Itinerários terapêuticos no cuidado em saúde em comunidades quilombolas

Rafael Fernandes Gomes Pâmela Scarlatt Durães Oliveira Maria Luiza Oliveira Silva Sérgio Vinícius Cardoso de Miranda Cristina Andrade Sampaio Sobre os autores

Resumo

Este artigo teve como objetivo mapear os itinerários terapêuticos no cuidado em saúde em comunidades quilombolas rurais no norte de Minas Gerais, Brasil. Trata-se de um recorte de uma pesquisa qualitativa realizada em seis comunidades visitadas. Os dados foram produzidos por meio de 18 entrevistas individuais, analisados pelo referencial teórico-metodológico dos itinerários terapêuticos e organizados em três temas empíricos. As narrativas permitiram a compreensão dos percursos trilhados no cuidado em saúde pela população quilombola, a identificação dos componentes do subsistema popular (recursos naturais, o uso de chás e remédios caseiros), do subsistema familiar (transmissão de conhecimentos e herança cultural de cuidados), e do subsistema profissional (nível hospitalar, cuidados médicos, atenção primária e especializada). As dificuldades de acesso não decorrem apenas das distâncias geográficas, envolvem aspectos mais amplos da determinação social, como o racismo institucional, a baixa oferta de serviços, a necessidade de pagamento para deslocamentos e procedimentos médicos. Nesse sentido, fazem-se necessárias uma abordagem e intervenções das políticas públicas frente às desigualdades étnico-raciais, econômicas e de acesso aos serviços de cuidado em saúde.

Palavras-chave:
Grupo com ancestrais do continente africano; Cuidado em saúde; Modelos de atenção à saúde; Itinerários

Introdução

A população rural brasileira se caracteriza por uma diversidade de raças, etnias, povos, religiões, culturas, segmentos sociais e sistemas de produções. A maior parte das atividades produtivas está relacionada com a sua rica biodiversidade de ecossistemas, destacando a agricultura, a pecuária e o extrativismo. A região norte do estado de Minas Gerais abriga populações tradicionais, como vazanteiros, povos do cerrado, do semiárido, da caatinga, dos campos, quilombolas, comunidades ribeirinhas e indígenas11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Políticas de promoção da equidade em saúde. Brasília: MS; 2013..

Os remanescentes das comunidades dos quilombos são reconhecidos pelo artigo 2º do Decreto nº 4.887 como “grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com ancestralidade negra e trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas”22 Brasil. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial da União 2003; 21 nov.. Essas comunidades rurais negras têm seus modos de vida, produção e reprodução social relacionados com a terra e a luta de direitos constitucionais33 Sampaio CA. Representações culturais de quilombolas-vazanteiros: um segmento da cultura inclusiva no Acampamento Rio São Francisco [tese]. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo; 2012..

A população quilombola ainda vive em situação de grande vulnerabilidade, fruto do processo histórico de escravização, que acarretou desigualdades sociais e de saúde. Apresentam baixos níveis de escolaridade, desigualdade de renda, condições precárias de moradia, sobrecarga de trabalho, dificuldade de acesso geográfico e a transportes, contribuindo ainda mais para a exclusão e discriminação pelos serviços de saúde44 Barroso SM, Melo AP, Guimaraes MDC. Fatores associados à depressão: diferenças por sexo em moradores de comunidades quilombolas. Rev Bras Epidemiol 2015; 18(2):503-514.,55 Miranda SVC, Oliveira PSD, Moraes VCM, Vasconcellos LCF. Necessidades e reivindicações de homens trabalhadores rurais frente à atenção primária à saúde. Trab Educ Saude 2020; 18(1):e0022858..

Segundo Souza et al. 66 Souza RF, Rodrigues ILA, Pereira AA, Nogueira LMV, Andrade GR, Pinheiro AKC. Condições de saúde e relação com os serviços de saúde na perspectiva de pessoas de quilombo. Esc Anna Nery 2023; 27:e20220164., o sistema de saúde no Brasil vem tentando se organizar para a oferta de atendimento integral para as populações quilombolas, por meio da implantação de políticas públicas de equidade, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Porém, as pactuações dos gestores de saúde, os fluxos de atendimento e o processo de trabalho das equipes não necessariamente coincidem com as necessidades de saúde e os caminhos percorridos por essa população na busca de cuidados.

De modo geral, as escolhas de cuidado de saúde expressam construções individuais e coletivas sobre as experiências de adoecimento e as formas de intervenção, construídas sob as influências de fatores pessoais, culturais e socioambientais. A literatura destaca que, nas comunidades quilombolas, os cuidados são exercitados por meio dos conhecimentos tradicionais, em contraste com as intervenções biomédicas. O uso e preparo de remédios caseiros à base de plantas medicinais se apresenta como a prática mais adotada e preservada77 Cabral ALLV, Martinez-Hemáez A, Andrade ELG, Cherchiglia ML. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(11):4433-4442..

Os itinerários terapêuticos se referem aos caminhos traçados e percorridos pelos sujeitos na busca do cuidado em saúde, com a mobilização de saberes populares, religiosos e científicos. As escolhas da população quilombola não são efetuadas de forma aleatória e ao acaso, mas vinculadas diretamente aos recursos locais e sociais disponíveis. Nesse movimento, a busca pelo cuidado quilombola mobiliza diversos sistemas de atenção à saúde, que, por sua vez, não estão dissociados dos aspectos mais gerais da cultura dessa população77 Cabral ALLV, Martinez-Hemáez A, Andrade ELG, Cherchiglia ML. Itinerários terapêuticos: o estado da arte da produção científica no Brasil. Cien Saude Colet 2011; 16(11):4433-4442..

