Violência e vulnerabilização: o cotidiano de jovens negros e negras em periferias de duas capitais brasileiras

Maria Edna Bezerra Silva Diana Anuciação Leny Alves Bonfim Trad Sobre os autores

Resumo

A violência é um grave problema de saúde pública e constitui um fenômeno sócio-histórico, com causas e consequências diversas e múltiplas expressões. As principais vítimas seguem sendo as populações vulnerabilizadas e periféricas, nas quais se interseccionam dimensões como gênero, classe, raça e pertencimento social. Embora as questões étnico-raciais estejam presentes nos estudos que explicam o fenômeno da violência, estes tendem a não a considerar também fruto do racismo institucional. Este artigo pretende analisar dados de uma pesquisa quali-quanti que avaliou experiências de violência simbólica e estrutural vivenciadas por jovens negros/as de 15 a 29 anos de idade e moradores/as de bairros periféricos de duas capitais brasileiras - Recife e Fortaleza, a partir de grupos focais e entrevistas semiestruturadas. Foram enfatizados os lugares de fala que situavam a interseccionalidade, sobretudo de raça/cor da pele, pertencimento territorial e classe, na própria definição identitária. Em ambas as capitais a juventude negra trouxe à tona uma realidade comum: um horizonte limitado na definição de projetos de vida, tanto por questões econômicas quanto da demarcação concreta ou simbólica de lugares sociais para os quais seu acesso é interditado.

Palavras-chave:
Violência; Interseccionalidade; Vulnerabilidade social; Juventude negra Racismo estrutural

Introdução

A violência é um grave problema de saúde pública11 Organização Mundial de Saúde (OMS). Relatório mundial sobre a prevenção da violência. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo; 2015. e constitui, ao longo da história da humanidade, um fenômeno sócio-histórico, com causas e processos diversos, multifacetados. Por ser um fenômeno da ordem do vivido, implica carga emocional diferente entre quem a pratica e quem sofre a violência, o que torna complexa sua conceituação. Consiste no uso da força, do poder e de privilégios para dominar, submeter e provocar danos e sofrimentos a outros22 Minayo MCS. Conceitos, teorias e tipologias de violência: a violência faz mal à saúde In: Njaine K, Assis SG, Constantino P, Avanci JQ, organizadores. Impactos da violência na saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2020. p. 21-45.. As principais vítimas dos seus piores efeitos seguem sendo as populações vulnerabilizadas e periféricas, para as quais se interseccionam e confluem fatores como gênero, classe, raça e pertencimento territorial33 Araújo EM. Mortalidade por causas externas e raça/cor da pele: uma das expressões das desigualdades sociais [tese]. Salvador: Universidade Federal da Bahia; 2007.

4 Silveira RS, Nardi HC, Spindler G. Articulações entre gênero e raça/cor em situações de violência de gênero. Psicol Amp Soc 2014; 26(2):323-334.

5 Góes E. Racismo científico: definindo a humanidade de negros e negras [Internet]. 2016. [acessado 2023 ago 22]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/racismo-cientifico-definindo-humanidade-de-negras-e-negros/
https://www.geledes.org.br/racismo-cient...

6 Souza DA. Crescer e viver entre máquinas de guerra: racismo e necropolítica na formação educacional em territórios de favela [dissertação]. Rio de Janeiro: Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca; 2021.
-77 Oliveira RG, Cunha AP, Gadelha AG, Carpio CG, Oliveira RB, Corrêa RM. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Cad Saude Publica 2020; 36(9):e00150120..

Na história da construção do Brasil enquanto nação, a violência sempre esteve presente. No contexto atual, suas expressões, em diversas áreas, vêm aumentando exponencialmente, legitimadas por uma política do governo federal, entre o período de 2019 e 2022, que defendia a liberação de armas para a sociedade e, por outro lado, promoveu o desmonte das políticas sociais. Isso, alinhado ao período da pandemia de COVID-19, acarretou o agravamento e aprofundamento das desigualdades sociais e de situações de iniquidades, que afetam com maior expressão a população negra, pobre e periférica. Assim, não há um debate aprofundado, nem a busca de soluções reais pela sociedade, para seu enfrentamento, além da escassez de políticas públicas adequadas88 Manso BP, Zilli LF. 2021. Dossiê Segurança Pública. Rev USP 2021; 129:9-14.

9 Faria L, Santos LAC, Alvarez REC. As sociedades em risco e os múltiplos fatores que fragilizam as relações sociais em tempos de pandemia. Rev Del CESLA 2022; 29:11-28.

10 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública [Internet]. 2023. [acessado 2023 ago 20]. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf
https://forumseguranca.org.br/wp-content...
-1111 Ramos PC. "Contrariando a estatística": a tematização dos homicídios pelos jovens negros no Brasil [dissertação]. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos; 2015..

Embora as questões étnico-raciais estejam presentes nos estudos que buscam explicar o fenômeno da violência, o racismo e as relações raciais têm tido menor peso analítico do que categorias como classe, território e gênero. Sobretudo, tais análises tendem a não considerar o fenômeno da violência que envolve a população negra como produto do racismo estrutural, que impregna diversas instituições e órgãos públicos, a exemplo de práticas associadas aos agentes de segurança pública44 Silveira RS, Nardi HC, Spindler G. Articulações entre gênero e raça/cor em situações de violência de gênero. Psicol Amp Soc 2014; 26(2):323-334.,77 Oliveira RG, Cunha AP, Gadelha AG, Carpio CG, Oliveira RB, Corrêa RM. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Cad Saude Publica 2020; 36(9):e00150120.,1212 Gonçalves FD, Sá Neto CE. O corpo negro e a (in)segurança pública: a política da morte enquanto modus faciendi no estado brasileiro. Rev Criminol Politicas Criminais 2023; 8(2):62..

