Resumo
O beribéri é a manifestação clínica da deficiência grave e prolongada de tiamina (vitamina B1). Doença negligenciada que acomete a população de baixa renda, em situação de insegurança alimentar e nutricional. O objetivo do estudo foi comparar casos de beribéri em indígenas com casos em não indígenas no Brasil. Trata-se de estudo transversal de casos notificados de beribéri no período de 2013 a 2018, no formulário do SUS (FormSUS) do Ministério da Saúde. Foram comparados os casos em indígenas e em não indígenas pelo teste qui-quadrado ou teste exato de Fisher com nível de significância de p < 0,05. No período estudado foram notificados no país 414 casos de beribéri, sendo 210 (50,7%) indígenas. Referiram consumo de bebidas alcoólicas 58,1% dos indígenas e 71,6% dos não-indígenas (p = 0,004); adicionalmente, 71,0% dos indígenas consumiam caxiri (bebida alcoólica tradicional fermentada). Relataram fazer esforço físico diário 76,1% dos indígenas e 40,2% dos não-indígenas (p <0 ,001). Conclui-se que o beribéri no país acomete mais indígenas e está relacionado ao consumo de álcool e ao esforço físico.
Palavras-chave:
Deficiência de tiamina; Populações vulneráveis; Notificação de doenças; Pobreza; Vigilância em saúde pública
Introdução
O beribéri deriva de uma palavra cingalesa que significa fraqueza e reflete a natureza incapacitante desta doença. Trata-se da manifestação clínica da deficiência grave e prolongada de tiamina (vitamina B1), de natureza multicausal, de fácil tratamento, mas que pode levar a óbito11 Whitfield KC, Bourassa MW, Adamolekun B, Bergeron G, Bettendorff L, Brown KH, Cox L, Fattal-Valevski A, Fischer PR, Frank EL, Hiffler L, Hlaing LM, Jefferds ME, Kapner H, Kounnavong S, Mousavi MPS, Roth DE, Tsaloglou MN, Wieringa F, Combs Jr GF. Thiamine deficiency disorders: diagnosis, prevalence, and a roadmap for global control programs. Ann N Y Acad Sci 2018; 1430(1):3-43..
A tiamina é uma vitamina hidrossolúvel e termolábil, que atua no metabolismo dos aminoácidos, gorduras e carboidratos, sendo essencial nas células para converter carboidrato em energia (adenosina trifosfato) e é necessária para o bom funcionamento das células nervosas e musculares22 Maihara VA,Silva MG, Baldini VLS, Miguel AMR, Fávaro DIT. Avaliação nutricional de dietas de trabalhadores em relação a proteínas, lipídeos, carboidratos, fibras alimentares e vitaminas. Cienc Tecnol Aliment 2006; 26(3):672-677.. A necessidade diária de tiamina, de acordo a Organização Mundial de Saúde (OMS), varia segundo sexo, idade e atividade física de 0,2 a 1,5 mg/dia33 Bellows L, Moore, R. Water-soluble vitamins: B-complex and vitamin C [Internet]. 2012. [cited 2020 out 20]. Available from: https://extension.colostate.edu/docs/foodnut/09312.pdf
https://extension.colostate.edu/docs/foo... . Na ausência de ingestão adequada de tiamina, o armazenamento limitado nos tecidos pode ser reduzido em quatro a seis semanas44 Rodríguez-Pardo J, Puertas-Muñoz I, Martínez-Sánchez P, Terán JD, Pulido-Valdeolivas I, Fuentes B. Putamina involvement in Wernicke encephalopathy induced by Janus Kinase 2 inhibitor. Clin Neuropharmacol 2015; 38(3):117-118..
As manifestações clínicas do beribéri vão desde fraqueza dos membros inferiores, parestesias, anorexia, plenitude pós-prandial, mal-estar geral e edema, até neuropatia periférica, lesões cerebrais (síndrome de Wernicke-Korsakoff), insuficiência cardíaca (beribéri úmido) e insuficiência cardíaca grave com choque (beribéri Shoshin)55 World Health Organization (WHO). Thiamine deficiency and its prevention and control in major emergencies. Geneva: WHO; 1999.. O diagnóstico é essencialmente clínico e realizado mediante a reposição de tiamina no paciente. A resposta positiva à administração da tiamina é usada para confirmar esse agravo nutricional66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Secretaria Especial de Saúde indígena. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de consulta para vigilância epidemiológica, assistência e atenção nutricional dos casos de Beribéri. Brasília: MS; 2012..
A partir do século XX, o beribéri ocorre endemicamente ou em surtos, principalmente em países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, em situações de calamidade pública ou em populações fechadas, expostas à micotoxina citreoviridina e/ou à monotonia alimentar55 World Health Organization (WHO). Thiamine deficiency and its prevention and control in major emergencies. Geneva: WHO; 1999.. Entretanto, há uma dificuldade na determinação da prevalência global e regional dos distúrbios por deficiência de tiamina (DDTs), pois as informações são insuficientemente documentadas devido à escassez de dados dos biomarcadores em nível populacional11 Whitfield KC, Bourassa MW, Adamolekun B, Bergeron G, Bettendorff L, Brown KH, Cox L, Fattal-Valevski A, Fischer PR, Frank EL, Hiffler L, Hlaing LM, Jefferds ME, Kapner H, Kounnavong S, Mousavi MPS, Roth DE, Tsaloglou MN, Wieringa F, Combs Jr GF. Thiamine deficiency disorders: diagnosis, prevalence, and a roadmap for global control programs. Ann N Y Acad Sci 2018; 1430(1):3-43..
