Desnortear, aquilombar e o antimanicolonial: três ideias-força para radicalizar a Reforma Psiquiátrica Brasileira

Emiliano de Camargo David Maria Cristina Gonçalves Vicentin Lia Vainer Schucman Sobre os autores

Resumo

Este artigo é parte de uma pesquisa que buscou cartografar saberes e fazeres antirracistas em saúde mental por meio do acompanhamento das práticas de três coletivos de profissionais trabalhando na/com a rede de atenção psicossocial na cidade de São Paulo, o que possibilitou caracterizar suas estratégias de intervenção. Buscando contribuir para sua conceitualização, delineamos, por meio da revisão da literatura descolonial, três ideias-força que nos permitem dar corpo à descolonização da Reforma Psiquiátrica: o desnortear, que, em diálogo com Achille Mbembe e Frantz Fanon, nos convida à afirmação da loucura e da negritude - sem, no entanto, estabelecer fixações; o antimanicolonial, que se dá no fomento do exercício livre e contracultural de imaginar diásporas, em relação com as proposições de Édouard Glissant, Paul Gilroy e Lélia Gonzales quanto a uma (des)orientação atlântica na qual elementos da diáspora negra e da América Latina possam ressignificar negritude e desrazão; e o aquilombar, como práxis libertária que tem em sua gênese os quilombos como metáfora viva da radicalização das relações nas diferenças, a partir do quilombismo de Abdias do Nascimento, da quilombagem de Clóvis Moura, do (k)quilombo de Beatriz Nascimento e do devir quilomba de Mariléa de Almeida.

Palavras-chave:
Colonialidade; Racismo; Saúde mental; Atenção psicossocial; Saúde da população negra

Introdução

Estudos recentes apontam que as relações raciais são pouco debatidas pela Reforma Psiquiátrica brasileira11 Passos RG. Holocausto ou navio negreiro? Inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Argumentum 2018; 10(3):10-22.

2 Passos RG. Frantz Fanon, Reforma Psiquiátrica e luta antimanicomial no Brasil: o que escapou nesse processo. Soc Debate 2019; 25(3):74-88.

3 Santos AO. Saúde mental da população negra: uma perspectiva não institucional. Rev ABPN 2018; 10(24):241-259.

4 Leal FX. A Reforma Psiquiátrica brasileira e a questão étnico-racial. Argumentum 2018; 10(Esp. 3):35-45.
-55 David EC. Saúde mental e racismo: a atuação de um Centro de Atenção Psicossocial II Infantojuvenil [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2018. e, quando abordadas, não necessariamente são pensadas/sustentadas na perspectiva interseccional66 Passos RG, Pereira MO. Luta antimanicomial, feminismos e interseccionalidades: notas para o debate In: Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Autografia; 2017. p. 25-51.. O apoucado debate sobre raça e manicomialização no Brasil é um contrassenso que só pode ser explicado pelo próprio racismo, aquilo que dificulta ou impede de percebermos os sentidos da raça (e seu funcionamento) na organização colonial dos/nos processos de manicomialização em nosso país. Por isso, vale lembrar aquilo que o compositor Marcelo Yuka77 Yuka M. Todo camburão tem um pouco de navio negreiro [música] In: O Rappa. O Rappa [álbum]. Warner Music Brasil; 1994. afirmou: “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro.” Na mesma direção, a intelectual Rachel Gouveia Passos11 Passos RG. Holocausto ou navio negreiro? Inquietações para a Reforma Psiquiátrica brasileira. Argumentum 2018; 10(3):10-22. perguntou se todo manicômio brasileiro não teria em sua gênese a herança racista e colonial dos navios negreiros.

Marco José de Oliveira Duarte8 traz a dimensão estrutural da herança escravocrata na saúde/saúde mental e considera que a economia política da saúde exige a compreensão de que a escravidão faz exercício, mesmo após seu término, como regime econômico e político, e deixa, assim, marcas materiais e subjetivas na sociedade brasileira. Fátima Lima99 Lima F. O trauma colonial e as experiências subjetivas de mulheres negras: raça, racismo, gênero. In: Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: inquietações e resistências. Rio de Janeiro: Autografia; 2019. p. 68-85., por sua vez, demonstra que raça, racismo e gênero compõem os processos de subjetivação em diálogo com os traumas coloniais.

Essa lógica não se reduz às instituições asilares, alarga-se para as relações entre sujeitos e também para os territórios. Conforme apontou Mbembe1010 Mbembe A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições; 2018., raça e os próprios grupos raciais são fruto das relações desiguais e hierárquicas próprias da colonização na modernidade, e as relações de manicomialização não escaparam do “fardo da raça”1111 Mbembe A. O fardo da raça. São Paulo: n-1 Edições; 2018..

Para Mbembe1010 Mbembe A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições; 2018., a produção de uma “anormalidade psíquica” pode ser um dos efeitos do racismo, que visa produzir nos violentados um estado de morbidez, produzido por uma ruptura com suas autenticidades. Ao discorrer sobre a morbidez psíquica, Mbembe1010 Mbembe A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições; 2018. estabelece um diálogo com Fanon1212 Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: UBU Editora; 2020., pois o psiquiatra martinicano aponta que o racismo provoca no negro inserido no mundo dos brancos uma espécie de auto-ódio, que produziria no sujeito negro uma negação de tudo que remeteria a sua própria negrura, ou seja, uma tentativa de separação daquilo que o próprio racismo não permite que dele se separe: a raça negra.