A feminista pan-africana Lélia Gonzalez13 afirmava que o brasileiro tem um tipo diferente de racismo, que é o racismo por denegação, escondido, camuflado, distinto do racismo norte-americano, que é explícito e amparado por leis segregacionistas. Esse racismo omitido, negado, é reflexo do mito da democracia racial, que falaciosamente postulava que o povo brasileiro era um povo miscigenado, que viveria harmoniosamente sem conflitos e de forma cordial, negando com isso o histórico processo de colonização que envolveu a exploração e a violência do estupro sofrido por mulheres negras e indígenas. Tal mito contribuiu para encobrir processos de letalidade social discriminatórios e a exclusão infringida à população negra, impedindo que esta pudesse ascender socialmente. Embora ele tenha sido refutado nos anos 1980, segue se reinventando e adquirindo novas roupagens ao não reconhecer, por exemplo, a influência do racismo no encarceramento da juventude negra, com 66% da população carcerária sendo constituída em sua maioria por pretos e pardos1414 Sinhoretto J, Morais DS. Violência e racismo: novas faces de uma afinidade reiterada. Rev Estud Soc 2018; 64:15-26..

Aos corpos negros e sujeitos racializados são infligidas as mais diversas formas de violência, a partir da negação da sua condição de humanidade, já que o modelo universal é a do homem branco. Os não-brancos são corpos adjetos, humanos com menor valor descartável, que podem ser violentados, injustiçados e até mortos1515 Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA; 2008.

16 Mbembe A. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona; 2017.

17 Almeida SL. Necropolítica e neoliberalismo. Cad CRH 2021; 34:021023.

18 Nascimento A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas; 2016.

19 Batista LE, Escuder MM, Pereira JC. A cor da morte: causas de óbito segundo características de raça no Estado de São Paulo, 1999 a 2001. Rev Saude Publica 2004; 38(5):630-636.
-2020 Kilomba G. Memórias de plantação - episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó; 2019..

A população negra segue marginalizada, refletindo nos piores indicadores sociais e de saúde numa profusão de cenários de iniquidades e injustiças que poderiam ser evitadas, fruto do racismo estrutural, que segundo Silvio Almeida2121 Almeida S. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra; 2021. decorre da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” como se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, estando na base da organização socioeconômica do Estado brasileiro. Isso implica a produção do quadro das desigualdades raciais, expressas por exemplo no não direito humano à alimentação adequada.

De acordo com o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar2222 Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert, Rede PENSSAN; 2022. no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil, de 2022, houve um aumento de 60% entre a população negra vivendo sob o flagelo da fome, contra 34,6% da população branca. O empobrecimento da população brasileira se aprofundou nesse cenário, atingindo 50 milhões de pessoas, e destas, cerca de 38 milhões são negras2323 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de indicadores sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira. Brasília: IBGE; 2021..

O Atlas da Violência de 20212424 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da violência. Brasília: Ipea; 2021. revela que um jovem negro tem 2,6 vezes mais chances de ser assassinado, quando comparado com um jovem não negro. Trata-se de um cenário de necropolítica, noção proposta pelo cientista político Achille Mbembe16 em seu livro Política da inimizade, para definir um processo de suspensão de um estado de direito, para um estado de exceção ou estado de terror, no qual a produção da morte se apresenta como estratégia política de governabilidade.

O Estado brasileiro tem relativizado garantias e permitido que as tecnologias da necropolítica se pratiquem e se expandam com o avanço das milícias, com políticas de armamento e guerra às drogas, acarretando assim o genocídio da juventude negra. Há uma mistura macabra de biopolítica, estado de exceção e estado de sítio que leva para as favelas e as periferias brasileiras as técnicas de controle criadas nos campos de extermínio1717 Almeida SL. Necropolítica e neoliberalismo. Cad CRH 2021; 34:021023.. Quando se intercalam a produção da necropolítica com raça e com o racismo, a política da morte tem uma direção1818 Nascimento A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas; 2016..

Neste artigo, pretende-se analisar dados de um estudo quali-quanti que avaliou experiências de violência simbólica e estrutural vivenciada por jovens negros/as, de 15 a 29 anos, moradores/as de bairros periféricos de duas capitais brasileiras - Recife/PE e Fortaleza/CE. Em publicações anteriores2525 Anunciação D, Trad LA, Ferreira T. "Mão na cabeça!": abordagem policial, racismo e violência estrutural entre jovens negros de três capitais do Nordeste. Saude Soc 2020; 29(1):e190271., foram discutidas situações específicas que indicaram a incidência no racismo institucional na abordagem policial, considerando tanto a seleção das pessoas abordadas quanto os territórios que concentram tal abordagem, assim como estratégias de resistência adotadas por coletivos juvenis no universo pesquisado2626 Trad LAB. Políticas públicas, juventude negra e ativismo: vozes de coletivos juvenis em Fortaleza, Recife e Salvador. In: Trad LAB, Silva HP, Araújo EM, Nery JS, Sousa AM, organizadores. Saúde-doença-cuidado de pessoas negras: expressões do racismo e de resistência. Salvador: EDUFBA; 2021. p. 149-172..

