Resumo
O estudo objetivou avaliar a composição corporal dos indígenas Khisêdjê residentes no Território Indígena do Xingu e compará-la com os resultados obtidos pela antropometria. Foram incluídos 179 indivíduos com idade ≥ 20 anos. O estado nutricional foi classificado segundo os pontos de corte propostos pela Organização Mundial da Saúde (1995). A composição corporal foi identificada por meio das medidas derivadas diretamente do aparelho de impedância bioelétrica tetrapolar (resistência - R, reactância - Xc e ângulo de fase -AF). Os dados foram analisados por meio do teste t de Student, teste qui-quadrado, coeficiente de Pearson e análise de variância. Dos avaliados, 57,0% foram homens e a idade média foi de 37,5 anos. Foi apresentado 48,0% de excesso de peso (índice de massa corpórea - IMC ≥ 25,0 kg/m2). Identificou-se correlação positiva entre o IMC com as medidas do perímetro da cintura e do braço e AF, e correlação inversa com as medidas de R e Xc. As médias das medidas de R e Xc reduziram com o aumento do IMC; em contrapartida, as médias do AF cresceram com o aumento do peso. Os resultados sugerem que a presença de excesso de peso entre os indígenas Khisêdjê se associou a maior quantidade de massa muscular.
Palavras-chave:
Povos indígenas; Composição corporal; Impedância elétrica; Antropometria; Obesidade
Introdução
A obesidade é definida pelos pesquisadores da Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença em que o excesso de gordura corporal é capaz de gerar o comprometimento da saúde. O diagnóstico do sobrepeso ou da obesidade, independentemente de sexo e idade, é feito usualmente pelo índice de massa corpórea (IMC), os valores ³ 25,0 kg/m2 classificam os indivíduos como com sobrepeso e valores ³ 30,0 kg/m2 indicam diferentes graus de obesidade. Deve-se levar em consideração, entretanto, que uma das limitações desse indicador é a impossibilidade em distinguir o peso proveniente de massa muscular ou de massa adiposa. Por conseguinte, reflete apenas o resultado das proporções do corpo, e não necessariamente a adiposidade corporal11 World Health Organization (WHO). Obesity: preventing and managing the global epidemic. Geneva: WHO; 1998..
Um método útil para identificação da composição corporal e que apresenta procedimentos simples, não invasivos e rápidos é a impedância bioelétrica ou bioimpedância. Consiste em um aparelho portátil que é ligado ao corpo por meio de eletrodos, que enviam correntes elétricas de baixa amplitude e alta frequência, fornecendo medidas de resistência (R), reactância (Xc) e ângulo de fase (AF). A inserção dessas informações originadas pelo equipamento e de outras, como idade, sexo, peso e altura, em fórmulas preditivas, possibilitam o cálculo de porcentagem corporal livre de gordura, massa adiposa e água intra e extracelular. Essas medidas auxiliam na identificação de indivíduos em risco metabólico. Cabe ressaltar que as fórmulas preditivas, entretanto, devem ser aplicadas apenas à população para a qual foi desenvolvida ou com características muito similares. Seu uso indiscriminado, especialmente no que se refere aos critérios étnico-raciais, pode produzir resultados equivocados11 World Health Organization (WHO). Obesity: preventing and managing the global epidemic. Geneva: WHO; 1998.
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Estudos realizados com povos indígenas brasileiros diferentes etnias nas últimas décadas apontam a existência de elevadas prevalências de sobrepeso e obesidade, entretanto, constata-se em uma minoria a utilização da impedância bioelétrica, objetivando saber se o diagnóstico realmente se baseia em excesso de tecido adiposo ou muscular88 Capelli J de CS, Koifman S. Avaliação do estado nutricional da comunidade indígena Parkatêjê, Bom Jesus do Tocantins, Pará, Brasil. Cad Saude Publica 2001; 17(2):433-437.
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Métodos
Este estudo epidemiológico, de delineamento transversal, foi realizado na aldeia Ngôjwêre, localizada no Médio Xingu do Território Indígena do Xingu (TIX). Foram convidados a participar da pesquisa todos os indivíduos da etnia Khisêdjê ou residentes no Polo Indígena de Vigilância Wawi, de ambos os sexos e com idade igual ou superior a 20 anos.
