Resumo
Este artigo discute os sentidos dados à diretriz da atenção diferenciada pelos profissionais de saúde da Equipe Multidisciplinar da Saúde Indígena (EMSI) que atuam no Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro. Estudo qualitativo exploratório, a partir da perspectiva da hermenêutica-dialética, com características descritivas e analíticas, no qual foram realizadas 15 entrevistas semiestruturadas com profissionais das Equipes Multidisciplinares da Saúde Indígena e procedeu-se à análise de conteúdo. Como resultado das análises, são apresentados quatro núcleos de sentidos: Atenção diferenciada como um modo de fazer atenção primária no território; Atuação realizada de acordo com as diferenças culturais da população; Autoatenção, medicina tradicional e a construção dos itinerários terapêuticos; e Desafios e dificuldades dos profissionais em lidar com os cuidados tradicionais. Na percepção dos profissionais, a atenção diferenciada está vinculada a condições de realização do trabalho nessa modalidade de atenção primária e, para a sua atuação, destacam a necessidade de respeitar as diferenças culturais da população assistida. Os profissionais reconhecem os usos e efetividade das práticas e conhecimentos indígenas, e as especificidades por regiões.
Palavras-chave:
Serviços de saúde indígena; Saúde de populações indígenas; Região Amazônica; Profissionais de saúde; Pesquisa qualitativa
Introdução
A política de saúde indígena é resultado de uma conquista cujo processo se iniciou na década de 1980, visando à garantia aos povos indígenas de uma atenção integral e diferenciada a partir do reconhecimento constitucional dos direitos territoriais e socioculturais dos povos indígenas11 Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV, organizadores. Políticas antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021.. A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), instituída pela Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002, determina a implantação de um modelo de “atenção diferenciada e complementar na organização de serviço voltada para proteção, promoção e recuperação da saúde, assegurando o exercício de cidadania dos povos indígenas”22 Brasil. Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002. Aprova a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Diário Oficial da União 2002; 31 jan. (p.6). Esta política apresenta ainda como característica garantir o acesso à atenção integral à saúde, em consonância com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), sob o viés da diversidade social, cultural, geográfica, histórica e política, favorecendo sempre a superação dos fatores que tornam essa população mais vulnerável aos agravos à saúde33 Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV, Brito CAG. Diálogos entre indigenismo e reforma sanitária: bases discursivas da criação do Subsistema de Saúde Indígena. Saude Debate. 2011; 43(8):146-159.. Dessa forma, se preconizou que o acesso aos serviços do SUS ocorresse de forma articulada aos sistemas médicos indígenas de saúde, com a adoção de um modelo complementar e diferenciado de organização dos serviços voltados para a proteção, promoção e recuperação da saúde22 Brasil. Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002. Aprova a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Diário Oficial da União 2002; 31 jan..
Esse modelo de organização da atenção se operacionaliza através de 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) que constituem o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). Cada DSEI deveria possuir um serviço voltado a “um espaço etnocultural dinâmico”44 Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Lei Arouca: A Funasa nos 10 anos de saúde indígena Brasília: Funasa; 2009. (p.30) buscando a “eficiência e celeridade de acordo com a especificidade de cada povo”44 Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Lei Arouca: A Funasa nos 10 anos de saúde indígena Brasília: Funasa; 2009. (p.30), visando a um atendimento diferenciado. Cabe aos Distritos garantir as ações de atenção primária a partir da diretriz da atenção diferenciada, através da atuação de Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) compostas por Agentes Indígenas de Saúde, Agentes Indígenas de Saneamento, técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos, odontólogos e técnicos de saúde bucal.
Entretanto, Pontes et al.55 Pontes ALM, Rego S, Garnelo L. O modelo de atenção diferenciada nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM. Cien Saude Colet 2015; 20(10):3199-3210. observaram que a prática da atenção diferenciada ainda apresenta diversas limitações, pois os conhecimentos e práticas indígenas são negados ou desconsiderados pelo modelo biomédico hegemônico que é fortalecido pelos procedimentos burocráticos do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). Assim, observa-se frequentemente a desvalorização de outras formas de cuidado realizadas pela população indígena.
O município de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, possui vários ecossistemas e cenários geográficos em que convivem 23 povos indígenas, ou seja, apresenta uma enorme diversidade sociocultural e linguística. O território indígena desse município faz parte do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro (DSEI-ARN), constituindo um local especialmente interessante para se desenvolver pesquisas voltadas para a compreensão e a implementação de políticas públicas no contexto indígena66 Instituto Socioambiental (ISA). Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN). Povos indígenas do Rio Negro: uma introdução à diversidade socioambiental do noroeste da Amazônia brasileira. São Paulo, São Gabriel da Cachoeira: ISA, FOIRN; 2006..