Ao se acercar desse fenômeno, parte-se do entendimento de que a juventude brasileira é marcada por desigualdades raciais, econômicas, territoriais e culturais, cujos jovens mais pobres e negros/as tornam-se as principais vítimas das violações de direitos e da violência policial2525 Anunciação D, Trad LA, Ferreira T. "Mão na cabeça!": abordagem policial, racismo e violência estrutural entre jovens negros de três capitais do Nordeste. Saude Soc 2020; 29(1):e190271., assim como de outras formas de violências de caráter estrutural em diferentes contextos cotidianos.

Considera-se que a interseccionalidade constitui importante aporte teórico para analisarmos o cenário de violência e de vulnerabilização vivenciado pela juventude negra e periférica participante do estudo em questão.

No caso brasileiro, as intersecções entre raça e gênero e suas implicações podem ser apreendidas em produções pioneiras de feministas negras e ativistas do movimento negro brasileiro como Lélia Gonzalez, Beatriz de Nascimento e Sueli Carneiro. Mais recentemente, destaca-se a produção de Carla Akotirene2727 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen; 2019., que ressalta o potencial da interseccionalidade de instrumentalizar teórica e metodologicamente a inseparabilidade estrutural do racismo, do capitalismo e do cisheteropatriarcado, uma vez que constituem um sistema de opressões, estando esses fenômenos sociais interligados.

Detendo-se nesse modelo analítico, considera-se especialmente oportuna a matriz de dominância proposta por Collins2828 Collins PH. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Paragrafo 2017; 5(1):6-17., que abrange quatro elementos: racismo, heterossexualidade, colonialismo e marcadores de classe social, que interatuam na produção de opressões e desigualdades. São adicionados ainda elementos estruturais como leis e políticas institucionais, aspectos disciplinares, ideias ou ideologias e práticas discriminatórias usuais na vivência cotidiana.

Metodologia

Os dados empíricos que são analisados a seguir derivam de um estudo quali-quanti que procurou analisar experiências e indicadores de violência, em especial a policial, e de vulnerabilização na vida de jovens negros/as (15 a 29 anos), bem como a relação desse quadro com o racismo estrutural e institucional em duas capitais da região Nordeste do Brasil: Recife e Fortaleza. Foi utilizado o critério estabelecido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a definição da população negra, ou seja: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas.

A produção de dados se deu a partir de grupos focais e entrevistas semiestruturadas com jovens de quatro bairros periféricos. Os locais selecionados atenderam aos seguintes critérios: ser um bairro periférico ou popular, ter índices elevados de violência urbana e apresentar indicadores de vulnerabilidade social, especialmente no que se refere às fragilidades na rede de proteção social (saúde, educação, assistência social e segurança pública). Levou-se em conta também a disponibilidade de apoio local, de modo a favorecer as interlocuções com a juventude dos respectivos bairros.

Para este artigo, recortou-se o material de sete grupos focais (GFs) e oito entrevistas feitas em ambas as capitais com ênfase na percepção dos/as interlocutores/as e em situações cotidianas envolvendo violência e vulnerabilidade social. Foram realizados quatro GFs em Fortaleza e três em Recife, com duração média de 1h30 e composição de 12 a 15 participantes com o seguinte perfil: idade entre 15 e 29 anos, predomínio de pretos(as) e pardos(as), mas com participação autodeclarada de indígenas e brancos/as; moradores/as dos bairros selecionados, do sexo masculino e feminino.

As entrevistas semiestruturadas cumpriram a função de aprofundar casos considerados emblemáticos durante os GFs, notadamente experiências de violência extrema, vivenciadas durante os procedimentos de abordagem policial. Foram entrevistados/as quatro jovens em cada capital, selecionados entre os/as participantes dos GFs, de ambos os sexos, autodeclarados/as negros(as) e pardos(as), em situação de extrema vulnerabilidade e moradores/as dos bairros periféricos elegidos.

Utilizou-se o software NVivo 9.0 no processo de sistematização dos dados, a partir das seguintes categorias de análise: i) identidade, pertencimento e a vivência do “ser jovem”; e ii) percepção sobre vulnerabilidade social e os mecanismos de proteção social.

O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Os trechos destacados na seção seguinte, provenientes de entrevistas ou GFs, serão identificados com os seguintes códigos, acompanhados da indicação do local (FOR: Fortaleza; REC: Recife): GFJFM: GF misto; GFJF: GF feminino; GFJM: masculino; EJF: entrevista mulher jovem; EJM: entrevista homem jovem.

Resultados e discussão

Ser jovem da periferia: inside x outsider

Embora os/as jovens compartilhem de um mesmo marcador social - uma fase da vida delimitada por uma faixa etária -, é preciso considerar outros marcadores sociais, como gênero, raça, religiosidade, sexualidade e classe social e suas intersecções. A partir disso, a condição de vida do/a jovem pode variar entre dois extremos: da vulnerabilidade social e do risco de sofrer múltiplas violências ao privilégio de uma vida confortável e segura. Portanto, o que está em jogo é a maneira como os pertencimentos sociais, territoriais e culturais diversos, associados aos marcadores étnico-raciais, produzem distintas configurações simbólicas e materiais2929 Augé M. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus; 2012.. Isso se dá no contexto sócio-histórico de uma sociedade que representa socialmente a juventude negra com base em um processo de demarcação da alterização, que define quem de fato poderá ser considerado e tratado como um/a jovem.