De acordo com o censo populacional disponibilizado pela Unidade de Saúde e Meio Ambiente (Projeto Xingu) do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), órgão responsável pela assistência à saúde da população local desde 1965, nos anos de 2010-2011 um total de 190 indivíduos atendiam aos critérios de inclusão citados. Desses foram avaliados 181, sendo que os nove sujeitos (quatro mulheres e cinco homens) não avaliados estavam fora da aldeia no momento da coleta de dados. Ao final da pesquisa foram incluídos, para análise, dados de 179 Khisêdjê (94,2% dos elegíveis). A exclusão de duas indígenas ocorreu em função de informações inconsistentes sobre variáveis antropométricas ou composição corporal.
Os exames físicos foram feitos em duas viagens nos anos de 2010 e 2011. Todos os Khisêdjê que atenderam aos critérios de elegibilidade foram chamados e identificados pelas fichas médicas usadas pela equipe de saúde. Para garantir a uniformidade no registro dos dados, utilizou-se um formulário padrão.
A antropometria foi realizada por profissionais treinados, em duplicata, seguindo-se as recomendações da OMS3232 World Health Organization (WHO). Physical status: the use and interpretation of anthropometry, report of a WHO Expert Committee. Geneva: WHO; 1995.. Para coleta do peso, em quilos (kg), e da altura, em centímetros (cm), utilizou-se, respectivamente, uma balança portátil eletrônica (marca LIDER, modelo P200m), com capacidade máxima para 200 kg e graduação de 50g, e um estadiômetro portátil (marca WCS), com escala variando de 20 a 220 cm. Os perímetros do braço (PB) e da cintura (PC) foram coletados, em centímetros, com auxílio de fita métrica de fibra de vidro inelástica, flexível (marca TBW), com escala de 0 a 150 cm e resolução de 0,1 cm.
O IMC foi calculado pela divisão do peso (em quilos) pela altura (em metros) elevada ao quadrado. Valores menores do que 18,5 kg/m2 foram classificados como baixo peso, valores ³ 18,5 - < 25,0 kg/m2 como eutrofia, valores ³ 25,0 - < 30,0 kg/m2 como sobrepeso e valores ≥ 30,0 kg/m2 como obesidade3232 World Health Organization (WHO). Physical status: the use and interpretation of anthropometry, report of a WHO Expert Committee. Geneva: WHO; 1995..
Na mensuração da composição corporal foi utilizado o monitor de composição corporal/bioimpedância Biodynamics, modelo 450 (tetrapolar). Obtiveram-se dados de resistência - R (Ω), reactância - Xc (Ω) e ângulo de fase - AF (°). A intensidade da corrente elétrica do equipamento é de 800 mA e a frequência da corrente fixa (monofásica) é de 50kHz55 Biodynamics. Monitor de Bioimpedância: Manual de instrução. Monitor de Composição Corporal Biodynamics? Modelo 450 Versão v.5.1 - Internacional. 1ª edição. Copyright Biodynamics Corporation, TBW Importadora Ltda, 2007..
O aparelho foi calibrado antes da coleta de dados. Os exames ocorreram em uma das salas da Unidade Básica de Saúde do Polo Base Wawí, no período matutino. Os participantes foram acomodados deitados em uma maca, com pernas e braços afastados do tronco, sem qualquer tipo de acessório nos braços ou pernas e sem calçados. Todos os procedimentos do teste foram explicados aos participantes com auxílio de um tradutor indígena. O teste foi realizado após repouso prévio de 30 minutos, seguindo-se todos os demais procedimentos orientados pelo fabricante. Foram utilizados eletrodos descartáveis.
Antes do exame, solicitou-se aos sujeitos a realização de jejum de pelo menos quatro horas e que evitassem o consumo de álcool ou café, assim como a prática de atividade física intensa nas 24 horas que precedessem ao teste. As gestantes foram dispensadas do exame de impedância bioelétrica.
Na descrição dos dados, utilizaram-se medidas de tendência central e de dispersão para as variáveis quantitativas, e porcentagens para as qualitativas. A existência de associação entre a presença dos desfechos de interesse (condição nutricional) segundo sexo foi avaliada pela estatística qui-quadrado (p < 0,05). Empregou-se, para comparação dos valores médios das variáveis biológicas dos indivíduos segundo sexo ou faixa etária, o teste t de Student para amostras independentes.