Distintas classificações de sistemas terapêuticos foram sugeridas na tentativa de ordenar as interpretações sobre a tríade saúde-doença-cuidado em dada sociedade. O modelo mais utilizado atualmente é o proposto por Kleinman88 Kleinman A. Patients and healers in the context of culture. Berkeley: University of California Press; 1980., direcionado prioritariamente para o estudo de práticas médicas e de cura. O conceito de sistema de cuidados à saúde trata de uma articulação sistemática entre diferentes elementos interligados à saúde, à doença e aos cuidados, com destaque para as experiências de sintomas, práticas terapêuticas, tratamentos médicos e avaliação dos resultados99 Rabelo MCM, Alves PC, Souza IM. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999..

Segundo Kleinman88 Kleinman A. Patients and healers in the context of culture. Berkeley: University of California Press; 1980., o cuidado em saúde pode ser baseado em três subsistemas distintos, dentro dos quais a experiência da doença é vivenciada nos níveis profissional, informal e popular. O subsistema profissional é instituído pelas evidências científicas e cuidados médicos; o informal, por meio de práticas tradicionais desenvolvidas por curandeiros, rezadores, benzedeiros e outros; e o popular, com reverência ao campo leigo, onde estão localizadas as atividades de automedicação e a ajuda de amigos e familiares1010 Peroni FMA. Tecendo redes: itinerários terapêuticos de pacientes com câncer na macrorregião de Campinas, SP [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2013..

As pesquisas sobre os itinerários terapêuticos em comunidades quilombolas no Brasil e as práticas de cuidado dessa população são pouco exploradas. A compreensão sobre esses caminhos possibilita uma maior visibilidade para as experiências vivenciadas e o reconhecimento das escolhas de cuidado assumidos.

Discussões nacionais e internacionais vêm sendo promovidas para analisar intervenções nas demandas e necessidades de saúde de populações tradicionais, em específico dos quilombolas, com a instituição de ações de promoção e fortalecimento do cuidado integral nos diversos níveis do Sistema Único de Saúde (SUS)55 Miranda SVC, Oliveira PSD, Moraes VCM, Vasconcellos LCF. Necessidades e reivindicações de homens trabalhadores rurais frente à atenção primária à saúde. Trab Educ Saude 2020; 18(1):e0022858.. Nesse sentido, este artigo teve como objetivo mapear os itinerários terapêuticos no cuidado em saúde em comunidades quilombolas rurais no norte de Minas Gerais, Brasil.

Métodos

Trata-se de um recorte de uma pesquisa qualitativa intitulada “Situação de saúde e trabalho de famílias quilombolas rurais”, conduzida por uma equipe multiprofissional no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).

Adotou-se o referencial teórico dos itinerários terapêuticos, fundamentado no modelo de sistema de cuidados à saúde proposto por Arthur Kleimann88 Kleinman A. Patients and healers in the context of culture. Berkeley: University of California Press; 1980.. A utilização dos itinerários terapêuticos enquanto ferramenta teórico-metodológica na investigação permite uma prática reveladora e eficaz na compreensão da vivência do adoecimento e da busca do cuidado1111 Burille A, Gerhardt TE. Doenças crônicas, problemas crônicos: encontros e desencontros com os serviços de saúde em itinerários terapêuticos de homens rurais. Saude Soc 2014; 23(2):664-676..

O estudo foi desenvolvido na macrorregião norte do estado de Minas Gerais, Brasil. No estado, existem 397 comunidades quilombolas, distribuídas por mais de 155 municípios. Entre elas, 310 receberam a certificação pela Fundação Cultural Palmares. O norte de Minas Gerais é a região com a maior concentração de quilombos, com 79 comunidades em 28 municípios1212 Fundação Cultural Palmares. Quadro geral de comunidades remanescentes de quilombos (CRQs) [Internet]. 2019. [acessado 2023 ago 3]. Available from: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2015/07/tabela-de-crq-completa-quadro-geral-3.pdf
http://www.palmares.gov.br/wp-content/up...
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Foram utilizados dados de seis comunidades visitadas na pesquisa, a saber: Pé da Serra, no município de Januária; Mocambo, no município de Bocaiúva; Vila Nova de Poções, no município de Janaúba; Brejo dos Crioulos, no município de São João da Ponte; São Geraldo, no município de Coração de Jesus; e Poções, no município de Francisco Sá.

O projeto foi apresentado na reunião mensal do Conselho Regional Quilombola para as lideranças de cada comunidade, e realizado o contato com representantes das Secretarias Municipais de Saúde, Estratégia de Saúde da Família (ESF) e agentes comunitários de saúde (ACS) dos territórios. A sensibilização ocorreu durante o mapeamento em campo das comunidades, onde a equipe de pesquisa, os informantes-chave e os ACS informaram aos moradores presentes nos domicílios sobre o estudo e enviaram os convites para os diálogos.

A produção de dados no campo ocorreu no período de janeiro a setembro de 2019, com a realização, pelos autores, de 30 entrevistas semiestruturadas nos próprios domicílios e em espaços que propiciaram a privacidade das conversas, com indivíduos maiores de 18 anos, de ambos os sexos, que se auto-referiram como quilombolas e que residiam nas comunidades visitadas.

Também foram registradas observações sistemáticas dos encontros com os entrevistados em um diário de pesquisa. Para a compreensão dos itinerários terapêuticos, selecionamos três usuários por comunidade, totalizando 18 entrevistas narrativas, que traziam conteúdos mais profundos sobre a temática e que abordaram questões norteadoras relacionadas à experiência de adoecimento, práticas desenvolvidas e caminhos percorridos na procura por cuidados de saúde.

