O livro da antropóloga Carmen Álvaro Jarrín pode ser lido como uma espécie de tratado sobre a produção e circulação daquilo nomeado e corporificado como beleza no Brasil, constituindo-se em obra e pesquisa etnográfica de excelência que tomou a beleza como um analisador para se pensar os processos de subjetivação e biopolítica de produção, hierarquização e legitimação dos corpos a partir dos marcadores sociais de gênero, raça e classe na contemporaneidade no Brasil e, em especial, na região metropolitana do Rio de Janeiro.
Carmen Jarrín toma, então, as lentes da beleza para focalizar processos diversos que se entrecruzam em um verdadeiro dispositivo da beleza, conceito de Michel Foucault em sua análise do dispositivo da sexualidade, que, a despeito de não ser utilizado por Jarrín, se encaixa perfeitamente na forma como ela analisa o entrecruzamento de discursos e práticas heterogêneos - “discursos, instituições, arquitetura, regramentos, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, o dito e o não dito”11 Castro E. Vocabulário de Foucault - um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica; 2009. (p. 124) - que vão corporificar aquilo que se identificará como beleza no contexto brasileiro.
Para Carmen Jarrín, a beleza, especialmente aquela produzida e modulada pelo campo das cirurgias plásticas, constitui-se como um capital afetivo proveniente de “uma relação mutuamente constitutiva entre as relações sensoriais corporalizadas com a medicina e as racionalidades biopolíticas e formas de governança que inserem médicos, pacientes e o Estado em redes de conhecimento e prática”22 Jarrín A. A biopolítica da beleza - cidadania cosmética e capital afetivo no Brasil. São Paulo/Rio de janeiro; Editora Unifesp/Editora Fiocruz; 2023. (p. 54). Nesse esforço de reflexão sobre a beleza, ela mergulha no campo das cirurgias plásticas brasileiras através de um vultuoso trabalho de campo em serviços de cirurgia plástica no Rio de Janeiro, complementado com inserções de campo em Belo Horizonte e entrevistas com quase três centenas de sujeitos deste campo (71 profissionais de saúde e 197 usuárias/os). Assim, Jarrín nos traz, de dentro dos centros cirúrgicos, consultórios médicos e salas de espera, perspectivas e histórias de vida diversas e até mesmo contraditórias - de profissionais, residentes e usuárias/os -, que produzem, mantêm e ressignificam a “necessidade” e a naturalização do “tornar-se bela/o” e/ou “melhorar-se” a partir do uso das cirurgias plásticas.
Além dos serviços de cirurgia plástica, principalmente públicos que se configuravam como hospitais-escola onde residentes e renomados supervisores produziam e manipulavam a “beleza” a baixo custo para a população em geral, Jarrín também analisou outros espaços e discursos, como escolas de modelo situadas em favelas do Rio de Janeiro e tanto discursos históricos eugênicos como midiáticos que produzem a cirurgia plástica como desejo e necessidade, ou seja, como um projeto, um bem ou um capital no contexto do capitalismo neoliberal. Como muitas outras análises que buscam as bases de determinado discurso e prática, o livro de Jarrín tem um tradicional primeiro capítulo que analisa a gênese histórica da beleza no Brasil, tanto por meio dos esforços eugênicos da medicina e saúde pública do século XIX e início do século XX como do estabelecimento real e simbólico do médico Ivo Pitanguy como o “pai da cirurgia plástica”. Porém, tais discursos históricos não ficam na história, e no início do livro, ao contrário, Jarrín vai nos mostrando as ressonâncias e os efeitos das bases eugênicas daquela medicina: nas concepções biomédicas contemporâneas acerca da necessidade de modificação do corpo a partir da cirurgia plástica, já que, como afirmado por um cirurgião plástico entrevistado, “a miscigenação melhorou a eugenia da população e as técnicas de embelezamento ajudam a eugenia, porque ajudam as pessoas a ficar mais rejuvenescidas e dar uma melhorada”22 Jarrín A. A biopolítica da beleza - cidadania cosmética e capital afetivo no Brasil. São Paulo/Rio de janeiro; Editora Unifesp/Editora Fiocruz; 2023. (p. 302); nos desejos e racionalidades de potenciais pacientes que economizam dinheiro por anos para cirurgias plásticas que lhes dariam maior “autoestima” e/ou mudariam suas vidas, ainda que tal mudança não pudesse ser melhor definida; nas promessas e circulação da esperança de mobilidade social através de desfiles de beleza em territórios periféricos e de favelas da cidade do Rio de Janeiro.
Assim, o dispositivo da beleza é decupado a partir de diferentes locais e práticas de embelezamento heterogêneas, mas que se coproduzem e compõem dois eixos principais que se tornam o foco de análise do livro: os âmbitos biopolítico e afetivo da produção da beleza, que se localizam mais ou menos em um ou outro capítulo, mas que efetivamente se entrecruzam por todo o livro. E aqui reside a grande força e vulto da obra, pois Jarrín foge o tempo todo de explicações simplistas ou mesmo maniqueístas que tanto poderiam dar-lhe um lugar de autoridade como o estabelecimento de uma palavra última no trato da beleza no Brasil. Nesse movimento, complexifica, se questiona e chama para o diálogo diversas/os autoras/es e conceitos que nos fazem ver a partir da beleza a própria constituição do sujeito, da ideia de nação e das lógicas sociais estruturantes daquilo que fomos, somos e podemos vir a ser no Brasil. Ainda que narrativas de cunho racistas, sexistas ou classistas sejam duramente reproduzidas no livro, em nenhum momento elas são colocadas fora de seu contexto e sempre são acompanhadas de análises que as decupam e ampliam suas possibilidades de significação, de modo que nenhum médico ou usuárias/os ganham tons de vilania ou bom-mocismo, mas sim são analisados/as como produtos e produtores/as dessa biopolítica da beleza que os/as atravessam de inúmeras formas e direções.
