A literacia em saúde no ChatGPT: explorando o potencial de uso de inteligência artificial para a elaboração de textos acadêmicos

Frederico Peres Sobre o autor

Resumo

O presente estudo buscou conhecer as principais características das respostas geradas pela ferramenta ChatGPT a consultas sobre um tema emergente na literatura acadêmica de língua portuguesa - a literacia em saúde -, assim como discutir de que forma tais evidências podem contribuir para uma melhor compreensão sobre os limites e os desafios relacionados ao uso de Inteligência Artificial (IA) para a construção do conhecimento acadêmico. Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, baseado em consultas ao ChatGPT, a partir de cinco perguntas disparadoras, feitas em sequência, nas línguas portuguesa (Brasil) e inglesa, com níveis de complexidade linguística crescentes. A análise dos resultados evidenciou uma ampla perspectiva para o uso de tecnologias baseadas em IA, como o ChatGPT, uma ferramenta disponibilizada de forma ampla e irrestrita, com uma interface intuitiva e simples, que se mostrou capaz de gerar textos coerentes, estruturados, em linguagem natural. Considerando o fenômeno do produtivismo acadêmico, associado a uma tendência crescente de má conduta profissional, sobretudo o plágio, coloca-se necessidade de um olhar ainda mais cuidadoso sobre o processo de produção e divulgação do conhecimento científico mediado por tecnologias de IA.

Palavras-chave:
Letramento em saúde; Inteligência Artificial; Comunicação acadêmica; Ética na publicação científica

Introdução

A literacia em saúde é um conceito que vem sendo utilizado, de forma crescente e ampla, desde os anos 1990 para definir a capacidade dos indivíduos em buscar, compreender, avaliar e dar sentido a informações, visando ao cuidado de sua própria saúde ou de terceiros11 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.. Engloba um amplo conjunto de habilidades e competências multidimensionais que vão desde as habilidades de leitura e escrita, necessárias à compreensão de informações sobre saúde, até a consciência do papel cidadão que cada indivíduo exerce para a garantia da saúde coletiva22 Zarcadoolas C, Pleasant A, Greer DS. Understanding health literacy: an expanded model. Health Prom Int 2005; 20(2):195-203.,33 Pleasant A, Kuruvilla S. A tale of two health literacies: public health and clinical approaches to health literacy. Health Promo Int 2008; 23(2):152-159..

Estudos sobre a literacia em saúde de indivíduos e grupos, ao redor do planeta, têm demostrado que quanto mais desenvolvidas forem as habilidades e competências associadas à literacia em saúde, em uma determinada população, melhores são os resultados de saúde observados, individual e coletivamente11 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.,44 Okan O. From Saranac Lake to Shanghai: A brief history of health literacy. In: Okan O, Bauer U, Levin-Zamir D, Pinheiro P, Sørensen K, organizers. International handbook of health literacy. Bristol: Policy Press; 2019. p. 21-38.. O oposto também é destacado nestes estudos, evidenciando situações onde indivíduos e grupos com uma literacia em saúde menos desenvolvida estão mais sujeitos ao manejo inadequado de condições crônicas de saúde, utilizam mais frequentemente os serviços de emergência médica e tendem a apresentar maiores dificuldades de aderir a tratamentos medicamentosos55 International Union for Health Promotion and Education (IUHPE). Position statement on health literacy: a practical vision for a health literate world. IUHPE Global Working Group on Health Literacy. Paris: IUHPE; 2018..

Embora amplamente utilizado, nas esferas acadêmicas e de governos - nos Estados Unidos, no Canadá e em diversos países da Europa Ocidental, incluindo Portugal -, o conceito de literacia em saúde ainda é incipientemente trabalhado no Brasil, tendo como foco principal os estudos sobre linguagem e compreensão de informações sobre saúde, ou seja, aqueles circunscritos ao seu domínio fundamental66 Peres F. Alfabetização, letramento ou literacia em saúde? Traduzindo e aplicando o conceito de health literacy no Brasil. Cien Saude Colet 2023; 28(5):1563-1573.. Igualmente, ainda não está no cerne de políticas públicas de saúde, sobretudo como elemento estratégico para a promoção da saúde, individual e coletivamente11 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021..

Apesar de sua incipiência, como objeto de estudo no país, o aumento do interesse acadêmico sobre a literacia em saúde vem contribuindo para o desenvolvimento de saberes e práticas sobre os diversos aspectos que influenciam o processo de significação de informações sobre saúde. Sobretudo nos tempos atuais, fortemente marcados por uma pandemia que se desenrola em um contexto de informações sobreabundantes, amplamente acessíveis e facilmente disseminadas, que nem sempre se encontram providas de fundamentação teórica ou, mesmo, de veracidade - um contexto ao qual muitos autores se referem como infodemia77 Zarocostas J. How to fight an infodemic. Lancet 2020; 395(10225):676.,88 Harper T, Tomkinson S, Attwell K. Communication Is Not a Virus: COVID-19 Vaccine-Critical Activity on Facebook and Implications for the 'Infodemic' Concept. J Health Commun 2022; 27(8):563-573.. Tempos que, igualmente, são marcados pelo amplo acesso às tecnologias da informação e da comunicação, sobretudo em dispositivos móveis99 Nunes C, Marta B, Marino P. Promoção da Literacia em Saúde através dos media. Literacia em saúde na prática. In: Lopes C, Almeida CV, coordenadores. Literacia em saúde na prática. Lisboa: Edições ISPA; 2019. p. 97-117.