As entrevistas tiveram duração média de 50 minutos, com áudio gravado e posteriormente transcrito na íntegra e seus conteúdos submetidos a análise, codificação e compreensão da coerência. O critério utilizado para o término da pesquisa de campo foi o de saturação de dados1313 Orlandi E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores; 2007.. Como ocorreu uma diminuição no aparecimento de novos objetos discursivos e o adensamento teórico baseado nos dados empíricos disponíveis para análise e interpretação dos pesquisadores, a amostra foi considerada suficiente para a compreensão em profundidade do fenômeno.

Para a interpretação dos dados, foi utilizada a técnica de análise de discurso1313 Orlandi E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores; 2007.. Na primeira etapa, efetuamos a leitura e releitura de todas as entrevistas, conferindo materialidade aos discursos e inserindo-os em uma matriz de análise elaborada pelos autores. Esse procedimento permitiu a conversão da superfície linguística (corpus bruto) em objetos discursivos. Na segunda etapa, ocorreu a passagem do objeto discursivo para o processo discursivo, por meio da análise de todas as superfícies discursivas e ideológicas identificadas nas falas (interdiscurso e intradiscurso). Finalmente, na terceira etapa, constituímos os processos discursivos com a articulação do enunciado com a enunciação e a compreensão dos processos de subjetividades presentes nos itinerários terapêuticos percorridos.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Montes Claros, sob o parecer nº 2.821.454, de 14 de agosto de 2018. Foram cumpridas todas as exigências das resoluções nº 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, garantindo-se a preservação do sigilo das informações.

Resultados e discussão

Caracterização dos territórios e participantes

Para entender o itinerário terapêutico no cuidado em saúde nas comunidades quilombolas, foi analisado o contexto territorial e sociocultural, considerando as diversas modalidades e práticas de cuidado presentes nesses territórios.

As características gerais dos quilombos se assemelham entre si em toda a região visitada. Existem comunidades mais estruturadas, com casas próximas umas das outras, ruas asfaltadas e comunidades com casas dispersas, sendo algumas muito distantes. Em quase todas as comunidades são encontradas uma pequena igreja católica, uma igreja evangélica e uma associação comunitária quilombola. Não foi citada a presença de terreiros para a realização de cerimonias de religião de matriz africana. Existem também pequenos comércios de variedades e bebidas. A maioria das comunidades não tem escola, sendo necessário os estudantes se deslocarem até os distritos rurais maiores ou para a sede dos municípios. No período de seca, enfrentam muita poeira e buracos nas estradas, e no tempo chuvoso, atoleiros e alagamentos.

Entre os participantes, dez eram do sexo masculino e oito do sexo feminino, com idades de 25 a 67 anos, sendo dez casados, cinco solteiros e três viúvos. Em relação à religião, nove eram católicos, cinco evangélicos e quatro umbandistas. A maioria se autodeclarou negra, apresentando ensino fundamental incompleto, principal ocupação como trabalhador rural e empregada doméstica e renda familiar menor do que um salário-mínimo.

Os principais problemas de saúde apresentados foram o uso abusivo de álcool, depressão, hipertensão arterial, diabetes mellitus, distúrbios osteomusculares, doenças do aparelho respiratório e gastrointestinal e cânceres de próstata e útero. Nenhum dos participantes tinha plano de saúde e dependiam exclusivamente de práticas tradicionais e dos atendimentos ofertados pelo SUS.

Observou-se nos quilombos a existência de acompanhamentos de saúde por equipes da ESF. Os médicos, enfermeiros e dentistas atendem de três a quatro vezes por semana nas unidades básicas de saúde dos maiores distritos. Algumas comunidades recebem o atendimento médico uma vez por mês, na sede das associações, em galpões ou na casa de algum morador. Os ACS forneceram orientações de prevenção e cuidados com doenças por meio de visitas domiciliares e reuniões na comunidade.

Com a análise dos dados, as falas dos pesquisados foram situadas no seu contexto, sendo identificados três temas empíricos para melhor compreensão dos resultados: O conhecimento popular como práticas de cuidado em saúde da população quilombola”, “Os diversos pontos de cuidado profissional percorridos pela população quilombola” e “As dificuldades enfrentadas pela população quilombola no acesso aos cuidados à saúde” (Figura 1). Esses temas serão discutidos a seguir.

Figura 1
Fluxograma do itinerário terapêutico no cuidado em saúde nas comunidades quilombolas.

O conhecimento popular como prática de cuidado em saúde da população quilombola

As narrativas permitiram a compreensão dos percursos trilhados pelos quilombolas no cuidado à saúde. Frente às dificuldades de acesso aos componentes do subsistema profissional de cuidado em saúde, essa população busca solucionar seus agravos e/ou processos de adoecimento embasados nas práticas tradicionais, que compreendem o subsistema popular e familiar. Nessas comunidades, o cuidado em saúde está atrelado a uma dimensão maior, vinculada às determinações históricas dos modos de viver de cada território e de sua ancestralidade1414 Fernandes SL, Santos, AO. Itinerários terapêuticos e formas de cuidado em um quilombo do agreste alagoano. Psicol Cienc Prof 2019; 39(Esp.):e222592..

Alguns entrevistados destacaram a importância do conhecimento popular no cuidado em saúde, sendo essa prática repassada e preservada historicamente pelos moradores das comunidades visitadas.

A gente costuma fazer remédio caseiro. Meu quintal é igual uma farmácia, tem remédio pra tudo, os vizinhos me pedem e eu dou. Faz chá, xarope, pomada. Chá de capim santo e hortelã, que serve para a gripe e tosse (Mulher 6).

Se a criança tiver chorando muito, a gente dá chá pra cólica. Meu filho foi consultar a primeira vez com dois anos. No quilombo, quando as crianças sentem alguma coisa, a gente prepara um chazinho (Mulher 7).

