e demais temas em saúde e/ou responder pela área, entre comunicadores - profissionais ou populares - e dirigentes. Os departamentos de comunicação são vinculados diretamente à coordenação ou presidência das organizações e, quanto mais organizados, maiores são a estrutura interna e definição da linha política.
2) Força de trabalho: Das 34 entidades respondentes, 20 contam com comunicadores formados em seus quadros. Deste grupo, a maioria (8) é contratada pela CLT, seguido pelos prestadores de serviço (5) e terceirizados (3). Já os comunicadores populares, ou seja, pessoas responsáveis pelo trabalho regular de comunicação das entidades, mas que não recebem remuneração salarial, totalizam 8 respondentes, tendo a metade (4) formação em jornalismo. Pode-se constatar que não há uma correspondência direta entre capacidade de trabalho e vínculos trabalhistas formais, sendo possível entidades que contam com a dedicação de comunicadores populares não remunerados apresentarem um trabalho tão bom quanto aquelas com profissionais com vínculo formal e remunerados.
3) Fluxos e rotinas dos processos produtivos: Há um núcleo de processos e rotinas de comunicação claramente identificado, voltado para a produção de conteúdo de páginas eletrônicas e redes sociais, comum a 25 das 34 entidades. Alimentação de redes temáticas internas por meio de Google Groups ou similares; produção de conteúdo e manutenção de contas/perfis em redes sociais; design/diagramação de materiais digitais/eletrônicos; textos informativos e noticiosos para a página eletrônica, portal, sites, newsletters; cobertura fotográfica, e produção de peças de design gráfico, esta última como serviço contratado/terceirado pela maioria das entidades, são as atividades citadas por mais de 70% dos entrevistados. Demais rotinas e processos de comunicação são abraçados mediante maior profissionalização, consolidação política e estratégica dos departamentos.
Por serem utilizadas por todas as entidades respondentes e percebidas absolutamente como as plataformas de melhor resposta/interação com o público (88,2%) se comparadas ao site/página eletrônica (38,2%) e ao jornal/boletim impresso (11,8%), as redes sociais merecem destaque. Na ordem de citação, o Facebook lidera com folga o topo dessa cadeia midiática, compondo com Instagram, YouTube e Twitter o “primeiro pelotão” das redes sociais, acrescido também do aplicativo WhatsApp. A existência, a atualização e a audiência do site próprio, bem como o uso de ferramentas de monitoramento das métricas e de recursos publicitários, completam esse núcleo, agora nomeado presença digital.
4) Políticas e estratégias de comunicação: A maioria dos respondentes avalia que o trabalho de comunicação das entidades prioriza os públicos internos e endógenos ao setor saúde. As políticas de comunicação são referendadas pela diretoria e/ou Secretaria Executiva em 25 entidades. Deliberações e documentos sobre comunicação aprovados em assembleias, fóruns, encontros temáticos e congressos definem as estratégias de 11 entidades, o que reforça essa dedicação de falar prioritariamente para “dentro” e de prestar contas de uma produção comunicativa que deve representar tais vocalizações. No entanto, quando perguntadas sobre demais públicos, não fica claro se há estratégias de comunicação para outros segmentos.
Identificadas as capacidades intrínsecas do trabalho de comunicação, foi possível localizar padrões majoritários, linhas minoritárias e até pontos fora da curva que evidenciaram distinções e semelhanças entre as entidades, permitindo estabelecer um gradiente com três níveis distintos do desenvolvimento do trabalho de comunicação realizado pelas organizações pesquisadas.
I) Trabalho de comunicação básico: Reúne 10 entidades que não têm a prática de mobilização de ações, rotinas e deliberações para um trabalho sistemático de comunicação. Dirigentes e/ou comunicadores voluntários não são exclusivamente dedicados às atividades de comunicação. Essas entidades reportaram páginas eletrônicas com baixas audiências e atualização irregular, desatualizadas ou mesmo fora do ar. Nas redes sociais apoiam-se centralmente no Facebook e, em menor grau, nas demais plataformas do “primeiro pelotão”. No entanto, por operar apenas com processos básicos de comunicação, não produzem mensagens com recursos técnicos sofisticados e não têm o hábito de acompanhar métricas e indicadores para avaliar as ações e subsidiar novas estratégias.