10 Van Kessel R, Wong BLH, Clemens T, Brand H. Digital health literacy as a super determinant of health: More than simply the sum of its parts. Internet Interv 2022; 27:e100500.
-1111 Yang K, Hu Y, Qi H. Digital Health Literacy: Bibliometric Analysis. J Med Internet Res 2022; 24(7):e35816., e pela rápida evolução de tecnologias ainda mais avançadas, como aquelas que utilizam a Inteligência Artificial (IA) aplicada a situações do cotidiano das pessoas1212 Tatnall A, Davey B, editors. Reflections on the History of Computers in Education: Early Use of Computers and Teaching about Computing in Schools. New York: Springer; 2014.,1313 Kibria MG, Nguyen K, Villardi GP, Zhao O, Ishizu K, Kojima F. Big data analytics, machine learning, and artificial intelligence in next-generation wireless networks. IEEE Access 2018; 6:32328..

No segundo semestre de 2022, as editorias de ciência e tecnologia dos principais veículos de comunicação, ao redor do planeta, deram amplo destaque ao lançamento de uma ferramenta de Inteligência Artificial chamada ChatGPT, desenvolvida pela empresa de tecnologia norte-americana OpenAI1414 OpenAI. ChatGPT - versão 30 jan 2023 [Internet]. [acessado 2023 fev 14]. Disponível em: http://openai.com/blog/chatgpt/.
http://openai.com/blog/chatgpt...
, fundada em 2015 no Vale do Silício, Califórnia. Trata-se de uma ferramenta que usa Inteligência Artificial (IA) para o desenvolvimento de textos próximos à linguagem natural, em resposta a perguntas ou consultas disparadoras. A ferramenta funciona através da análise de padrões de grandes conjuntos de dados (big data) de linguagem natural, utilizando IA para produzir respostas elaboradas, e “originais”, às consultas e perguntas inseridas em uma página com a estrutura de um chat.

Para além da tecnologia em si, este lançamento trouxe ao debate, sobretudo na comunidade acadêmica, as implicações éticas do uso de IA para a produção do conhecimento e a autoria de trabalhos acadêmicos1515 Thorp HH. ChatGPT is fun, but not an author. Science 2023; 379(6630):313., inclusive no campo da saúde1616 Liebrenz M, Schleifer R, Buadze A, Bhugra D, Smith A. Generating scholarly content with ChatGPT: ethical challenges for medical publishing. Lancet Digit Health 2023; 5(3):e105-e106., sobrepondo mais uma camada de complexidade ao já imbricado contexto de produção e significação de informações sobre saúde em tempos de infodemia e baixa literacia em saúde.

O presente estudo buscou conhecer, em caráter exploratório e preliminar, as características principais das respostas geradas pela ferramenta ChatGPT a consultas sobre um tema emergente em língua portuguesa - a literacia em saúde -, assim como discutir de que forma tais evidências podem contribuir para uma melhor compreensão sobre os limites e os desafios relacionados ao uso da Inteligência Artificial (IA) para a construção do conhecimento acadêmico.

Metodologia

Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, baseado em consultas à ferramenta ChatGPT1414 OpenAI. ChatGPT - versão 30 jan 2023 [Internet]. [acessado 2023 fev 14]. Disponível em: http://openai.com/blog/chatgpt/.
http://openai.com/blog/chatgpt...
, sobre tema ainda considerado emergente em língua portuguesa: a literacia em saúde.

As consultas foram feitas em 13 de fevereiro de 2023, utilizando-se a versão da plataforma atualizada em 30 de janeiro de 2023 (GPT 3), e disponibilizada para pesquisa de forma gratuita. Foram definidas cinco perguntas disparadoras, feitas em sequência, nas línguas portuguesa (Brasil) e inglesa, com níveis de complexidade linguística crescentes:

  • Pergunta 1: Explique o conceito de literacia em saúde

  • Pergunta 2: Quais são as origens do conceito de literacia em saúde

  • Pergunta 3: Quais são os principais desafios para melhorar a literacia em saúde das pessoas?

  • Pergunta 4: Você pode descrever a importância da literacia em saúde para indivíduos, sistemas de saúde e instituições?

  • Pergunta 5: Em um mundo pós-pandêmico, quais são as perspectivas para aprimorar políticas públicas orientadas pela literacia em saúde?

Em seguida, realizou-se outra consulta utilizando-se as mesmas cinco perguntas disparadoras traduzidas para o inglês, uma vez que a maioria da produção acadêmica sobre o tema está disponibilizada nesta língua, e pelo fato de ser este material acadêmico o principal substrato para o desenvolvimento dos algoritmos usados pelo ChatGPT. Por fim, repetiu-se a consulta substituindo o termo “literacia em saúde” por “alfabetização em saúde” e por “letramento em saúde”, considerando a diversidade de registros do conceito traduzido de health literacy para o português brasileiro, conforme descrito em estudo recente66 Peres F. Alfabetização, letramento ou literacia em saúde? Traduzindo e aplicando o conceito de health literacy no Brasil. Cien Saude Colet 2023; 28(5):1563-1573..