Eu gosto de fazer uns chás para a pressão e para o diabetes. Chá de mangaba, aquele de cavalinha, erva cidreira. O que o povo fala que é bom eu corro e peço minha mulher para fazer (Homem 10).

Nos subsistemas popular e familiar, o cuidado é exercido de maneira informal, geralmente por algum familiar ou membro comunitário. Esse conhecimento é oriundo do senso comum, passado de geração para geração, incluindo as experiências e compreensões acerca do adoecimento e das práticas de cuidado88 Kleinman A. Patients and healers in the context of culture. Berkeley: University of California Press; 1980.. As comunidades visitadas dependem diretamente dos seus hábitos de vida e dos recursos vegetais para suas práticas de cura.

O uso constante dos remédios caseiros à base de chás e de ervas, as garrafadas de raízes e plantas medicinais é uma forte influência cultural quilombola1515 Siqueira SMC, Jesus VS, Camargo, CL. Itinerário terapêutico em situações de urgência e emergência pediátrica em uma comunidade quilombola. Cien Saude Colet 2016; 21(1):179-189.. Outras práticas de cuidados populares muito utilizadas por essa população incluem os acompanhamentos com parteiras, rezadeiras, benzedeiras e puxadores1414 Fernandes SL, Santos, AO. Itinerários terapêuticos e formas de cuidado em um quilombo do agreste alagoano. Psicol Cienc Prof 2019; 39(Esp.):e222592.,1616 Vieira ABD, Monteiro PS. Comunidade quilombola: análise do problema persistente do acesso à saúde, sob o enfoque da Bioética de Intervenção. Saude Debate 2013; 37(99):610-618.. Porém, essas modalidades de cuidado, incluindo a procura por esses cuidadores tradicionais de saúde local e as práticas relacionadas à cultura afrodescendente, não foram citadas pelos entrevistados.

Percebe-se que a questão de gênero também influencia as práticas de cuidado popular nas comunidades quilombolas. As mulheres, sobretudo as mais velhas, demostraram maior conhecimento acerca da utilização das plantas medicinais do que os homens. Essa situação pode ser explicada pelo fato de as mulheres quilombolas, além dos cuidados com a casa, serem lavradoras, mães, avós e esposas, sendo responsáveis pelas estratégias de manutenção da saúde da família e do cultivo de plantas medicinais nos quintais1414 Fernandes SL, Santos, AO. Itinerários terapêuticos e formas de cuidado em um quilombo do agreste alagoano. Psicol Cienc Prof 2019; 39(Esp.):e222592..

Esse conhecimento popular é considerado um importante recurso no cuidado de saúde, especialmente entre as famílias mais vulneráveis, a exemplo das famílias quilombolas. Kleinman88 Kleinman A. Patients and healers in the context of culture. Berkeley: University of California Press; 1980. afirma que o “setor popular”, composto por indivíduos, famílias e arena social, influencia positivamente nas tomadas de decisão acerca do cuidado frente ao adoecimento agudo ou crônico. O território rural aparece também como um elemento na reprodução dessas práticas tradicionais de cuidado à saúde quilombola1313 Orlandi E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores; 2007.,1616 Vieira ABD, Monteiro PS. Comunidade quilombola: análise do problema persistente do acesso à saúde, sob o enfoque da Bioética de Intervenção. Saude Debate 2013; 37(99):610-618..

Outro ponto também observado nas falas dos quilombolas diz respeito ao conhecimento transgeracional:

Eu aprendi com a minha mãe e a minha avó que, se a gente estiver sentindo alguma dor, tem uns matinhos aí que servem. É uma tradição os povos mais velhos ensinar a gente a fazer esses tratamentos com a ervas (Mulher 3).

Pro intestino a gente toma a folha de mamão, de laranja, que foi minha vó e minha tia que me ensinou (Homem 9).

A gente faz um monte de remédio que o povo mais velho ensina que é bom para próstata... um chá de noni. Eu fazia a garrafada e tomava por dia junto com os remédios que o médico passou. Foi isso que diminuiu o tamanho da minha próstata (Homem 10).

O uso de ervas medicinais, muitas delas cultivadas no próprio quintal, constitui uma prática secular baseada no conhecimento popular e transmitida oralmente. Para Souza et al.66 Souza RF, Rodrigues ILA, Pereira AA, Nogueira LMV, Andrade GR, Pinheiro AKC. Condições de saúde e relação com os serviços de saúde na perspectiva de pessoas de quilombo. Esc Anna Nery 2023; 27:e20220164., os conhecimentos sobre as plantas e ervas, bem como o preparo medicinal, demonstram a riqueza tradicional difundida pelos ancestrais quilombolas ao longo dos anos, reafirmando a confiabilidade nos efeitos benéficos dessas plantas e ervas que são utilizadas como primeira estratégia terapêutica, e, quando não solucionados os problemas, recorrem ao subsistema profissional.

Essa transmissão de conhecimentos de geração em geração expressa vivências e experiências de cuidado em saúde, além de fornecer um conjunto de sentidos, expectativas e normas que conduzem os indivíduos quilombolas, suas famílias e também a comunidade na manutenção dos cuidados providos nos subsistemas popular e familiar1515 Siqueira SMC, Jesus VS, Camargo, CL. Itinerário terapêutico em situações de urgência e emergência pediátrica em uma comunidade quilombola. Cien Saude Colet 2016; 21(1):179-189.,1616 Vieira ABD, Monteiro PS. Comunidade quilombola: análise do problema persistente do acesso à saúde, sob o enfoque da Bioética de Intervenção. Saude Debate 2013; 37(99):610-618..