Além dos aspectos relativos à sociodiversidade desta região do Brasil, observamos diversos desafios para a execução das ações de saúde, como as desigualdades das condições de saúde da população indígena que reside em lugares de difícil acesso, a dificuldade logística pela vasta extensão do território e suas características geográficas e sazonalidades, a falta de estruturas adequadas e os indicadores de saúde desfavoráveis. Diante desse contexto, este artigo teve como objetivo discutir os sentidos dados à diretriz da atenção diferenciada pelos profissionais de saúde da Equipe Multidisciplinar da Saúde Indígena (EMSI) que atuam no DSEI-ARN, que lidam com essas diversidades em seus cotidianos de trabalho. A falta de um conceito de atenção diferenciada nos documentos da política de saúde indígena dificulta a orientação e a atuação de profissionais no SasiSUS55 Pontes ALM, Rego S, Garnelo L. O modelo de atenção diferenciada nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM. Cien Saude Colet 2015; 20(10):3199-3210.. Dessa forma, é relevante compreender os sentidos atribuídos pelos profissionais de saúde a essa diretriz.
Métodos
Trata-se de um recorte dos resultados da dissertação de mestrado intitulada “As experiências de profissionais de saúde em contextos interculturais: reflexões a partir do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro/Amazonas”, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia (PPGVIDA).
Realizou-se uma pesquisa qualitativa baseada na perspectiva da hermenêutica-dialética, voltada para aprofundar os sentidos atribuídos pelos sujeitos na sua relação com o meio social e suas interpretações da realidade vivida77 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Editora Hucitec; 1992.. Este estudo ocorreu na sede do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro (DSEI-ARN), que está situado no município de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas. Distante 852 km de Manaus, capital do estado do Amazonas, está localizado à margem da bacia do Rio Negro, no extremo noroeste do estado, fazendo divisa com Venezuela e Colômbia66 Instituto Socioambiental (ISA). Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN). Povos indígenas do Rio Negro: uma introdução à diversidade socioambiental do noroeste da Amazônia brasileira. São Paulo, São Gabriel da Cachoeira: ISA, FOIRN; 2006..
Sua área de abrangência é composta por três municípios: São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. Apesar de o DSEI-ARN englobar três municípios, este estudo limitou-se ao território do município de São Gabriel da Cachoeira, pois é onde se localiza a sede do Distrito e o local de residência da maioria dos profissionais das EMSI. Também se levou em consideração que nesse município se encontra uma enorme diversidade étnica e é onde se localizam 19 dos 25 Polos-Base do distrito, distribuídos nas calhas dos rios.
A coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas semiestruturadas77 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Editora Hucitec; 1992., aplicadas individualmente e gravadas pela pesquisadora. O roteiro estava estruturado em três blocos temáticos: a) perfil do entrevistado; b) experiências formativas para atuar no contexto intercultural; e c) sentidos da diretriz da atenção diferenciada. As entrevistas semiestruturadas adotaram questões abertas que proporcionaram aos entrevistados comentar livremente sobre o tema. Neste artigo, focamos nos resultados referentes aos sentidos que os entrevistados dão à diretriz da atenção diferenciada a partir de suas vivências e experiências de trabalho no DSEI-ARN.
Foram entrevistados 15 profissionais que atuam na EMSI do DSEI-ARN, com o seguinte perfil: seis técnicos em enfermagem, cinco enfermeiros, dois médicos e dois odontólogos, que aceitaram participar de forma voluntária e consentida após a divulgação. Nos depoimentos, apresentados nos resultados, identificamos a categoria profissional (sem atribuição de gênero) e se é indígena ou não.
A escolha por entrevistar um maior número de profissionais de enfermagem se justifica por ser a categoria profissional mais numerosa, com maior tempo de permanência das equipes e que acumula as maiores responsabilidades pela execução do trabalho das EMSI. Buscamos atingir uma saturação nos níveis da resposta, sem pretender contemplar todo o universo de trabalhadores do DSEI-ARN.
A presente pesquisa foi submetida para análise e aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE 26483319.4.000.5240) e foi apresentada e aprovada pelo presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI) do Alto Rio Negro.
A realização das entrevistas aconteceu em horário previamente agendado com o entrevistado, em local de sua maior conveniência, e com garantia de privacidade. Em seguida, as entrevistas foram transcritas pela pesquisadora, seus conteúdos categorizados a partir das dimensões que emergiram das respostas dos sujeitos88 Minayo MCS, organizadora. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 1994.,99 Bardin L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.. Somente a pesquisadora e sua orientadora tiveram acesso aos áudios e transcrições.
Para a realização da análise das entrevistas, foi utilizado o método de análise do conteúdo a partir da perspectiva da hermenêutica-dialética, em busca dos significados dados pelos atores sociais na sua atuação77 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Editora Hucitec; 1992.
8 Minayo MCS, organizadora. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 1994.-99 Bardin L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.. As leituras das transcrições buscaram identificar num nível mais aprofundado os principais conjuntos de sentidos atribuídos ao tema pelos profissionais. O material foi organizado em uma planilha do Excel e depois articulou-se com os conceitos para a realização da análise. Neste artigo, focamos nos resultados dos núcleos de sentidos atribuídos à diretriz de atenção diferenciada.