As respostas foram compiladas na íntegra e, em seguida, foram submetidas à análise do software de detecção de plágio Turnitin, para verificação da originalidade do texto gerado pela ferramenta. Em seguida, as respostas foram analisadas através de técnica de análise de conteúdo1717 Miller T. Explanation in artificial intelligence: Insights from the social sciences. Artificial Intelligence 2019; 267:1-38., estruturada em quatro etapas subsequentes: organização da análise, codificação, categorização e inferências.

A organização da análise incluiu o planejamento e as estratégias para o levantamento de dados, assim como exploração do material coletado (leitura flutuante dos dois conjuntos de dados, em português e inglês). Na etapa seguinte, o material foi codificado e categorizado, a partir dos tópicos identificados nas respostas fornecidas pela ferramenta. Por fim, passou-se às inferências e à identificação dos elementos constitutivos, presentes em cada resposta gerada pela ferramenta ChatGPT. Nessa etapa, os resultados foram comparados quanto à abrangência das respostas geradas em cada língua, quanto às características e elementos constitutivos presentes nos resultados gerados a partir do uso de cada um dos termos (literacia/alfabetização/letramento) empregados no país e quanto às aproximações entre as respostas formuladas pela ferramenta e a literatura de referência sobre literacia em saúde, no Brasil, revisada em estudo recente66 Peres F. Alfabetização, letramento ou literacia em saúde? Traduzindo e aplicando o conceito de health literacy no Brasil. Cien Saude Colet 2023; 28(5):1563-1573..

Resultados

A análise dos resultados obtidos a partir das consultas realizadas na ferramenta ChatGPT sobre o tema literacia em saúde evidenciou o avanço das tecnologias de IA para a elaboração de textos acadêmicos, construídos com elementos de linguagem muito próximos ao natural e refletindo com bastante coerência e atualidade o estado da arte da literatura de referência.

Com relação à originalidade do texto gerado pelo ChatGPT, o relatório de análise pelo software Turnitin identificou, de uma forma geral, um índice de 20% de similaridades. Porém, quando analisadas tais similaridades, foi possível observar que se tratam de trechos curtos (não mais que cinco ou seis palavras em sequência), incluindo repetições, tais como: a) o registro por extenso de órgãos como o DHHS (U.S. Department of Health and Human Services); b) trechos de definições de literacia em saúde comumente repetidos (e.g. “compreender informações básicas de saúde e serviços necessários para tomar decisões”); c) principais aplicações da literacia em saúde (e.g. “ajudar a melhorar a qualidade de vida das pessoas”); e d) registros dos conceitos (“literacia em saúde”, “letramento em saúde”, “alfabetização em saúde”). Nenhuma frase ou parágrafo inteiro similar foi identificado pelo software e, com base no acima exposto, foi possível considerar a resposta gerada pela ferramenta como um texto “original”, com similaridades que seriam aceitáveis em um texto autoral, efetivamente original, e consubstanciado por literatura de referência.

Em resposta à Pergunta 1 (explique o conceito de literacia em saúde), o ChatGPT gerou um texto estruturado, com coerência (linguística e com a literatura de referência), porém com abrangência limitada em relação à multidimensionalidade do conceito, além de trazer repetições de elementos centrais em cada uma das frases do curto parágrafo (Quadro 1). Os principais elementos constitutivos identificados na resposta foram: a) a literacia em saúde enquanto capacidade individual; b) a literacia em saúde circunscrita ao domínio fundamental (domínio da linguagem); c) a literacia em saúde enquanto capacidade para o cuidado da saúde; d) a literacia em saúde enquanto capacidade para cuidados médicos; e) a literacia em saúde enquanto capacidade para tomada de decisões informadas; e f) a literacia em saúde enquanto capacidade para navegar no sistema de saúde.

Quadro 1
Respostas geradas pelo ChatGPT à Pergunta 1, em português e inglês, com os respectivos elementos constitutivos identificados em cada resposta.

Quando comparada à resposta formulada a partir da mesma pergunta, em língua inglesa (explain the concept of health literacy), observa-se a presença de outros elementos constitutivos (Quadro 1): a) a literacia em saúde enquanto capacidade individual; b) a literacia em saúde enquanto capacidade para o cuidado da saúde; c) a literacia em saúde enquanto capacidade para cuidados médicos; d) a literacia em saúde enquanto capacidade para tomada de decisões informadas; e) a literacia em saúde enquanto capacidade para navegar no sistema de saúde; f) a literacia em saúde enquanto capacidade de pensamento crítico (critical thinking); e g) a literacia em saúde enquanto capacidade de compreensão de conceitos básicos e terminologia em saúde (understanding of basic health concepts and terminology).

Já quando comparado à resposta obtida a partir da mesma Pergunta 1, substituindo o termo “literacia em saúde” por “alfabetização em saúde”, observa-se uma resposta mais completa e detalhada, com a presença dos seguintes elementos constitutivos (Quadro 1): a) a literacia em saúde enquanto capacidade individual; b) a literacia em saúde enquanto capacidade para o cuidado da saúde; c) a literacia em saúde enquanto capacidade para cuidados médicos; d) a literacia em saúde enquanto capacidade para tomada de decisões informadas; e) a literacia em saúde enquanto capacidade para navegar no sistema de saúde; f) a literacia em saúde como um processo de aquisição de conhecimentos, habilidades e competências; g) a literacia em saúde como capacidade de prevenção de doenças; h) a literacia em saúde como capacidade para avaliar informações de saúde, apresentadas em diversas formas; e i) a literacia em saúde enquanto capacidade de envolver as pessoas no gerenciamento de sua própria saúde e bem-estar.