Os diversos pontos de cuidado profissional percorridos pela população quilombola

As instituições de saúde, sejam elas relacionadas à atenção primária, secundária ou terciária, são componentes do subsistema profissional. Esses serviços são representados pelas práticas profissionais de cuidado, que consistem na assistência prestada por trabalhadores de nível médio, técnico e superior na área da saúde1515 Siqueira SMC, Jesus VS, Camargo, CL. Itinerário terapêutico em situações de urgência e emergência pediátrica em uma comunidade quilombola. Cien Saude Colet 2016; 21(1):179-189..

Foi possível perceber uma valorização do nível hospitalar, tanto por homens quanto por mulheres quilombolas, para a resolução dos seus problemas de saúde

Eu senti uma dor forte no pé da barriga e aquele negócio foi só piorando e meu pai me levou correndo para o hospital (Mulher 6).

Tava com dor na coluna e o médico passou umas injeções. No PSF não atende todo dia... então tive que ir no hospital na cidade (Homem 5).

Procurei o hospital quando endoidei aqui em casa. Saí três horas da manhã sem rumo. Sempre que sinto isso eu vou para o hospital e fico internado tomando soro para acalmar (Homem 1).

Para a pressão alta eu consulto no hospital. Aqui no quilombo tem o posto de saúde, mas não resolve quase nada. Então eu procuro direto o hospital, que é mais completo (Homem 2).

No Brasil, a busca pela assistência à saúde ainda é predominantemente baseada em um modelo de valorização da demanda espontânea, na procura pela intervenção sobre a doença e o corpo doente, assim como em procedimentos e serviços especializados1717 Melo CMM, Florentino TC, Mascarenhas NB, Macedo KS, Silva MC, Mascarenhas SN. Autonomia profissional da enfermeira: algumas reflexões. Esc Anna Nery 2016; 20(4):e20160085.,1818 Paula R, Lefevre F, Lefevre AMC, Galesi VMN, Schoeps D. Why do tuberculosis patients look for urgency and emergency unities for diagnosis: a study on social representation. Rev Bras Epidemiol 2014; 17(3):600-614.. Estudo realizado por Souza et al.66 Souza RF, Rodrigues ILA, Pereira AA, Nogueira LMV, Andrade GR, Pinheiro AKC. Condições de saúde e relação com os serviços de saúde na perspectiva de pessoas de quilombo. Esc Anna Nery 2023; 27:e20220164. evidenciou que as percepções dos quilombolas sobre saúde ainda se encontram ligadas ao modelo biomédico, com visão hospitalocêntrica.

Esse fato está relacionado à cultura do imediatismo, pois a população quer ser atendida rapidamente, e à fragilidade dos quilombolas no acesso aos serviços de saúde locais. Cenários como esse acabam limitando o conceito de saúde como ausência de doença, bom condicionamento físico, força e destreza para trabalhar1717 Melo CMM, Florentino TC, Mascarenhas NB, Macedo KS, Silva MC, Mascarenhas SN. Autonomia profissional da enfermeira: algumas reflexões. Esc Anna Nery 2016; 20(4):e20160085.,1818 Paula R, Lefevre F, Lefevre AMC, Galesi VMN, Schoeps D. Why do tuberculosis patients look for urgency and emergency unities for diagnosis: a study on social representation. Rev Bras Epidemiol 2014; 17(3):600-614..

Apesar de inegáveis avanços obtidos no SUS com a implantação da ESF, seus princípios orientadores ainda não são uma realidade no cotidiano da maioria dos serviços de saúde, muito menos na zona rural55 Miranda SVC, Oliveira PSD, Moraes VCM, Vasconcellos LCF. Necessidades e reivindicações de homens trabalhadores rurais frente à atenção primária à saúde. Trab Educ Saude 2020; 18(1):e0022858.. Na atenção primária à saúde (APS), os desafios impostos por um modelo urbano de saúde da família, replicado em territórios rurais e/ou quilombolas, acabam gerando atendimentos fragmentados e insuficientes em relação às necessidades de saúde dessas populações, além de deslocar a procura desses usuários pelos serviços hospitalares66 Souza RF, Rodrigues ILA, Pereira AA, Nogueira LMV, Andrade GR, Pinheiro AKC. Condições de saúde e relação com os serviços de saúde na perspectiva de pessoas de quilombo. Esc Anna Nery 2023; 27:e20220164..

As comunidades quilombolas, por sua condição de extrema vulnerabilidade, ainda não foram contempladas efetivamente com serviços integrais, equânimes e resolutivos da APS. Importante destacar que essas limitações e dificuldades de acesso à saúde nesses territórios existem e que avanços nas políticas de saúde são necessárias para o fortalecimento do cuidado em saúde integral e longitudinal dos indivíduos, das famílias e da comunidade55 Miranda SVC, Oliveira PSD, Moraes VCM, Vasconcellos LCF. Necessidades e reivindicações de homens trabalhadores rurais frente à atenção primária à saúde. Trab Educ Saude 2020; 18(1):e0022858.,66 Souza RF, Rodrigues ILA, Pereira AA, Nogueira LMV, Andrade GR, Pinheiro AKC. Condições de saúde e relação com os serviços de saúde na perspectiva de pessoas de quilombo. Esc Anna Nery 2023; 27:e20220164..

Por meio do referencial do itinerário terapêutico, compreendemos como os usuários entram em contato com os serviços de saúde, conectando-se a eles por meio de fluxos comunicantes por onde transitam as ofertas, demandas, desejos e efetivações de suas expectativas1414 Fernandes SL, Santos, AO. Itinerários terapêuticos e formas de cuidado em um quilombo do agreste alagoano. Psicol Cienc Prof 2019; 39(Esp.):e222592.,1515 Siqueira SMC, Jesus VS, Camargo, CL. Itinerário terapêutico em situações de urgência e emergência pediátrica em uma comunidade quilombola. Cien Saude Colet 2016; 21(1):179-189.. Fernandes e Santos1414 Fernandes SL, Santos, AO. Itinerários terapêuticos e formas de cuidado em um quilombo do agreste alagoano. Psicol Cienc Prof 2019; 39(Esp.):e222592. comprovaram que essas escolhas e decisões que moldam os itinerários terapêuticos são produzidas no campo da autonomia dos sujeitos e nas relações de força, em que os coletivos negociam seus recursos, conhecimentos e poder, que podem limitar ou potencializar a capacidade de decisão, escolha e ação do cuidado em saúde.