Essa produção de uma “anormalidade” psíquica gerada pelo racismo é o próprio exercício da manicomialização que opera na colonialidade - manicolonialização -, pois a institucionalização da loucura também precisou criar corpos e territórios raciais fadados a uma suposta anormalidade psíquica para justificar suas condutas manicomiais: a concepção de alterações patológicas estaria tanto para a(o) negra(o), quanto para a(o) louca(o).

O louco e o negro (ou vice-versa) não foram criados desassociadamente no Ocidente. Não à toa, Basaglia1313 Basaglia F. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond; 2005. equipara os manicômios ao apartheid do negro e aos guetos. Como aponta Mbembe, “ao outorgar à pele e à cor o estatuto de uma ficção de cariz biológico, os mundos euro-americanos em particular fizeram do negro e da raça duas versões de uma única e mesma figura: a da loucura codificada”1111 Mbembe A. O fardo da raça. São Paulo: n-1 Edições; 2018. (p. 13). Nesse movimento, afirma-se o branco e a razão como normas, ancorados na razão ocidental, sendo/estando o louco e o negro excluídos do domínio da verdade. No Brasil, o “crioulo doido” e a “nega maluca” são expressões dessa manicolonialidade1414 David EC, Vicentin MCG. Nem crioulo doido nem negra maluca: por um aquilombamento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Saude Debate 2020; 44(3):264-277..

Essas relações manicoloniais são produtoras de lógicas de separação, exclusão e morte orientadas por teorias do racismo científico, que articulam raça e patologização; assim foi proposto o darwinismo social, a eugenia, a política de branqueamento, as teorias médico-legais sobre hereditariedade, o proibicionismo e a criminalização das drogas, entre outras. Em diferentes tempos históricos, atualizam-se esses mecanismos calcados na colonialidade manicomial do racismo. Essa relação histórica tem exigido da Reforma Psiquiátrica Brasileira a radicalização das indissociáveis lutas antimanicomial e antirracista, o que, assim como Bárbara dos Santos Gomes1515 Gomes BS. Encontros antimanicoloniais nas trilhas desformativas. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2019., chamamos de luta antimanicolonial.

Sabemos que Luta Antimanicomial e Reforma Psiquiátrica não são sinônimos, embora muitas vezes sejam tratadas como tal. Concordamos com a perspectiva de Rotelli et al.1616 Rotelli F, Leonardis O, Mauri D. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec; 1990. Amarante1717 Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro. Editora Fiocruz, 2007. e Yasui1818 Yasui S. Rupturas e encontros: desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2010., que compreendem a Reforma Psiquiátrica como um processo social complexo, que alcança interferências nos âmbitos governamental, jurídico, social, profissional e de pesquisa. Segundo Bezerra Junior1919 Bezarra Junior B. Desafios da reforma psiquiátrica no Brasil. Physis 2007; 17(2):243-250., no Brasil a Reforma Psiquiátrica2020 Brasil. Presidência da República. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União 2001; 6 abr. “deixou definitivamente a posição de ‘proposta alternativa’ e se consolidou como o marco fundamental da política de assistência à saúde mental oficial”1919 Bezarra Junior B. Desafios da reforma psiquiátrica no Brasil. Physis 2007; 17(2):243-250. (p. 243). Tal política se organiza na forma de uma rede de serviços de base territorial e comunitária, a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), levando em consideração a singularidade do usuário e seu território existencial2121 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde Mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde; 2004..

A Luta Antimanicomial, como nos lembra Passos e Pereira66 Passos RG, Pereira MO. Luta antimanicomial, feminismos e interseccionalidades: notas para o debate In: Pereira MO, Passos RG, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro: Autografia; 2017. p. 25-51., é acima de tudo um movimento social e coletivo que se dedica, com inúmeras bandeiras, à desconstrução do manicômio em suas diferentes formas e ao combate à perniciosa relação entre loucura, sofrimento psíquico, uso de drogas e periculosidade-doença, numa lógica lesiva aos direitos humanos que promove manicomialização, medicalização e encarceramento em massa.

Propor a dimensão racial para a Reforma Psiquiátrica exige saberes e fazeres que não pactuem com os desígnios da colonialidade e que empreendam a transformação antirracista das práticas de cuidado na Reforma Psiquiátrica nacional. Desse modo, esse artigo parte da pesquisa de doutorado do primeiro autor (DAVID, 2022)2222 David EC. Saúde mental e racismo: saberes e saber-fazer desnorteado na/para a Reforma Psiquiátrica brasileira antimanicolonial [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2022, orientado pelas coautoras, e tem como intuito apresentar três ideias-força que visam contribuir para a atenção psicossocial compromissada com a análise crítica das relações raciais e para um cuidado em saúde mental libertário e descolonial. Tais proposições foram construídas a partir do acompanhamento cartográfico2323 Kastrup V, Passos E. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal 2013; 25(2):263-280. das práticas de três coletivos de profissionais - Kilombrasa, Margens Clínicas e Café Preto - que trabalham na/com a RAPS na cidade de São Paulo no período de 2019 a 2021. O material colhido, em participação-observante das atividades, entrevistas e rodas de conversa, permitiu identificar o trabalho de ressignificação de negritude e de desrazão. A revisão da literatura descolonial possibilitou conceitualizar suas estratégias de intervenção, que se fazem como aquilombamento. As ideias-força são: o desnortear, em diálogo com Achille Mbembe e Frantz Fanon; o antimanicolonial, que se dá no fomento do exercício livre e contracultural de imaginar diásporas, em relação com as proposições de Édouard Glissant, Paul Gilroy e Lélia Gonzales quanto a uma (des)orientação atlântica na qual elementos da diáspora negra e da América Latina possam ressignificar negritude e desrazão; e o aquilombar, como práxis libertária que tem em sua gênese os quilombos como metáfora viva da radicalização das relações nas diferenças, a partir do quilombismo de Abdias do Nascimento, da quilombagem de Clóvis Moura, do (k)quilombo de Beatriz Nascimento e do devir quilomba de Mariléa de Almeida.