Ainda em relação à Pergunta 1, quando formulada substituindo o termo “literacia em saúde” por “letramento em saúde”, a ferramenta ChatGPT gera uma resposta similar à primeira (com o uso do termo “literacia em saúde”, em português) e menos abrangente que a anterior, incluindo os seguintes elementos constitutivos (Quadro 1): a) a literacia em saúde enquanto capacidade para o cuidado da saúde; b) a literacia em saúde enquanto capacidade para cuidados médicos; c) a literacia em saúde enquanto capacidade para tomada de decisões informadas; d) a literacia em saúde enquanto capacidade para navegar no sistema de saúde; e) a literacia em saúde enquanto capacidade de levar às pessoas a assumirem um papel ativo em sua própria saúde; e f) a literacia em saúde para melhorar os resultados de saúde em nível individual e coletivo.

O Quadro 1 apresenta as respostas geradas pelo ChatGPT para a Pergunta 1, utilizando-se os três termos (literacia, alfabetização e letramento em saúde) em português, bem como a pergunta em língua inglesa, com os respectivos elementos constitutivos identificados em cada uma dessas respostas.

Com relação à Pergunta 2 (quais são as origens do conceito de literacia em saúde), o Chat­GPT gerou respostas semelhantes, localizando o início dos estudos sobre literacia em saúde nos anos 1970 e dando destaque ao movimento crescente dos conhecimentos e práticas sobre o tema a partir dos anos 1990, quando passa a estar associado a estratégias educativas em saúde (Quadro 2). Os principais aspectos constitutivos dessas respostas geradas pela ferramenta foram: a) a literacia em saúde enquanto capacidade para o cuidado da saúde; b) a literacia em saúde enquanto capacidade para cuidados médicos; c) a literacia em saúde enquanto capacidade para tomada de decisões informadas; e d) a literacia em saúde enquanto elemento-chave para a promoção da saúde.

Quadro 2
Respostas geradas pelo ChatGPT à Pergunta 2, em português e inglês, com os respectivos elementos constitutivos identificados em cada resposta.

Algumas divergências são observadas nas respostas geradas para consultas utilizando as três formas de denominar o conceito em língua portuguesa (literacia, alfabetização e letramento em saúde) e inglesa. Quando se utilizou o termo “literacia em saúde”, a ferramenta não destacou qualquer evolução do conceito, a partir dos anos 1990. Já quando se utilizou o termo “alfabetização em saúde”, a ferramenta menciona o desenvolvimento do conceito, a partir dos anos 1990, colocando como referência uma iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS). E quando se utilizou o termo “letramento em saúde”, o ChatGPT também identificou uma evolução conceitual a partir dos anos 1990, mas colocando como marco o próprio desenvolvimento do conceito de letramento. Por fim, para a mesma pergunta, formulada em língua inglesa (what are the origins of the health literacy concept), a ferramenta registrou a evolução conceitual nos anos 1990, mas atribuiu como referência um documento do Department of Health and Human Services (DHHS, equivalente ao Ministério da Saúde) dos Estados Unidos.

O Quadro 2 apresenta as respostas geradas pelo ChatGPT para a Pergunta 2, utilizando-se os três termos (literacia, alfabetização e letramento em saúde) em português, bem como a pergunta em língua inglesa, com os respectivos elementos constitutivos identificados em cada uma dessas respostas.

Na Pergunta 3 (você pode descrever a importância da literacia em saúde para indivíduos, sistemas de saúde e instituições?), aumentou-se o grau de complexidade ao solicitar uma resposta que considere três níveis distintos (individual, dos sistemas de saúde e institucional). E obteve-se respostas segmentadas nesses três níveis. Para o nível individual, as respostas em português (utilizando os três termos para referir a literacia em saúde) e em inglês convergiram para destacar três pontos principais: a) o aumento da capacidade individual para tomar decisões informadas sobre saúde e cuidados médicos; b) a melhor compreensão e uso de informações de saúde e serviços de saúde; e c) a capacidade de melhorar a saúde e o bem-estar geral (Quadro 3).

Quadro 3
Respostas geradas pelo ChatGPT à Pergunta 3, em português e inglês, com respectivos elementos para os níveis individual, dos sistemas de saúde e institucional.

Já para o nível dos sistemas de saúde, também se observou uma convergência das respostas para as três consultas em português, em dois pontos: a) a melhora dos serviços; e b) a diminuição de custos. Quando formulada em inglês (can you describe the importance of health literacy to individuals, health systems and institutions?), gerou uma resposta mais abrangente que, além dos dois pontos acima destacados, incluiu: a) maior aderência ao tratamento (por parte dos pacientes); e b) redução das disparidades em saúde/promoção da equidade (Quadro 3).

E no que tange às instituições, observou-se uma convergência de respostas para as três consultas em português (literacia, alfabetização e letramento em saúde) e para a consulta em inglês, em três pontos: a) promoção da equidade em saúde e redução das disparidades entre grupos sociais e culturais; b) melhora a eficácia dos programas de saúde e serviços; e c) melhora a qualidade geral do cuidado de saúde. O Quadro 3 apresenta as respostas geradas pelo ChatGPT para a Pergunta 3, utilizando-se os três termos (literacia, alfabetização e letramento em saúde) em português, bem como a pergunta em língua inglesa, com os respectivos elementos constitutivos identificados em cada uma dessas respostas.