É pertinente destacar que o beribéri é uma doença negligenciada e que as causas deste agravo se multiplicam em áreas de população de baixa renda e estão relacionadas às condições graves de insegurança alimentar e nutricional, às más condições de higiene e saneamento77 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). O Brasil sem miséria. Brasília: MDS; 2014., assim como relacionados ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Secretaria Especial de Saúde indígena. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de consulta para vigilância epidemiológica, assistência e atenção nutricional dos casos de Beribéri. Brasília: MS; 2012., prevalecendo o acometimento de adultos jovens do sexo masculino, prisioneiros, povos indígenas, populações em vulnerabilidade, que são os grupos prioritários para o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN.
Sabe-se que a principal política de saúde brasileira relacionada aos padrões de consumo alimentar e nutricional da população é a Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), publicada em 1999 e atualizada pela Portaria nº 2.715, de 17 de novembro de 2011, que tem por finalidade a melhoria das condições de alimentação, nutrição e saúde da população, mediante a promoção de práticas alimentares adequadas e saudáveis, no monitoramento, organização e avaliação da atenção nutricional no SUS (Sistema Único de Saúde) de forma ampliada para toda a população66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Secretaria Especial de Saúde indígena. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de consulta para vigilância epidemiológica, assistência e atenção nutricional dos casos de Beribéri. Brasília: MS; 2012., baseado principalmente nos agravos nutricionais de maior magnitude: sobrepeso e obesidade em todas as fases da vida; anemia ferropriva; hipovitaminose A e outras carências nutricionais emergentes como a deficiência de vitamina B1 (tiamina)88 Coutinho JG, Cardoso AJC, Toral N, Silva ACF, Ubarana JA, Aquino KKNC, Nilson EAF, Fagundes A, Vasconcellos AB. A organização da Vigilância Alimentar e Nutricional no Sistema Único de Saúde: histórico e desafios atuais. Rev Bras Epidemiol 2009; 12(4):688-699..
Destaca-se ainda à vigilância alimentar e nutricional de povos e comunidades tradicionais e de grupos populacionais em condições de vulnerabilidade e iniquidade nutricional e alta prevalência de desnutrição crônica, como entre as crianças indígenas (26%), quilombolas (16%), residentes na região Norte do país (15%) e aquelas pertencentes às famílias beneficiárias dos programas de transferência de renda (15%), afetando sobretudo crianças e mulheres que vivem em bolsões de pobreza99 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília: MS; 2013..
Dessa forma, os dados de monitoramento da situação alimentar coletados pela vigilância alimentar e nutricional podem fundamentar as análises e diagnósticos de casos incidentes e críticos e a elaboração de critérios de estratificação de risco e de vulnerabilidade para determinado grupo de usuários dentro de uma conformação com rede integrada, resolutiva e humanizada de cuidados1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Marco de referência da vigilância alimentar e nutricional na atenção básica. Brasília: MS; 2015..
O beribéri constitui um importante problema de saúde pública pela possibilidade de apresentar-se como doença incapacitante e letal, e por seu potencial de causar surtos e epidemias com adoecimento e óbito em curto período de tempo77 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). O Brasil sem miséria. Brasília: MDS; 2014..
Em 2006, ocorreu um surto de beribéri no sudoeste do estado do Maranhão, com 40 óbitos de adultos jovens e 434 casos notificados, com fatores de risco relacionados ao consumo abusivo de álcool e à atividade laboral vigorosa1111 Padilha EM, Fujimori E, Borges ALV, Sato APS, Gomes MN, Branco MRFC, Santos HJ, Junior NL. Perfi l epidemiológico do beribéri notificado de 2006 a 2008 no estado do Maranhão, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(3):449-459.. Em 2008, um surto de beribéri entre indígenas com história de baixa ingestão de tiamina e consumo exacerbado de caxiri, bebida alcoólica tradicional fermentada consumida pela etnias Ingaricó e Macuxí, no município de Uiramutã, estado de Roraima1212 Cerroni MP, Barrado JCS, Nobrega AA, Lins ABM, Silva IP, Mangueira RR, Cruz RH, Mendes SMF, Sobel J. Outbreak of Beriberi in an Indian Population of the Upper Amazon Region, Roraima State, Brazil, 2008. Am J Trop Med Hyg 2010; 83(5):1093-1097..