Resultados e discussão
Destacamos algumas características dos profissionais de saúde entrevistados que atuam no DSEI-ARN. Encontramos que a maioria era indígena, sendo que seis participantes pertencem ao povo Baré, três ao povo Tukano, um pertence ao povo Piratapuia e um ao povo Tariano. Dos quinze entrevistados, houve a participação de quatro entrevistados que não eram indígenas.
Com a análise dos dados, identificamos, para a diretriz de atenção diferenciada, quatro núcleos de sentidos: a) atenção diferenciada como um modo de fazer atenção primária no território; b) atuação realizada de acordo com as diferenças culturais da população; c) autoatenção, medicina tradicional e a construção dos itinerários terapêuticos; e d) desafios e dificuldades dos profissionais em lidar com os cuidados tradicionais.
Atenção diferenciada como um modo de fazer atenção primária no território
O primeiro sentido dado pelos profissionais para a atenção diferenciada foi quanto às características do processo de trabalho que envolve o deslocamento das equipes para as comunidades e o atendimento realizado pela busca ativa no território, e não por demanda espontânea na unidade.
No meu entendimento, atenção diferenciada é quando a gente leva o atendimento para a pessoa lá em sua casa (técnico de enfermagem indígena Yáwi).
Atenção diferenciada é quando você está perto deles, na casa deles, prestando atendimento e dando atenção para eles no território deles nas comunidades, não numa atenção hospitalar (enfermeiro não indígena Mawarí).
Atenção diferenciada é aquilo que eu falei: aqui na cidade, é a população que vai atrás do atendimento; na saúde indígena, é a equipe que vai atrás dos pacientes (enfermeiro indígena Kuphe).
Esse sentido, relacionado a uma estruturação da atenção a partir do território e às ações programadas com busca ativa, se relaciona com os próprios marcos da atenção primária em saúde (APS)1010 Starfield B. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, MS; 2002.. A atenção primária é a base da estruturação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, rompendo com as estratégias anteriores de foco na demanda espontânea de busca do usuário pelo serviço1111 Pontes ALM. Debates e embates entre a Reforma sanitária e Indigenismo na criação do Subsistema de Saúde Indígena e do modelo de distritalização. In: Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV, organizadores. Políticas antes da política de saúde indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021.. Entretanto, consideramos que existe um entendimento pouco aprofundado dos profissionais sobre a APS.
Em outros relatos, os profissionais apontam que a atenção diferenciada está vinculada a condições de realização do trabalho nessa modalidade de atenção primária, por ocorrer em espaços coletivos.
Porque é diferente o atendimento do posto na cidade para a área indígena. Lá, os atendimentos são coletivos. Aqui no posto, não; o atendimento é individual numa sala específica (enfermeiro indígena Icída).
As consultas são diferentes; temos que realizar atendimento no centro comunitário, onde todo mundo está vendo, temos que ir atrás deles (enfermeiro indígena Icída).
Nas falas acima, apontamos que os profissionais destacam as diferenças nos espaços de trabalho, pois os atendimentos são nas comunidades e, conforme os relatos, são considerados mais precários. O profissional tem de adaptar-se ao contexto em que se insere. Assim, os entrevistados comparam a atuação em território indígena com o contexto urbano; nesse processo, conforme as falas acima, os profissionais destacaram as dimensões de organização e fluxos de atendimento, mas ressaltam a precariedade e a necessidade de improviso nas áreas rurais do município.
Outra característica da organização da atenção primária ressaltada como diferenciada é o caráter de atendimento por 24 horas que, frequentemente, envolve casos mais complexos e urgências:
É diferenciado porque a demanda é espontânea, não temos horário para realizar o atendimento, não temos um número de atendimento por paciente; mesmo sendo atenção primária, atendemos outras situações, então vejo isso como diferenças. Se vierem para a cidade, é aquela dificuldade, não tem atendimento no final de semana no posto de saúde. Nas comunidades, ficamos 24 horas de prontidão (médico indígena Pisana).
Também foi atribuído como característica da atenção diferenciada o fato de terem que desenvolver as atividades de outros profissionais. Isso pode estar relacionado a várias questões que não pudemos aprofundar, como improvisação, precariedade, irregularidade e rotatividade das equipes, desvio de função ou até uma abordagem mais complementar da equipe.
É o que posso fazer além do que devo fazer, além da minha competência. Quando eu escuto essa palavra, “atenção diferenciada”, eu penso logo na saúde indígena, porque muitas das vezes eu, como médico, vou ter que fazer certos trabalhos da enfermeira, porque muitas das vezes ela tá ocupada (médico Indígena Pisana).
Tudo é diferente. Às vezes temos que fazer o papel do médico, porque não tem médico, aí a necessidade nos leva a atuar como médico. Eu acho que isso já é diferente do que no município (enfermeiro indígena Icída).
Nesse núcleo de sentido sobre atenção diferenciada, englobamos as características organizacionais do trabalho, precariedade das condições e outros aspectos da própria atenção primária. Também observamos a necessidade de os profissionais desempenharem diferentes funções no intuito de suprir as demandas apresentadas pela população assistida.