De acordo os relatos dos/as participantes dos GFs e das entrevistas, tanto em Recife quanto em Fortaleza, o discurso sobre os estereótipos da juventude negra é sempre estigmatizante, estando diretamente vinculado à noção de irresponsabilidade, da falta de comprometimento, da preguiça, da “alopração”, da criminalização e da malandragem, enquanto os discursos sobre os jovens não negros se fundamentam em características positivas, como proatividade, inteligência, comprometimento, responsabilidade, criatividade e pujança, conforme verifica-se no trecho do relato abaixo:

Lá fora nós é vista como mulher de bandido, como piriguete, e os meninos são logo visto como bandido. O que posso dizer é que lá fora nossa imagem é negativa e o mundo é mesmo de cão e lá a gente não vale nada, porque estamos sempre ligado a coisa ruim(GFJ-F1_REC).

Essas características atribuídas aos/às jovens negros e negras os/as excluem antecipadamente de um futuro promissor no mundo dos adultos, ao mesmo tempo em que são cobrados, desde a mais tenra infância, a ter comportamento de adultos, com implicações inclusive no campo jurídico, quando se encontram envolvidos em qualquer situação reconhecida como delito perante a lei.

Procurando apreender e valorizar o lugar de enunciação dos/as jovens, indagamos tanto nos GFs quanto nas entrevistas: “O que é ser jovem para você?”. Frente à pergunta, evocaram uma conjunção de termos representando “múltiplas fontes da identidade”3030 Becker HS. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar; 2008. e, portanto, diversos marcadores sociais. Trata-se de elementos que remetem às distintas formas de expressar o pertencimento social e as interfaces entre o componente geracional - “juventude” - e outras dimensões que mobilizam aspectos relacionados a escolaridade, classe social, gênero, sexualidade, identidade étnico-racial, trabalho e o sentimento de pertença socioespacial à periferia urbana.

Essas categorias são reveladoras dos múltiplos lugares e papeis sociais ocupados na vivência de mundo da juventude aqui tratada, e por eles/as reconhecidos como marcadores estruturantes de suas experiências enquanto jovens. Assim, os sentidos atribuídos à noção de “juventude” se apresentaram tacitamente imbricados com o modo pelo qual os/as interlocutores/as experimentam a vida cotidiana a partir de sua condição social. Cabe destacar que em Recife tal condição esteve essencialmente vinculada à noção étnico-racial e ao pertencimento territorial, enquanto em Fortaleza esteve, a rigor, centrada na díade classe social e pertencimento territorial.

Nas entrevistas e nos GFs, em ambas as capitais, foram enfatizados também os lugares de fala ou enunciação a partir de referências que situavam a interseccionalidade na própria definição identitária de gênero, sexualidade e raça/cor da pele, ou do seu lugar de pertencimento e papel na instituição familiar, por exemplo: “sou um jovem negro,sou uma mulher negra de periferia”, “sou um jovem pobre, negro, universitário e gay”, “sou uma jovem mulher e mãe de família”; “sou jovem, pardo e homossexual com muito orgulho”, “sou um jovem pai de família, pai de três filhos, um bom marido, um bom filho, um bom colega, um bom irmão. Verifica-se, também, o fortalecimento das lutas minoritárias, quando, por exemplo, adjetivos são utilizados para positivar a identidade política, a exemplo da afirmação ser “homossexual com muito orgulho”.

Em Fortaleza, os relatos ainda trazem certa tensão entre duas vias que se apresentam na condição do “ser jovem”, especialmente aqueles/as que vivem na periferia. De um lado, as possibilidades de convivência fraterna e de partilha de momentos prazerosos com seus pares; de outro, foram recorrentes a menção às obrigações sociais e às expectativas que lhes são depositadas em virtude da condição de desvantagem social que os sujeitos e os seus grupos familiares vivenciam, como ilustra a narrativa de um jovem entrevistado.

[...] eu não tive liberdade de escolha, eu não tive a liberdade de trabalhar, não tive a opção de trabalhar, eu fui obrigado a trabalhar porque eu tinha que ajudar meu pai e minha mãe dentro de casa, com meus três irmãos dentro de casa. [...] Eu fui uma pessoa muito animalizada, eu saí da minha rotina do ensino médio de trabalhar e estudar, eu trabalhava oito horas por dia e estudava à noite... [...] Eu trabalhava de auxiliar de costureiro na época (EJ-M3_FOR).

As angústias e os sonhos também se fizeram presentes, mediados pela expectativa que a sociedade cria em torno da juventude como o “futuro do país”. Com isso, surge a perspectiva da responsabilidade, a ideia da mudança e do enquadramento social em contraposição ao ideal de curtição da vida vislumbrada como “própria à idade” e do discurso social da falta de perspectiva quando se trata da juventude negra.

Eu sinto que sendo jovem eu carrego muita responsabilidade, porque são colocadas muitas responsabilidades em mim sobre o futuro, tipo, é... Sendo jovem eu não carrego só o meu futuro, eu carrego também outras coisas, tipo o futuro da nação. Eu carrego o futuro pra velhice dos meus pais, pra várias coisas, questão da sociedade em geral e tal. Colocam muita expectativa na gente, nessa juventude, pro futuro, nós somos jovens, e esperam coisas da gente, muitas responsabilidades (EJ-F2_FOR).

