Resumo
O objetivo deste artigo é descrever a distribuição geográfica da mortalidade hospitalar por COVID-19 em crianças e adolescentes durante a pandemia de 2020-2021 no Brasil. Estudo ecológico, censitário (SIVEP GRIPE), de indivíduos até 19 anos, internados com SRAG por COVID-19 ou SRAG não especificada, em municípios brasileiros, estratificados de duas formas: 1) nas cinco macrorregiões e 2) em três aglomerados urbanos: capital, municípios da região metropolitana e do interior. Verificou-se 44 internações/100 mil habitantes por COVID-19 e 241/100 mil ao se incluir a SRAG não especificada (subnotificação estimada de 81,8%). Ocorreram1.888 óbitos por COVID-19 e 4.471 óbitos se somados à SRAG não especificada, estimando-se subnotificação de 57,8% dos óbitos. A mortalidade hospitalar foi 2,3 vezes maior nas macrorregiões quando considerados apenas os casos de COVID-19, com exceção das regiões Norte e Centro-Oeste. Registrou-se também maior mortalidade hospitalar em municípios do interior. O contexto urbano esteve associado à maior mortalidade hospitalar por SRAG durante a pandemia de COVID-19 no Brasil. Residir nas macrorregiões Norte e Nordeste, e distante das capitais, ofereceu maior risco de mortalidade para crianças e adolescentes que necessitaram hospitalização.
Palavras-chave:
COVID-19; Pandemia; Criança; Adolescente; Estudos ecológicos
Introdução
A COVID-19, declarada como pandemia pela Organização Mundial de Saúde em março de 2020, afetou de forma intensa toda a população mundial. Em novembro de 2022, o Brasil encontrava-se em 4º lugar no total de casos, com 34.582.063 notificações, atrás apenas dos Estados Unidos (EUA), Índia e França, com 685.334 vidas, permanecendo em 2º lugar no número de óbitos desde 23 de maio de 2020, atrás apenas dos EUA11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico Especial 131. Doença pelo Coronavírus COVID-19 [Internet]. 2022 [acessado 2022 jun 24]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/covid-19/2022/boletim-epidemiologico-no-131-boletim-coe-coronavirus.
https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-... .
Crianças e adolescentes apresentaram, em sua maioria, quadros leves a moderados22 Bernardino FBS, Alencastro LC, Silva RA, Ribeiro ADN, Castilho GRC, Gaíva MAM. Epidemiological profile of children and adolescents with COVID-19: a scoping review. Rev Bras Enferm 2021; 74(Supl. 1):e20200624.,33 Ludvigsson JF. Revisão sistemática de COVID-19 em crianças mostra casos mais leves e melhor prognóstico do que adultos. Acta Paediatr 2020; 109(6):1088-1095.. Contudo, uma parcela evoluiu para formas graves de COVID-19, como a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG)44 Hoang A, Chorath K, Moreira A, Evans M, Burmeister-Morton F, Burmeister F, Naqvi R, Petershack M, Moreira A. COVID-19 in 7780 pediatric patients: A systematic review. E Clin Medi 2020; 24:100433.,55 Guo CX, He L, Yin JY, Meng XG, Tan W, Yang GP, Bo T, Liu JP, Lin XJ, Chen X. Epidemiological and clinical features of pediatric COVID-19. BMC Med 2020; 18(1):250., que é conceituada como síndrome gripal associada a sinais de gravidade como dispneia, desconforto respiratório ou queda de saturação66 Brasil. Ministério da Saúde (MS), Guia de vigilância epidemiológica do covid 2021 [Internet]. 2021 [acessado 2021 jun 14]. Disponível em: https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2021/03/Guia-de-vigila%CC%82ncia-epidemiolo%CC%81gica-da-covid_19_15.03_2021.pdf.
https://www.conasems.org.br/wp-content/u... , e pode levar a óbito. Esta faixa etária respondeu, até novembro de 2022, por 17.358 internações por COVID-19 (9,1%) e 87.867 internações se estas forem somadas aos casos de SRAG não especificada (SRAG-nE), correspondendo a 25,3% do total de internações por estas causas11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico Especial 131. Doença pelo Coronavírus COVID-19 [Internet]. 2022 [acessado 2022 jun 24]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/covid-19/2022/boletim-epidemiologico-no-131-boletim-coe-coronavirus.