Atuação realizada de acordo com as diferenças culturais da população
O segundo núcleo de sentidos sobre atenção diferenciada se refere ao reconhecimento pelos profissionais das diferenças e diversidades socioculturais dos 23 povos indígenas da região, que se destacam principalmente para aqueles oriundos de outras regiões do país. Dessa forma, a atenção diferenciada se relaciona com a compreensão das especificidades socioculturais da população assistida1212 Langdon EJ. A construção sociocultural da doença e seu desafio para a prática médica. In: Baruzzi RG, Junqueira C, organizadores. Parque Indígena do Xingu: saúde, cultura e histórica. São Paulo: Terra Virgem, Unifesp; 2005.. Alguns entrevistados relataram que realizar atenção diferenciada é atuar com respeito às diferenças culturais da população assistida, sendo que os entrevistados destacam as diversidades de acordo com cada calha de rio.
Os profissionais reconhecem as diferenças étnicas existentes entre as diversas calhas do rio Negro e a necessidade de adaptação do atendimento de acordo com a realidade étnica. Assim, indicam que a dinâmica do trabalho dos profissionais depende das características da população que está sendo assistida.
Já trabalhei em outra área; no rio Negro, em Cucuí, a maioria são Baré e possuem outros costumes. No Waupés já é diferente. Aí passei a entender a diferença de uma etnia para outra (técnico de enfermagem indígena Eínu).
A questão cultural. Tudo isso no meu ponto de vista é uma atenção diferenciada. Até entre eles! Atender um Hüpda não é o mesmo que atender um Baré. É diferente! Eu não posso exigir o peso de um Hüpda igual ao peso de um Baré. Eles têm perfis diferentes, tudo isso conta no atendimento (médico não indígena Tháro).
Para realizar um atendimento diferenciado respeitando as diferenças culturais, os profissionais de saúde referiram a necessidade de possuir um conhecimento prévio sobre os usuários e comunidades que serão atendidos. Segundo os profissionais, as informações repassadas sobre a população, seja pela gestão ou por profissionais que já atuam com essa população, contribuem para o êxito das atividades desenvolvidas pelos profissionais de saúde.
Acredito que para realizar um atendimento diferenciado onde trabalho, com as pessoas, é preciso conhecer um pouco delas para poder saber até onde eu posso atuar (médico indígena Pisana).
À noite eu converso com meus técnicos de como é que a gente vai trabalhar, os assuntos que vamos abordar, porque o atendimento nas comunidades varia muito de um lugar para outro; depende da população que será atendida (enfermeiro indígena Icída).
Os profissionais também reconhecem que, de acordo com a história de contato e características de cada comunidade, as formas de relação que os povos indígenas estabelecem com a biomedicina variam entre os diferentes grupos e regiões. Observa-se, porém, que os conflitos e recusas em relação ao atendimento biomédico são percebidos como “resistência” pelos profissionais da saúde.
Uma diferença muito grande em São Joaquim: todos querem ser atendidos, até quem não está doente. Em Papuri não, só busca atendimento quem está precisando e quer ser atendido. Quem não tem nenhum problema, eles não vão, então temos que ir atrás deles (enfermeiro indígena Kuphe).
O atendimento diferenciado vai depender de cada cultura, o modo de abordar determinado assunto depende muito da etnia que estamos atendendo. Tem etnia que é mais flexível, aceita melhor; tem outra que é mais resistente, então isso influencia no atendimento (médico não indígena Tháro).
Também nesse núcleo de sentido, foram destacados alguns aspectos nas diferenças entre as relações entre gêneros e papeis sociais no cuidado. Por exemplo, é bastante comum que as mulheres indígenas não se sintam confortáveis com o atendimento prestado por um profissional do sexo masculino.
A mulher indígena, quando está com algum problema de saúde, ela não vai expor a situação para um profissional homem, por mais que seja da família. Ela não fala tudo, ela fica com vergonha, então o trabalho fica todo interrompido (técnico de enfermagem indígena Yáwi).
Em seus relatos, os profissionais de saúde destacam a importância de conhecer as especificidades dos conhecimentos e práticas em saúde de cada grupo étnico em cada região, pois isso contribui para entender seus comportamentos e modo de pensar acerca da saúde.
É, influenciou, assim… Passei a entender porque que eles procuram atendimento da equipe de saúde já no estágio avançado da doença. No convívio com eles, pude observar que eles têm a cultura de buscar primeiro outros meios para se tratarem. Com isso, passei a ser mais sensível àquela situação e entender que o atendimento é diferente ao da cidade (médico não indígena Tháro).
Atendimento diferenciado é aceitar que eles realizem o benzimento no paciente - eles podem fazer porque isso faz parte da cultura deles. No início, o médico não aceitava o procedimento. Depois conversei com ele que isso faz parte da cura deles, então temos que deixar (enfermeiro não indígena Phirípoma Kiwarí).
Diante da relevância dessa dimensão, a seguir, apresentamos um núcleo de sentido aprofundando essa dimensão.