Assim, é possível depreender que o “ser jovem” aciona múltiplas faces da condição socioeconômica familiar e mobiliza zonas de tensão temporal que circulam entre as experiências vivenciadas por seus familiares (tempo passado), as urgências da vida atual a serem atendidas pela inserção no mundo do trabalho (tempo presente) e as condições objetivas de investimento social, econômico e simbólico de um projeto de vida (tempo futuro) - que, por sua vez, paradoxalmente, pode representar alguma melhoria nas condições materiais dos sujeitos e de suas famílias.

As experiências concretas de vida que o ser jovem negro/a explicitam como a vivência cotidiana em torno do racismo e da violência em suas mais variadas dimensões os expõem às situações de vulnerabilidade e risco social. São as regras, gestadas e conservadas em nossa sociedade, uma parte do processo político de construção social da realidade, responsáveis por manter as rotulações estigmatizantes que cercam a juventude negra, constituindo objeto de conflito entre este grupo e a própria sociedade e suas instituições, assim como de divergência entre as categorias jovens e adultos3131 Bauman Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar; 2003..

O termo comunidade também esteve sempre presente nos discursos dos/as interlocutores/as, com a noção de pertencimento territorial muito bem demarcada. Havia nos relatos o sentimento de pertencer a um grupo, assim como de ser aceito por este como pertencente, não obstante suas comunidades sejam consideradas o “lugar da violência” por seus altos índices de criminalidade e reconhecidas pela fragilidade das redes de proteção social e do elevado grau de vulnerabilidade.

Especialmente em Recife, o termo comunidade apareceu sempre como lugar carregado de coisas boas e da dualidade entre a proteção e a perda da liberdade por seu alto grau de risco. Porém, os/as jovens não se sentem estranhos em seu espaço, porque lá são de dentro, ou seja, é o eu que faz parte do nós e se diferencia do outro, determinando aquele que é de fora. “Comunidade, sentimos, é sempre uma coisa boa. [...] é um lugar ‘cálido’, um lugar confortável e aconchegante. [...] Numa comunidade [...] nunca somos estranhos entre nós”. O trecho abaixo de um GF destaca bem esta questão:

Somos todos de um único lugar. A nossa comunidade é maravilhosa, porque é ela que aceita a gente como a gente é. Aqui todo mundo se conhece, tem o mesmo estilo, passa a mesma dificuldade, faz a mesma coisa. Aqui eu tenho nome e sou alguém, porque o povo me reconhece, mas lá fora? Lá fora eu não sou ninguém (GFJ-F1_REC, grifos nossos).

Por outro lado, evidencia-se, conforme o relato, um contraste entre a percepção do aconchego nos espaços internos da comunidade e a discriminação e marginalização vivenciadas fora dos limites da periferia. Nesse caso, a sensação de proteção está associada à comunidade, enquanto o perigo vem de fora e está fora desta, inclusive, e sobretudo, perpetrada pelos/as agentes de segurança pública, representantes do próprio Estado. Nesse caso, é a esse/a jovem negro/a, inside na periferia, para o/a qual prevalece a posição de outsider fora dela, ou seja, um/a não semelhante ao conjunto social, um/a desviante das normas e regras sociais e que deve ser mantido/a em reclusão dentro do perímetro territorial de sua própria comunidade3131 Bauman Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar; 2003..

“Lá não é o seu lugar” ou sobre lugares interditados para jovens negros/as e periféricos/as

Nesta seção, analisamos as narrativas que trazem à tona uma realidade comum na vida de jovens negros e negras da periferia brasileira: um horizonte limitado na definição de projetos de vida, tanto em função das limitações econômicas quanto da demarcação concreta ou simbólica de lugares sociais para os quais seu acesso é interditado. São exemplos de violência simbólica que podem ser melhor compreendidos quando consideramos as intersecções entre raça, gênero, classe social e também geracional.

Historicamente, a elite branca brasileira cria um lugar de pertencimento dos corpos negros, que é o lugar da subalternidade, construindo uma imagem de inferiorização desses corpos, ferindo sua autoestima, além de invisibilizar seus modos de existências e restringir a sua circulação social ao espaço territorial da periferia urbana, conforme registro abaixo:

Pra muita gente eu não valho nada ... eu não presto... que eu sou chata assim... ignorante... sou negra... e assim vai sucessivamente a rotina do dia da sociedade... em alguns cantos rejeitada, em outros não (EJ-F2_REC).

Em Peles negras, máscaras brancas, do psiquiatra Franz Fanon1515 Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA; 2008., a construção do corpo negro é permeada pela ideia de não-humanidade, de um não-ser. A omissão por parte dos brancos em reconhecer que ocupam uma posição de privilégio na sociedade favorece as desigualdades raciais, que por sua vez impactam no cenário do aumento das violências nos territórios, o que Cida Bento3232 Bento C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras; 2022. denomina de “pacto narcísico”, que exige uma “cumplicidade silenciosa do conjunto dos membros do grupo racial dominante [...]” (p. 121).

A violência produzida nos territórios periféricos, portanto, assemelha-se e aproxima-se do conceito de necropoder, destinando a população desses locais à reclusão e ao estigma social. Os territórios ocupados ficam empobrecidos, o que leva à precarização de sua infraestrutura e, por conseguinte, à morte por escassez1616 Mbembe A. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona; 2017., bem como às expectativas reduzidas da juventude quanto aos sonhos e projetos para o futuro, como ingressar numa universidade.