Nos diálogos com alguns entrevistados, foi possível identificar a existência de um olhar para outros pontos que compõem a Rede de Atenção à Saúde (RAS) e são locais de procura por atendimento pela população quilombola. Entre esses serviços, destacam-se os ofertados pela ESF.

Depois que tem o PSF aqui [Vila Nova de Poções]... eu procuro é lá. É mais perto para a gente estar indo. Tem o médico e as meninas que medem a pressão. Tô fazendo o acompanhamento com eles (Homem 6).

Tive um problema de saúde e fui no PSF. Era uns vermes. O médico passou uns remédios para eu tomar e eu dei uma melhorada boa (Mulher 1).

Eu faço tudo é no PSF. A vacina da gripe eu tomo todo ano e tem também o dentista que atende no posto de saúde. A gente é bem tratado (Homem 5).

A criação do SUS representou a inclusão e a ampliação do acesso às políticas públicas, às ações e aos serviços de saúde. Entre as principais, a ESF se estrutura no reconhecimento das necessidades da população, apreendidas a partir do estabelecimento de vínculos entre os usuários e os profissionais de saúde66 Souza RF, Rodrigues ILA, Pereira AA, Nogueira LMV, Andrade GR, Pinheiro AKC. Condições de saúde e relação com os serviços de saúde na perspectiva de pessoas de quilombo. Esc Anna Nery 2023; 27:e20220164.. Nesse sentido, a política de atenção básica à saúde nas comunidades quilombolas pode ter alta resolubilidade, quando efetivamente implantada e suas ações são desenvolvidas pelas equipes de saúde destes territórios1414 Fernandes SL, Santos, AO. Itinerários terapêuticos e formas de cuidado em um quilombo do agreste alagoano. Psicol Cienc Prof 2019; 39(Esp.):e222592..

Os arranjos organizativos da RAS apresentam diferentes densidades tecnológicas, que, integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado1919 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União 2010; 31 dez.. No território quilombola, esse modelo tem favorecido o alcance de resultados positivos, principalmente nos pacientes acometidos por doenças crônicas, proporcionando mudanças na realidade dos indicadores de saúde quilombola, bem como a garantia dos objetivos da PNSIPN, por meio do reconhecimento das heterogeneidades que a população negra vivencia no acesso à saúde1414 Fernandes SL, Santos, AO. Itinerários terapêuticos e formas de cuidado em um quilombo do agreste alagoano. Psicol Cienc Prof 2019; 39(Esp.):e222592..

Interessante destacar que alguns entrevistados reconhecem a importância do CAPS nos casos de cuidados à saúde mental:

O médico me deu um papel para procurar o CAPS. Depois de um tempo, eu fui e eles conversaram muito comigo. Lá a gente deve fazer um acompanhamento... eu estou gostando muito (Homem 1).

Eu já fiquei internada uma vez por causa da bebida... mais foi lá em Francisco Sá. Uma vez, a mãe tentou me internar em uma clínica em Montes Claros, só que eu não fui. Eu passei foi por consulta aqui mesmo naquele trem de CAP [CAPS] (Mulher 5).

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) constituem-se como pontos estratégicos da rede de atenção psicossocial, ofertando atendimento às pessoas com sofrimento psíquico, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, em sua área territorial, seja em situações de crise ou nos processos de reabilitação2020 Guimarães JMXG, Sampaio JJC. Inovação na gestão em saúde mental: incorporação de tecnologias e (re)invenção nos centros de atenção psicossocial. Fortaleza: EdUECE; 2016.. O estudo de Alciole e Silva2121 Aciole DCAM, Silva J. Concepções e Itinerários Terapêuticos de pessoas em sofrimento psíquico em contextos quilombolas. Psicol Soc 2021; 33:e229558., relacionado com o sofrimento psíquico da população quilombola, revelou que a internação em hospitais psiquiátricos foi um dos recursos utilizados.

Outros pontos de atenção à saúde da rede do SUS foram apontados no itinerário de cuidado de dois entrevistados que necessitaram de assistência especializada de média e alta complexidade:

Eu tenho diabetes e tava emagrecendo, urinando muito. A médica do PSF pediu para marcar uma consulta com um especialista. A ACS marcou em Montes Claros. Consultei lá porque meu caso era de risco (Mulher1).

Fiz o exame de sangue da próstata e tava alterado e a médica pediu a biopsia, aí deu algo ruim... porque ela disse: “O senhor vai ter que consultar em Montes Claros”, e me mandou para o Hospital Dilson Godinho [referência em oncologia]. Não fiz cirurgia, só a rádio [radioterapia]. Agora tem que ficar de seis em seis meses caminhando nesse acompanhamento... (Homem 7).

Muitos usuários com doenças crônicas ou casos mais complexos necessitam de avaliação e assistência em um serviço especializado, seja para exames complementares não ofertados pela APS ou para otimização de um tratamento anteriormente disponibilizado2222 Ribeiro SP, Cavalcanti MLT. Atenção Primária e Coordenação do Cuidado: dispositivo para ampliação do acesso e a melhoria da qualidade. Cien Saude Colet 2020; 25(5):1799-1808.,2323 Neves CAB. Manual de práticas da atenção básica: saúde ampliada e compartilhada. Cad Saude Publica 2011; 27(4):817-819.. Souza et al.66 Souza RF, Rodrigues ILA, Pereira AA, Nogueira LMV, Andrade GR, Pinheiro AKC. Condições de saúde e relação com os serviços de saúde na perspectiva de pessoas de quilombo. Esc Anna Nery 2023; 27:e20220164. revelam em seu estudo que a APS constitui uma importante ferramenta na promoção da integralidade do cuidado em saúde quilombola, direcionando os usuários aos serviços por meio de sua capilarização territorial e dos demais espaços intersetoriais disponibilizados.

