Reconhecer o racismo para construir um cuidado efetivamente integral, equânime e universal

Paula Gaudenzi Adriana Miranda de Castro Andrea Chagas Sobre os autores

Este número temático parte da compreensão de que é urgente incorporar de forma vigorosa a análise sobre o racismo no campo da Saúde Coletiva - fortemente marcado pela noção de saúde como direito social, cidadania e dignidade da pessoa humana - uma vez que o racismo é um importante fator de violação de direitos e de produção de iniquidades. Pensar a subjetividade racializada e o cuidado em saúde às pessoas negras é a espinha dorsal do número temático aqui proposto, entendendo que o cuidado não se restringe às práticas formais de assistência à saúde, mas também incorpora todas as formas criativas de estar no mundo que produzem uma vida bem vivida.

Nas últimas décadas, se complexificaram as ideias de universalidade, integralidade e equidade a fim de que estivessem mais próximas à realidade e às necessidades das pessoas nos diversos territórios em que a vida acontece. Assim, a universalidade não prescinde de um olhar singular para as desigualdades sociais e regionais. A integralidade articula-se mais e mais às análises sobre os sentidos de cuidado, buscando desfragmentar as práticas de saúde e recolocar a pessoa no seu centro. A equidade ratifica que os modos de vida e o acesso aos direitos de cidadania são atravessados pelos processos de determinação social.

Segundo o Atlas da Violência (2021)11 Cerqueira D, Ferreira H, Bueno S, coordenadores. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP; 2021., em 2019, os negros representaram 77% das vítimas de homicídios e a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. Estes e outros dados expõem as feições do racismo no Brasil e nos permitem compreendê-lo como um agravo à saúde. Na cultura brasileira, o racismo é estrutural, institucional e intersubjetivo, afetando o acesso aos serviços de saúde e o cuidado integral, além de ser produtor de dimensões simbólicas negativadas do corpo negro que ocasionam danos à saúde mental das pessoas negras.

Os processos - tanto de institucionalização do SUS quanto de adensamento teórico-político de seus fundamentos -, não se fizeram/fazem sem tensões e disputas. Apesar das contribuições do Movimento Negro e de Mulheres Negras à concepção do SUS, das mobilizações pela institucionalização e implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) e da presença efetiva da população negra como usuária e trabalhadora no sistema, o racismo que se apresenta no seu modus operandi e estabelece inúmeras barreiras para o acesso à saúde para negras e negros no país não tem sido suficientemente reconhecido nem enfrentado22 Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc 2016; 25(3):535-549..

A despeito do aumento na produção de evidências quanto às relações entre os marcadores de raça/etnia e de gênero na qualidade do cuidado em saúde recebido ou não e nos desfechos negativos em casos de adoecimento e/ou em situações de desastres e emergências sanitárias, entende-se que ainda há muito por avançar.

Reconhecer que o racismo impacta o acesso às políticas públicas, os processos de subjetivação, de adoecimento e morte, os itinerários terapêuticos e as relações de cuidado, para citar alguns aspectos, é fundamental para melhorar a produção de saúde no Brasil, para que o ideário do SUS seja experimentado no cotidiano de seus usuários e trabalhadores, para que a Saúde Coletiva seja mais plural em suas referências, metodologias e reflexões. Reconhecer que o racismo se faz presente nas relações que se estabelecem na Saúde Coletiva e no SUS é vislumbrar a possibilidade de desconstrui-lo de maneira consistente e sustentável já que o antirracismo é um percurso a se fazer, não um lugar a alcançar33 Santos YL. Racismo Brasileiro. Uma história da formação do país. São Paulo: Todavia; 2022..

O presente Número Temático é uma pequena contribuição aos vários processos de mobilização, construção e defesa intransigente de uma saúde pública antirracista.

Referências

  • 1
    Cerqueira D, Ferreira H, Bueno S, coordenadores. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP; 2021.
  • 2
    Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc 2016; 25(3):535-549.
  • 3
    Santos YL. Racismo Brasileiro. Uma história da formação do país. São Paulo: Todavia; 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023
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