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No Brasil, a distribuição das hospitalizações e óbitos não ocorreram de forma uniforme. O território brasileiro possui dimensão continental, com padrões de acometimento e evolução dos casos hospitalizados por COVID-19 ocorrendo de forma diferenciada nas diversas áreas geográficas do país. Desigualdades socioeconômicas77 Baqui P, Bica I, Marra V, Ercole A, Schaar MVD. Ethnic and regional variations in hospital mortality from COVID-19 in Brazil: a cross-sectional observational study. Lancet Glob Health 2020; 8(8):e1018-e1026. e disparidades no acesso e na oferta de serviços de saúde, como leitos hospitalares de internação e terapia intensiva88 Prata-Barbosa A, Lima-Setta F, Santos GRD, Lanziotti VS, Castro REV, Souza DC, Raymundo CE, de Oliveira FRC, de Lima LFP, Tonial CT, Colleti J Jr, Bellinat APN, Lorenzo VB, Zeitel RS, Pulcheri L, Costa FCMD, La Torre FPF, Figueiredo EADN, Silva TPD, Riveiro PM, Mota ICFD, Brandão IB, de Azevedo ZMA, Gregory SC, Boedo FRO, de Carvalho RN, Castro NAASR, Genu DHS, Foronda FAK, Cunha AJLA, de Magalhães-Barbosa MC; Brazilian Research Network in Pediatric Intensive Care, (BRnet-PIC). Pediatric patients with COVID-19 admitted to intensive care units in Brazil: a prospective multicenter study. J Pediatr (Rio J) 2020; 96(5):582-592., também contribuem para essas discrepâncias99 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Boletim Observatório Covid-19: Balanço da pandemia em 2020 [Internet]. 2021 [acessado 2022 ago 22]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/observatorio-covid-19.
https://portal.fiocruz.br/observatorio-c... . Desta forma, a segmentação em macrorregiões geográficas - Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste - permite estudar melhor estas desigualdades. Contudo, grande heterogeneidade é também encontrada dentro das macrorregiões e até dos estados do Brasil. Os grandes aglomerados das capitais e municípios limítrofes (regiões metropolitanas estaduais) compartilham da mesma rede de atendimento e são mais desenvolvidas, com maior disponibilidade de serviços de saúde. Por outro lado, os municípios do interior - maioria dos municípios brasileiros - podem ser entendidos como mais isolados, com menor rede assistencial e, em sua maioria, mais distantes da capital, podendo dificultar o acesso de seus moradores aos serviços de saúde.
Tendo em vista este cenário, o objetivo deste estudo foi descrever a distribuição geográfica da mortalidade hospitalar por COVID-19 em crianças e adolescentes entre as cinco macrorregiões geopolíticas brasileiras e entre as capitais e municípios das regiões metropolitanas e do interior das Unidades Federativas do Brasil durante a pandemia de COVID-19.
Método
Trata-se de um estudo ecológico, utilizando como unidades de análise os municípios brasileiros, estratificados de duas formas: 1) nas cinco macrorregiões (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul e Centro-Oeste); e 2) em três categorias de municípios: capital, municípios pertencentes à região metropolitana ou regiões integradas de desenvolvimento econômico, e municípios do interior, dentro de cada unidade da federação.