Devido à indisponibilidade de fórmulas específicas para determinação das porcentagens de massa livre de gordura e massa adiposa para populações indígenas brasileiras, optou-se por trabalhar com as variáveis derivadas diretamente pelo teste de impedância bioelétrica (R, Xc e AF). Objetivando permitir a comparação dos resultados desta pesquisa com os disponíveis para outras populações indígenas do país, optou-se pela apresentação de informações de porcentagem de massa livre de gordura e massa adiposa. Salienta-se que os resultados encontrados foram calculados diretamente pelo aparelho de impedância bioelétrica (monitor de composição corporal/bioimpedância Biodynamics, modelo 450) mediante inserção de informações individuais de sexo, idade (em anos completos), peso (kg) e altura (cm).
Para avaliar a correlação entre as variáveis antropométricas (IMC, PC e PB) e da composição corporal (R, Xc e AF), utilizou-se o coeficiente de Pearson (r).
Para comparar as médias da relação das medidas de R, Xc e AF, segundo estado nutricional e sexo, utilizou-se a análise de variância. O teste post hoc de Bonferroni foi empregado para identificar as diferenças significativas entre as médias (p < 0,05). Os casos de baixo peso (n = 4) foram excluídos dessa análise. Utilizou-se o programa Stata3333 Statacorp. Stata statistical software release 16.1. College Station, TX: Stata Corporation; 2019. em todas as etapas da análise.
O presente estudo faz parte de um projeto maior intitulado “Perfil nutricional e metabólico de indígenas Khisêdjê”, cujo desenvolvimento foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) com Seres Humanos da Unifesp (nº 760/10). Ainda objetivando atender às normas regulamentares, esta pesquisa individual foi submetida e aprovada pelo CEP da Unifesp (nº 319/11).
Para este estudo, obteve-se financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) (Processo 2010/52263-7).
Resultados
Na presente pesquisa foram avaliados 179 indígenas, sendo 102 (57,0%) homens e 77 (43,0%) mulheres. Na Tabela 1 são apresentadas as variáveis demográficas e antropométricas dos indígenas. A idade média foi de 37,5 anos (desvio padrão = 14,7 anos), não tendo sido identificada diferença entre sexos. Os homens exibiram médias estatisticamente maiores (p < 0,05) do que as mulheres de altura, peso, IMC, PB, AF e porcentagem de massa livre de gordura. As mulheres, em contrapartida, apresentaram médias estatisticamente maiores de R, Xc e massa adiposa. No que se refere ao estado nutricional, observou-se maior prevalência (p < 0,05) de sobrepeso (49,0% vs 33,3%) nos homens, e de eutrofia nas mulheres (60,0% vs 42,2%).
Nos dados expostos na Tabela 2 observa-se, como esperado, correlação positiva entre as variáveis, IMC com os PC (forte intensidade) e PB (forte intensidade) e do PC com o PB (forte intensidade) em ambos os sexos. Observa-se, ainda, correlação positiva entre o AF com o IMC (regular intensidade no sexo feminino; fraca intensidade no sexo masculino) e com os PC (fraca intensidade em ambos os sexos) e o PB (fraca intensidade no sexo feminino; regular intensidade no sexo masculino). De forma contrária, observa-se a existência de correlação inversa, em ambos os sexos, entre a variável R com o IMC (fraca intensidade no sexo feminino; regular intensidade no sexo masculino), com o PC (regular intensidade no sexo feminino; fraca intensidade no sexo masculino) e com o PB (fraca intensidade no sexo feminino; regular intensidade no sexo masculino). Da mesma forma, observa-se correlação negativa da variável Xc com o IMC (fraca intensidade em ambos os sexos), com o PC (fraca intensidade em ambos os sexos) e com o PB (regular intensidade no sexo feminino; fraca intensidade no sexo masculino).
Coeficiente de Pearson e nível de significância da matriz de correlação entre índice de massa corpórea, perímetro da cintura, perímetro do braço, reactância, resistência e ângulo de fase de indígenas Khisêdjê, avaliados em 2010-2011, segundo sexo. Parque Indígena do Xingu, Brasil Central, 2014.
Na Figura 1 observa-se que os indivíduos de ambos os sexos classificados como eutróficos apresentaram maiores médias (p < 0,05) da variável R do que os classificados como com sobrepeso ou com obesidade. Observa-se ainda que os homens apresentaram médias menores dessa variável do que as mulheres.