As dificuldades enfrentadas pela população quilombola no acesso aos cuidados à saúde

As dificuldades do acesso aos serviços de saúde para a população quilombola pesquisada se relacionam principalmente aos aspectos geográficos e à baixa oferta de serviços de saúde próximos de seu território. Nesse cenário, devemos levar em consideração os fatores econômicos, sociais, culturais, raciais, religiosos, epidemiológicos e de organização da rede do SUS. Esses problemas de acesso ficaram evidentes pelas narrativas a seguir.

Aqui no quilombo é muito longe da cidade (São João da Ponte). As estradas são muito ruins, com muito buraco, e na época da chuva não dá para passar. A gente sofre muito quando precisa de atendimento em caso de doença (Homem 3).

Eu moro há mais de 60 km de Januária. Tudo é muito longe e sem transporte para a cidade. O jeito é se virar para ir consultar ou fazer algum exame (Mulher 8).

Quando não tá tendo médico aqui no quilombo eu vou em Janaúba ou no posto de saúde da comunidade vizinha. O ruim é que chego tarde... porque demora muito a caminhada e as fichas já tão tudo cheias, então eu prefiro ir na cidade (Homem 4).

Pesquisas realizadas por Burille e Gerhardt11 e Soares et al. 2424 Soares NA, Silva TL, Franco AAAM, Maia TF. Cuidado em saúde às populações rurais: perspectivas e práticas de agentes comunitários de saúde. Physis 2020; 30(3):e300332. destacaram como principal dificuldade de acesso pelas populações rurais a ausência de meios de locomoção próprios (bicicletas, motocicletas ou carro), com os usuários se deslocando a pé, em ônibus escolares ou de táxi. Na busca de uma solução para o problema, os usuários percorrem no SUS inúmeros caminhos, desenhando seus itinerários terapêuticos, conforme destacados na Figura 1.

De acordo com Siqueira et al.1515 Siqueira SMC, Jesus VS, Camargo, CL. Itinerário terapêutico em situações de urgência e emergência pediátrica em uma comunidade quilombola. Cien Saude Colet 2016; 21(1):179-189., a peregrinação dos quilombolas na busca por atendimento é caraterizada como uma das formas de exposição desses usuários ao racismo institucional. A prática do racismo institucional na saúde acaba afetando principalmente as populações negra e indígena. Nesse cenário, incluímos a população quilombola rural, que apresenta invisibilidade de indicadores relacionados às doenças mais prevalentes, à dificuldade da inclusão dessa população nas políticas públicas de saúde, ao acesso aos insumos, medicamentos e sistemas de apoio e logísticos2525 Anunciação D, Pereira LL, Silva HP, Nunes APN, Soares JO. (Des)caminhos na garantia da saúde da população negra e no enfrentamento ao racismo no Brasil. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3861-3870..

Essa situação acaba determinando desigualdades nos perfis de adoecimento, cuidado e morte entre brancos e negros. A PNSIPN visa garantir a equidade na atenção à saúde dessa população, mas são percebidas dificuldades na efetivação dessa política e fragilidade entre o que é preconizado e as ações executadas1414 Fernandes SL, Santos, AO. Itinerários terapêuticos e formas de cuidado em um quilombo do agreste alagoano. Psicol Cienc Prof 2019; 39(Esp.):e222592.,1515 Siqueira SMC, Jesus VS, Camargo, CL. Itinerário terapêutico em situações de urgência e emergência pediátrica em uma comunidade quilombola. Cien Saude Colet 2016; 21(1):179-189.. Quando abordamos o acesso à saúde no SUS pelas populações quilombolas, devemos destacar a persistência das questões raciais e das iniquidades vivenciadas por essas comunidades.

O racismo faz parte da determinação social da saúde, afetando a população quilombola em todas as etapas de sua vida e do cuidado em saúde. De acordo com Anunciação et al.2525 Anunciação D, Pereira LL, Silva HP, Nunes APN, Soares JO. (Des)caminhos na garantia da saúde da população negra e no enfrentamento ao racismo no Brasil. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3861-3870., as instituições de saúde integrantes da RAS, ao fazerem parte de uma sociedade estruturalmente racista, são configuradas por meio dessa mesma estrutura, expressando distinções na atenção à saúde, iniquidades de acesso aos serviços e diferenças na oferta dos cuidados.

Os pesquisados relataram também a necessidade de pagamento para deslocamentos até os serviços de saúde e para a realização de procedimentos não cobertos e/ou não agendados pelo SUS.

O povo do quilombo, quando precisa ir consultar na cidade [Januária], tem que pagar de 60,00 a 70,00 reais para ir de táxi. Quando não tá tendo o dinheiro do transporte, fica sem consultar (Mulher 2).

A gente mora longe de tudo... é muito difícil ir na cidade só para consultar. Fica muito caro e muitas das vezes não acha de que ir (Homem 8).