Foram utilizados os dados do Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP GRIPE) do DATASUS/Ministério da Saúde, que constitui um banco de dados de vigilância utilizado para monitorar casos de SRAG, que passou a incluir os causados pelo vírus SARS-CoV-2 desde março de 202066 Brasil. Ministério da Saúde (MS), Guia de vigilância epidemiológica do covid 2021 [Internet]. 2021 [acessado 2021 jun 14]. Disponível em: https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2021/03/Guia-de-vigila%CC%82ncia-epidemiolo%CC%81gica-da-covid_19_15.03_2021.pdf.
https://www.conasems.org.br/wp-content/u... , tornando-se o sistema oficial para relatar e monitorar internações e óbitos de casos graves de COVID-19. A notificação de casos de SRAG é obrigatória no Brasil, sendo os profissionais de saúde responsáveis pelo preenchimento da ficha de notificação1010 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Formulário de notificação obrigatória de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave. Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe - SIVEP-Gripe Casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) - Dados completos Nota Técnica [Internet]. 2022 [acessado 2022 out 11]. Disponível em: https://sistemas.saude.rj.gov.br/tabnetbd/sivep_gripe/SIVEP_Gripe.pdf.
https://sistemas.saude.rj.gov.br/tabnetb... . Os casos de SRAG são definidos como indivíduos hospitalizados com tosse ou odinofagia associados a dispneia, saturação menor que 95% ou desconforto respiratório, ou que evoluíram a óbito, independentemente de internação. Para casos de COVID-19 não é necessário a presença de febre66 Brasil. Ministério da Saúde (MS), Guia de vigilância epidemiológica do covid 2021 [Internet]. 2021 [acessado 2021 jun 14]. Disponível em: https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2021/03/Guia-de-vigila%CC%82ncia-epidemiolo%CC%81gica-da-covid_19_15.03_2021.pdf.
https://www.conasems.org.br/wp-content/u... . Para a construção do banco de dados deste estudo foram acessados os arquivos de 2020 e 2021 do SIVEP GRIPE em 31/01/2022. Foram utilizados todos os casos de SRAG por COVID-19 e SRAG não especificada ocorridos em crianças e adolescentes de até 19 anos completos (censo), notificados ao SIVEP GRIPE, no período entre 01/01/2020 e 31/12/2021. Deste modo, nos meses de janeiro e fevereiro de 2020 foram computados apenas casos de SRAG não especificada. Optou-se metodologicamente por incluir a SRAG-nE nas análises como provável subnotificação da COVID-19, tendo em vista a vigência da pandemia. A mortalidade hospitalar foi o desfecho principal.
Os 5.570 municípios brasileiros foram categorizados de acordo com a Classificação de Aglomerados Urbanos pelo IBGE (2021) nos seguintes aglomerados populacionais urbanos: 27 capitais, 22 regiões metropolitanas (RM) ou regiões integradas de desenvolvimento econômico (RIDE), contendo 1.407 municípios, e 26 conglomerados de municípios do interior (exceto as capitais e as regiões metropolitanas), contendo 4.136 municípios do interior1111 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Regiões Metropolitanas, Aglomerações Urbanas e Regiões Integradas de Desenvolvimento [Internet]. 2021 [acessado 2022 out 1]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/divisao-regional/18354-regioes-metropolitanas-aglomeracoes-urbanas-e-regioes-integradas-de-desenvolvimento.html?=&t=acesso-ao-produto.
https://www.ibge.gov.br/geociencias/orga... . Deste modo, foram considerados 75 agregados de unidades ecológicas neste estudo. Destaque-se a composição de algumas regiões metropolitanas ou RIDEs: Piauí concentra a RIDE da Grande Teresina com 12 municípios (excluído Teresina) e mais um município do Maranhão; Goiás concentra a RIDE do Distrito Federal e entorno com 29 municípios (excluído Brasília) e mais quatro municípios de Minas Gerais1111 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Regiões Metropolitanas, Aglomerações Urbanas e Regiões Integradas de Desenvolvimento [Internet]. 2021 [acessado 2022 out 1]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/divisao-regional/18354-regioes-metropolitanas-aglomeracoes-urbanas-e-regioes-integradas-de-desenvolvimento.html?=&t=acesso-ao-produto.
https://www.ibge.gov.br/geociencias/orga... . Não há municípios de região metropolitana no Acre, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal. Não há municípios de interior em Santa Catarina e Distrito Federal1111 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Regiões Metropolitanas, Aglomerações Urbanas e Regiões Integradas de Desenvolvimento [Internet]. 2021 [acessado 2022 out 1]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/divisao-regional/18354-regioes-metropolitanas-aglomeracoes-urbanas-e-regioes-integradas-de-desenvolvimento.html?=&t=acesso-ao-produto.
https://www.ibge.gov.br/geociencias/orga... .