Considerando que não há nenhum estudo epidemiológico nacional sobre o beribéri, pretende-se analisar dados sociodemográficos, clínicos e comportamentais dos casos de beribéri notificados no país, comparando os casos em indígenas com os casos em não indígenas.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal, baseado em uma série histórica de casos de beribéri notificados por meio do formulário do SUS (FormSUS) ao Ministério da Saúde no período de julho de 2013 a setembro de 2018 no Brasil, conforme já descrito por Assunção et al.1313 Assunção AKM, Branco MRFC, Santos TS, Costa SSB, Dias JJ, Soeiro VMS, Araújo AS, Queiroz RCS, Frota MTBA, Caldas AJM, Oliveira BLCA, Santos AM. Beriberi in Brazil: a disease that affects Indigenous people. Food Nutr Bull 2021; 42(3):427-436.
Os bancos de dados com os casos de beribéri foram disponibilizados em planilha de Excel pelo Ministério da Saúde por meio de uma fonte primária de informações registradas no FormSUS de 2013 a 2018, sendo coletados em novembro de 2018. O FormSUS é um serviço público do DATASUS para a criação de formulários eletrônicos, seguindo a legislação e a Política de Informação e Informática do SUS1414 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Ficha de investigação clínica e de notificação dos casos de beribéri [Internet]. FormSUS versão 3.0. [acessado 2020 out 20]. Disponível em: http://formsus.datasus.gov.br/site/default.php
http://formsus.datasus.gov.br/site/defau... .
O FormSUS do beribéri foi elaborado pela Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição (CGAN), seguindo os itens da ficha de investigação clínica e notificação dos casos de beribéri, que consta no Guia de Consulta para Vigilância Epidemiológica, Assistência e Atenção Nutricional dos casos de beribéri66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Secretaria Especial de Saúde indígena. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de consulta para vigilância epidemiológica, assistência e atenção nutricional dos casos de Beribéri. Brasília: MS; 2012..
Considerou-se a definição de caso notificado de beribéri do Ministério da Saúde: todo indivíduo que esteja em situação de risco e que apresente sinais e sintomas característicos do beribéri. São consideradas situações de risco: esforço físico extenuante (exemplo: trabalhador braçal); uso excessivo de álcool; monotonia alimentar; hiperêmese; diarreia, entre outras. E os sinais e sintomas característicos do beribéri são: parestesias e/ ou dores em membros inferiores, diminuição da sensibilidade, dos reflexos e da força muscular (dificuldade para deambular); taquicardia sinusal (palpitações), pressão arterial divergente, pulso célere, estase jugular, sopro sistólico, ritmo de galope, dispneia, edema de membros inferiores; insuficiência cardíaca fulminante, associada acidose lática e choque; oftalmoplegia, nistagmo, ataxia cerebelar, déficit memória66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Secretaria Especial de Saúde indígena. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de consulta para vigilância epidemiológica, assistência e atenção nutricional dos casos de Beribéri. Brasília: MS; 2012..
A classificação do caso - beribéri úmido, beribéri seco, beribéri Shoshin e síndrome de Wernicke-Korsakoff - é baseada nos critérios do Ministério da Saúde66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Secretaria Especial de Saúde indígena. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de consulta para vigilância epidemiológica, assistência e atenção nutricional dos casos de Beribéri. Brasília: MS; 2012..
As variáveis do estudo utilizadas foram obtidas a partir da ficha de investigação clínica e de notificação dos casos de beribéri do FormSUS. No período estudado, a ficha sofreu modificações a partir de 2014. Neste estudo, o desfecho de interesse foi se o paciente era indígena ou não.
A seguir são descritas as variáveis estudadas: 1) variáveis sociodemográficas: raça/cor; zona de residência; sexo; idade; faixa etária; escolaridade; beneficiário de programa(s) social(ais); renda familiar mensal; 2) variáveis clínicas, comportamentais e de serviços de saúde: antecedente pessoal de beribéri; antecedente familiar de beribéri; esforço físico diário; fumante; consumo de bebida alcoólica; frequência de consumo de bebida alcoólica; consumo de bebida alcoólica tradicional fermentada; hospitalização; forma de entrada no serviço de saúde; sinais e sintomas; tipo de comorbidades; classificação do caso; tratamento com tiamina; evolução do caso; 3) variáveis construídas para análise: indígena (sim, não); exerce trabalho braçal. Considerando que o trabalho braçal é um fator de risco para adoecimento, construiu-se a variável dicotômica “exerce trabalho braçal” a partir das variáveis ocupação principal e atividade principal das fichas de notificação dos casos. Para tanto, utilizou-se a classificação brasileira de ocupações1515 Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Classificação Brasileira de Ocupações: CBO. Brasília: TEM; 2010..
Foi calculada a prevalência (P) do período para casos de beribéri em indígenas e não indígenas. A fórmula utilizada foi:
Os dados do FomSUS foram transferidos para uma planilha Excel. Para a análise estatística, foi utilizado o STATA, versão 14.0 (Stata Corporation, College station, TX, USA). As variáveis qualitativas foram apresentadas em frequências absolutas e em proporções. Calcularam-se medidas de tendência central e de dispersão para idade. Os fatores de risco foram analisados em uma tabela 2 x 2. Para testar a associação entre indígenas e não indígenas dos casos notificados, utilizou-se o teste qui-quadrado ou teste exato de Fisher com nível de significância de p < 0,05.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Hospital Universitário da Universidade Federal do Maranhão (HUUFMA) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), sob Parecer 2.888.343 e CAAE 83673418.7.0000.5086, de 11 de setembro de 2018, de acordo com os requisitos exigidos pela Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde1616 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União 2012; 13 jun..