O fragmento a seguir de uma entrevista com um jovem negro (24 anos) de Fortaleza ilustra bem tal demarcação social:

Meu pai, que é analfabeto, não teve nem... assim como eu, por muito tempo na minha vida não tinha a universidade como horizonte. A universidade foi ser horizonte para mim no meu terceiro ano porque eu trabalhava e estudava. Trabalhei e estudei o meu ensino médio todinho, e a universidade veio ser um horizonte para mim no finalzinho do meu segundo ano e começo do terceiro, e acho que como ele não teve a universidade como horizonte, ele falou assim: “Lá não é o seu lugar. Vá atrás de arranjar um emprego. Você vai ser professor, como assim?” [...] “Você não deveria estar na faculdade, que lá não é o seu lugar. Você deveria ser mecânico”. E isso, assim, me doeu muito. E é o que eu quero, eu gosto e tal, e eu nunca imaginei que essa frase fosse ser tão presente assim na minha vida: “Esse não é o meu lugar”

No caso relatado, a decisão do jovem de ingressar no ensino superior passou a ser fonte de tensões familiares, aspecto recorrente nos grupos focais e entrevistas em Fortaleza. Em um contexto no qual a privação material é uma constante, os fundamentos morais se assentam na valorização da ética do trabalho duro, sobretudo da formação em cursos técnicos rápidos, e as redes familiares se caracterizam pela presença de circuitos de reciprocidade, baseados na interdependência entre os seus membros e, em certa medida, no sacrifício dos jovens com a supressão de suas aspirações individuais em favor do coletivo familiar3333 Souza J. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG; 2012..

Lélia Gonzalez destaca, em Lugar de negro, que o termo lugar tem um significado simbólico muito forte, pois remete a uma dimensão determinante das desigualdades raciais. O trecho “esse não é o meu lugar” remete à expressão “saber o seu lugar”, que, para Lélia Gonzales, naturaliza as posições sociais fundadas em uma matriz de opressão colonialista, segundo marcadores sociais de raça, gênero, classe e território. Em consonância, Carlos Halsenbalg, na mesma obra, destaca que a ideia de lugar regula os sonhos e desejos por meio da noção de “lugares apropriados”, que confinam a população negra em posições subalternizadas e/ou de entretenimento3434 Gonzalez L, Hasenbalg C. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Zahar; 2022..

A questão da sobrevivência familiar, como se apreende neste outro segmento da mesma entrevista, também se apresenta como outro elemento determinante na definição das escolhas ou, melhor dito, da limitação de escolha dessas/desses jovens.

Eu trabalhava de auxiliar de costureiro na época. E até hoje é muito importante a renda que eu ganho para ajudar minha família também. Minha mãe sempre foi muito sincera: “Quando você ganhar dinheiro, você vai ter que dar para a gente também, porque a gente precisa sobreviver”, e todo meu dinheiro do meu emprego era para a minha família, eu não tinha luxo. [...] eu saí do emprego mesmo eles não aceitando. Passei dias e dias brigado com a minha mãe por causa disso [...] eu só tinha uma chance, eu tinha que entrar de primeira na universidade porque eu não tinha esse luxo […] minha mãe sempre gritava comigo assim, que “ou você termina logo isso, ou você vai ter que sair para trabalhar, porque não tá dando”.

Ao contrário de jovens pertencentes aos estratos médios e altos da sociedade, geralmente jovens brancos/as - a quem são dirigidos, por sua família, investimentos econômicos e simbólicos em articulação com a noção de moratória social juvenil2020 Kilomba G. Memórias de plantação - episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó; 2019., permitindo-lhes desfrutar de um tempo socialmente concedido para experimentação da vida adulta sem o ônus, as implicações e as responsabilidades dela decorrentes -, os/as jovens negros/as se reconhecem imersos na lógica de relações sociais que estruturam e caracterizam os modos de vida de famílias brasileiras das classes populares, fundados no “[...] aprendizado prático do trabalho e no sacrifício individual, na abnegação em favor da sobrevivência física e social do grupo familiar”3333 Souza J. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG; 2012..

Passados mais de 20 anos da implantação da lei de cotas, se é inegável que a participação dos estudantes negros no ensino superior cresceu de forma expressiva3535 Freitas J, Portela P, Feres J, Bessa A, Nascimento V. Políticas de ação afirmativa nas universidades federais e estaduais (2013-2018) - levantamento das políticas de ação afirmativa Rio de Janeiro: Gemaa (UERJ), 2020., é igualmente indiscutível que são inúmeros os desafios enfrentados por esse coletivo para manter-se e adaptar-se ao ambiente universitário3636 Vaz LS. Cotas raciais. São Paulo: Pólen; 2021. .

Para os/as interlocutores/as da pesquisa, ser universitário/a define a sua nova condição de liminaridade, já que ele/a se depara com a não aceitação de sua presença por parte da comunidade acadêmica, que entende o espaço acadêmico como um lugar histórico de não-pertencimento da juventude negra, já que este/a jovem a rigor não tem o capital social e o ethos que, combinados, determinam as condutas dos/as universitários/as3737 Bourdieu P. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2005..