Por fim, foram analisadas as respostas às Perguntas 4 e 5, ambas elaboradas com maior grau de complexidade, pois demandam a identificação de desafios à promoção da literacia em saúde (Pergunta 4) e da contribuição dos estudos sobre o tema para as políticas de saúde em um contexto pós-pandêmico (Pergunta 5). No que tange os desafios para a promoção da literacia em saúde, as respostas geradas pelo ChatGPT às consultas realizadas em português (literacia, alfabetização e letramento em saúde) e em língua inglesa convergiram para os seguintes pontos: a) barreiras linguísticas e culturais; b) acesso limitado às informações de saúde; c) sobrecarga/excesso de informações; d) complexidade das informações/linguagem; e) limitações cognitivas ou de alfabetização; f) disparidades socioeconômicas; e g) falta de confiança no sistema de saúde.

Embora as consultas à ferramenta, referentes à Pergunta 4, tenham se limitado a solicitar a identificação dos desafios, todas as respostas (as três em língua portuguesa e uma em língua inglesa) trouxeram, também, sugestões/recomendações para a superação de tais desafios, que incluíram: a) apresentar/elaborar informações claras, com uso de linguagem simples; b) garantir o amplo acesso a informações de qualidade; c) considerar as diferenças culturais e socioeconômicas entre indivíduos e grupos; e d) treinar/educar profissionais de saúde e pacientes para uma melhor comunicação em saúde. A Figura 1 sistematiza os principais desafios mencionados nas respostas do ChatGPT e os correlaciona com as sugestões que foram incluídas ao final de cada resposta.

Figura 1
Principais desafios para a promoção da literacia em saúde apontados pela ferramenta ChatGPT, com as estratégias de superação igualmente identificadas.

A Pergunta 5, por sua vez, demandou a identificação das principais perspectivas para aprimorar políticas públicas orientadas pela literacia (alfabetização/letramento) em saúde, no contexto pós-pandêmico. Houve alguns pontos de convergência entre as respostas do ChatGPT e questões divergentes associadas a cada uma das consultas (em português, com os descritores literacia, alfabetização e letramento em saúde, e em língua inglesa). Em relação aos pontos de convergência identificados em todas as consultas, encontram-se: a) necessidade de um maior investimento em programas educacionais orientados pela literacia em saúde; b) necessidade de aprimorar programas e políticas de comunicação em saúde; c) necessidade de adequar culturalmente as políticas públicas de saúde, considerando as necessidades de indivíduos e grupos diversos; e d) necessidade de engajamento da comunidade em torno dos processos de formulação de políticas.

Quando formulada com o uso do termo “literacia em saúde”, o ChatGPT também identificou a necessidade de promoção de tecnologias da informação e comunicação, no âmbito das políticas de saúde. Já substituindo o termo por “alfabetização em saúde”, registrou-se também a necessidade de maiores investimentos em tecnologias, bem como a necessidade de ampliação do entendimento de saúde, permitindo a consideração de aspectos sociais e ambientais no escopo das políticas públicas. E com a substituição do termo “literacia em saúde” por “letramento em saúde”, foi identificada também a necessidade de promoção de literacia em saúde junto a grupos tradicionalmente vulnerabilizados, identificados por questões étnicas, raciais e de gênero.

Por fim, quando formulada em língua inglesa (in a post pandemic world, what are the perspectives for improving health literacy oriented public health policies?), além dos pontos de convergência, anteriormente identificados, o ChatGPT registrou a necessidade de se promover a literacia em saúde digital e enfrentar as disparidades em saúde. A Figura 2 sistematiza os pontos de convergência e divergência entre as respostas fornecidas pelo ChatGPT para as consultas referentes à Pergunta 5.

Figura 2
Divergências e convergências nas perspectivas identificadas pelo ChatGPT para aprimorar políticas públicas orientadas pela literacia em saúde, no contexto pós-pandêmico.

Discussão

A análise dos resultados obtidos através de consultas à ferramenta ChatGPT sobre o tema literacia em saúde evidenciou uma ampla perspectiva para o uso de tecnologias baseadas em Inteligência Artificial (IA) para a elaboração de textos acadêmicos, em particular aqueles relacionados a temas emergentes, como a literacia em saúde no Brasil. Como chave de análise, os resultados serão aqui discutidos sob três perspectivas: a tecnológica, a acadêmica, e a ética.

No que diz respeito à perspectiva tecnológica, o anúncio de criação e a ampla disponibilização da ferramenta ChatGPT para testes, no final de 2022, representaram um marco de referência no processo de incorporação de tecnologias na produção acadêmica, da mesma forma como o Google representou um salto na forma como os indivíduos passaram a buscar informações sobre os mais variados temas, inclusive na academia1212 Tatnall A, Davey B, editors. Reflections on the History of Computers in Education: Early Use of Computers and Teaching about Computing in Schools. New York: Springer; 2014.. Com interface amigável (formato de chat), de fácil navegação e disponibilizada de forma ampla e irrestrita (basta fornecer um endereço de e-mail no site do desenvolvedor), o ChatGPT apresenta o potencial de se tornar mais uma ferramenta tecnológica a ser globalmente incorporada ao ambiente acadêmico. Mesmo com o risco de representar, pela natureza e sofisticação tecnológica incorporada, um atalho eticamente condenável ao processo de construção e divulgação do conhecimento acadêmico1515 Thorp HH. ChatGPT is fun, but not an author. Science 2023; 379(6630):313., como se discutirá adiante.