Para os dados da projeção da população do Brasil e Unidades da Federação por sexo e idade para o período 2000-2030, disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1212 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Projeção da população [Internet]. 2021 [acessado 2022 out 1]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9109-projecao-da-populacao.html?=&t=resultados.
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc... , por meio do Tabnet/DATASUS, acessado em outubro de 2022, para a identificação de indivíduos de até 19 anos de idade residentes no Brasil em 2020 e 2021 por município, para a construção da taxa de internação por 100 mil habitantes. Utilizou-se a média do tamanho da população dos anos de 2020 e 2021.
Os indicadores dispostos nas tabelas foram calculados da seguinte forma: (1) taxa de internação: número de internações por SRAG-nE + COVID-19 (ou apenas COVID-19) de residentes até 19 anos de uma determinada área geográfica, multiplicado por 100.000, dividido pelo número de residentes até 19 anos da mesma área geográfica; (2) taxa mortalidade hospitalar: número de óbitos por SRAG-nE + COVID-19 (ou apenas COVID-19) de residentes até 19 anos de uma determinada área geográfica, dividido pelo número de hospitalizados de até 19 anos da mesma geográfica, com o diagnóstico de SRAG-nE + COVID-19 (ou apenas COVID-19), multiplicado por 100; (3) razão de mortalidade hospitalar: mortalidade apenas por COVID-19, de residentes até 19 anos de uma determinada área geográfica, dividida pela mortalidade do grupo COVID-19 + SRAG-nE, de residentes até 19 anos, da mesma área geográfica.
A análise estatística foi realizada usando-se o software IBM SPSS Statistics versão 24 (IBN Corp. Armonk, NY, EUA). Os mapas foram elaborados no programa TabWin 4.15 e os gráficos foram confeccionados no programa R studio versão 4.2.1 (R Foundation for Statistical Computing, Viena, Áustria).
Esta pesquisa utiliza dados de uso público e, portanto, de acordo com a resolução nº 510 do CNS de 2016, fica dispensada de submissão a um Comitê de Ética em Pesquisa e de uso de um termo de consentimento livre e esclarecido.
Resultados
A Tabela 1 mostra a taxa de internação por 100 mil habitantes, número de óbitos e mortalidade hospitalar por COVID-19 e COVID-19 + SRAG não especificada (COVID-19+SRAG-nE), segundo as macrorregiões geográficas. Assumindo-se metodologicamente que os casos de SRAG não especificada são potencialmente subnotificações de COVID-19, estimou-se um percentual geral de subnotificação de óbitos de 57,8%, com grande variação entre as regiões e maior subnotificação na região Sudeste (62,8%) e menor no Norte (44,5%). Verificou-se a ocorrência de 1.888 óbitos considerando-se apenas os casos de COVID-19 confirmados e 4.471 óbitos quando se somaram a estes os casos de SRAG não especificada.
Ao somarem-se os casos de SRAG não especificada e por COVID-19, a quantidade de casos internados por 100 mil habitantes foram cinco e meia vezes maior que a taxa de casos confirmados por COVID-19 no Brasil (241,0 versus 44,0). As maiores taxas de internação por 100 mil habitantes foram encontradas nas regiões Sudeste (317,4) e Sul (223,4), quando considerados COVID-19+SRAG-nE, e no Norte (60,6) e Centro-Oeste (52,0), quando considerados apenas os casos de COVID-19 confirmados. A mortalidade hospitalar, considerando apenas os casos COVID-19 confirmados, ficou em 7,2% em âmbito nacional, chegando a 10,3%, quando se trata da região Nordeste. Menores percentuais de mortalidade hospitalar foram encontrados no Centro-Oeste (4,9%) e Sudeste (5,8%). Quando incluídos os casos de SRAG não especificada, a mortalidade foi de 3,1% no Brasil, sendo maior na região Norte (5,3%). No Brasil como um todo, a razão de mortalidade hospitalar foi 2,3 maior no grupo de SRAG por COVID-19 confirmada, comparativamente ao grupo COVID-19+SRAG-nE, com grandes disparidades entre as regiões, porém todas apresentando razão de mortalidade maior para casos confirmados, variando de 2,8 no Sudeste a 1,4 na região Norte (Tabela 1).