Para uma saúde mental desnorteada

Não é raro escutar dos(as) usuários(as) da Rede de Atenção Psicossocial o uso da ideia de desnorteada(o) como sinônimo de loucura: “vim para cá porque estou desnorteada(o)”. Tal sentido parece indicar uma aguda percepção da subordinação da loucura ao “Norte” em duas direções: a da subordinação epistemológica do Sul ao Norte na forma de um eurocentrismo; a da subordinação da loucura à norma da razão e da racionalidade ocidental. Essa é a direção analítica de Fanon e Mbembe quando destacam que o funcionamento colonial hierarquiza os saberes e as culturas. Para os negros (e a África) restaria a fixação na sujeição de sua humanidade e a condenação - na forma da clandestinidade e/ou proscrição - de sua cultura; em contrapartida, aos brancos (e à Europa), a fixação na condição de humano-genérico-universal, senhor da razão colonial.

Desse modo, acompanharemos as contribuições de Frantz Fanon e Achille Mbembe para a construção de referenciais teórico-clínicos que visem a libertação subjetiva e material-concreta das populações e dos territórios colonizados para desenhar o que estamos chamando de ideia-força do desnortear como afirmação da loucura e da negritude, sem no entanto estabelecer fixações.

Frantz Fanon2424 Fanon F. Medicina e colonialismo. Brasil: Editora Terra Sem Amos; 2020., em seu texto “Medicina e colonialismo”, apresenta uma rigorosa análise de como a ciência médica ocidental adentrou o contexto argelino, trazendo em seu bojo opressivo o racismo e a humilhação social característicos do colonialismo. Ao analisar as práticas médicas e de saúde naquele contexto (1954-1962), alerta que, para considerar a relação médico (europeu) e paciente (autóctone), “[é] preciso, com paciência e lucidez, analisar cada uma das reações do colonizado, e toda vez que não entendemos um fato devemos repetir que estamos diante de um drama mais profundo, o do encontro impossível na situação colonial”2424 Fanon F. Medicina e colonialismo. Brasil: Editora Terra Sem Amos; 2020. (p. 11) que produz uma dupla recusa: do lado do colonizado, o medo da instituição hospitalar colonial, que não considera outros grupos étnico-raciais humanos/sujeitos; e, do lado dos ditos colonizadores, a recusa em considerar (ou compor) os elementos de cuidado/saúde tradicionais da população nativa/local, instalando-se um clima de batalha (em especial para o paciente) e a produção de expressões corpóreas e verbais rígidas2424 Fanon F. Medicina e colonialismo. Brasil: Editora Terra Sem Amos; 2020. (p. 13).

Esse cenário apresentado por Fanon é comum nos atendimentos na Rede de Atenção Psicossocial brasileira: os técnicos, com seus instrumentos do pequeno poder - jaleco, carimbo, prontuário, brancura (muitas vezes) ante usuários(as) (pacientes) periféricos(as), pobres, muitas(os) negras(os), na sua maioria mulheres e crianças; falas abreviadas e corpo rígido por parte das(os) usuárias(os); exames rápidos e clínicos por parte dos técnicos, seguidos de diagnósticos que patologizam a parte mais frágil desse encontro. Se a desconsideração dos elementos de cuidado/saúde dos povos tradicionais é vigente na grande maioria das políticas de saúde brasileira2525 Gomberg E. Hospital de orixás: encontros terapêuticos em um terreiro de candomblé. Salvador: EdUFBA; 2011., no campo da saúde mental psicossocial a contradição é ainda maior. A interação com as artes e os ofícios de cuidado afrodiaspóricos ocorre dia a dia, mas raramente é nomeada, percebida, compreendida como tal. Assim, atividades de cuidado psicossociais, como danças de roda, oficinas de grafite, grupos de percussão, entre outras, são desassociadas da cultura afrodiaspórica2626 David EC, Silva LAA. Territórios racializados: a Rede de Atenção Psicossocial e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. In: Silva ML, Farias M, Ocariz MC, Stiel Neto, A, organizadores. Violência e sociedade: o racismo como estruturante da sociedade e da subjetividade do povo brasileiro. São Paulo: Escuta; 2018. p. 233-248..

Como (re)afirmar essa posição na Luta Antimanicomial? Damico, Ohnmacht e Souza2727 Damico J, Ohnmacht T, Souza TP. Antinarciso e o devir revolucionário de Franz Fanon: diálogos entre psicanálise, política e racismo. In: David, EC; Assuar G, organizadores. A psicanálise na encruzilhada: desafios e paradoxos perante o racismo no Brasil. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Grupo de Pesquisa Egbé, Projeto Canela Preta, Sedes Sapientiae; 2021. p. 159-181. afirmam, ecoando o trabalho de Isildinha Baptista Nogueira2828 Nogueira IB. A cor do inconsciente: significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva; 2021., que “faz-se necessário um trabalho de ressignificação desse corpo e dessa história que também é a história de um povo” (p. 164), alertando o campo da psicanálise (e aqui da atenção psicossocial) de que tal processo de ressignificação vem sendo realizado pelos movimentos negros ao longo do tempo e que esses campos, da saúde mental e da subjetividade, necessitam se colocar em relação desimpedida com a cultura afro-brasileira e diaspórica, aproximando-se dos movimentos negros.