Se, por um lado, as ferramentas tecnológicas que utilizam IA para analisar grandes volumes de dados (big data) e elaborar projeções ou tendências vêm sendo amplamente incorporadas pela academia, e reconhecidas como estratégicas para a construção do conhecimento científico1717 Miller T. Explanation in artificial intelligence: Insights from the social sciences. Artificial Intelligence 2019; 267:1-38.,1818 Aggarwal K, Mijwil MM, Al-Mistarehi AH, Alomari S, Gök M, Alaabdin AMZ, Abdulrhman SH. Has the future started? The current growth of artificial intelligence, machine learning, and deep learning. Iraqi J Computer Sci Math 2022; 3(1):115-123., inclusive no campo da saúde1919 Yu KH, Beam AL, Kohane IS. Artificial intelligence in healthcare. Nature Biomed Engineering 2018; 2(10):719-731.,2020 Chen M, Decary M. Artificial intelligence in healthcare: An essential guide for health leaders. Healthcare Manage Forum 2020; (1):10-18., quando se trata do uso de IA para gerar textos, imagens e gráficos “originais”, a serem utilizados em publicações científicas, coloca-se no horizonte uma série de questionamentos sobre a integridade do conhecimento gerado, seja do ponto de vista da confiabilidade das respostas geradas por ferramentas de IA, seja pela ética autoral.

Embora o uso de IA para a geração de textos em “linguagem natural” não seja uma descoberta recente, nem o ChatGPT seja a primeira ferramenta a oferecê-lo à comunidade acadêmica2121 Paris CL, Swartout WR, Mann WC, editors. Natural language generation in artificial intelligence and computational linguistics. Vol. 119. New York: Springer Science & Business Media; 2013.,2222 Baclic O, Tunis M, Young K, Doan C, Swerdfeger H, Schonfeld J. Artificial intelligence in public health: Challenges and opportunities for public health made possible by advances in natural language processing. Canada Communicable Disease Report 2020; 46(6):161., sua rápida e abrangente disponibilização, com utilização crescente ao redor do planeta, coloca a necessidade de avaliarmos o potencial de incorporação da ferramenta no cotidiano de universidades, institutos de pesquisa, escolas e instituições formadoras, seja por alunos, professores, pesquisadores ou divulgadores do conhecimento2323 Pavlik J. Collaborating with ChatGPT: Considering the Implications of Generative Artificial Intelligence for Journalism and Media Education. J Mass Commun Educ 2023; 78(1):e10776958221149577..

A análise dos resultados mostrou o avanço tecnológico da ferramenta que, em resposta a cinco perguntas orientadoras, gerou um texto coeso, coerente com o estado da arte da produção acadêmica, com estrutura e forma, que poderia muito bem ser o produto de um trabalho acadêmico num ambiente de graduação ou pós-graduação. Mesmo apresentando algumas informações já superadas pela evolução do conhecimento sobre o tema, ou mesmo inconsistências, como a localização da origem do conceito de literacia em saúde (e suas variações, em línguas inglesa e portuguesa) nos anos 1970, e não nos anos 1990, quando de fato o termo é cunhado e passa a ser objeto de conhecimentos e práticas em países como os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália11 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.. Ao localizarem as origens do conceito à década de 1970, os algoritmos da ferramenta são influenciados pelo grande volume de estudos sobre literacia ou alfabetização funcional (ou seja, a capacidade dos indivíduos em adquirir e desenvolver a linguagem, escrita ou falada). Inclusive os estudos com repercussões no campo da Saúde, a partir da emergência das discussões sobre a Promoção da Saúde e do movimento de consolidação da medicina social, que resultaram na Conferência de Alma-Ata (1978) e, posteriormente, na Carta de Ottawa (1986)2424 Heidmann IT, Almeida MCPD, Boehs AE, Wosny ADM, Monticelli M. Promoção à saúde: trajetória histórica de suas concepções. Texto Contexto Enferm 2006; 15(2):352-358..

Nota-se, portanto, que a ferramenta foi influenciada pelo grande volume de informações publicadas sobre este contexto histórico, que influenciou fortemente o campo da Saúde Pública. A influência dos grandes volumes de dados (big data) interferindo na acuidade das respostas geradas pelo ChatGPT também pode ser observada na abrangência de fatores associados ao conceito em língua inglesa (health literacy) e a forma de registro “alfabetização em saúde”, em substituição a “literacia em saúde” ou “letramento em saúde”. Já era esperado, e foi antecipado pelo desenho metodológico do presente estudo, que as respostas geradas a partir de perguntas orientadoras em língua inglesa fossem mais abrangentes e completas, uma vez que é nessa língua que se registra a maioria da produção acadêmica (e não acadêmica) sobre a literacia em saúde.