Resultados
De 2013 a 2018, foram notificados 414 casos de beribéri no país, sendo 210 (50,7%) em indígenas e 204 (49,3%) em não indígenas. A taxa de prevalência em indígenas foi de 25 casos para 100.000 habitantes, e em não indígenas de 0,10 casos para 100.000 habitantes. A média ± DP da idade dos casos foi de 43,9 ± 0,7 anos. Houve predomínio do sexo masculino e da faixa etária de 18 a 59 anos, sem significância estatística. A maioria dos casos tinha escolaridade não informada ou baixa (69,0%).
Compararam-se os casos em indígenas e não indígenas. Quanto ao antecedente pessoal de beribéri, 102 (48,6%) indígenas relataram ter tido pelo menos uma vez beribéri (p < 0,001); e quanto ao antecedente familiar de beribéri, 59 (33,3%) de 177 indígenas referiram pelo menos um familiar com beribéri (p < 0,001). Quanto à classificação do caso, 71 (51,4%) de 138 indígenas tiveram beribéri úmido, e 23 (69,7%) de 33 não indígenas, beribéri seco (p < 0,001) (Tabela 1).
Referiram consumo de bebidas alcoólicas 122 (58,1%) indígenas e 146 (71,6%) dos não-indígenas (p = 0,004). Em relação à frequência de consumo de bebidas alcoólicas, 42 (34,4%) de 122 indígenas e 81 (55,5%) de 146 não-indígenas relataram frequência de cinco a sete dias na semana (p < 0,001) (Tabela 2). O consumo de caxiri (bebida alcoólica tradicional fermentada) foi referido por 54 (71,0%) de 76 indígenas.
Entre os indígenas, 160 (76,1%) relataram fazer esforço físico diário (p < 0,001) e exercer trabalho braçal 152 (72,4%) (p < 0,001). Precisaram ser hospitalizados 85,6% dos não indígenas (p < 0,001) (Tabela 2).
O quadro clínico se caracterizou por paresia (73,4%), edema (49,5%), parestesia (44,4%) em membros superiores e/ou inferiores, dificuldade de deambular (51,4%) e fraqueza muscular (58,2%). Sintomas menos frequentes foram dor na panturrilha, astenia, dispneia, perda ponderal, náuseas e vômitos, taquicardia, confusão mental, diplopia e pressão arterial divergente nesta ordem. Quase a totalidade dos casos (99%) foi tratada com tiamina por via oral 300 mg.
Houve registro de comorbidade em 102 de 408 (25,0%) casos, sendo mais frequente hipertensão arterial sistêmica (9,4%) e hepatopatia grave (6,0%), e menos frequentes diabetes mellitus, cardiopatia, anemia, doença renal crônica, sequela neurológica, epilepsia, neoplasia, transtorno mental, cirurgia gastrointestinal, tuberculose, hanseníase e outras comorbidades.
Houve um registro de caso em gestante, notificada em 2015, indígena, 24 anos de idade, dona de casa, etnia Karajá Xambioá, moradora da aldeia Warylyty, Santa Fé do Araguaia (TO), realizava esforço físico diário, estava no 3º trimestre, fazia parte do programa de distribuição de cestas de alimentos por sua renda ser inferior a um salário-mínimo. Necessitou ser hospitalizada com sinais clássicos de beribéri e apresentava hiperêmese gravídica, não teve beribéri anteriormente e foi classificada como beribéri seco.
Houve registro de três óbitos em 2014, 2015 e 2016, sendo dois homens (30 e 42 anos de idade) e uma mulher (54 anos de idade), residentes em Brasilândia do Tocantins (TO), Palmas (TO) e Tocantinópolis (TO), respectivamente. Todos pardos, com baixa escolaridade e renda de um salário-mínimo; a mulher era dona de casa e ambos os homens eram trabalhadores braçais, tinham hepatopatia grave e eram etilistas; os três fumavam. Um dos homens foi classificado como beribéri Shoshin, o outro como beribéri Shoshin e síndrome de Wernicke-Korsakoff, e a mulher como beribéri seco.
Os dados completos estão disponíveis em: https://doi.org/10.48331/scielodata.LB0VAV.
Discussão
Houve predomínio da notificação dos casos em indígenas (50,7%), embora eles representem apenas 0,43% (cerca de 896 mil) da população brasileira1717 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE; 2012., com prevalência de 25 casos por 100.000 habitantes.