A Tabela 2 apresenta a mortalidade hospitalar em casos de SRAG por COVID-19 confirmada e COVID-19+SRAG-nE, por tipo de aglomerado urbano e unidade da federação. Nota-se que a mortalidade hospitalar no Brasil foi maior nos municípios mais afastados das capitais, tanto para COVID-19 confirmados quanto para casos COVID-19 + SRAG nE, em maior magnitude entre os municípios do interior. Roraima é a UF que se destaca negativamente, em todos os contextos urbanos. A capital, Boa Vista, apresentou 35% de mortalidade hospitalar, quando considerados somente os casos de COVID-19 confirmados, e 19,2%, incluindo-se os casos de SRAG não especificada. Essa proporção é muito superior ao encontrado em outros estados. Poucas capitais passaram de 10% de mortalidade hospitalar entre os casos de COVID-19 confirmados, como foi o caso de São Luís-MA (11,9%), Maceió-AL (11,0%) e Recife-PE (10,8%). Entre municípios pertencentes às regiões metropolitanas, Roraima também se destaca com 44% de mortalidade hospitalar, com poucas unidades da federação com mais de 10%, todos pertencentes às regiões Norte ou Nordeste, entre os casos de COVID-19 confirmados. Nos municípios do interior, a mortalidade hospitalar em Roraima chegou a 66%, 20,9% no Maranhão e 20,0% no Acre. No interior das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste, a única unidade da federação acima de 10% foi o Espírito Santo, com 25%. Alguns municípios destacaram-se por apresentar aumento expressivo da razão de mortalidade em casos de COVID-19 confirmada comparativamente aos casos de COVID-19+SRAG-nE, como foram os casos do interior do estado do Espírito Santo, com razão de 3,9, da RM de MG com 3,7, da RM do Rio de Janeiro, com 3,2 e da capital de Santa Catarina, com 4,3.
A Figura 1 mostra a distribuição espacial da mortalidade hospitalar por COVID-19 por municípios brasileiros (Figura 1A: COVID-19+SRAG-nE e Figura 1B apenas COVID-19). Constata-se maior heterogeneidade no mapa de casos somente por COVID-19, com áreas sem óbitos em todas as macrorregiões, contrastando com outras com mortalidade acima de 10%. Identificam-se áreas mais densas de mortalidade nos municípios da região Norte e Nordeste. Ao se integrar os dados de SRAG não especificada com os de COVID-19 confirmados, observa-se maior distribuição dos óbitos e redução da mortalidade hospitalar.
Distribuição espacial por municípios brasileiros da mortalidade hospitalar por COVID-19 entre crianças e adolescentes. Brasil, 2020-2021.
Discussão
Este estudo demonstrou a grande variabilidade nos indicadores de hospitalização e óbitos por COVID-19 e SRAG não especificada no Brasil, durante a pandemia de COVID-19 em 2020 e 2021, tanto por macrorregião geográfica quanto por unidades da federação, estratificada em três aglomerados urbanos: capitais, regiões metropolitanas e municípios do interior.