Retornamos a Fanon, que destacou a capacidade de mudança política e subjetiva provinda dessas/nessas relações de/em luta libertária. Nelas, a dificuldade no encontro entre médicos (autóctone ou europeu) e colonizados se esvai ao adentrarem juntos na luta de libertação. Quando esse mote político revolucionário é vivido por ambas as partes, se produz um comum: “A reticência do período de opressão absoluta desaparece. Ele não é mais ‘o’ médico, mas ‘nosso’ médico, ‘nosso’ técnico”2424 Fanon F. Medicina e colonialismo. Brasil: Editora Terra Sem Amos; 2020. (p. 35).

Assim como Fanon, o filósofo Achille Mbembe2929 Mbembe A. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes; 2019. considera que os processos de descolonização passam pelas “forças sociais e culturais organizadas” (p. 25) promotoras de criatividade.

Para Mbembe, a descolonização busca “uma metamorfose radical da relação”2929 Mbembe A. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes; 2019. (p. 18), uma vez que a colonização representa “um grande momento de des-ligação e de bifurcação das linguagens”, compondo duas categorias de pessoas2929 Mbembe A. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes; 2019. (p. 18). Essa reinvenção supõe a reparação dos laços que foram rompidos ou se esgarçaram; e também que novas significações sejam atribuídas a vínculos originários. Esse modo de relação exige movimentos de brancas(os) e negras(os), pois o desejo de ultrapassar as condenações da raça não se limita a reparações de justiça e restituições econômicas, impõe também modificações radicais nas condutas éticas (afetivas) e no laço social3030 Mbembe A. Existe um único mundo apenas. In: Bordas MA, organizadora. Caderno Sesc Videobrasil 09: geografias em movimento. São Paulo: Edições Sesc; 2013. p. 45-51..

O autor considera que o caminho - o “levantar e andar” da experiência sul-africana - para uma verdadeira democracia é “endereçada a todos, os inimigos e oprimidos de outrora”2929 Mbembe A. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes; 2019. (p. 54). Esse caminhar não deve tomar a direção de uma política de vingança, afirma Mbembe2929 Mbembe A. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes; 2019., o que promoveria uma fantasia de que, ao assassinar o colonizador e tomar seu poder, estaria reestabelecido o bem-estar nas relações. O filósofo é rigoroso em mostrar que “a preocupação com a reconciliação, por si só, não pode substituir a exigência radical de justiça”2929 Mbembe A. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes; 2019. (p. 54). Sendo assim, o caminhar impõe justiça. No entanto, para que isso ocorra, lembra-nos Rolnik3131 Rolnik S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 Edições; 2018., é preciso deixar-se afetar pelo outro e reconhecer o que a vida demanda que seja criado em face do tensionamento que essa experiência provoca, na forma em que a vida se encontra plasmada em nossa existência.

Essa perspectiva mbembiana convida àquilo que o autor chamou de novas mobilizações2929 Mbembe A. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes; 2019., que exigiriam o reconhecimento da “multiplicidade social - multiplicidade de identidades, alianças, autoridades e normas - e a partir dele imaginar novas formas de lutas, mobilização e lideranças” 2929 Mbembe A. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Petrópolis: Vozes; 2019. (p. 31).

Essa direção que visa ao comum e à comunidade de mundo, Mbembe chamou de aberto, direção antimanicomial e antimanicolonial:

No aberto, não haveria nenhuma razão para temer a diferença. É uma construção; na maioria dos casos, a construção de um desejo. [...] O desejo da diferença, podemos dizer, nasce precisamente onde se vive a experiência de exclusão mais intensa. Nesse sentido, a reivindicação da diferença é a linguagem invertida do desejo de inclusão, de pertencimento e, às vezes, de proteção3030 Mbembe A. Existe um único mundo apenas. In: Bordas MA, organizadora. Caderno Sesc Videobrasil 09: geografias em movimento. São Paulo: Edições Sesc; 2013. p. 45-51. (p. 51).

Numa descolonização desnorteada em saúde mental não devemos temer afirmar a loucura e a raça, uma vez que essa afirmação colabora para a desabilitação do caráter eurocêntrico e racista da manicomialidade; mas tal afirmação é não fixa (sair do Norte em direção ao Sul, ou mesmo da loucura como patologização em direção a uma loucura de vida - vida desnorteada), afirmativa do deslocamento e circulação em uma cultura de mobilidade e mobilização.

Essa perspectiva subjetiva consideramos desnorteadora, afinal, produz dobra na relação de subordinação da loucura à norma “como Norte”, além de criticar a ancoragem eurocêntrica dos saberes e saber-fazer da saúde mental (tradicional) brasileira, que psicopatologiza e medicaliza determinados modos de relação com o fora, fazendo de negras(os) e indígenas vítimas primeiras e históricas da manicomialização - manicolonialização.

Por fim, assinalamos, para que esses movimentos desnorteados sejam comuns ao campo da saúde mental, que não podemos evitar as relações nas diferenças, e para isso se faz necessária a quebra dos discursos de origem fixa, que visam impedir o incorporar/integrar na alteridade. A produção de equidade racial na saúde/saúde mental acontecerá nas relações raciais. Sendo assim, o encontro (encarniçado/conjunto) com aquela(e) que a razão colonial impichou como crioulos doidos e negras malucas é condição desse processo de ressignificação e descolonização da loucura racial a partir das experiências e do protagonismo daquelas(es) que sempre foram as maiores vítimas desse processo de manicolonização: negras(os).