Porém, a ferramenta acabou, também, por gerar respostas mais completas e abrangentes às perguntas orientadoras feitas em língua portuguesa, com o uso do termo “alfabetização em saúde”. Tal ocorrência representa uma inconsistência conceitual, já que o primeiro registro (alfabetização em saúde) é considerado mais limitado e já superado na literatura acadêmica lusófona11 Peres F, Rodrigues KM, Silva TS. Literacia em saúde. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021.,99 Nunes C, Marta B, Marino P. Promoção da Literacia em Saúde através dos media. Literacia em saúde na prática. In: Lopes C, Almeida CV, coordenadores. Literacia em saúde na prática. Lisboa: Edições ISPA; 2019. p. 97-117., que prioriza as formas de registro “literacia em saúde” (principalmente em Portugal) e “letramento em saúde” (principalmente no Brasil, sendo a única forma registrada no DeCS)66 Peres F. Alfabetização, letramento ou literacia em saúde? Traduzindo e aplicando o conceito de health literacy no Brasil. Cien Saude Colet 2023; 28(5):1563-1573.. Alguns autores apontam para este fenômeno como um viés que privilegia o quantitativo em detrimento do qualitativo, num ambiente onde algoritmos são treinados a partir de números de ocorrências e de tendências observadas nas bases de conhecimento disponíveis1313 Kibria MG, Nguyen K, Villardi GP, Zhao O, Ishizu K, Kojima F. Big data analytics, machine learning, and artificial intelligence in next-generation wireless networks. IEEE Access 2018; 6:32328.,2020 Chen M, Decary M. Artificial intelligence in healthcare: An essential guide for health leaders. Healthcare Manage Forum 2020; (1):10-18.,2222 Baclic O, Tunis M, Young K, Doan C, Swerdfeger H, Schonfeld J. Artificial intelligence in public health: Challenges and opportunities for public health made possible by advances in natural language processing. Canada Communicable Disease Report 2020; 46(6):161..

Ainda pela perspectiva tecnológica, cabe registro positivo ao fato de a ferramenta ter gerado, em resposta à Pergunta 3 (quais são os principais desafios para melhorar a literacia em saúde das pessoas?), não apenas uma lista de desafios à promoção da literacia em saúde dos indivíduos como alguns caminhos para superá-los. Algo que alguns autores vêm apontando como o processo de “aprendizagem” dos algoritmos usados por ferramentas de IA para a construção de textos em linguagem natural1717 Miller T. Explanation in artificial intelligence: Insights from the social sciences. Artificial Intelligence 2019; 267:1-38.,1818 Aggarwal K, Mijwil MM, Al-Mistarehi AH, Alomari S, Gök M, Alaabdin AMZ, Abdulrhman SH. Has the future started? The current growth of artificial intelligence, machine learning, and deep learning. Iraqi J Computer Sci Math 2022; 3(1):115-123.,2121 Paris CL, Swartout WR, Mann WC, editors. Natural language generation in artificial intelligence and computational linguistics. Vol. 119. New York: Springer Science & Business Media; 2013..

Já no que tange à perspectiva acadêmica, é importante destacar o enorme potencial de uso da ferramenta ChatGPT por alunos, professores e pesquisadores, cada vez mais pressionados a publicar os resultados de seus estudos. Sobre a questão, diversos autores vêm chamando a atenção para os riscos do chamado “produtivismo acadêmico”, fenômeno associado à necessidade do cumprimento de metas quantitativas, cada vez mais rigorosas, de produção acadêmica, gerando indicadores de avaliação que determinam, por exemplo, o acesso a financiamentos, a progressão de carreira, o credenciamento em programas de pós-graduação e a obtenção de um título, entre outros aspectos2525 Teixeira TSC, Marqueze EC, Moreno CRC. Produtivismo acadêmico: quando a demanda supera o tempo de trabalho. Rev Saude Publica 2020; 54:117.,2626 Vieira JDA, Castaman AS, Junges Júnior ML. Produtivismo acadêmico: representação da universidade como espaço de reprodução social. Avaliação (Campinas) 2021; 26:253-269..

Nesse contexto de métrica da produção acadêmica, conjugado à pressão por publicar, “atalhos” são apresentados cotidianamente aos distintos atores do mundo acadêmico que, tomando por base valores éticos e morais, passam a ter que considerar as implicações do uso de tais facilidades na integridade de seu trabalho e de sua carreira. Boa parte desses atalhos constituem má conduta acadêmica, incluindo a falsificação de resultados, a fabricação de dados e o plágio, sendo este último a má conduta mais frequentemente registrada na produção acadêmica2727 Awasthi S. Plagiarism and academic misconduct: A systematic review. DESIDOC 2019; 39(2):94-100., e que vem sendo objeto de crescente atenção e cuidado nos processos de avaliação por pares e publicação de textos acadêmicos2828 Olivia-Dumitrina N, Casanovas M, Capdevila Y. Academic writing and the internet: Cyber-plagiarism amongst university students. J New Approaches Educ Res 2019: 8(2):112-125..

Caracterizar o plágio como uma má conduta não é tarefa difícil. Mesmo um aluno de graduação, iniciante no mundo acadêmico e sem qualquer experiência prévia na redação de um artigo, saberá reconhecer que copiar e utilizar em seu trabalho um texto escrito e previamente publicado por outra pessoa, sem a devida referência, é uma fraude. Porém, quando um experiente aluno de pós-graduação ou professor utiliza ferramentas de IA para gerar textos “originais”, a partir de consultas a ferramentas como o ChatGPT, a concepção de plágio é ressignificada, e demanda um novo olhar sobre a integridade da produção acadêmica.