II) Trabalho de comunicação intermediário: Congrega 16 entidades que possuem departamentos de comunicação organizados, com fluxos e processos produtivos e de implementação de decisões e deliberações com algum grau de estruturação e formalização, da decisão no âmbito da diretoria até sua execução e divulgação. A força de trabalho é constituída por pessoas dedicadas à atividade organizadas em equipes de pequeno a médio porte, compostas por profissionais de comunicação, comunicadores populares e voluntários e/ou dirigentes. São desenvolvidos processos identificados como básicos e intermediários, contando com serviços mistos e/ou feitos exclusivamente por empresas terceirizadas. Suas páginas eletrônicas são atualizadas com regularidade de periódica a diária. Utilizam outras redes sociais além das do primeiro pelotão. Seus comunicadores sabem tirar proveito das métricas oferecidas pelas plataformas, além de expressar capacidade e conhecimento técnico sobre outras ferramentas digitais.
III) Trabalho de comunicação avançado: Há 8 entidades que notadamente empregam mais recursos no trabalho de comunicação, o que pôde ser percebido no tamanho das equipes e nos processos mobilizados. Os departamentos de comunicação são estruturados para serem engrenagens centrais no trabalho político dessas entidades, que contam com grandes equipes compostas por profissionais formados e contratados, além de uma gama de serviços mistos e/ou exclusivamente terceirizados. Desenvolvem quase todos os processos e rotinas de comunicação identificados como básicos e intermediários, além de outras atividades inovadoras, produzidas especialmente para atender as demandas de seus representados. Suas páginas apresentam alta audiência e são diariamente atualizadas. Trabalham com estratégias de divulgação estruturadas, utilizando diversas redes sociais, plataformas digitais e campanhas, produzindo mensagens específicas para cada. Os departamentos contam com profissionais e/ou contratam prestadores de serviço para o monitoramento das métricas e indicadores, o que potencializa a divulgação e oferece elementos para a definição de novas estratégias.
Os procedimentos metodológicos acima descritos situaram a produção de comunicação das entidades e estabeleceram as condições para reunir as duas pontas dessa investigação e tentar responder o que explica as diferenças no trabalho de comunicação das entidades.
A perspectiva institucionalista orientou a questão de pesquisa para os aspectos jurídico-legais das entidades, ou seja, os elementos do arcabouço institucional que definem as entidades no que diz respeito à organização jurídica; à tipologia e ao segmento representativo dentro do regimento interno do CNS. Entendidas a partir de agora como assimetrias institucionais, seriam essas as categorias que influenciam diretamente os processos e as estratégias de comunicação?
Para essa confirmação, foram identificadas semelhanças e distinções entre as entidades pesquisadas, tanto internamente à cada uma das três categorias como entre elas, tomando por referências as capacidades comunicativas e a presença digital.
O procedimento demostrou uma alta diversidade entre as entidades, com respostas muito diferentes quando segmentadas e analisadas pelas categorias macro institucionais, não sendo possível observar um padrão de resposta das organizações a partir desses três aspectos.
A distinção pela personalidade jurídica, por exemplo, poderia provocar um nivelamento entre as organizações de direito público pelo fato de serem conselhos federais profissionais e terem fontes de recursos financeiros regulares, advindos da cobrança de tributos. No entanto, não foi percebida sintonia no desenvolvimento das capacidades comunicativas, nem unidade nas respostas das quatro entidades enquadradas nessa categoria institucional, muito menos no grupo das 30 demais respondentes da categoria organizações de direito privado.
A tipologia é uma categoria que reúne 10 nomenclaturas sistematizadas, independentemente do segmento, mesmo que com algum grau de sobreposição. Observados justamente os casos de entidades de uma mesma tipologia e de segmentos distintos não foram percebidas simetrias.