Uma proposta de antimanicolonização

Se a inferioridade, periculosidade e criminalidade ancorada na raça manicolonializam as subjetividades e os corpos negros, vimos que ao desnortear e ao trabalhar pela não fixação, desvinculamos o significante negro da loucura e da periculosidade. Mas o cuidado antimanicolonial coloca em jogo um outro passo desnorteado: o fomento do exercício livre e contracultural de imaginar diásporas, conforme as pistas de Gilroy3232 Gilroy P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora 34, Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos; 2012., com a noção de diáspora negra e transatlântica.

Vejamos com mais vagar essa proposição que busca articular essa pista diaspórica com a proposição cara à reforma da noção de desrazão como ferramenta descolonial. A relação da desrazão com a razão está no cerne da perspectiva adotada por Foucault no início da década de 1960 e dos movimentos críticos à psiquiatria do Pós-Guerra, que pleitearam a crítica da razão ocidental, a desinstitucionalização da doença mental e o direito à loucura e à desrazão.

Gilroy3232 Gilroy P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora 34, Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos; 2012. propõe a ideia da diáspora negra como ferramenta política, cultural e social pela sua potência de transformação contracultural e de libertação. A permanente transformação negra em diáspora modifica contraculturalmente a geopolítica e a geocultura mundial, em um processo de criação permanente. Segundo o autor, os elementos culturais desse sistema comunicativo que é esse diverso movimento transnacional do “Atlântico Negro” fomentam distintas subjetivações de liberdade, imaginadas e forjadas ao longo de atlânticos percursos, visando a humanidade roubada pela colonização, pela colonialidade e pelo racismo. A esse reconhecimento e exercício de transformação política e subjetiva, que se constrói ao longo de séculos, Gilroy3232 Gilroy P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora 34, Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos; 2012. chamou de sublime, considerando-o contracultural.

Em consonância, Lélia Gonzalez3333 Gonzales L. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Rios F, Lima M, organizadoras. Lélia Gonzales, por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar; 2020. p. 127-138.propõe, a partir da ideia de amefricanidade, uma “potência que escorre da experiência transatlântica e forja no novo território vivências e subjetividades”3434 Alves MC, Paula T, Damico J. Amefricana: racismo, sexismo e subjetividade em Lélia Gonzales. In: David EC, Passos RG, Faustino DM, Tavares JSC, organizadores. Racismo, subjetividade e saúde mental: o pioneirismo negro. São Paulo, Porto Alegre: Hucitec, Grupo de Pesquisa Egbé, Projeto Canela Preta; 2021. p. 86-113. (p. 88) num “gigantesco trabalho de dinâmica cultural que não nos leva para o outro lado do Atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma no que somos hoje: amefricanos”3333 Gonzales L. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Rios F, Lima M, organizadoras. Lélia Gonzales, por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar; 2020. p. 127-138. (p. 138), reconhecendo que essa potência já se manifestava na presença negra na América Latina ao longo de séculos como forma de resistência cultural e de organização social livre - em revoltas negras e quilombos. Gilroy3232 Gilroy P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora 34, Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos; 2012. reconhece ainda que a meta de um Atlântico Sul Negro deve levar a cabo o que Édouard Glissant3535 Glissant E. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF; 2005. conceituou como Relação. A Relação é a possibilidade de mover-se da estabelecida/fixa posição do “sou” para a fluida e temporária posição de “sendo”. Esse reposicionamento forja processos de subjetivação que nos afastam da perspectiva colonial do conquistar para a perspectiva descolonial de conhecer. Na Relação (com letra maiúscula), o encontro nas diferenças não hierarquiza ou mesmo abafa a voz/presença das consideradas minorias políticas, diferente da relação (com letra minúscula), que promove o encontro das diferenças mas não deixa de estabelecer lógicas de poder, impedindo movimentos de circulação da fala e dos corpos.

Nesta pesquisa, sugerimos que a diáspora-atlântica cumpre uma função antimanicolonial: a abertura ao movimento atlântico é uma aposta num “pensamento em circulação, um pensamento da travessia, um pensamento-mundo”1010 Mbembe A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições; 2018. (p. 309), contrário ao pensamento fixo ou definido, eterno e irrevogável, típico da colonialidade. A diáspora negra é assim uma ferramenta possivelmente interventiva nas clausuras da modernidade3232 Gilroy P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora 34, Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos; 2012., imobilidade que neste trabalho consideramos manicomial colonializante.

Ao tematizar o distanciamento histórico entre desrazão e loucura, formulado por Foucault3636 Foucault M. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva; 2014. no livro História da loucura, na fórmula de um eclipse da experiência trágica e cósmica da loucura no Renascimento e da migração de uma experiência desarrazoada para a de uma insensatez razoável encerrada no “tipo social do louco”, Pelbart3737 Pelbart PP. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Brasiliense; 1989. sinaliza a possibilidade das relações de um “vai e vem com o Fora”, na direção de um Fora da clausura, numa relação com a desrazão, ou de uma clausura do Fora numa personagem exilada que seria a experiência da loucura3737 Pelbart PP. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Brasiliense; 1989. (p. 169).