Autoatenção, medicina tradicional e a construção dos itinerários terapêuticos
A “atenção diferenciada é mais bem-conceituada não como incorporação de práticas tradicionais aos serviços de saúde primária, e sim por promover a articulação entre estes e as práticas de autoatenção existentes na comunidade particular”1313 Langdon EJ. Uma avaliação crítica da atenção diferenciada e a colaboração entre antropologia e profissionais de saúde. In: Langdon EJ, Garnelo L, organizadoras. Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de Janeiro: Livraria/Associação Brasileira de Antropologia; 2004. p. 33-51. (p.42). Dessa forma, Esther Jean Langdon1313 Langdon EJ. Uma avaliação crítica da atenção diferenciada e a colaboração entre antropologia e profissionais de saúde. In: Langdon EJ, Garnelo L, organizadoras. Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de Janeiro: Livraria/Associação Brasileira de Antropologia; 2004. p. 33-51. articula o conceito de atenção diferenciada com o de autoatenção, proposto por Eduardo Menéndez1414 Menéndez E. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Cien Saude Colet 2003; 8(1):185-207.. Assim, os cuidados de saúde praticados pela população indígena do Alto Rio Negro podem ser entendidos como autoatenção1414 Menéndez E. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Cien Saude Colet 2003; 8(1):185-207.. Esse processo de cuidados envolve diferentes comportamentos, interações, negociações e conflitos, assim como conhecimentos acerca da construção do corpo, identidade, e personalidade relacionados às dimensões cosmopolíticas que envolvem a produção biológica e social de cada grupo1414 Menéndez E. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Cien Saude Colet 2003; 8(1):185-207.. As formas de conhecimento em saúde dos povos indígenas estão relacionadas com cosmologias, com o convívio com a natureza, com as práticas alimentares e demais processos reprodutivos da rotina diária1313 Langdon EJ. Uma avaliação crítica da atenção diferenciada e a colaboração entre antropologia e profissionais de saúde. In: Langdon EJ, Garnelo L, organizadoras. Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de Janeiro: Livraria/Associação Brasileira de Antropologia; 2004. p. 33-51.,1515 Langdon EJ. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para as políticas públicas. Cien Saude Colet 2014; 19(4):1019-1029..
Neste núcleo de sentido sobre a atenção diferenciada, buscaremos compreender como os profissionais de saúde compreendem os cuidados em saúde praticados pelos usuários do DSEI-ARN.
Acho que a palavra “diferenciada” tem a ver com o próprio costume deles, da forma deles cuidarem da saúde, do benzimento, do cuidado com as crianças, que fazem todo o ritual (cirurgião-dentista não indígena Yaka).
Portanto, os profissionais ressaltam a autonomia dos usuários indígenas na escolha dos recursos em saúde que serão utilizados para cada problema, e uma necessidade de negociação dos projetos terapêuticos.
Mas às vezes temos que dar um passo para trás, porque a escolha do atendimento é deles, até porque eles têm livre-arbítrio de poder escolher o tratamento deles (médico indígena Pisana).
Assim, os entrevistados destacaram que a atenção diferenciada tem relação com a construção do itinerário terapêutico, que passa pela autoatenção e pela articulação com os sistemas tradicionais de cura. Nesses itinerários, as práticas de autoatenção são a primeira forma de atenção a ser acionada no âmbito comunitário, tendo os anciões da comunidade como principais referências:
Em minha opinião, eu vejo que eles procuram primeiro o remédio deles, a tradição deles, fazendo todo aquele ritual. Se não tiver resultado, aí passam para nós (técnico de enfermagem indígena Eínu).
O que ele fez? Foi e levou o filho para o benzedor. E eu não tive contato com esse benzedor, fiquei no polo. Levou para rezar o menino e só depois trouxe para o polo. Mas eu fiquei só da porta, dando as coordenadas. Quem deu a assistência foram outras pessoas, por causa das questões culturais deles (médico não indígena Tháro).
Observamos que, nesse núcleo de sentido, uma questão central para os profissionais de saúde é a necessidade de refletir sobre a legitimidade e efetividade das medicinas indígenas para o tratamento de enfermidades e a proteção da população. Dessa forma, os entrevistados destacaram experiências com resultados positivos:
Eu estava atendendo em Pari Cachoeira, ele falou: “Doutora eu não sou mais hipertenso!”. “É mesmo?” eu falei. “É... Pode ver minha pressão, está normal!”. E não é que estava normal? “Mas o que que o senhor tomou?”. “Tomei a casca de um pau”. E realmente, ele ficou bom! Eu tive que retirar o paciente do cadastro de hipertensos, porque estava indo medicação à toa, para ele, podendo usar em outro paciente (médico não indígena Tháro).
Às vezes a gente está dando nossos remédios e observamos que não está tendo resultado, mas quando chamamos o Pajé ou benzedor, é maravilhoso, pois, do nada, aquela criança, aquele adulto paciente começa a apresentar melhoras (técnico de enfermagem indígena Kuhéni).
Eu dei dipirona e não melhorou nada. Veio o benzedor e falou que tinha uma cobra que estava segurando-a; então, ele benzeu e no outro dia ela já estava melhor. Quer dizer que dipirona não resolveu, mas o benzimento resolveu (enfermeiro indígena Icída).