Residir em municípios da região Norte e Nordeste ofereceu maior risco para crianças e adolescentes brasileiros que necessitaram hospitalização durante a pandemia de COVID-19, mormente quando considerados os casos apenas de COVID-19 confirmados. Em geral, a mortalidade hospitalar foi muito maior (mais que o dobro) nas macrorregiões brasileiras quando considerados apenas os casos de COVID-19, em comparação com os casos de COVID-19 integrados com SRAG não especificada, com exceção das regiões Norte e Centro-Oeste, aonde as taxas também foram comparativamente mais altas, porém em menor magnitude. Registrou-se também maior mortalidade hospitalar em municípios do interior (em ambos os grupos), destacando-se o interior de Roraima, que chegou a mais de 65% de mortalidade para casos confirmados de COVID-19 e 40% ao se incluir casos de SRAG não especificada. Apesar de menos de 25% dos municípios brasileiros apresentarem óbitos em crianças e adolescentes por COVID-19 e SRAG não especificada durante a pandemia, lamentavelmente, 73 municípios chegaram a alcançar mortalidade hospitalar de 100% para casos de COVID-19+SRAG-nE e 156 para casos confirmados de COVID-19. Ainda 257 indivíduos menores de 19 anos com COVID-19+SRAG-nE morreram sem sequer terem sido hospitalizados.
Neste estudo, as taxas de mortalidade hospitalar em algumas unidades da federação foram muito superiores ao relatado em outros estudos, que descreveram taxas de e 3%88 Prata-Barbosa A, Lima-Setta F, Santos GRD, Lanziotti VS, Castro REV, Souza DC, Raymundo CE, de Oliveira FRC, de Lima LFP, Tonial CT, Colleti J Jr, Bellinat APN, Lorenzo VB, Zeitel RS, Pulcheri L, Costa FCMD, La Torre FPF, Figueiredo EADN, Silva TPD, Riveiro PM, Mota ICFD, Brandão IB, de Azevedo ZMA, Gregory SC, Boedo FRO, de Carvalho RN, Castro NAASR, Genu DHS, Foronda FAK, Cunha AJLA, de Magalhães-Barbosa MC; Brazilian Research Network in Pediatric Intensive Care, (BRnet-PIC). Pediatric patients with COVID-19 admitted to intensive care units in Brazil: a prospective multicenter study. J Pediatr (Rio J) 2020; 96(5):582-592. e 7,3%1313 Oliveira EA, Colosimo EA, Simões E Silva AC, Mak RH, Martelli DB, Silva LR, Martelli-Júnior H, Oliveira MCL. Clinical characteristics and risk factors for death among hospitalised children and adolescents with COVID-19 in Brazil: an analysis of a nationwide database. Lancet Child Adolesc Health 2021; 5(8):559-568.. Estudos internacionais situam esta taxa de mortalidade entre 2% e 4%1414 Marwali EM, Kekalih A, Yuliarto S, Wati DK, Rayhan M, Valerie IC, Cho HJ, Jassat W, Blumberg L, Masha M, Semple C, Swann OV, Kohns Vasconcelos M, Popielska J, Murthy S, Fowler RA, Guerguerian AM, Streinu-Cercel A, Pathmanathan MD, Rojek A, Kartsonaki C, Gonçalves BP, Citarella BW, Merson L, Olliaro PL, Dalton HJ; International Severe Acute Respiratory and emerging Infection Consortium (ISARIC) Clinical Characterization Group Investigators. Paediatric COVID-19 mortality: a database analysis of the impact of health resource disparity. BMJ Paediatr Open 2022; 6(1):e001657.,1515 Shekerdemian LS, Mahmood NR, Wolfe KK, Riggs BJ, Ross CE, McKiernan CA, International COVID-19 PICU Collaborative. Characteristics and Outcomes of Children with Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) Infection Admitted to US and Canadian Pediatric Intensive Care Units. JAMA Pediatr 2020; 174(9):868-873., sendo maior em países de média e baixa renda (4,0% [IC95% 3,6-4,4%]) em relação a países de alta renda (1,7% [IC95% 1,3-2,1%]). Embora a taxa de mortalidade no Brasil como um todo tenha variado de 6,1% nas capitais a 8,3% nos municípios do interior, o cenário foi bem diferente quando foram considerados os aglomerados urbanos e os municípios, conforme já destacado. A percepção destes contrastes foi possível por conta da utilização de um recorte temporal de dois anos completos da pandemia e pela captação de dados em fonte oficial abrangendo todo o território brasileiro, o SIVEP GRIPE. O achado do pior cenário em unidades da federação na Região Norte também foi descrito por Oliveira et al.1313 Oliveira EA, Colosimo EA, Simões E Silva AC, Mak RH, Martelli DB, Silva LR, Martelli-Júnior H, Oliveira MCL. Clinical characteristics and risk factors for death among hospitalised children and adolescents with COVID-19 in Brazil: an analysis of a nationwide database. Lancet Child Adolesc Health 2021; 5(8):559-568., estudando indivíduos até 19 anos, Baqui et al.77 Baqui P, Bica I, Marra V, Ercole A, Schaar MVD. Ethnic and regional variations in hospital mortality from COVID-19 in Brazil: a cross-sectional observational study. Lancet Glob Health 2020; 8(8):e1018-e1026., estudando a população geral e Silva et al.1616 Silva GA, Jardim BC, Lotufo PA. Mortalidade por COVID-19 padronizada por idade nas capitais das diferentes regiões do Brasil. Cad Saude Publica 2021; 37(6):e00039221., apresentando recorte por idades. Todos utilizaram o SIVEP GRIPE, porém com um recorte temporal menor.