Os moradores de comunidades rurais têm uma menor oferta de serviços nas proximidades de seus territórios2626 Arruda NM, Maia AG, Alves LC. Desigualdade no acesso à saúde entre as áreas urbanas e rurais do Brasil: uma decomposição de fatores entre 1998 a 2008. Cad Saude Publica 2018; 34(6):e00213816.. Realidade semelhante foi observada no estudo realizado por Soares et al.2424 Soares NA, Silva TL, Franco AAAM, Maia TF. Cuidado em saúde às populações rurais: perspectivas e práticas de agentes comunitários de saúde. Physis 2020; 30(3):e300332., em que os entrevistados relataram que a população rural assume o ônus físico e financeiro do deslocamento até a cidade para fazer exames, significando novas barreiras de acesso ao cuidado pelos altos valores que gastariam no deslocamento.

A oferta insuficiente ou inexistente de consultas e/ou procedimentos especializados no SUS também impõe graves restrições de acesso a esses cuidados para a população quilombola. Quando existe essa dificuldade, as necessidades de saúde dos entrevistados não são atendidas.

Da vez que precisei de tratamento foi por uma úlcera no intestino. A cirurgia ficava cara... três mil reais naquela época (Homem 2).

Estou fazendo um tratamento no útero, que descobri através da prevenção com a enfermeira. Uma parte do tratamento fiz de graça, mas devido à demora para marcar, eu tive que pagar (Mulher 4).

A gente é pobre... trabalha na roça. Quando adoece e precisa de um exame ou um tratamento mais apurado, não consegue de graça porque não tem o aparelho ou o médico especializado (Homem 2).

No Brasil, a disponibilidade dos serviços públicos de saúde é influenciada por fatores como estrutura física, tipo de atendimento, quantidade de vagas disponíveis, recursos financeiros, capacidade de pagamento, continuidade e acessibilidade aos serviços de saúde11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Políticas de promoção da equidade em saúde. Brasília: MS; 2013.,2727 Silva CR, Silva CR, Carvalho BG, Júnior LC, Nunes EFPA. Dificuldade de acesso a serviços de média complexidade em municípios de pequeno porte: um estudo de caso. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1109-1120.. Entre as possíveis causas do problema de acesso a consultas especializadas no SUS, são apontados o número de médicos especialistas e equipamentos de saúde insuficiente, dificuldade de fixação dos médicos especialistas no interior, alta dependência do setor privado, redução da participação da União e dos estados na oferta e no financiamento de serviços de média e alta complexidade2727 Silva CR, Silva CR, Carvalho BG, Júnior LC, Nunes EFPA. Dificuldade de acesso a serviços de média complexidade em municípios de pequeno porte: um estudo de caso. Cien Saude Colet 2017; 22(4):1109-1120..

Especificamente, a população quilombola apresenta condições socioeconômicas desfavoráveis, sendo que, em sua maioria, vive em condições de extrema pobreza, com renda familiar per capita mensal menor que meio salário-mínimo e mesmo assim precisa providenciar por meios próprios o custeio de alguns procedimentos de saúde. Ao assumir algum gasto não previsto no seu orçamento, acaba comprometendo o orçamento familiar e necessita optar por não consumir outros bens fundamentais1515 Siqueira SMC, Jesus VS, Camargo, CL. Itinerário terapêutico em situações de urgência e emergência pediátrica em uma comunidade quilombola. Cien Saude Colet 2016; 21(1):179-189.,2828 Gomes KO, Reis EA, Guimarães MDC, Cherchiglia ML. Utilização de serviços de saúde por população quilombola do Sudoeste da Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2013; 29(9):1829-1842..

Considerações finais

O estudo permitiu compreender como ocorre a construção dos itinerários terapêuticos nas comunidades quilombolas visitadas. As práticas de cuidado em saúde são instituídas pela população local por meio dos componentes dos subsistemas popular, familiar e profissional. O saber popular continua representando uma importante e potente ferramenta de cuidado para a população quilombola, exercitado junto aos familiares e no contexto das comunidades.

As mulheres, sobretudo as mais velhas, e os homens quilombolas exploram os diversos recursos naturais, como o uso de chás, remédios caseiros, entre outros, para fins terapêuticos. A transmissão desse conhecimento ocorre entre as gerações, demonstrando uma forte herança cultural de cuidados. O subsistema popular representa o primeiro recurso a ser procurado, e quando esses cuidados não são resolutivos ou em casos com maior gravidade, acabam buscando o subsistema profissional, representado por fluxos e serviços dos diversos níveis de atenção da RAS.

Nos percursos trilhados, percebe-se uma valorização do nível hospitalar para a resolução dos problemas de saúde, o que não ocorre apenas a partir da concepção cultural dos quilombolas, mas também frente a dificuldades relacionadas ao acesso à APS. Identificamos também uma procura pelos serviços e ações ofertados pelas equipes de ESF, pelo CAPS nos casos de cuidados à saúde mental e outros pontos da rede SUS.

As dificuldades de acesso se relacionam ao aspecto racial com destaque para a presença e manutenção do racismo institucional, que impede o estabelecimento de uma atenção integral e acarreta processos de exclusão e adoecimento. Além dos aspectos geográficos, há baixa oferta de serviços da APS próximos aos territórios quilombolas, necessidade de pagamento para deslocamentos e para se submeter a procedimentos não cobertos pelo SUS.

Nesse sentido, fazem-se necessárias intervenções permanentes das políticas públicas em questões étnico-raciais, econômicas e de acesso aos serviços de saúde, que são causas de iniquidades sociais na população quilombola. As comunidades quilombolas e os profissionais de saúde da rede SUS devem lutar pela promoção da saúde integral dessa população, priorizando a redução das desigualdades identificadas nos itinerários terapêuticos e no fortalecimento do processo histórico-cultural.

Agradecimentos

Aos homens e mulheres quilombolas que permitiram conhecer os percursos trilhados na busca do cuidado em saúde, à orientadora da pesquisa, aos alunos de iniciação científica voluntária e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2023
  • Aceito
    17 Jun 2023
  • Publicado
    19 Jun 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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