É importante apontar que os profissionais de saúde que são procedentes da região do Alto Rio Negro também destacaram o uso dos conhecimentos locais para sua própria proteção - particularmente, os cuidados relacionados o trânsito em “lugares sagrados” e com “veneno”.
Para não acontecer nada quando estou menstruada, para fechar meu corpo para não cair no encanto, porque tem alguns lugares que são perigosos, que são encantados. Então, sempre uso essas proteções para que nada aconteça comigo (técnico de enfermagem indígena Mápa).
Então, também procuro os benzedores para proteger a gente, para que nada de mal aconteça durante a viagem. Toda vez, antes de entrar na área, eu faço a preparação de fechar o corpo para não acontecer nada, porque são lugares desconhecidos (enfermeiro indígena Nêwi).
Percebemos que os profissionais entrevistados reconhecem a importância dos especialistas indígenas nas comunidades, principalmente na ausência da equipe, como aludem as respostas a seguir:
Eu acho que, pelo fato de ele estar ali na comunidade, é muito importante, porque quando não tem equipe, são eles que seguram a saúde da população na comunidade (técnico de enfermagem indígena Kuhení).
O fato de existir esses cuidadores é fundamental nas comunidades, principalmente porque a gente só faz duas ou uma entrada. Então assim, passa um mês, dois meses, sem ninguém na comunidade. Então eles são as únicas pessoas que ficam na comunidade; são esses cuidadores que possuem os conhecimentos que irão atuar junto à comunidade, que irão atender e levar o remédio para essa população para melhorar a saúde (enfermeiro indígena Kuphe).
Alguns entrevistados destacam o papel dos especialistas indígenas na construção do itinerário terapêutico das famílias, inclusive encaminhando para os profissionais das equipes. Entretanto, existe um distanciamento:
Tem que saber juntar as coisas, senão acaba prejudicando a gente. Porque vale o que o pajé fala. Aí quando o pajé reza e não dá jeito, aí ele diz: “Vão procurar o médico, que agora não tem mais jeito com reza, tem que ser com o médico!”. Pronto! Ele já vem ciente que vamos dar um jeito. Aí sim, eles seguem a orientação médica! Depende muito do que o pajé fala! Eles obedecem ao pajé (médico não indígena Tháro).
Os profissionais sabem que existem esses cuidadores, mas eles nunca atuaram juntos, chamando o pajé para trabalhar junto com ele, não (técnico de enfermagem indígena Kuhení).
A gente os vê atendendo na casa deles; mas assim, junto conosco, atendendo no posto ou no centro comunitário, não (enfermeiro indígena Nêwi).
De modo geral, observamos na fala dos entrevistados a complementaridade e negociação entre as diferentes formas de atenção existentes no território. A maioria da população indígena utiliza simultaneamente diversos sistemas médicos, tanto para diferentes problemas, quanto para um mesmo problema de saúde, o que Eduardo Menéndez denomina pluralismo médico1414 Menéndez E. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Cien Saude Colet 2003; 8(1):185-207..
Normalmente a gente une as duas partes: o profissional e os conhecedores tradicionais. Teve um dia que, é, presenciei a enfermeira, ela estava lá, do lado. Eu acho que dessa forma é que a gente pode estar trazendo a realidade deles para nossa; dessa forma ele se sente mais à vontade, que é um tratamento que já tem séculos e foi passado de pai para filho e gerações (cirurgião-dentista indígena Kéhuri).
Uma criança que estava com febre, diarreia, e a gente cuidando com os nossos remédios, e o pajé benzendo, colocando as folhas no corpo da criança, falando as línguas. E a gente continuou dando remédio, respeitando o lado deles (técnico de enfermagem indígena Kuhéni).
Eu já tive oportunidade de trabalhar com o pajé lá do alto Tiquié, cuidando de uma criança que sofreu queimaduras. É muito importante você respeitar o tratamento deles, para trabalhar em parceria (enfermeiro não indígena Mawarí).
Porque, na última entrada minha, eu vi o doutor perguntando se já tinha levado para o benzedor, porque ele sempre trabalha com o tratamento branco, e junto com ele tá o tratamento do benzedor (técnico de enfermagem indígena Mápa).
Por isso, consideramos fundamental que os profissionais participem ativamente de iniciativas para o fortalecimento dos sistemas médicos indígenas junto à população no cuidado com a saúde:
Se começarmos a falar, eles vão começar a relembrar de como utilizavam os remédios caseiros; eles sabem, só que eles não praticam mais. Então é preciso incentivar que poderiam usar como alternativa, com a falta da medicação (técnico de enfermagem indígena Kuhení).
Sempre quando eu vou trabalhar, eu escuto o que eles estão falando. A enfermagem dá uma importância muito grande nesse contexto; até os médicos, eles estão trabalhando mais isso agora. Estão fazendo a medicação junto - não só um, mas os dois (cirurgião-dentista não indígena Yaka).
Por fim, nesse núcleo de sentido, os entrevistados destacaram as estratégias para discutir sobre os cuidados tradicionais com os profissionais de saúde.