As razões para estes achados ainda são obscuras, demandando estudos específicos, entretanto, algumas hipóteses podem ser levantadas para explicar estas desigualdades: diferenças socioeconômicas entre as regiões, diferenças nas condições básicas de saúde populacional e diferenças na estrutura assistencial estão entre elas. É possível também que a dificuldade de deslocamento até uma unidade hospitalar esteja associada ao pior desfecho nos municípios mais afastados dos grandes centros. As medidas de restrição de circulação de pessoas, principalmente no primeiro ano da pandemia, com redução na disponibilidade de transporte público e redução no atendimento por livre demanda nas redes de atenção primária de saúde, podem ter contribuído para dificultar o acesso hospitalar. No início da pandemia, a população era orientada a se manter em quarentena domiciliar para casos leves e considerava-se que as crianças tinham menor chance de serem infectadas, por meio de informações da OMS, divulgadas pela grande mídia1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS) Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nota técnica GVIMS/GGTES/ANVISA nº 04/2020. Orientações para serviços de saúde: medidas de prevenção e controle que devem ser adotadas durante a assistência aos casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) [Internet]. 2020 [acessado 2022 set 20] Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/notas-tecnicas/2020/nota-tecnica-gvims_ggtes_anvisa-04_2020-25-02-para-o-site.pdf.
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https://apps.who.int/iris/handle/10665/3... -1919 Emanuel EJ, Persad G, Upshur R, Thome B, Parker M, Glickman A, Zhang C, Boyle C, Smith M, Phillips JP. Fair Allocation of Scarce Medical Resources in the Time of Covid-19. N Engl J Med 2020; 382(21):2049-2055., o que pode ter ocasionado atrasos na procura por atendimento hospitalar. A Rede de Atenção Primária, que é frequentemente o acesso mais próximo às famílias, teve seu atendimento reduzido durante a pandemia, atuando na maior parte das unidades apenas na realização de testes para COVID-19, reduzindo a possibilidade que crianças e adolescentes fossem avaliados precocemente por profissionais de saúde quanto aos sinais e sintomas de gravidade2020 Merhy E. Pandemia, Sistema Único de Saúde (SUS) e Saúde Coletiva: com-posições e aberturas para mundos outros. Interface (Botucatu) 2022; 26:e210491.. Estudos conduzidos na Europa relataram que as medidas restritivas de deslocamento populacional reduziram consideravelmente o número de visitas ambulatoriais2121 Lazzerini E, Barbi E, Apicella A, Marchetti F, Cardinale F, Trobia G. Care in Italy resulting fron fear for COVID 19. Lancet Child Adolesc Health 2020; 4(5):E10-E11. e prejudicaram o acesso de crianças e adolescentes ao serviço primário e comunitário, fazendo com que o atendimento de muitas crianças que necessitavam de emergência fosse retardado, ocasionando desfecho mais complicado e até mesmo óbito2121 Lazzerini E, Barbi E, Apicella A, Marchetti F, Cardinale F, Trobia G. Care in Italy resulting fron fear for COVID 19. Lancet Child Adolesc Health 2020; 4(5):E10-E11.,2222 Nicholson E, McDonnell T, Conlon C, Barrett M, Cummins F, Hensey C, McAuliffe E. Parental Hesitancy and Concerns around Accessing Paediatric Unscheduled Healthcare during COVID-19: A Cross-Sectional Survey. Int J Environ Rese Public Health 2020; 17(24):9264..