Valores médios da resistência dos indígenas Khisêdjê, avaliados em 2010-2011, segundo sexo e classificação do estado nutricional. Parque Indígena do Xingu, Brasil Central, 2014.
Na Figura 2 observa-se a mesma tendência de decréscimo da variável Xc à medida em que aumenta o grau de excesso de peso. Essas diferenças, entretanto, apresentaram significância estatística (p < 0,05) apenas na comparação da eutrofia com a obesidade do sexo masculino.
Valores médios da reactância dos indígenas Khisêdjê, avaliados em 2010-2011, segundo sexo e classificação do estado nutricional. Parque Indígena do Xingu, Brasil Central, 2014.
Na Figura 3 observa-se o aumento das médias do AF conforme aumenta o grau de excesso de peso. Ressalta-se que diferença estatisticamente significante ocorreu apenas entre as médias dos homens eutróficos quando comparados aos com sobrepeso (p < 0,05). Como esperado, observam-se maiores médias da medida no sexo masculino.
Valores médios do ângulo de fase dos indígenas Khisêdjê, avaliados em 2010-2011, segundo sexo e classificação do estado nutricional. Parque Indígena do Xingu, Brasil Central, 2014.
A medida da variável R, quando avaliada segundo as categorias da faixa etária adultos e idosos evidenciou aumento estatisticamente significante (p < 0,05) com a evolução da idade, tanto no sexo feminino (adultos: 560,5Ω vs idosos: 625,2Ω) quanto no masculino (adultos: 432,0Ω vs idosos: 501,2Ω). De forma divergente, a medida da variável Xc se mostrou semelhante (p > 0,05) em adultos e idosos do sexo feminino (adultos: 75,6Ω vs idosos: 75,4Ω) e masculino (adultos: 66,0Ω vs idosos: 61,9Ω). Como esperado, a medida do AF se mostrou maior (p < 0,05) entre os adultos do que entre os idosos do sexo feminino (adultos: 7,8º vs idosos: 7,0º) e do sexo masculino (adultos: 8,8º vs idosos: 7,2º).
Discussão
Ao longo dos anos a população indígena brasileira passou por inúmeras mudanças que desencadearam alterações em seu perfil de saúde e nutrição. Segundo Engstrom34 (p. 95) “O perfil ou situação nutricional de um grupo populacional é construído com base em informações que identificam variações em torno de uma determinada referência de dados antropométricos populacionais, isto é, as alterações e os desvios do estado nutricional da população avaliada”.
Na análise da antropometria da população Khisêdjê, observa-se que a média do índice de massa corpórea (IMC) ficou classificada no limiar dos parâmetros da eutrofia (24,9 kg/m2). Valores médios semelhantes aos verificados foram mencionados entre os 251 indígenas Karib do Mato Grosso (25,0 kg/m2)1414 Gimeno SGA, Rodrigues D, Cano EN, Lima EE de S, Schaper M, Lafer MM, Baruzzi RG. Cardiovascular risk factors among Brazilian Karib indigenous peoples: Upper-Xingu, Central Brazil, 2000-2003. J Epidemiol Community Health 2009; 63(4):299-304. e entre os 459 Munduruku do Amazonas (25,8 kg/m2)3131 Gomes HLM, Sombra NM, Cordeiro EDO, Filho ZAS, Toledo NDN, Mainbourg EMT, Sousa AM, Almeida GS. Glycemic profile and associated factors in indigenous Munduruku, Amazonas. PLoS One 2021; 16(9):e0255730.. De modo divergente, valores superiores foram encontrados entre os 363 Xikrin do Pará (28,8 kg/m2)2323 Barbosa, CC, Sacuena, ESR, Pinto, AM, Cardoso-Costa, GL, Guerreiro, JF. Anthropometric and metabolic profile of a Brazilian Amerindian group: the Xikrin (Mebengôkre). Am J Hum Biol 2019; 31(4):e23255., entre os 925 Xavante das reservas de São Marcos e Sangradouro/Volta Grande do Mato Grosso (30,3 kg/m2)2222 Soares LP, Fabbro ALD, Silva AS, Sartorelli DS, Franco LF, Kuhn PC, Moises RS, Vieira-Filho JPB, Franco LJ. Cardiovascular Risk in Xavante Indigenous Population. Arq Bras Cardiol 2018; 110(6):542-550. e entre os 207 Xavante das reservas de Pimentel Barbosa e Etênhiritipá do Mato Grosso (27,7 kg/m2)2525 Welch JR, Ferreira AA, Tavares FG, Lucena JRM, Gomes de Oliveira MV, Santos RV, et al. The Xavante Longitudinal Health Study in Brazil: objectives, design, and key results. Am J Hum Biol 2020; 32(2):e23339..