Porque a gente tem capacitações no DSEI que são referentes a esses conhecimentos tradicionais, que a gente tem que respeitar, e a gente sempre faz roda de conversa sobre isso (enfermeiro indígena Nêwi).
A gente conversa; aqui no DSEI, eles fazem encontros com a gente - o que podemos fazer, como trabalhar com os pajés, com as parteiras (enfermeiro indígena Icída).
A nossa equipe, ela conversa. Tanto é que nós pedimos apoio deles para a construção de hortas para a gente plantar nas comunidades as plantas que usam quando estão com vômito ou diarreia. A gestão nos ajudou (técnico de enfermagem indígena Kuhení).
Desafios e dificuldades dos profissionais em lidar com os cuidados tradicionais
No quarto núcleo de sentidos sobre a atenção diferenciada, englobaremos os conflitos e dificuldades relatados pelos entrevistados ao lidar com as práticas de autoatenção e com os especialistas indígenas nos territórios indígenas. Podemos apontar que o etnocentrismo está presente na visão de alguns profissionais:
Mas o lado negativo dos profissionais novatos é que eles querem impor do jeito deles, o conhecimento deles, não respeitando o conhecimento tradicional daquele povo (técnico de enfermagem indígena Yáwi).
As pajelanças, essas coisas, para mim interferem no nosso tratamento, mas ao mesmo tempo a gente tem que entender que é parte da cultura deles (médico não indígena Tháro).
Eu já ouvi falar de tradições que seguram o paciente doente com os benzedores por determinado tempo para depois liberar para o atendimento médico da “medicina do branco”. Então eu vejo isso como ponto negativo, porque se a doença se torna letal, os pacientes vão chegar ao polo já complicados (médico indígena Pisana).
Diversos autores55 Pontes ALM, Rego S, Garnelo L. O modelo de atenção diferenciada nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM. Cien Saude Colet 2015; 20(10):3199-3210.,1313 Langdon EJ. Uma avaliação crítica da atenção diferenciada e a colaboração entre antropologia e profissionais de saúde. In: Langdon EJ, Garnelo L, organizadoras. Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de Janeiro: Livraria/Associação Brasileira de Antropologia; 2004. p. 33-51.,1515 Langdon EJ. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para as políticas públicas. Cien Saude Colet 2014; 19(4):1019-1029.,1616 Langdon EJ, Diehl EE. Participação e autonomia nos espaços interculturais de saúde indígena: reflexões a partir do sul do Brasil. Saude Soc 2007; 16(2):19-36. alertam que os sistemas nacionais de saúde e a biomedicina tendem a negar, ignorar ou marginalizar as demais formas de atenção. A hegemonia do modelo biomédico, superdimensionando a dimensão biológica do processo saúde-doença, se expressa também no uso de tecnologias no diagnóstico e na medicalização de diversos problemas de saúde e da vida em geral. Em certas circunstâncias, a biomedicina legitima cientificamente outros sistemas de saúde e os incorpora ao seu repertório nos serviços de saúde, como ocorreu com a acupuntura. Mas Menéndez1414 Menéndez E. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Cien Saude Colet 2003; 8(1):185-207. ressalta que, em que pese tal processo de reconhecimento de outros sistemas médicos, apenas são legitimadas as dimensões biológicas que envolvem os procedimentos de cura. Observamos, nas entrevistas, que os profissionais percebem um processo de medicalização crescente nas comunidades:
Agora não, eu vejo que a diferença é que a gente tem muitos remédios ocidentais dos brancos e os nossos pacientes se acomodaram muito, eles não querem mais procurar remédio no mato. A mãe também, quando a criança está gripada, ela não faz mais aquele chá, ela já procura o posto procurando ibuprofeno, amoxilina, essas coisas (técnico de enfermagem indígena Eínu).
Eles já estão muito acostumados com remédio, que faz o efeito mais rápido. Eles não querem mais ir buscar o medicamento no mato porque é longe, porque demora muito para fazer o tratamento (técnico de enfermagem indígena Yáwi).
Tem doenças, principalmente as crônicas, que a gente tem que apertar bem na tecla e dizer que tem que tomar nossos remédios! Pode rezar? Pode! Mas, toma nosso remédio também. Conscientizar eles! Mas é difícil! Não é uma tarefa fácil, não! (médico não indígena Tháro).
Após duas décadas da implantação do SasiSUS, os entrevistados relataram a falta de debates sobre a atenção diferenciada. Por isso, sinalizamos que, no início de sua atuação com comunidades indígenas, os profissionais necessitam de uma qualificação para a atuação no contexto intercultural.
Olha, por esse tempo todo de experiência que eu tenho, é muito difícil. A gente não conversa, é muito difícil tocar nesse assunto. É muito difícil. Às vezes muito pouco acontece (técnico de enfermagem indígena Kuhéni).
Eu nunca participei de nenhuma reunião de equipe para falar sobre isso, de que existem esses cuidados que o povo tem (técnico de enfermagem indígena Kúmada).