Por outro lado, em sua própria comunidade de origem são questionadas as mudanças de comportamento, em virtude das trocas culturais estabelecidas na universidade. O depoimento a seguir de um jovem de Fortaleza expressa este desafio:

Ela [a universidade] rompe seus laços. Ela tira seus laços, alguns laços familiares, eu tô muito distante da minha família, por exemplo, estou muito distante dos meus amigos. Quando eu vou conversar com os meus amigos [...] eles falam: “Cara, tu mudou muito”, aí você tem todo um choque de que agora são dois mundos diferentes (EJ-M3_FOR).

Ao contrário de Fortaleza, em que o ingresso na universidade se apresentou em vários relatos dos/as jovens nas entrevistas e GFs a partir de uma perspectiva mais individualizada, em Recife o debate se centrou no aspecto da coletividade, ou seja, no nível da comunidade. O projeto de vida tinha relação com seus semelhantes, as narrativas indicam uma tentativa de (re)configuração da imagem simbólica construída sobre a juventude negra, cuja batalha incessante e cotidiana tem como intuito essencial mostrar que é possível jovens negros/as ocuparem espaços prósperos na sociedade.

É meu sonho... trabalhar como educadora social e agora nesse momento eu tô feliz por causa disso... mas alguns dias atrás eu tava triste porque eu tava sem trabalhar [...] ser alguém na vida, transformar a realidade dos outros, quem sabe impedir que eles sejam vistos como eu sou (EJ-F1_REC, grifo nosso).

[...] a gente tá aqui todo dia, a gente luta cada dia, a gente batalha e cada dia é uma briga, uma luta a cada dia, então, pra gente ir lá pra fora mostrar quem somos de verdade... a gente tem que ter muita força... determinação e garra [...] Tem que estar unidos (GFJ-FM3_REC, grifo nosso).

Esse processo de construção de uma imagem estigmatizante da juventude negra é possível de ser observado também nos pressupostos utilizados nos quadros, programas e matérias jornalísticas da mídia em geral, que discutem a questão da segurança e da violência, evidenciando-se marcas do racismo na maneira como as imagens e os discursos são produzidos3838 Silva JS. A violência da mídia. In: Ramos S, Paiva A. Mídia e violência: novas tendências na cobertura de criminalidade e segurança no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ; 2007. p. 93-97.. Por exemplo: os casos que envolvem o discurso sobre violência e juventude tomam duas direções distintas: uma da valorização focada na inocência e na ingenuidade, na qual pessoas não negras são apresentadas como jovens, adolescentes, garotos/as, meninos/as; e outra concepção que desvirtua a população negra e que consolida a naturalização de conceitos estereotipados, categorizando-os/as simbolicamente como menor infrator/a, delinquente, marginal, bandido/a, vagabundo/a, elemento, meliante, criminoso/a, suspeito/a, piriguete, mulher de bandido. Observa-se que tal tendência vem se modificando nos últimos anos a partir de inserção de uma imagem positivada dos/as jovens negros/as nos espaços midiáticos. Por outro lado, quando o tema abordado é segurança pública, persiste a associação entre juventude negra com violência e criminalidade.

Como se evidencia-se nas narrativas, em ambas as capitais:

JF1: O estereótipo já está estabelecido, não tem mais o que argumentar, já colocaram suspeita. [...] já escolheram quem é o criminoso, não importa se vai estar bem vestido ou não (GFJ3_FOR).

J10: E me diga uma coisa: vocês aí vê eles fazer isso em bairro de boyzinho? Vê nada. Eu vou falar a verdade, eu nunca vi no jornal uma entrada da polícia no bairro de Boa Viagem pra pegar droga ou arma como eles faz aqui [Santo Amaro]. Nunca vi mesmo (GFJ-M1_REC).

Esse é um imaginário nacional fundado na representação social de base eugênica em que os métodos de seleção humana se estabelecem em premissas biológicas que definiram as noções de inferioridade e subalternidade por meio do conceito de raça, determinando que a população negra é propensa à agressividade e à violência, o que a torna essencialmente perigosa. Logo, deve esta ser controlada, freada, combatida, expurgada, eliminada55 Góes E. Racismo científico: definindo a humanidade de negros e negras [Internet]. 2016. [acessado 2023 ago 22]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/racismo-cientifico-definindo-humanidade-de-negras-e-negros/
https://www.geledes.org.br/racismo-cient...
,2121 Almeida S. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra; 2021.,3939 Diwan P. Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto; 2007..

JM2: Esta é a grande ignorância da sociedade, porque ela categoriza um grupo e impõe o que é melhor e o que é ruim e sempre escolhe o que excluir entre um e outro...

JM3: Uma raça quer ser superior à outra (GFJ3_REC).

Em Fortaleza, essa questão apareceu com mais veemência nas entrevistas semiestruturadas, nas quais destacam-se temas relacionados à negação da negritude, à constituição da identidade étnica, ao processo de autorreconhecimento do/a jovem negro/a e à experiência do racismo como dimensões importantes. Os/as jovens remeteram tais fatos às tensões sociais que se articulam em múltiplos níveis do plano individual-coletivo, perpassando a (inter)subjetividade dos sujeitos e suas relações sociais produtoras de sofrimentos e adoecimentos psíquicos, como se verifica no trecho da narrativa a seguir:

Tem uma sociedade inteira dizendo que tudo que eu sou não é bonito, e por mais que você entenda que tudo isso é uma construção... mas dói, dói no seu psicológico. Você pode ser uma pessoa super empoderada, mas você sente isso, sente em intensidades diferentes, mas sente isso (EJ-M3_FOR).