Os resultados da classificação do estado nutricional dos Khisêdjê mostram que 48,0% dos avaliados apresentaram algum grau de excesso de peso (IMC ≥ 25,0 kg/m2). Nos estudos pontuais realizados com indígenas de diversas localidades e etnias do Brasil, encontram-se prevalências de sobrepeso variando entre 19,5% e 67,8%, e de obesidade, de zero a 47,3%. Na avaliação segundo sexo, observa-se que entre as mulheres a prevalência de sobrepeso variou de 23,1% a 53,2%, e a obesidade, de zero a 76,9%. No sexo masculino a prevalência de sobrepeso variou de 12,5% a 61,8%, e a de obesidade, de zero a 31,2%88 Capelli J de CS, Koifman S. Avaliação do estado nutricional da comunidade indígena Parkatêjê, Bom Jesus do Tocantins, Pará, Brasil. Cad Saude Publica 2001; 17(2):433-437.
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30 Dal Fabbro AL, Franco LJ, da Silva AS, Sartorelli DS, Soares LP, Franco LF, Kuhn PC, Moisés RS, Vieira-Filho JP. High prevalence of type 2 diabetes mellitus in Xavante Indians from Mato Grosso, Brazil. Ethn Dis 2014; 24(1):3540.-3131 Gomes HLM, Sombra NM, Cordeiro EDO, Filho ZAS, Toledo NDN, Mainbourg EMT, Sousa AM, Almeida GS. Glycemic profile and associated factors in indigenous Munduruku, Amazonas. PLoS One 2021; 16(9):e0255730.. Os resultados de IMC, do sexo feminino, quando comparados aos encontrados no I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas do Brasil, estudo de representatividade nacional e regional desenvolvido exclusivamente com mulheres de 14 a 49 anos e com crianças, mostram-se semelhantes na prevalência de sobrepeso (30,3%) e inferiores na prevalência de obesidade (15,8%)2020 Coimbra Jr CEA, Santos RV, Welch JR, Cardoso AM, Souza MC, Garnelo L, Rassi E, Follér ML, Horta BL. The first national survey of indigenous people's health and nutrition in Brazil: rationale, methodology, and overview of results. BMC Public Helth 2013; 13:52..
A impedância bioelétrica tem sido considerada um excelente método para detecção da composição corporal. A bioimpedância parte do princípio de que a oposição à passagem da corrente elétrica ocorre de forma diferenciada nos espaços corporais, assim, enquanto nos tecidos ricos em adiposidade observa-se baixa condutividade e, consequentemente, elevada resistência à passagem da corrente, nos tecidos magros se observa elevada condutividade e baixa resistência. O mesmo padrão se aplica para a medida de reactância. No que se refere ao ângulo de fase, observa-se que os maiores valores são verificados entre os indivíduos que apresentam maior integridade das membranas celulares22 Lukaski HC, Johnson PE, Bolonchuk WW, Lykken GI. Assessment of fat-free mass using bioeletrical impedance measurements of the human body. Am J Clin Nutr 1985; 41(4):810-817.
3 Houtkooper LB, Lohman TG, Going SB, Howel WH. Why bioelectrical impedance analysis should be used for estimating adiposity. Am J Clin Nutr 1996; 64(Suppl. 3):436S-448S.-44 Bioelectrical impedance analysis in body composition measurement: National Institutes of Health Technology Assessment Conference Statement. Am J Clin Nutr 1996; 64(Suppl. 3):524S-532S.,66 Dehghan M, Merchant AT. Is bioelectrical impedance accurate for use in large epidemiological studies? Nutr J 2008; 7:26.,77 Eikemberg M, Oliveira CC, Roriz AKC, Sampaio LR. Bioimpedância elétrica e sua aplicação em avaliação nutricional. Rev Nutr 2011; 24(6):883-893.. Destaca-se, ainda, na avaliação da medida de resistência, que no documento “Bioelectrical impedance analysis in body composition measurement”, elaborado pelo National Institutes of Health Technology, encontra-se a menção de que os valores dessa variável podem ser considerados como equivalentes à medida do tecido muscular existente no sujeito avaliado44 Bioelectrical impedance analysis in body composition measurement: National Institutes of Health Technology Assessment Conference Statement. Am J Clin Nutr 1996; 64(Suppl. 3):524S-532S..