Nossos resultados mostram que, entre indígenas com sinais e sintomas sugestivos de beribéri, é importante valorizar a informação sobre o antecedente pessoal ou familiar de beribéri para reforçar a suspeição e iniciar o teste terapêutico com brevidade1818 Latt N, Dore G. Thiamine in the treatment of Wernicke encephalopathy in patients with alcohol use disorders. Intern Med J 2014; 44(9):911-915., já que o beribéri é uma doença que pode levar a morte11 Whitfield KC, Bourassa MW, Adamolekun B, Bergeron G, Bettendorff L, Brown KH, Cox L, Fattal-Valevski A, Fischer PR, Frank EL, Hiffler L, Hlaing LM, Jefferds ME, Kapner H, Kounnavong S, Mousavi MPS, Roth DE, Tsaloglou MN, Wieringa F, Combs Jr GF. Thiamine deficiency disorders: diagnosis, prevalence, and a roadmap for global control programs. Ann N Y Acad Sci 2018; 1430(1):3-43.. Smith et al.1919 Smith TJ, Johnson CR, Koshy R, Hess SY, Qureshi UA, Mynak ML, Fischer PR. Thiamine deficiency disorders: a clinical perspective. Ann N Y Acad Sci 2020; 1498(1):9-28. propuseram que aplicar um baixo limiar de suspeita clínica e tratamento precoce, como a tiamina, é a melhor abordagem.
Houve mais consumo de bebidas alcoólicas em não indígenas (71,6%) do que em indígenas (58,1%), com significância estatística (p = 0,004), ainda assim foi maior do que as proporções encontradas no I Levantamento Nacional sobre Padrões de Consumo de Álcool e outras drogas entre populações indígenas, realizado em 2007, em que 38,4% consumiam bebidas alcoólicas, e destes, 44,1% relataram abuso da bebida e 22,9% apresentavam dependência do álcool2020 Brasil. Secretaria Nacional Antidrogas (SNA). I Levantamento Nacional sobre Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira. Brasília: MS; 2007..
O consumo de bebida alcoólica de cinco a sete dias na semana foi mais frequente em não indígenas (p < 0,001). O efeito danoso do álcool à saúde foi elucidado por Subramanian et al.2121 Subramanian VS, Subramanya SB, Tsukamoto H, Said HM. Effect of chronic alcohol feeding on physiological and molecular parameters of renal thiamin transport. Am J Physiol Renal Physiol 2010; 299(1):F28-F34., que mostram, em modelo experimental com ratos, que a ingestão crônica de álcool leva a uma inibição no transporte da tiamina renal, afetando negativamente em nível micro (transcricional) e macro o metabolismo renal da tiamina.
Por outro lado, os indígenas referiram também o consumo de bebida alcoólica tradicional fermentada (caxiri). Souza e Garnelo2222 Souza MLP, Garnelo L. Quando, como e o que se bebe: o processo de alcoolização entre populações indígenas do alto Rio Negro, Brasil. Cad Saude Publica 2007; 23(7):1640-1648. descreveram a cachaça e o caxiri como as bebidas mais consumidas, abusivamente, por indígenas do Alto Rio Negro, no Amazonas. E mais recentemente, em 2021, Pereira e Robaina2323 Pereira EB, Robaina JVL. O índice do uso de bebida alcoólica na região indígena comunidade do Sucuba em Alto Alegre/RR. Rev Interdiscip Sulear 2021; 11:46-56. estudaram o uso de bebida alcoólica entre os indígenas na comunidade do Sucuba, em Alto Alegre/RR, em 2018, e atestaram que 71% ingerem bebidas alcoólicas, e destes, a bebida mais consumida foi o caxiri (40% dos entrevistados).
Essa bebida é reservada para ocasiões especiais, como festas e rituais sagrados e profanos dos índios2424 Fernandes JA. Selvagens bebedeiras: álcool e contatos culturais no Brasil Colonial (séculos XVI-XVII) [tese]. São Paulo: Universidade Federal Fluminense; 2004., mas o que se tem visto é o problema do uso excessivo do álcool, o que trouxe mudanças no consumo associado ao contato e inserção das comunidades indígenas nas sociedades vizinhas não-indígenas2525 Branco FMFC, Vargas D. Alcoholization process: reflections on problems related to alcohol consumption in indigenous communities. J Nurs UFPE on line 2017; 11(2):718-723., causando modificações culturais, sociais, econômicas e educacionais2626 Langdon EJ. O que beber, como beber e quando beber: o contexto sociocultural no alcoolismo entre as populações indígenas. In: Coordenação Nacional de DST e AIDS, Secretaria de Políticas de Saúde, Ministério da Saúde, organizadores. Seminário sobre alcoolismo e DST/AIDS entre os povos indígenas; Brasília: MS; 2001. p. 83-97.. A bebida antes era consumida apenas pelos indígenas, agora passou a ser comercializada em feiras-livres2323 Pereira EB, Robaina JVL. O índice do uso de bebida alcoólica na região indígena comunidade do Sucuba em Alto Alegre/RR. Rev Interdiscip Sulear 2021; 11:46-56..