Dentre as três categorias macro institucionais, o segmento foi o que apresentou uma maior uniformidade de respostas e uma maior capacidade de exercer influência no trabalho de comunicação das entidades. A constituição desses quatro grupos representativos da sociedade e da organização do setor saúde - gestores; profissionais de saúde; prestadores de serviços de saúde; e usuários do SUS - é a pedra de toque da concepção de participação social na saúde.
Dentre os quatro segmentos, as entidades dos prestadores de serviço e da gestão apresentam sintonia no desenvolvimento das capacidades comunicativas e unidade na maioria das respostas, sendo classificadas como trabalho de comunicação avançado. Mesmo assim, há variação de recursos entre as organizações empresariais, ampliando a variedade dentro dos repertórios processuais empregados nesse nível de desenvolvimento.
Não se encontra qualquer traço de uniformidade quando observadas as entidades dos segmentos trabalhadores da saúde e usuários do SUS. Há tanto organizações de usuários com grande profissionalização como de trabalhadores com soluções tímidas em comunicação, podendo encontrar representantes de ambos os segmentos nos três níveis de desenvolvimento.
Como síntese, o Quadro 2 traz um quadro do trabalho de comunicação institucional, correlacionando os três níveis de desenvolvimento produtivo com as quatro capacidades intrínsecas, os três elementos característicos da presença digital e as três categorias macro institucionais estudadas.
Discussão
Trazemos a discussão sobre produção comunicativa da sociedade civil do setor saúde para a elaboração de elações entre as diferentes categorias apresentadas à luz dos modelos da poliarquia e da democracia digital, no intuito de ampliar conhecimentos e produzir implicações para a consolidação e o fortalecimento da participação social em saúde.
Ambos os grupos de categorizações apresentados e estudados contribuem, cada um ao seu modo, para a compreensão do atual cenário da comunicação dessas entidades. Trazem também elementos para se pensar o papel da sociedade civil na democracia brasileira.
Do modelo da poliarquia, a pesquisa tomou com referencial as três instituições nomeadas por Dahl como Compreensão Esclarecida. A partir do prisma das categorias estudadas, a autonomia associativa pode ser entendida pela variedade de grupos integrantes do CNS, internamente organizados pelas categorias macro institucionais tipologia e segmento. Essa mesma instituição da poliarquia pode ser também representada pelas capacidades de organização dos departamentos de comunicação e de constituição da força de trabalho, tendo em vista que entidades com departamentos de comunicação organizados e com autonomia econômica, política ou social para compor equipes adequadas às suas necessidades e aspirações terão melhores condições para organizar seus representados e, assim, fortalecer a sociedade civil.
O debate sobre a instituição da liberdade de expressão possui uma vasta produção acadêmica e não esteve no centro da investigação aqui reportada. No entanto, em que pese todas as limitações de nossa sociedade, as organizações pesquisadas possuem considerável independência editorial e liberdade de expressão perante o Estado brasileiro, independentemente de sua personalidade jurídica, sejam organizações de direito público - autarquias paraestatais fiscalizadoras do exercício profissional das formações em saúde; sejam organizações de direito privado - livre associações de pessoas de diferentes naturezas e interesses. Somando ao exercício da liberdade, a vocalização de ideias de uma organização se desenvolve mediante a maior ou menor capacidade de criar, definir e executar políticas e estratégias de comunicação, influenciando no impacto das intervenções da e na sociedade civil.
A comunicação alternativa pode ser entendida tanto como uma instituição independente como um resultado das instituições anteriores. Organizações autônomas têm a necessidade de desenvolverem processos e estratégias de comunicação dentro de suas particulares características técnicas, temáticas, tecnológicas e orçamentárias, e com considerável independência editorial e liberdade de expressão perante o Estado para expor opiniões e posicionamentos e reportar seus cotidianos associativos por meio de fluxos e rotinas produtivas, que desembocam em ações, produtos e veículos de comunicação de livre circulação e acesso. Plural por natureza, a comunicação alternativa se destaca dentro das instituições da poliarquia por conseguir expressar diversidade, capilaridade, qualidade e finalidade, condições fundamentais que validam a democracia como regime político em curso na sociedade brasileira.