Considerando-se esses fundamentos teóricos, a correlação inversa identificada entre as variáveis IMC e perímetros da cintura e do braço com as medidas de resistência e reactância (Tabela 2), assim como a redução das médias de resistência e reactância, segundo o aumento das categorias de estado nutricional (Figuras 1 e 2), sugerem que o possível excesso de peso identificado nesses indivíduos esteja relacionado ao excedente de massa muscular. As correlações positivas, mesmo que de fraca ou regular intensidade das variáveis antropométricas com o ângulo de fase apoiam a ideia de que existe associação entre os maiores pesos ou perímetros e a maior celularidade corporal (Tabela 2). Esses achados permitem a ponderação de que os pontos de corte utilizados para classificação do estado nutricional propostos pela OMS3232 World Health Organization (WHO). Physical status: the use and interpretation of anthropometry, report of a WHO Expert Committee. Geneva: WHO; 1995. possivelmente não sejam adequados para esses indígenas.
A inadequação do uso do IMC, aliada à possibilidade de excesso de peso oriundo do excedente de massa muscular, já foi mencionada por Leite et al.1111 Leite MS, Santos RV, Gugelmin SA, Coimbra Jr CEA. Crescimento físico e perfil nutricional da população indígena Xavánte de Sangradouro-Volta Grande, Mato Grosso, Brasil. Cad Saude Publica 2006; 22(2):265-276. como possível resultado de elevados padrões de atividade física em indígenas. Entre os Khisêdjê foram identificadas elevadas prevalências de doenças crônicas não transmissíveis ao longo dos anos3535 Salvo VLMA, Rodrigues D, Baruzzi RG, Pagliaro H, Gimeno SGA. Perfil metabólico e antropométrico dos Suyá. Parque Indígena do Xingu, Brasil Central. Rev Bras Epidemiol 2009; 12(3):458-468.
36 Santos KM, Tsutsui MLS, Galvão PPO, Mazzucchetti L, Rodrigues D, Gimeno SGA. Grau de atividade física e síndrome metabólica: um estudo transversal com indígenas Khisêdjê do Parque Indígena do Xingu, Brasil. Cad Saude Publica 2012; 28(12): 2327-2338.-3737 Tsutsui MLS, Santos KM, Mazzucchetti L, Galvão PPO, Rodrigues DR, Maia RRP. Aptidão física e estado nutricional dos indígenas Khisêdjê. Parque Indígena do Xingu. DeC Foco 2017; 1(2):5-26.. Estudo realizado com esse povo mostrou ainda elevada incidência acumulada de síndrome metabólica (37,5%), hipertrigliceridemia (47,4%), hipertensão arterial sistêmica (HAS) (38,9%), obesidade central (32,0%), excesso de peso (30,4%), hipercolesterolemia (29,1%), baixo HDL colesterol (HDLc) (25,0%), elevado LDL colesterol (10,4%) e diabetes mellitus (DM) (2,9%) nos períodos 1999-2000 e 2010-20113838 Mazzucchetti L, Galvão PPO, Tsutsui MLS, Santos KM, Rodrigues DA, Mendonça SB, Gimeno SG. Incidence of metabolic syndrome and related diseases in the Khisêdjê indigenous people of the Xingu, Central Brazil, from 1999-2000 to 2010-2011. Cad Saude Publica 2014; 30(11):2357-2367.. Apesar disso, em parte desses mesmos estudos3636 Santos KM, Tsutsui MLS, Galvão PPO, Mazzucchetti L, Rodrigues D, Gimeno SGA. Grau de atividade física e síndrome metabólica: um estudo transversal com indígenas Khisêdjê do Parque Indígena do Xingu, Brasil. Cad Saude Publica 2012; 28(12): 2327-2338.,3737 Tsutsui MLS, Santos KM, Mazzucchetti L, Galvão PPO, Rodrigues DR, Maia RRP. Aptidão física e estado nutricional dos indígenas Khisêdjê. Parque Indígena do Xingu. DeC Foco 2017; 1(2):5-26. constatou-se medidas físicas e antropométricas compatíveis com a existência de um perfil muscular desenvolvido, possivelmente atrelado aos elevados padrões de atividade e condicionamento físicos identificados.
