Os censos em foco: transformações recentes, questões sociopolíticas e inovações metodológicas

César Augusto Marques da Silva Fernando Henrique Ferreira de Oliveira Paula Alves de Almeida Sobre os autores
2024

A realização de censos demográficos é central nos estados modernos. Tendo seu fim relacionado ao conhecimento populacional, censos remetem à importância da governamentalidade para o Estado11 Foucault M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes; 2008. e a modernidade reflexiva22 Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp; 1998.. Nesse campo, a obra The global politics of census taking: quantifying populations, institutional autonomy, innovation, organizada por Walter Bartl, Christian Suter e Alberto VeiraRamos, objetiva analisar os censos da rodada 2020 a partir de um debate transdisciplinar. Como a população e suas categorias são os principais denominadores de políticas públicas, a obra tem relevo na saúde coletiva, já que censos auxilam na compreensão de estados e mudanças populacionais relacionadas ao padrão de saúde e doença. Além disso, inquéritos domiciliares em saúde são centrais no Brasil33 Silva VSTM, Pinto LF. Inquéritos domiciliares nacionais de base populacional em saúde: uma revisão narrativa. Cien Saude Colet 2021; 26(9):4045-4058. e seus desafios são correlatos aos que ocorrem na pesquisa censitária.

Na obra, os censos são um artefato de Estado, que permitem o reconhecimento e a transformação de sua população, (in)visibilizando grupos segundo classificações sociais e constituindo a sociedade que esses ajudam a definir. Contudo, um dos seus limites é que são tratados de forma relativamente isolada: a discussão mais ampla sobre seu papel em sistemas nacionais de estatística e dados não é contemplada. Assim como os censos, demais pesquisas domiciliares e registros administrativos, quando usados em conjunto, permitem a compreensão de panoramas sociais detalhados e longitudinais, como feito para a análise de determinantes sociais da saúde44 Barreto ML, Ichihara MY, Pescarini JM, Ali MS, Borges GL, Fiaccone RL, Ribeiro-Silva RC, Teles CA, Almeida D, Sena S, Carreiro RP, Cabral L, Almeida BA, Barbosa GCG, Pita R, Barreto ME, Mendes AAF, Ramos DO, Brickley EB, Bispo N, Machado DB, Paixao ES, Rodrigues LC, Smeeth L. Cohort profile: the 100 million Brazilian cohort. Int J Epidemiol 2022; 51(2):e27-e38..

Reunindo acadêmicos e técnicos de instituições produtoras de estatística no Sul e Norte global, a produção é estruturada por três questões. A primeira trata das representações coletivas e o (não)uso de categorias étnico-raciais e de afiliação religiosa nos censos. A pergunta é respondida a partir da dinâmica de exclusão e inclusão, em uma política de reconhecimento. A segunda tem como centro a autonomia institucional, incluindo capacidade estatística, a importância da confiança e o tema da interferência política. Já a terceira parte analisa trajetórias de inovações sociomateriais e metodológicas, ressaltando dinâmicas locais e abordagens orientadas pela prática.

Assim, enfatiza-se a importância da política da informação, que dialoga tanto com os esforços internacionais de padronização como com questões locais, com conflitos típicos aos estágios diferenciais do desenvolvimento e da globalização. Dada a rodada 2020, o livro também considera os efeitos da pandemia de COVID-19, incertezas políticas e orçamentárias, o monitoramento da Agenda 2030 e as controvérsias sobre a exclusão de grupos populacionais.

A primeira seção, “A política das categorias étnico-raciais”, aborda o aumento da produção de dados demográficos étnico-raciais na América Latina no século XXI e as formas de representação na Índia. Não fortuita, o uso da categoria na América Latina derivou de lutas políticas, com consequências na produção de subjetividades. No Brasil, desigual em múltiplas dimensões, e com a importância da raça para as condições de saúde e bem-estar55 Coelho R, Campos, G. O campo de estudos sobre saúde da população negra no Brasil: uma revisão sistemática das últimas três décadas. Saude Soc 2024; 33(1):e220754p., o tema é central. A experiência brasileira exemplifica tais trajetórias: inclusão das questões no censo, posterior produção de estudos sobre desigualdades e, então, desenvolvimento de políticas afirmativas. Assim, à medida que programas redistributivos são implementados, controvérsias sobre classificações populacionais crescem e suscitam críticas, como da potencial polarização ou fragmentação da sociedade. A questão indígena também recebe especial atenção no capítulo três. Em uma análise comparativa sobre educação, evidencia-se que a categoria de identificação teve baixa implicação política na elaboração dos planos nacionais de educação. Os capítulos denotam assim os riscos da não continuidade da produção de dados étnico-raciais, seja devido aos conflitos que as informações geram, seja pela falta de políticas públicas a eles relacionada.

O segundo capítulo explica como a criação de categorias sociais fixas nos censos do período colonial da Índia moldou relações e identidades. A expansão da categoria de casta nos censos, por exemplo, fora dos contextos locais, provocou a criação de novas castas, não retratatando a complexa realidade social do país e fomentando a disputa por recursos e privilégios.