A biopolítica da beleza compõe-se principalmente pelo já citado capítulo 1 e pelos capítulos 2 - “Governamentalidade plástica” e 5 - “A raciologia da beleza”, nos quais acompanhamos desde o estabelecimento das cirurgias plásticas no campo da saúde pública no Brasil e os manipuláveis limites entre cirurgias reparadoras e cirurgias estéticas até os principais procedimentos realizados e suas promessas de normatização de gênero, raça e classe. O capítulo 5 se destaca por adentrar nas discussões da corporalização das desigualdades raciais e os consequentes projetos de embelezamento baseados na branquitude, que tomam, por exemplo, a noção de miscigenação e os ditos “nariz negroide” e “curvas exageradas” como caracteres a serem “corrigidos” e/ou “melhorados” na esperança de certa legitimação e/ou mobilidade social, bem como da própria percepção de si como mais ou menos belo e/ou feio segundo suas formas de racialização.
O desejo pelo embelezamento e o consumo da cirurgia plástica, que os configurariam como tecnologias da esperança, são analisados especialmente nos capítulos 3 - “A circulação da beleza, 4 - “Esperança, afeto, mobilidade” e 6 - “Cidadãos cosméticos”, que investem na noção de afeto de forma a trazer os processos de embelezamento para o cotidiano da vida das pessoas. Desse modo, vemos o corpo ativo significado e moldado no entrecruzamento da viscosidade que, ainda que em um nível implícito ou não consciente, potencialmente o localizará ou mesmo o estigmatizará em termos de gênero, raça e classe; e a produção e circulação de um “capital afetivo [que] é uma qualidade inefável, indistinta e precária”22 Jarrín A. A biopolítica da beleza - cidadania cosmética e capital afetivo no Brasil. São Paulo/Rio de janeiro; Editora Unifesp/Editora Fiocruz; 2023. (p. 185), mas que torna a beleza “uma prática de autogestão e também uma forma de trabalho que molda a subjetividade do produtor, ao mesmo tempo que gera valor no e por meio do corpo”22 Jarrín A. A biopolítica da beleza - cidadania cosmética e capital afetivo no Brasil. São Paulo/Rio de janeiro; Editora Unifesp/Editora Fiocruz; 2023. (p. 184). Se o corpo se torna um projeto pessoal e social através da beleza, é o afeto que o mobiliza e o torna passível de investimentos, a ponto de produzir-se e deixar-se produzir como um “cidadão cosmético” na e por redes biotecnológicas de embelezamento. Não há uma resposta explicativa, no sentido restritivo e/ou definitivo do termo, mas a análise do capital afetivo da beleza corporalmente nos mostra porque nos embelezamos e desejamos de alguma forma ser reconhecidos/as como belos/as.
Jarrín finaliza seu livro apontando para como o dispositivo da beleza persiste em diferentes contextos transnacionais, o que tanto mostra sua força como projeto biopolítico como abre possibilidades outras de análise. Assim, ainda que seu extenso trabalho de campo tenha também incorporado discursos e práticas de outra cidade fora da região metropolitana do Rio de Janeiro, o término da leitura nos deixa ao menos um grande questionamento: a cidadania cosmética e o capital afetivo produzidos pela biopolítica da beleza dizem mais respeito à cidade do Rio de Janeiro e à sua região metropolitana ou ao Brasil, como afirmado na obra em seu título? Ainda que o analisador Rio de Janeiro nos permita pensar no Brasil ao ler a análise de Jarrín, será que a diversidade territorial e os tons que as desigualdades “nacionais” aqui analisadas ganham em diferentes localidades do país não nos obrigariam a complexificar este projeto biopolítico da beleza? Não quero dizer com isso que a análise de Carmen Jarrín seja incompleta ou mesmo errônea, ao contrário, reitero que o que ela produz é um verdadeiro tratado sobre a biopolítica da beleza na circulação de discursos, práticas, relações sociais e afetos entre sujeitos expertos e usuárias/os em torno dos processos de embelezamento do corpo e as promessas que tal embelezamento carrega no contexto carioca/fluminense e brasileiro. Há muito Rio de Janeiro no livro, que se irradia sim e produz o “Brasil”, como a autora bem mostra, mas que parece também abrir pistas de que talvez precisemos tomar as lentes propostas em A biopolítica da beleza para a partir delas olharmos e re-olharmos radicalmente a própria ideia de Brasil e os diferentes Brasis afora.
Referências
- 1Castro E. Vocabulário de Foucault - um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte: Autêntica; 2009.
- 2Jarrín A. A biopolítica da beleza - cidadania cosmética e capital afetivo no Brasil. São Paulo/Rio de janeiro; Editora Unifesp/Editora Fiocruz; 2023.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
02 Fev 2024 - Data do Fascículo
Fev 2024