Evidencia-se que a violência e o racismo são fenômenos sociais que impactam a concepção de mundo, os modos de viver e a visão de futuro da juventude negra periférica, impactando também sua situação de saúde. A trajetória desse grupo está marcada por um imaginário social que reserva ao jovem negro o lugar estereotipado do criminoso. Afinal, “a figura do criminoso abre espaço para todo tipo de discriminação e reprovação, com total respaldo social para isso”. Sendo assim, as instituições, como as de segurança pública, justiça criminal, saúde, educação etc., ganham um formato fundado em um “sistema racializado de controle social”3434 Gonzalez L, Hasenbalg C. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Zahar; 2022.

No Brasil, a implementação de políticas afirmativas de inclusão, principalmente da juventude negra, gesta um movimento de ruptura com o discurso fundado no mito da democracia racial, trazendo à tona a existência de “um racismo abertamente declarado” e das desigualdades socioeconômica e raciais entre a população negra e a população branca, bem como denunciando o sofrimento psíquico negro, a necropolítica de Estado e os privilégios da branquitude4141 Monteiro S, Villela W, organizadores. Estigma e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013..

Considerações finais

Os relatos dos/as jovens em Recife e em Fortaleza nos convidam a pensar o quanto as instituições e a própria estrutura sociais estão fundadas no racismo estrutural. Revelam também que eles/as não encontram espaço de expressão e desenvolvimento pessoal e coletivo na sociedade moderna capitalista, patriarcal e racista, situando-se assim em um “não lugar”2929 Augé M. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus; 2012..

As experiências concretas trouxeram à tona a vivência em torno do racismo e da violência em suas diversas dimensões e das vulnerabilidades a que são expostos dentro e fora dos limites de pertencimento territorial de suas comunidades. São processos que não dizem respeito apenas aos estereótipos negativizados, se expressam também como efeito do racismo institucional que opera por mecanismos e instrumentos legais presentes no modus operandi organizacional, sendo internalizado e reproduzido nas normas e práticas da necropolítica do Estado.

Assim, o racismo acarreta direta e indiretamente danos variados à saúde de quem sofre os processos de estigmas e discriminações. Pode-se salientar que a produção de vulnerabilização social e condição socioeconômica precária dificultam o acesso da população negra à prevenção e aos cuidados em saúde, gestando a articulação entre produção de marginalização social, adoecimento físico e psíquico, bem como mortalidade.4242 Pires TRO. Do ferro quente ao monitoramento eletrônico: controle, desrespeito e expropriação de corpos negros pelo Estado brasileiro. In: Flauzina A. Freitas F, Vieira H, Pires T. Discursos negros: legislação penal, política criminal e racismo. Brasília: Brado Negro; 2015. p. 44-82.

A juventude negra segue enfrentado a falta de oportunidades, por meio da negação de acesso às possíveis vias que poderiam garantir melhores condições de vida e saúde, a exemplo da universidade. Com base no princípio da meritocracia, atribui-se às causas do fracasso desses/as jovens a sua falta de capacidade ou outras limitações, isentando o Estado e a sociedade de suas responsabilidades.

Nesse contexto, o racismo e a violência e as interseccionalidades com os demais marcadores sociais - gênero, sexualidade, religiosidade e territorialidade - tornam-se os principais produtores dos processos de morbimortalidades que afligem a juventude negra. Observou-se, portanto, que a “descoberta”, o reconhecimento da identidade étnico-racial ou de “aceitação de si mesmos” colocam em evidência que os conflitos (inter)subjetivos, as rupturas ou o sofrimento psíquico são elementos constitutivos da vida da juventude negra periférica. O ponto de partida para a autodescoberta identitária, o reconhecimento da negritude e a consciência do racismo são as próprias vivências discriminatórias na vida cotidiana, em situações e experiências repartidas por pares. Por outro lado, para além da chamada pauta identitária, cabe reconhecer dimensões estruturais envolvidas na produção das desigualdades raciais no Brasil e sua incidência especifica na realidade da juventude negra.

Em suma, o Brasil tem uma dívida histórica e impagável com o povo negro, fruto do processo de colonização e escravização, que perdurou por quase quatro séculos. Reconhecer o racismo estrutural e os privilégios da branquitude é um passo importante para o fortalecimento da luta antirracista e, certamente, para o enfrentamento das múltiplas expressões de violência decorrentes do racismo em todas as esferas sociais e campos de atuação. Construir estratégias de resistência coletivamente, bem como de políticas públicas voltadas à juventude negra que contribuam para a redução das vulnerabilidades infringidas a seus corpos, se faz necessário e urgente77 Oliveira RG, Cunha AP, Gadelha AG, Carpio CG, Oliveira RB, Corrêa RM. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a COVID-19 e o racismo estrutural. Cad Saude Publica 2020; 36(9):e00150120..

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  • Financiamento

    O presente trabalho apresenta um recorte de um estudo mais ampo denominado “Juventude negra no Nordeste do Brasil: violência, racismo institucional e proteção social”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio do edital CNPq/MS/SCTIE/DECIT/SGEP/DAGEP Nº 21/ 2014 - Saúde da População Negra no Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2023
  • Aceito
    13 Out 2023
  • Publicado
    15 Out 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br