A segunda seção do livro, “A política de autonomia institucional”, apresenta cinco capítulos com diversidade de experiências de operações censitárias em ambos os hemisférios, em contextos de consolidação e dificuldades da operação, considerando processos de coleta e produção de dados sob incertezas demográficas e sociais globais. Também é ressaltada a complexidade institucional das agências, exemplificada por conflitos políticos em relação à produção e à divulgação de dados demográficos, como observado no Equador, na Nigéria e na Ucrânia, e a instabilidade institucional, os erros técnicos e as intervenções políticas, que comprometem e retroalimentam a falta de confiabilidade nas pesquisas.

Os capítulos trazem casos emblemáticos de tentativas significativas de intervenção política no censo por parte de governos conservadores. Nos Estados Unidos, as mudanças institucionais no Censo 2020 afetaram sua operação, prejudicando especialmente a participação das minorias, como os imigrantes, apesar da resistência da sociedade civil e de ativistas. A judicialização do processo em nível nacional destacou o papel do poder político na condução do censo. No Brasil, argumenta-se que a intervenção política se manifestou, primordialmente, por meio de mudanças na direção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e em cortes orçamentários do Censo 2020. Esse cenário gerou amplo debate, envolvendo o parlamento, a sociedade civil e o judiciário.

A participação social, exemplificada pela experiência do Observatório Latino-Americano de Censos Demográficos, emerge como um aspecto crucial na produção e no uso de dados populacionais neste continente. As experiências compartilhadas convergiram para a defesa de censos populacionais transparentes e de qualidade, capazes de considerar a complexidade da sociedade e que fortalecem as instituições de pesquisa.

Por fim, a terceira seção, “A política das inovações sociotécnicas e metodológicas”, contempla as trajetórias de inovações segundo as especificidades sociopolíticas dos países. O censo baseado em registros é analisado para Espanha e Alemanha. Em 2021, o primeiro se tornou o maior país a realizar um censo dessa forma. O segundo caminha para que os próximos censos sigam o modelo. Fica clara a importância do uso de registros administrativos, das técnicas de pareamento de dados contemplando a cobertura temática e populacional, as reformas legais e a crescente digitalização.

No contexto africano, são analisados os casos de Gana e Camarões. Para Gana, é exposto o desenvolvimento e relativo sucesso das operações censitárias, modelo no continente. O país exemplifica a relação entre censos e estruturas de poder, sendo fundamental na construção da identidade nacional pós-colonial. As trajetórias, porém, não são lineares: o Censo 2020 trouxe avanços na coleta de dados geoespaciais, mas, prorrogado devido à COVID-19 e com o aumento das controvérsias políticas, teve a efetividade da operação em risco. O caso de Camarões contempla a operação da coleta em aparelhos de telefonia móvel sob a perspectiva da aceitabilidade tecnológica e do neo-institucionalismo global. Assim, resistência ou apoio à adoção de novas tecnologias ocorrem devido às especificidades dos riscos e benefícios inerentes.

As reflexões da conclusão se relacionam novamente a questões centrais no Brasil, como é o uso de categorias étnico-raciais no reconhecimento de condições de saúde, a autonomia institucional e a capacidade estatística perante interferências políticas e os contextos sociais que fomentam a inovação. Neste caso, a adoção de um censo baseado em registros é um caminho promissor para pesquisas censitárias, inclusive com diversos usos na saúde pública. Um exemplo é a maior precisão do denominador das taxas de mortalidade em diferentes períodos. Alcançá-lo, contudo, demanda investimentos técnicos e legais, com a adoção de uma cultura de pareamento e disponibilização de registros administrativos, públicos e privados. Se há ambição de um sistema estatístico brasileiro que caminhe nessa direção, incluindo censos, pesquisas domiciliares e de saúde, são valiosas as perspectivas contempladas pelo livro, não como modelos, mas como trajetórias que mostram possibilidades e dificuldades.

Por fim, é notável o estímulo do livro à reflexão sobre a complexa relação entre população, Estado e institutos nacionais de estatística em um contexto permeado por conflitos, desconfiança sobre os dados e riscos à autonomia institucional. Falta, contudo, uma análise que insira o tema no âmbito de sistemas nacionais de estatística e dados. Tal elemento permitiria reflexões ainda mais interessantes na relação com surveys e dados usados no campo da saúde coletiva, agregando informações para a compreensão da dinâmica social, das desigualdades e na proposição de políticas públicas.

Referências

  • 1
    Foucault M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes; 2008.
  • 2
    Giddens A. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp; 1998.
  • 3
    Silva VSTM, Pinto LF. Inquéritos domiciliares nacionais de base populacional em saúde: uma revisão narrativa. Cien Saude Colet 2021; 26(9):4045-4058.
  • 4
    Barreto ML, Ichihara MY, Pescarini JM, Ali MS, Borges GL, Fiaccone RL, Ribeiro-Silva RC, Teles CA, Almeida D, Sena S, Carreiro RP, Cabral L, Almeida BA, Barbosa GCG, Pita R, Barreto ME, Mendes AAF, Ramos DO, Brickley EB, Bispo N, Machado DB, Paixao ES, Rodrigues LC, Smeeth L. Cohort profile: the 100 million Brazilian cohort. Int J Epidemiol 2022; 51(2):e27-e38.
  • 5
    Coelho R, Campos, G. O campo de estudos sobre saúde da população negra no Brasil: uma revisão sistemática das últimas três décadas. Saude Soc 2024; 33(1):e220754p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2024
  • Data do Fascículo
    Nov 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2024
  • Aceito
    05 Jun 2024
  • Publicado
    07 Jun 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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