No entanto, fora dos modelos e diante de uma realidade complexa, apenas a existência e o pleno funcionamento da comunicação alternativa e das demais instituições não são suficientes para assegurar que um regime político seja realmente democrático.
Para refutar a visão idílica da democracia digital, Hindman traz o debate para os marcos do capitalismo contemporâneo, um sistema concentrador, tanto política, econômica quanto culturalmente, e que atua contra a difusão e a multiplicação de mensagens que não reproduzam valores dominantes2424 Hindman MS. The myth of digital democracy. Oxfordshire: Princeton University Press; 2009.. Logo, mesmo que indicadores apontem para uma maior ocupação dos espaços virtuais por segmentos sociais e comunidades, haja uma maior capacidade de vocalização no debate político e que tais entidades apresentem níveis de desenvolvimento de comunicação avançados e intermediários, gerando um melhor e maior diálogo social, é necessário olhar o fenômeno sem as utopias que marcaram o surgimento da Internet.
Junto ao processo de concentração econômica, política e cultural a lógica de apropriação dos conglomerados de dados, tecnologia e mídia apresenta um duplo aspecto em ser, simultaneamente, arena e agente na disputa por atenção, interação e consumo2828 Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social. Monopólios digitais: concentração e diversidade na Internet [Internet]. 2018 [acessado 2021 maio 13]. Disponível em https://intervozes.org.br/arquivos/interliv012monodig.pdf.
https://intervozes.org.br/arquivos/inter... . A presença das entidades nos veículos de comunicação segue lógicas de agendamento pautadas tanto pelas dinâmicas produtivas do noticiário e conteúdo como pelos interesses econômicos e políticos dessas empresas de mídia, podendo bloquear ou privilegiar fluxos, mensagens e atores sociais.
O mesmo acontece nas redes sociais, nas quais a conquista da audiência está para além da presença digital ou mesmo da compra do espaço publicitário via posts patrocinados, mas também por agendamento de temas e adequação à formatos ditados pelo mercado, cada vez uniforme, cada vez mais orientado pela lógica dos algoritmos e do marketing.
A cultura política é outro aspecto central a ser encarado de forma realista neste debate. A sobreposição de conselheiros e dirigentes e baixo índice de participação geral dos brasileiros na vida associativa2929 Labra ME. Conselhos de saúde - visões "macro" e "micro". Civitas 2006; 6(1):199-221. mostram que a institucionalidade legal e infralegal de 30 anos de participação social no SUS ainda não foi suficiente para estimular e consolidar uma maior consciência política na sociedade e melhorar a qualidade da participação.
Tais balizadores, contudo, não esvaziam o papel da comunicação alternativa produzida pelas entidades da sociedade civil do setor saúde. Por serem integrantes do CNS, órgão estrutural do SUS, os processos de comunicação por elas empreendidos podem e devem ser entendidos como parte do exercício do controle social e dos direitos à comunicação e à saúde. Como direitos, é papel e dever do Estado brasileiro não apenas dar a possibilidade de existência essa comunicação, como dar suporte a formas de promoção, estruturação e divulgação do que é produzido e debatido por esses departamentos.
Para que o modelo de participação social quebre as barreiras identificadas em prol de uma democracia de qualidade, é necessário ampliar a capacidade de comunicação bem como a presença digital desse conjunto das organizações, em todos os segmentos e tipologias. Incentivo e qualificação dos comunicadores populares e das entidades com menos recursos; editais para equipamentos e articulação em rede entre as entidades integrantes do CNS para troca de materiais e produções centradas no direito à saúde e à comunicação são alguns elementos que poderiam compor uma política pública voltada à valorização e ao fortalecimento da comunicação do controle social da saúde, com vistas a ampliar a capacidade comunicativa e técnica dessa parcela significativa da sociedade civil. É preciso desatar as amarras para um melhor arrasto dessa rede que comunica saúde e direitos.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Mar 2023 - Data do Fascículo
Mar 2023
Histórico
- Recebido
18 Fev 2022 - Aceito
08 Set 2022 - Publicado
10 Set 2022