Langdon1313 Langdon EJ. Uma avaliação crítica da atenção diferenciada e a colaboração entre antropologia e profissionais de saúde. In: Langdon EJ, Garnelo L, organizadoras. Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de Janeiro: Livraria/Associação Brasileira de Antropologia; 2004. p. 33-51., quando se refere à atenção diferenciada, sugere que esta significa a produção de um cuidado que se articula com as formas de autoatenção. A autora ressalta que a interação e complementaridade entre formas de atenção, biomédica e medicinas tradicionais, ocorrem a partir dos usuários e não gera contradições. Entretanto, diante da grande diversidade sociocultural dos usuários indígenas e o despreparo dos serviços de saúde, o atendimento diferenciado ainda é um desafio para os profissionais de saúde.
Considerações finais
Nesses mais de 20 anos de SasiSUS, pouco temos avançado na implementação da diretriz da atenção diferenciada enquanto articulação entre sistema oficial e sistemas médicos indígenas, preconizada na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígena (PNASPI). Consideramos que compreender os sentidos atribuídos pelos profissionais de saúde para essa diretriz é fundamental para pensarmos estratégias para seu fortalecimento.
Observamos que os sentidos da atenção diferenciada estão vinculados às características e condições de realização do trabalho da atenção primária em território indígena, como a ênfase na busca ativa, a atuação em espaços coletivos e a precariedade da infraestrutura. Por outro lado, os entrevistados evidenciam que a atenção primária em território indígena envolve a atuação emergencial em casos graves e urgências. Também foi relatado como característica o acúmulo ou desvio de funções de outros profissionais para atender às demandas das comunidades. Entretanto, observamos nas entrevistas um maior reconhecimento do pluralismo médico pelos profissionais de saúde.
Mas os profissionais também expressam outro conjunto de sentidos sobre atenção diferenciada relacionado ao reconhecimento da diversidade da população assistida, de modo que sua atenção tem que se adequar a cada local de atuação, seja pelas características linguísticas, geográficas, modos de contato, entre outros. Dentre esses aspectos, destaca-se o sentido do pluralismo médico existente nas comunidades indígenas, de modo que outro núcleo de sentido da atenção diferenciada se refere à construção dos itinerários terapêuticos, valorizando a autoatenção e a articulação com os sistemas tradicionais de cura, particularmente aqueles dos especialistas indígenas. Assim, a atuação dos profissionais envolve a negociação e a complementaridade com outras formas de atenção.
Apesar de identificarmos um importante reconhecimento, por parte dos profissionais de saúde, do pluralismo médico nas comunidades indígenas, são necessárias estratégias de formação dos profissionais e valorização dos sistemas médicos indígenas, pois a hegemonia da biomedicina e o etnocentrismo ainda são muito presentes nas formações em saúde e na sociedade brasileira.
Referências
- 1Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV, organizadores. Políticas antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021.
- 2Brasil. Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002. Aprova a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Diário Oficial da União 2002; 31 jan.
- 3Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV, Brito CAG. Diálogos entre indigenismo e reforma sanitária: bases discursivas da criação do Subsistema de Saúde Indígena. Saude Debate. 2011; 43(8):146-159.
- 4Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Lei Arouca: A Funasa nos 10 anos de saúde indígena Brasília: Funasa; 2009.
- 5Pontes ALM, Rego S, Garnelo L. O modelo de atenção diferenciada nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM. Cien Saude Colet 2015; 20(10):3199-3210.
- 6Instituto Socioambiental (ISA). Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN). Povos indígenas do Rio Negro: uma introdução à diversidade socioambiental do noroeste da Amazônia brasileira. São Paulo, São Gabriel da Cachoeira: ISA, FOIRN; 2006.
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- 8Minayo MCS, organizadora. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 1994.
- 9Bardin L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011.
- 10Starfield B. Atenção Primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, MS; 2002.
- 11Pontes ALM. Debates e embates entre a Reforma sanitária e Indigenismo na criação do Subsistema de Saúde Indígena e do modelo de distritalização. In: Pontes ALM, Machado FRS, Santos RV, organizadores. Políticas antes da política de saúde indígena. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2021.
- 12Langdon EJ. A construção sociocultural da doença e seu desafio para a prática médica. In: Baruzzi RG, Junqueira C, organizadores. Parque Indígena do Xingu: saúde, cultura e histórica. São Paulo: Terra Virgem, Unifesp; 2005.
- 13Langdon EJ. Uma avaliação crítica da atenção diferenciada e a colaboração entre antropologia e profissionais de saúde. In: Langdon EJ, Garnelo L, organizadoras. Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de Janeiro: Livraria/Associação Brasileira de Antropologia; 2004. p. 33-51.
- 14Menéndez E. Modelos de atención de los padecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Cien Saude Colet 2003; 8(1):185-207.
- 15Langdon EJ. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para as políticas públicas. Cien Saude Colet 2014; 19(4):1019-1029.
- 16Langdon EJ, Diehl EE. Participação e autonomia nos espaços interculturais de saúde indígena: reflexões a partir do sul do Brasil. Saude Soc 2007; 16(2):19-36.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
16 Dez 2024 - Data do Fascículo
Dez 2024
Histórico
- Recebido
15 Set 2023 - Aceito
29 Fev 2024 - Publicado
25 Abr 2024