Sabe-se que o álcool tem muitas calorias, porém poucos nutrientes, e quanto mais o consumo se torna abusivo (consumo mais de 30% de suas calorias totais na forma de álcool), mais ele interfere na metabolização e na fisiologia de várias enzimas que controlam o metabolismo de carboidratos, proteínas e gorduras do corpo2727 Toffolo MCF, Aguiar-Nemera AS, Silva-Fonseca VA. Alcohol: effects on nutritional status, lipid profile and blood pressure. J Endocrinol Metab 2012; 2(6):205-211., prejudicando a absorção de nutrientes, como as vitaminas A, C e do complexo B, com destaque para a tiamina (vitamina B1)2828 Lieber CS. Relationships between nutrition, alcohol use, and liver disease. Alcohol Res Health 2003; 27(3):220-231.,2929 Chandrakumar A, Bhardwaj A, Jong GW. Review of thiamine deficiency disorders: Wernicke encephalopathy and Korsakoff psychosis. J Basic Clin Physiol Pharmacol 2019; 30(2):153-162..
Nos casos de beribéri foram encontrados intensa atividade braçal (laboral) e esforço físico diário entre os indígenas, como relatado em outros surtos no Brasil1111 Padilha EM, Fujimori E, Borges ALV, Sato APS, Gomes MN, Branco MRFC, Santos HJ, Junior NL. Perfi l epidemiológico do beribéri notificado de 2006 a 2008 no estado do Maranhão, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(3):449-459. e na Gâmbia3030 Thurnham DI, Cathcart AE, Livingstone, BEM. A retrospective investigation of thiamin and energy intakes following an outbreak of beriberi in the Gambia. Nutrients 2011; 3(1):135-151.. O adoecimento por beribéri pode ter sido consequência de um estado de deficiência crônica de tiamina pré-existente, elevado consumo de álcool e atividade laboral que requer alto consumo energético, já que as necessidades de tiamina aumentam durante períodos de metabolismo acelerado55 World Health Organization (WHO). Thiamine deficiency and its prevention and control in major emergencies. Geneva: WHO; 1999..
A hospitalização dos casos foi mais frequente em não indígenas, assim como o beribéri seco, sugerindo que os casos mais graves se apresentam na zona urbana, possivelmente devido a falhas da vigilância epidemiológica e da rede de assistência na detecção e acompanhamento dos casos. Ressalta-se que após os surtos ocorridos no país, como os relatados por Cerroni et al.1212 Cerroni MP, Barrado JCS, Nobrega AA, Lins ABM, Silva IP, Mangueira RR, Cruz RH, Mendes SMF, Sobel J. Outbreak of Beriberi in an Indian Population of the Upper Amazon Region, Roraima State, Brazil, 2008. Am J Trop Med Hyg 2010; 83(5):1093-1097. entre os indígenas em Roraima e por Padilha et al.1111 Padilha EM, Fujimori E, Borges ALV, Sato APS, Gomes MN, Branco MRFC, Santos HJ, Junior NL. Perfi l epidemiológico do beribéri notificado de 2006 a 2008 no estado do Maranhão, Brasil. Cad Saude Publica 2011; 27(3):449-459. no Maranhão, houve treinamentos e sensibilizações das equipes de saúde indígena e da atenção básica para o reconhecimento dos sinais e sintomas e o tratamento precoce dos casos66 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Secretaria Especial de Saúde indígena. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de consulta para vigilância epidemiológica, assistência e atenção nutricional dos casos de Beribéri. Brasília: MS; 2012..
Devemos reconhecer o beribéri como uma doença associada à insegurança alimentar e à pobreza, constituindo-se também como uma doença negligenciada, associada ao alcoolismo e com predomínio de notificação de casos em indígenas no país1313 Assunção AKM, Branco MRFC, Santos TS, Costa SSB, Dias JJ, Soeiro VMS, Araújo AS, Queiroz RCS, Frota MTBA, Caldas AJM, Oliveira BLCA, Santos AM. Beriberi in Brazil: a disease that affects Indigenous people. Food Nutr Bull 2021; 42(3):427-436..
O olhar atento à situação da saúde indígena no Brasil é procrastinado desde sempre. Apenas no século XX (em 1957) o governo brasileiro começou a oferecer oficialmente um serviço regular de atenção à saúde dos indígenas, porém permeado por ações desarticuladas e sem integração dos serviços e dos programas do Ministério da Saúde até o final da década de 19903131 Kabad JF, Pícoli RP, Arantes R. A saúde da família indígena. In: Geniole LAI, Kodjaoglanian V L, Vieira CCA, organizadores. Saúde bucal por ciclos de vida. Campo Grande: Fiocruz; 2011. p. 22-90.. Com a “Lei Arouca”, de 1999 (Lei nº 9.836), seguiram-se alguns desdobramentos, no âmbito do SUS, como a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), de 2002. À priori tendo a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) como sua representação executiva e instituição articuladora da rede de saúde, e mais especificamente da atenção primária nas aldeias indígenas. Em 2010, por meio da Lei nº 12.314 e do Decreto nº 7.336, ocorreu a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Ela seria a responsável pela nova gestão da saúde indígena, anteriormente atribuída a FUNASA3232 Altini E, Rodrigues G, Padilha L, Moraes PD, Liebgott RA, organizadores. A política de atenção à saúde indígena no Brasil. Breve recuperação histórica sobre a política de assistência à saúde nas comunidades indígenas. Conselho Indigenista Missionário; 2013..