Assim como em certos momentos uma sociedade pode confinar o acesso ao Fora apenas à loucura (obrigando com isso poetas, artistas e pensadores do Fora a enlouquecer), em outros momentos outros espaços podem estar abertos a uma relação com o Fora (espaços proféticos, xamânicos, místicos, políticos, poéticos, literários etc.)3737 Pelbart PP. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Brasiliense; 1989. (p. 180). Admitindo a problematicidade epistemológica da noção do entendido como a pluralidade das Forças, ou a distância entre as Forças, o entre as Forças, a disponibilidade para a diferença entre elas, nos deixando perceber a relação indissolúvel com a Diferença e a Força - Pelbart3737 Pelbart PP. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Brasiliense; 1989. sinaliza que o Pensamento do Fora3131 Rolnik S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 Edições; 2018. é aquele que se expõe às forças do Fora, mas que mantém com ele uma relação de vaivém, de troca, de trânsito, de aventura3737 Pelbart PP. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Brasiliense; 1989. (p. 96). Nesse sentido, enquanto na experiência medicalizada da loucura há uma clausura do Fora, é possível pensar um vaivém - um jogo com a Desrazão.

Sustentamos que no Brasil e na América Latina a cultura afrodiaspórica é um modo de relação com o Fora3737 Pelbart PP. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Brasiliense; 1989. (p. 126), um movimento de deslocamento em Relação3838 Glissant E. Poética da relação. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2021. que fomenta modos singulares de subjetivação. Entendemos que para um saber-fazer antimanicolonial, a Reforma Psiquiátrica brasileira não deve recuar ao mergulho no Atlântico Negro: não para “enlouquecer” no fora, ou ali fixar-se, mas numa Relação com o Fora - afirmar a desrazão Descolonial. Nesse movimento de vaivém, atlântico e diaspórico3232 Gilroy P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora 34, Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos; 2012., é possível como apontamos no desnortear uma constante entrada e saída na raça e na loucura, o que permite não ser louco e negro o tempo todo, sem deixar de sê-lo.

Aquilombação: uma ética da liberdade

Ainda na busca de pistas teóricas para um dispositivo de liberdade que não seja para a proteção dos privilegiados e normativos que se compreendem (e/ou são compreendidos) como universais, recorremos às compreensões teóricas de “kilombo”3939 Nascimento MB. Kilombo. In: Nascimento MB, Rattz A, organizadores. Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Zahar; 2021. p. 247-251. (Maria Beatriz Nascimento [1942-1995]), “quilombagem”4040 Moura C. História do negro brasileiro. São Paulo: Ática; 1989. (Clóvis Moura [1925-2003]), “quilombismo”4141 Nascimento A. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo, Rio de Janeiro: Perspectiva, Ipeafro; 2019. (Abdias do Nascimento [1914-2011]) e “devir quilomba”4242 Almeida M. Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas. São Paulo: Elefante; 2022. (Mariléa de Almeida) como ferramentas para o dispositivo de aquilombação da Rede de Atenção Psicossocial.

Em O quilombismo, Abdias do Nascimento4141 Nascimento A. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo, Rio de Janeiro: Perspectiva, Ipeafro; 2019. aponta a necessidade de produção/recuperação da memória da(o) negra(o) brasileira(o) para além daquela supostamente iniciada no tráfico transatlântico. Para o autor, essa memória desempenhada é qualidade de uma consciência negra e sentimento quilombista, o que afastaria/dificultaria a incorporação da discriminação racial no psiquismo de negras(os).

A asseguração da existência de ser das(os) negras(os) ainda exige a defesa de sua sobrevivência, e, segundo Abdias4141 Nascimento A. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo, Rio de Janeiro: Perspectiva, Ipeafro; 2019., essa exigência vital é uma das memórias que trazemos dos africanos escravizados. Porém, observa que esse movimento de vida não se deu apenas pelo corajoso ato da fuga, mas, acima de tudo, pela criação e organização de modos de sociedade livre. Modos estes que produzem a memória dos quilombos como formas simbólicas e subjetivas de movimento organizativo singular, que pode fomentar em diversas pessoas e grupos ideias-força de dignidade.

Essa dignidade que o autor confere dá-se no quilombismo porque sua história é associativa. A busca por defesa e organização econômico-social exigiria um desempenho relacional, de importante função social, pois essa essência associativa se daria por meio das relações religiosas, esportivas, culturais, de auxílio mútuo, recreativas, beneficentes, entre outras, o que geraria redes em associações, confrarias, terreiros, escolas de samba, tendas, afoxés, irmandades etc. Para Abdias4141 Nascimento A. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo, Rio de Janeiro: Perspectiva, Ipeafro; 2019., assim ergueram e erguem-se quilombos em um movimento amplo e permanente: “A este complexo de significações, a esta práxis afro-brasileira, eu denomino de quilombismo” 4141 Nascimento A. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo, Rio de Janeiro: Perspectiva, Ipeafro; 2019. (p. 282).

É importante ressaltar que, para o autor, o quilombismo não é fixo ou material, trata-se de uma ideia-força, uma energia presente desde o século XV e em constante atualização, em ampla conexão com as demandas do tempo histórico vigente, que promove, assim, distintos modos de organização libertária, sem perder “o apelo psicossocial cujas raízes estão entranhadas na história, na cultura e na vivência dos afro-brasileiros”4141 Nascimento A. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo, Rio de Janeiro: Perspectiva, Ipeafro; 2019. (p. 282).