Outros autores também sugeriram a inadequação de pontos de corte únicos de IMC para avaliação de grupos étnicos distintos, especialmente para se identificar graus de excesso de peso. Ao que parece, a relação do IMC com composição corporal, distribuição de gordura e quantidade de gordura visceral varia entre os grupos étnicos; por consequência, o risco associado ao desenvolvimento de doenças metabólicas também é heterogêneo3939 Deurenberg P, Yap M, Staveren WAV. Body mass index and percent body fat: a meta analysis among different ethnic groups. Int J Obes 1998; 22(12):1164-1171.,4040 Deurenberg P, Deurenberg-Yap M. Differences in body-composition assumptions across ethnic groups: practical consequences. Curr Opin Clin Nutr Metab Care 2001; 4(5):377-383..
Estudo de revisão realizado por Kyle et al.4141 Kyle UG, Bosaeus I, De Lorenzo AD, Deurenberg P, Elia M, Manuel Gómez J, Lilienthal Heitmann B, Kent-Smith L, Melchior JC, Pirlich M, Scharfetter H, Schols AMWJ, Pichard C; ESPEN. Bioelectrical impedance analysis-part II: utilization in clinical practice. Clin Nutr 2004; 23(6):1430-1453. aponta que as fórmulas preditivas para avaliar a composição corporal derivadas da impedância bioelétrica são consideradas primordialmente precisas, reprodutíveis e, portanto, recomendadas para os indivíduos com IMC de até 34,0 kg/m2. Ainda de acordo com os autores, os resultados acima desse valor devem ser avaliados com prudência. No presente estudo, apenas um indivíduo, do sexo masculino, ultrapassou o referido ponto de corte (IMC 34,9 kg/m2). Apesar do cumprimento do critério mencionado, para determinação da porcentagem de gordura corporal dos Khisêdjê, a indisponibilidade de fórmula específica para populações indígenas, como indicado na literatura bibliográfica4141 Kyle UG, Bosaeus I, De Lorenzo AD, Deurenberg P, Elia M, Manuel Gómez J, Lilienthal Heitmann B, Kent-Smith L, Melchior JC, Pirlich M, Scharfetter H, Schols AMWJ, Pichard C; ESPEN. Bioelectrical impedance analysis-part II: utilization in clinical practice. Clin Nutr 2004; 23(6):1430-1453.,4242 Deurenberg P, Deurenberg-Yap M, Schouten FJ. Validity of total and segmental impedance measurements for prediction of body composition across ethnic population groups. Eur J Clin Nutr 2002; 56(3):214-220., proporciona poucas evidências de que os resultados obtidos reproduzam valores verdadeiros.
Considerando os aspectos citados, e apenas de modo a permitir a comparação dos dados de porcentagem de massa adiposa com os estudos realizados com outros povos indígenas brasileiros, realizou-se a análises dos dados segundo as características pré-definidas. Nessa comparação, as porcentagens de massa adiposa dos Khisêdjê foram inferiores às dos Suruí de Rondônia (Suruí: 20-49 anos - feminino 41,4%, masculino 22,6%; ≥ 50 anos - feminino 37,4% / Khisêdjê: 20-49 anos - feminino 26,6%, masculino 14,6%; ≥ 50 anos - feminino 34,9%), com exceção dos indivíduos do sexo masculino na categoria com idade ≥ 50 anos (Suruí 16,5% vs Khisêdjê 22,0%)2828 Lourenço ANP, Santos RV, Orellana JDY, Coimbra Jr CEA. Nutrition transition in Amazonia: obesity and socioeconomic change in the Suruí Indians from Brazil. Am J Human Biol 2008; 20(5):564-571.; foram semelhantes as porcentagens dos Xukuru-Kariri de Minas Gerais (Xukuru-Kariri: adulto 21,7%, idoso 30,2% / Khisêdjê: adulto 19,9%, idoso 31,2%)2929 Simões BB, Machado-Coelho GLL, Pena JL, Freitas SN. Perfil nutricional dos indígenas Xukuru-Kariri, Minas Gerais, de acordo com diferentes indicadores antropométricos e de composição corporal. Cien Saude Colet 2013; 18(2):405-411.; foram inferiores as porcentagens encontradas nos Xavante de Mato Grosso (Xavante: feminino 32,9%, masculino 22,7%, total 27,9% / Khisêdjê: feminino 28,6%, masculino 16,1%, total 21,4%)3030 Dal Fabbro