A consolidação dessa função decorreu aproximadamente por três anos. O contexto ao longo desses intervalos temporais era de muitas incertezas das ações públicas na área da saúde, enquanto isso, a assistência aos povos indígenas se deteriorava. Este novo modelo de gestão da saúde indígena atua por meio do Ministério da Saúde, no caráter executivo, na figura do Departamento de Saúde Indígena (DESAI), responsável pela gestão central do Subsistema de Saúde Indígena e pela promoção de encontros macrorregionais e nacionais para avaliar o processo de implantação da PNASPI, e também pelas entidades privadas sem fins lucrativos para execução, por meio de convênios, das ações complementares na atenção à saúde dos povos indígenas3333 Brasil. Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). Lei Arouca - 10 anos de saúde indígena. Brasília: FUNASA; 2009..
Foram notados grandes desafios para a gestão da SESAI, como a falta de consideração com a medicina tradicional indígena por parte dos gestores municipais ao desenvolver as atividades de atenção à saúde a esses povos, além de pressões político-partidárias na gestão dos DSEI que geram instabilidade tanto na gestão quanto nos profissionais de saúde indígena3434 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria Especial de Saúde Indígena. Relatório da 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena. Brasília: MS; 2014..
Nos últimos anos, a SESAI, demais órgãos governamentais e entidades sociais que se dedicam às políticas de saúde indígena, não têm conseguido cumprir os compromissos legislativos que deveriam assegurar a assistência integral à saúde indígena, por isso agravou-se o cenário de riscos à saúde com relação a mortalidade infantil, doenças crônicas (obesidade e diabetes), doenças infecciosas, desnutrição e situações preocupantes relacionadas à saúde mental dos indígenas, como o alcoolismo e os casos de suicídios, grave problema em que se encaixam os casos de beribéri. Tudo isso revela que a política de atenção à saúde das populações indígenas ainda é ineficiente no Brasil3232 Altini E, Rodrigues G, Padilha L, Moraes PD, Liebgott RA, organizadores. A política de atenção à saúde indígena no Brasil. Breve recuperação histórica sobre a política de assistência à saúde nas comunidades indígenas. Conselho Indigenista Missionário; 2013..
Em um cenário geral no Brasil, observa-se a precariedade dos determinantes sociais intermediários3535 Ribeiro MCSA, Barata RB. Saúde: vulnerabilidade social, vizinhança e atividade física. Cad.Metrop 2016; 18(36):401-420., que afetam as condições de vida de certos grupos sociais, levando-os a permanecerem, ou tendo sua situação agravada, na vulnerabilidade social3636 Cidade LCF. Urbanização, ambiente, risco e vulnerabilidade: em busca de uma construção interdisciplinar. Cad Metrop 2013; 15(29):171-191.. Deve-se levar em consideração que o bom estado de saúde é um dos aspectos mais impactados nesse cenário, tornando o indivíduo suscetível ao processo de adoecer. Sendo assim, espera-se que aflorem os aspectos individuais transformadores da sua realidade, bem como a articulação de intervenções do coletivo por meio do poder público e da sociedade, para serem sustentáculos desse indivíduo com políticas de saúde e garantias dos direitos das pessoas3737 Ayres JR CM, Franca Junior I, Calazans GJ, Saletti Filho HC. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: Czeresnia D, Freitas CM, organizadores. Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003. p. 171-191..
O direito humano à alimentação adequada está contemplado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. No país, a garantia desse direito está a cargo do Estado brasileiro, que deve, entre outras ações, promover e prover o acesso regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade para a população. E cabe à participação social o direito de exigir que eles sejam cumpridos e que respeitem a diversidade cultural e sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis3838 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). O direito humano à alimentação adequada e o sistema nacional de segurança alimentar e nutricional. Brasília: ABRANDH; 2013..
Faz-se necessário desenvolver estratégias, instrumentos e técnicas capazes de analisar e monitorar as condições sociais para reduzir a vulnerabilidade desses grupos, doentes há algum tempo e provavelmente portadores de outras deficiências que vêm junto com a pobreza e a insegurança alimentar.
No contexto na pandemia do novo coronavírus, com início em 2020, o problema do beribéri se torna mais evidente. Em tempos de pandemia e pós-pandemia de COVID-19, houve um aumento da população em situação de pobreza, como evidenciou o relatório “O estado da insegurança alimentar e nutrição no mundo de 2021”, da FAO, que estima que 10% da população global, cerca de 768 milhões de pessoas, passaram fome em 2020 e mais de 2,3 bilhões de pessoas não tiveram alimentação adequada durante todo o ano, um preocupante aumento da prevalência de insegurança alimentar3939 Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). World Health Organization (WHO). The State of Food Security and Nutrition in the World 2021. Transforming food systems for food security, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Rome: FAO; 2021.. Além disso, em 2020, realizou-se no Brasil o inquérito populacional sobre a Insegurança Alimentar em Contexto de Covid do VigiSAN4040 Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (REDE PENSSAN). VIGISAN: Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. Rio de Janeiro: Rede Penssan; 2021., que evidenciou o alto índice de insegurança alimentar para mais da metade dos domicílios (55,2%), com destaque para os 9% de domicílios que conviveram com a fome, sendo o pior cenário na área rural e nas regiões Norte e Nordeste. E não só durante a pandeia, é um problema que já vem acontecendo há algum tempo.