Sabemos que o quilombismo não se esgotava em uma conceituação teórico-científica, trazia também uma propositura política fundada na liberdade, na justiça, na igualdade e no respeito. Sendo assim, carregava em seu cerne uma proposta de sistema econômico contra o exploratório e racista capitalismo.

Já em Clóvis Moura, essa dimensão econômica se faz central: “O africano escravizado e seus descendentes protagonizaram a luta de classes no Brasil. [...] A ação constante do escravizado negando o sistema colonial foi um dos elementos que forjou a transição do regime político colonial para a independência”4343 Farias M. Quilombismo e quilombagem: divergências e convergências entre Abdias do Nascimento e Clóvis Moura. NEPRAFO - Núcleo de Estudos e Pesquisas da Afro-América; s/d. (p. 3). Esse datado movimento (século XVI até 1850), Clóvis Moura conceituou como quilombagem.

Moura reconhece esse movimento dos escravizados como emancipacionista radical e logo alerta para a diferença basilar entre a quilombagem e o movimento abolicionista; este, segundo Moura, liberal. Trata-se, na quilombagem, de um confronto direto, uma vez que o contexto da escravização exigiu esse tipo de ação política, muitas vezes dinamizado pela violência e rebeldia4141 Nascimento A. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo, Rio de Janeiro: Perspectiva, Ipeafro; 2019.. Sem a rebeldia, as bases econômicas, militares e sociais do sistema escravista não seriam impactadas/desgastadas. Essa rebeldia permitiu ações constantes em todo o território brasileiro durante o período de escravismo pleno no Brasil.

Abdias Nascimento e Moura, com suas perspectivas do quilombismo/quilombagem em sua potência de transformação social, de “reinvenção de nós mesmos e de nossa história” por meio da “utilização do conhecimento crítico e inventivo de suas instituições golpeadas pelo colonialismo e pelo racismo”4141 Nascimento A. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo, Rio de Janeiro: Perspectiva, Ipeafro; 2019. (p.288) na construção de um lugar político-social para os indesejáveis, nos ofereceram elementos para sugerir que a Rede de Atenção Psicossocial absorva essa práxis da coletividade negra de modo crítico e inventivo na direção antimanicolonial, quando propusemos uma ética aquilombada para a Reforma Psiquiátrica55 David EC. Saúde mental e racismo: a atuação de um Centro de Atenção Psicossocial II Infantojuvenil [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2018., reconhecendo o quilombo como lugar que “visava (e ainda visam) liberdade, luta, emancipação, dignidade humana, direitos culturais, demarcações de terra para moradia, entre outros princípios igualitários e de cidadania”55 David EC. Saúde mental e racismo: a atuação de um Centro de Atenção Psicossocial II Infantojuvenil [dissertação]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2018. (p. 122).

Contudo, queremos introduzir a dimensão micropolítica da luta de aquilombação, assim como fizeram as duas intelectuais negras com as quais dialogamos a seguir. Com Beatriz Nascimento, o quilombo ganhou aspectos subjetivos, para além das relações territoriais específicas de determinado grupo de pessoas que nasceram (ou viveram) em uma particular terra/local onde antepassados escravizados se refugiaram e lutaram em resistência às diversas opressões sofridas pela escravização. Assim, Beatriz Nascimento3939 Nascimento MB. Kilombo. In: Nascimento MB, Rattz A, organizadores. Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Zahar; 2021. p. 247-251. conceituou (k)quilombo como força de singularização: “Como história (intensamente) vivida, ele não interrompeu sua trajetória, estando arraigadamente infiltrado nas mentes dos indivíduos brasileiros” 3939 Nascimento MB. Kilombo. In: Nascimento MB, Rattz A, organizadores. Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Zahar; 2021. p. 247-251. (p. 247).

Nessa direção, aponta que a memória de ser na adversidade nos constitui e que a recuperação da identidade quilombo, em memória, história e existência, permitiria que cada indivíduo fosse um quilombo, em seu poder de subjetivação. A autora destaca o caráter repetitivo da aglutinação; essa repetição necessária, fruto das aglutinações, permite que povos se unifiquem constantemente. Se o colonialismo promove a desagregação cultural, social e subjetiva do colonizado, a aglutinação repetitiva do quilombo, por sua vez, promove uma consciência de pertença, uma real ideologia comunitária, aceitação, singularização4444 Nascimento MB. Historiografia do quilombo. In: Nascimento MB. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidade nos dias da destruição. São Paulo: Editora Filhos da África; 2018. p. 125-165..

Já Mariléa Almeida4242 Almeida M. Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas. São Paulo: Elefante; 2022. propõe o devir quilomba. Devir, conceito que pressupõe mudanças, acrescido da palavra “quilomba” evoca as condições históricas que produziram a feminização da ideia de quilombo, possibilitando a visibilidade contemporânea das mulheres”4242 Almeida M. Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas. São Paulo: Elefante; 2022. (p. 30). Para essa intelectual, na luta pela terra, aspectos dos processos de feminização são fundamentais, “como a ética do cuidado de si, do outro e do espaço onde se vive. [...] enfatizo que devir quilomba diz respeito à necessidade de construirmos um vir a ser que se opõe à naturalização do modelo masculinista de fazer política e de viver”4242 Almeida M. Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas. São Paulo: Elefante; 2022. (p. 30).

Mariléa de Almeida4242 Almeida M. Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas. São Paulo: Elefante; 2022. nos convida a seguir pelas condições coletivas e solidárias, históricas e singulares, das práticas em devir quilomba. Assim, a intelectual se debruça sobre e nos apresenta narrativas de mulheres quilombolas. Demonstra como elas tecem suas relações a partir dos afetos e produzem devires políticos e subjetivos, mesmo em meio ao risco constante, produto dos dispositivos de poder e morte racista e sexista.