AL, Franco LJ, da Silva AS, Sartorelli DS, Soares LP, Franco LF, Kuhn PC, Moisés RS, Vieira-Filho JP. High prevalence of type 2 diabetes mellitus in Xavante Indians from Mato Grosso, Brazil. Ethn Dis 2014; 24(1):3540.; e foram inferiores (em porcentagem de tecido adiposo) as porcentagens dos Munduruku do Amazonas (Munduruku: quantidade baixa de tecido adiposo 1,7%; quantidade normal de tecido adiposo 36,6%, quantidade alta de tecido adiposo 61,7% / Khisêdê: quantidade baixa de tecido adiposo 40,1%; quantidade normal de tecido adiposo 49,2%, quantidade alta de tecido adiposo 10,7%)3131 Gomes HLM, Sombra NM, Cordeiro EDO, Filho ZAS, Toledo NDN, Mainbourg EMT, Sousa AM, Almeida GS. Glycemic profile and associated factors in indigenous Munduruku, Amazonas. PLoS One 2021; 16(9):e0255730.. Cabe ressaltar que os estudos utilizaram diferentes tipos e modelos de aparelho de bioimpedância, o que pode influenciar no grau de precisão das medidas identificadas.
Os indígenas, assim como as demais sociedades não indígenas, vêm passando por um processo de alteração dos modos de vida e alimentação, cuja relação é influenciada por fatores como a proximidade com sociedades não indígenas, o acesso a território e serviços de saúde4343 Welch JR, Ferreira AA, Souza MC, Coimbra CEA Jr. Food profiles of Indigenous households in Brazil: results of the First National Survey of Indigenous Peoples' Health and Nutrition. Ecol Food Nutr 2021; 60(1):4-24.,4444 Welch JR, Coimbra CEA Jr. A'uw? (Xavante) views of food security in a context of monetarization of an indigenous economy in Central Brazil. PLoS One; 17(2):e0264525.. O resultado desse contexto pode ser identificado pela alteração do padrão do estado nutricional, bem como pelo incremento dos casos de doenças não transmissíveis. Uma metanálise recentemente publicada2727 Kramer CK, Leitão CB, Viana LV. The impact of urbanisation on the cardiometabolic health of Indigenous Brazilian peoples: a systematic review and meta-analysis, and data from the Brazilian Health registry. Lancet 2022; 400(10368):2074-2083., que avaliou a saúde metabólica de indígenas brasileiros por meio da análise de 46 estudos, identificou 57,0% de excesso de peso, 18,0% de obesidade, 58,0% de obesidade central, 53,0% de baixo HDLc, 40,0% de dislipidemias, 31,0% de hipertrigliceridemia, 11,0% de HAS e 5,0% de DM. A pesquisa mostrou ainda que a prevalência de obesidade entre os indígenas que moram em territórios mais urbanizados foi 3,5 vezes a identificada entre os residentes em áreas nativas (28,0% vs 8,0%, respectivamente). Esses resultados mostram a necessidade de acompanhamento da situação de saúde entre os povos indígenas, que apresentam necessidades e particularidades próprias.
Como limitação da pesquisa, menciona-se a indisponibilidade de pontos de corte específicos para classificar os valores de IMC dos povos indígenas, bem como de fórmulas para a determinação da composição corporal.
Apesar das inúmeras limitações técnicas relacionadas à identificação da composição corporal dos indígenas, pode-se ponderar que os Khisêdjê apresentam valores reduzidos de porcentagem de gordura corporal e que o uso do IMC não deve ser adotado como padrão único de avaliação do estado nutricional deles. Sugere-se, ainda, o desenvolvimento de pontos de corte específicos para identificação do estado nutricional de povos indígenas via uso do IMC, assim como o desenvolvimento de fórmulas preditivas para determinação da composição corporal.
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Financiamento
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp (Processo nº 2010/52263-7).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Dez 2024 - Data do Fascículo
Dez 2024
Histórico
- Recebido
15 Set 2023 - Aceito
29 Fev 2024 - Publicado
05 Abr 2024