As limitações do estudo estão relacionadas ao formulário usado para a notificação do beribéri no país, que consiste em uma planilha Excel sem controle automatizado de erros de entrada de dados e informações ausentes e sem função que impeça o encerramento do caso com inconsistências.
As subnotificações e sub-registros relacionados aos casos de beribéri constituem um grave problema para a vigilância epidemiológica, pois são menos representativos do real cenário de saúde desse agravo na população, dificultando o planejamento e a tomada de decisão das ações do poder público nos seus processos de enfrentamento aos problemas de saúde4141 Melo MAS. Avaliação de aspectos organizacionais da vigilância sanitária em uma amostra de municípios goianos na perspectiva de seus trabalhadores [tese]. Goiânia: Universidade Federal de Goiás; 2012., o que prejudica a informação, que é um recurso importante na área da saúde, por contribuir para a destinação de recursos e estratégias com maior eficiência contra esta doença negligenciada há tanto tempo no Brasil4242 Santos RJ, Cruz JC, Moreira PA. Perfil epidemiológico e tendencia temporal da mortalidade por suicídio no estado de Sergipe, de 2006 a 2015. Braz J Healt ver 2019; 2(1):495-500..
Cabe aqui a recomendação ao Ministério da Saúde para que incorpore a deficiência grave e prolongada de tiamina (beribéri) no rol das doenças de notificação compulsória do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), para fins de adoção das medidas de intervenção pertinentes pelos profissionais de saúde e o poder público e assim possibilitar o acompanhamento, de forma mais ampla, das características do fenômeno estudado. Nota-se que os casos de beribéri atendem a alguns dos critérios utilizados na seleção das doenças de notificação compulsória, como relevância social e econômica e vulnerabilidade4343 Teixeira MG, Penna GO, Risi JB, Penna ML, Alvim MF, Moraes JC, Luna E. Seleção das doenças de notificação. compulsória: critérios e recomendações para as três esferas de governo. Inf Epidemiol Sus 1998; 7(1):8-28.. Faz-se necessária especial atenção às áreas geográficas prioritárias para as notificações, de acordo com o conhecimento epidemiológico vigente, como apresentado neste artigo, visando a geração de bancos de dados nacionais que permitam análises mais robustas para garantir orientações, planejamento e respostas necessárias com medidas de controle assistencial a grupos específicos da população brasileira em situações de vulnerabilidade.
Como ponto forte do estudo, tem-se uma pesquisa de abrangência nacional sobre os casos notificados de beribéri, abordando aspectos sociodemográficos, comportamentais e clínicos.
Os resultados deste estudo são de interesse da vigilância em saúde, assim como de órgãos governamentais que se dedicam aos indígenas, como SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e FUNAI (Fundação Nacional do Índio), além de governos municipais, estaduais e federal, já que foram evidenciados grupos prioritários, indígenas e pessoas que consomem álcool para as ações de monitoramento das condições de saúde, abordagem adequada de suplementação, fortificação alimentar e mudanças dietéticas em populações indígenas e não indígenas. Adicionalmente, é necessário treinar os profissionais da saúde quanto à detecção, ao rastreamento e ao tratamento precoce do beribéri4444 Gomes F, Bergeron G, Bourassa MW, Fischer PR. Thiamine deficiency unrelated to alcohol consumption in high-income countries: a literature review. Ann N Y Acad Sci 2021; 1498(1):46-56..
Nessa perspectiva, o controle dos casos de beribéri exige o envolvimento e a articulação de todos os setores da sociedade no sentido de intervir efetivamente nesse processo, por meio da elaboração e implementação de políticas públicas, programas e ações de enfrentamento e prevenção que tenham como objetivo promover mudanças socioeconômicas, nutricionais, na assistência e no monitoramento da saúde, quiçá a construção de redes intersetoriais que possibilitem atenção integral e que alterem essa realidade e as condições que favorecem a ocorrência do beribéri no país.
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Financiamento
Os autores agradecem à FAPEMA (Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão) pela bolsa PIBIC concedida à TS Santos e pelo programa de apoio à publicação de artigos, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de doutorado à SSB Costa (Código de Financiamento nº 001). Estudo financiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia Desenvolvimento), pela concessão do financiamento ao projeto intitulado “Análise dos casos de beribéri notificados no Brasil com o uso de geoprocessamento” (Chamada CNPq/MS/SCTIE/DECIT/SAS/DAB/CGAN nº 13/2017 - Pesquisas em Alimentação e Nutrição. Processo: 408230/2017-7).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
07 Jul 2023 - Data do Fascículo
Jul 2023
Histórico
- Recebido
26 Jun 2022 - Aceito
16 Dez 2022 - Publicado
18 Dez 2022