Em diálogo com a psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza, Almeida4242 Almeida M. Devir quilomba: antirracismo, afeto e política nas práticas de mulheres quilombolas. São Paulo: Elefante; 2022. considera que, nos momentos em que a população negra acessa os serviços de cuidado em saúde mental, “[o] espaço terapêutico ganha uma dimensão política que, [...] envolve simultaneamente, de um lado, o saber-se negra e o reconhecimento dos traumas causados pelos dispositivos racistas, e, de outro, a capacidade de recriar as potencialidades” (p. 281).

Segundo Lúcia Xavier4545 Xavier L. Prefácio. In: Pereira MO, Passos RG, Nascimento A, Correa LC, Almeida OM, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: formação e militâncias. Rio de Janeiro: Autografia; 2020. p. 25-27., essa luta por liberdade e reconhecimento da humanidade produz diferentes saberes, entendimentos, modos de enfrentar e combater os processos de subordinação e hierarquização. Assim, essas mulheres negras vão produzindo diferentes padrões de civilidade, nas trocas, escritas e narrativas de suas histórias de vida, “Mulheres que também se recusam a tomar como oportunidade qualquer chance de reforçar as alianças com o racismo patriarcal cisheteronormativo. Por isso, questionam as instituições, a ciência, as práticas e o poder”4545 Xavier L. Prefácio. In: Pereira MO, Passos RG, Nascimento A, Correa LC, Almeida OM, organizadoras. Luta antimanicomial e feminismos: formação e militâncias. Rio de Janeiro: Autografia; 2020. p. 25-27. (p. 27).

Experienciar os quilombos como metáfora viva é radicalizar as relações nas diferenças, visando liberdade. Tal radicalização estaria endereçada a uma Luta Antimanicolonial, o que convida a Reforma Psiquiátrica brasileira à aquilombação cotidiana, como uma práxis transversal na Rede de Atenção Psicossocial. Todavia, considera-se que esse saber-fazer não pode estar distante dos movimentos negros e de mulheres negras, pelo contrário, faz-se necessário identificar o que há de antimanicolonial nesses movimentos e nas suas comunidades e territórios. Assim encontraremos na diáspora negra alguns dos elementos civilizatórios que não visam dominação (descoloniais), além dos modos de relação e aspectos culturais desnorteados que permitem as relações na diferença, no ir e vir comum das relações raciais. Deslocamentos necessários para o estabelecimento das democracias e da tão vislumbrada humanidade, conforme dito “para aqueles que sofreram a dominação colonial [...], a recuperação dessa parcela de humanidade muitas vezes passa pela proclamação da diferença”1010 Mbembe A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições; 2018. (p. 315).

Considerações finais

No célebre livro História da loucura na Idade Clássica, Foucault3636 Foucault M. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva; 2014. demonstrou que o louco é um sujeito historicamente construído, de forma que o engenho da doença mental intencionava a exclusão de determinados corpos e modos de vida da sociedade. Com o sujeito racial não foi muito diferente. Mbembe1010 Mbembe A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições; 2018., no livro Crítica da razão negra, afirma que a criação do negro está intrinsecamente ligada à história do capitalismo, pois, ancorado em subsídios raciais, esse sistema (em seus distintos tempos e modelos) distribui violências a determinados corpos e modos de vida, visando à manutenção e ao crescimento das “forças produtivas” do capital.

No entanto, é através da colonialidade que negras(os) foram entendidas(os) como ausentes de subjetividade/humanidade. No consagrado livro Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon1212 Fanon F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: UBU Editora; 2020. aponta que o resgate dessa humanidade exige um processo psicológico que esteja alinhavado às consciências econômicas e sociais.

Ambas as criações, raça e loucura, se ancoraram na razão ocidental para o seu exercício de exclusão, fixando loucos e negros à desrazão - aos espaços de exclusão. Ideia manicolonial que, aliançada no racismo e em suas intersecções, forja o crioulo doido e a nega maluca no Brasil. A busca por liberdade neste país não pode estar desassociada das pautas antirracistas, anticapitalistas e feministas, o que exigiria um movimento de descolonização do pensamento e do poder, entendendo que o antirracismo opera entre as mudanças subjetivas, institucionais e da própria estrutura, que é fomentador de outros registros de inconsciente, que combatam o regime “colonial-racializante-capitalístico”3131 Rolnik S. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 Edições; 2018..

Para isso, propusemos três ideias-força: desnortear, antimanicolonial e aquilombação. Compreendendo que a direção para o cuidado em saúde mental antimanicolonial se dá no fomento do exercício livre e contracultural de imaginar diásporas, assim, não apenas nos posicionamos contra a estrutura racista do capitalismo como buscamos fomentar modos de subjetivação desnorteados que criem novas estratégias de aquilombação dentro e fora da Rede de Atenção Psicossocial.

A memória viva dos quilombos como simbologia da diáspora negra é comunicada em/para nós brasileiros como ideia-força psicossocial; encontrar o que há de antimanicolonial nesse vaivém diaspórico fomenta a produção de subjetividades, no desnortear dos corpos e territórios por meio do sonho de liberdade.

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  • Financiamento

    Bolsa CNPq de Doutorado em Psicologia Social: ECD; bolsa CNPq de Produtividade: MCG Vicentin.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2023
  • Aceito
    29 Ago 2023
  • Publicado
    31 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br