Segundo H. Holden Thorp, editor-chefe do grupo Science, são bastante preocupantes os potenciais efeitos do ChatGPT na redação de artigos científicos. Em editorial publicado na revista Science - uma das mais prestigiosas do mundo acadêmico - em janeiro de 2023, revela que, em estudo recente, resumos criados pelo ChatGPT foram submetidos a um seleto e experiente grupo de revisores acadêmicos, os quais detectaram possíveis falsificações em apenas 63% destes1515 Thorp HH. ChatGPT is fun, but not an author. Science 2023; 379(6630):313..

Considerando isso, e em razão das implicações éticas relacionadas à integridade do conhecimento gerado por IA, o grupo de revistas Science atualizou, em janeiro de 2023, sua política editorial, reforçando o entendimento que um texto “original” não contempla qualquer produção gerada (integralmente ou em parte) pelo ChatGPT, afinal, trata-se de plágio do conteúdo de uma ferramenta geradora de textos, baseada no uso de Inteligência Artificial, e não um produto das ideias, reflexões e opiniões dos autores. Para tornar a questão ainda mais inequívoca, esta atualização de política editorial passou a registrar, de forma explícita, que um texto gerado pelo ChatGPT ou qualquer outra ferramenta de IA não pode ser usado em qualquer artigo submetido às revistas do grupo, assim como não são admitidas figuras, imagens ou gráficos gerados a partir de tais ferramentas1515 Thorp HH. ChatGPT is fun, but not an author. Science 2023; 379(6630):313..

Em linha próxima, o grupo editorial Springer Nature, que inclui a igualmente prestigiosa revista Nature, publicou editorial, também em janeiro de 20232929 Nature. Tools such as ChatGPT threaten transparent science; here are our ground rules for their use [Editorial]. Nature 2023; 613(7945):612., afirmando que ferramentas como ChatGPT ameaçam a ciência transparente e, a partir dessa consideração, passariam a definir regras básicas para seu uso, que incluem a impossibilidade de creditar o ChatGPT (ou qualquer ferramenta de geração de textos baseada em IA) como coautor e a obrigatoriedade de incluir, na seção de metodologia ou nos agradecimentos, o uso de tais ferramentas e em que condições.

Espera-se, para os próximos dias e meses, que outros grupos editoriais também atualizem suas políticas editoriais para contemplar os limites de uso de ferramentas como o ChatGPT, razão pela qual entende-se que o debate e as implicações do que aqui é exposto são, ainda, incipientes e preliminares, devendo, também, ser objeto de atualizações e revisão em futuro próximo.

Conclusões

O presente estudo desvelou algumas evidências sobre a potencialidade e as repercussões, nem sempre positivas, do uso de ferramentas de Inteligência Artificial (IA) para a elaboração de textos acadêmicos, a partir de uma análise das respostas geradas pela ferramenta ChatGPT a consultas sobre tema ainda emergente na literatura de referência em língua portuguesa: a literacia em saúde. Primeiramente, e sob a perspectiva tecnológica, o estudo evidenciou que as ferramentas de geração de textos em linguagem natural baseadas em IA encontram-se bastante desenvolvidas e o ChatGPT, ao oferecer acesso irrestrito a estas tecnologias (mesmo que a título de teste de prova) com uma interface intuitiva e simples, habilita-se como ferramenta com potencial de grande difusão e uso no ambiente acadêmico. Sobretudo quando se considera a forte pressão exercida pela necessidade de cumprimento de metas de produção acadêmica cada vez mais rigorosas, as quais acabam tutelando a atuação de professores, pesquisadores e alunos.

Nesse sentido, e sob uma perspectiva acadêmica, o chamado produtivismo no meio acadêmico acaba por levar a um quantitativo cada vez maior de produtores e divulgadores do conhecimento a buscarem atalhos ou facilidades que lhes permitam cumprir as metas de produção acadêmica, dentre as quais as publicações em revistas indexadas estão entre as mais bem valoradas. Assim, associa-se o fenômeno do produtivismo acadêmico a uma tendência crescente de má conduta profissional, sobretudo no que diz respeito ao plágio. Em um ambiente fortemente mediado por tecnologias, incluindo as grandes bases de dados de acesso irrestrito existentes na Internet, cada vez mais o processo de produção e publicação de textos acadêmicos está sujeito a fraudes, o que leva os grupos editoriais e instituições acadêmicas a adotarem medidas rigorosas para identificar e coibir má condutas como o plágio, a falsificação e a fabricação de dados, entre outras.

A novidade que aqui se apresenta, a partir dos resultados do presente estudo, é a discussão, também sob a perspectiva ética, do fato de as ferramentas geradoras de texto em linguagem natural, como o ChatGPT, produzirem textos “originais” a partir da análise de grandes volumes de informação por algoritmos treinados por IA. Os resultados mostram que, mesmo para um tema ainda emergente na literatura de referência em língua portuguesa - a literacia em saúde -, foi possível gerar textos coerentes e estruturados, a partir de consultas simples, baseadas em cinco perguntas orientadoras. Também evidenciam a necessidade de um olhar ainda mais cuidadoso sobre o processo de produção e a divulgação do conhecimento científico, em todo o planeta. E, por fim, suscitam a necessidade de avançarmos no desenvolvimento de habilidades e competências para melhor compreender a racionalidade, os limites e as implicações éticas imbricadas no processo de produção e divulgação do conhecimento acadêmico.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jan 2024

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2023
  • Aceito
    15 Mar 2023
  • Publicado
    17 Mar 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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