Não obstante à dificuldade de acesso, é possível também que as rotinas de atendimento hospitalar nos primeiros meses da pandemia, ainda desajustadas devido ao conhecimento incipiente da nova doença e da melhor forma de tratamento, tenham contribuído para o aumento da mortalidade hospitalar. Especialmente no que se refere ao suporte ventilatório, muitas rotinas iniciais desaconselhavam o uso de ventilação não-invasiva, caso não fosse possível o isolamento total do paciente1717 Brasil. Ministério da Saúde (MS) Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nota técnica GVIMS/GGTES/ANVISA nº 04/2020. Orientações para serviços de saúde: medidas de prevenção e controle que devem ser adotadas durante a assistência aos casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) [Internet]. 2020 [acessado 2022 set 20] Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/notas-tecnicas/2020/nota-tecnica-gvims_ggtes_anvisa-04_2020-25-02-para-o-site.pdf.
https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centrais... ,1818 World Health Organization (WHO). Infection prevention and control during health care when novel coronavirus (nCoV) infection is suspected Interim guidance [Internet]. 2020 [acessado 2021 out 22]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/331421.
https://apps.who.int/iris/handle/10665/3... ,2323 Carvalho WB, Rodriguez IS, Motta EHG, Delgado AF. Ventilatory support recommendations in children with Sars-CoV-2. Rev Assoc Med Bras 2020; 66(4):528-533.,2424 World Health Organization (WHO). Clinical management of severe acute respiratory infection when novel coronavirus (2019-nCoV) infection is suspected: interim guidance [Internet]. 2020 [acessado 2022 mar 23] Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/330893.
https://apps.who.int/iris/handle/10665/3... , o que pode ter retardado o suporte ventilatório ideal e contribuído para maior mortalidade.
Até onde é do nosso conhecimento, nenhum outro estudo descreveu a diferença de taxa de mortalidade entre as capitais, regiões metropolitanas e municípios do interior em crianças e adolescentes com casos confirmados de COVID-19 e casos de SRAG não especificada. Nossos achados, indicando maior mortalidade para casos confirmados em municípios do interior foi consistente em todas as macrorregiões brasileiras, com exceção da região Norte, onde a taxa consolidada foi mais elevada nas capitais e regiões metropolitanas.
Este estudo apresenta algumas limitações. Em primeiro lugar, o uso de dados provenientes de sistemas de notificação compulsória, como o SIVEP-GRIPE, apesar de garantir um alcance abrangente ao utilizar dados censitários do Brasil, pode conter eventuais erros de digitação ou preenchimento, afetando um ou mais dos diversos campos de registro embora as notificações estejam em constante avaliação para correções por parte das equipes locais responsáveis por cada registro, o que minimiza o impacto de possíveis falhas. Em segundo lugar, os números deste estudo representam os casos notificados no dia de acesso à base de dados, mas atrasos nas notificações podem ocorrer, pois é permitido que os estabelecimentos de saúde notifiquem os casos, ainda que tardiamente. Em terceiro lugar, a falta de uma confirmação diagnóstica para milhares de casos potenciais de COVID-19 acarreta a classificação como “SRAG não especificada” e não como COVID-19. Essa classificação pode ter um enorme impacto na avaliação da gravidade da pandemia em pediatria, não apenas na subestimação da maior parte dos casos e dos óbitos por COVID-19, mas, principalmente, na desvalorização do impacto real da pandemia na vida de crianças e adolescentes. Tentamos contornar esta limitação descrevendo tanto os casos de SRAG por COVID-19 confirmados, como os casos de SRAG não especificada. Desta forma, é possível considerar-se a proporção de casos de “SRAG não especificada” como um indicador da subnotificação de casos de COVID-19. Finalmente, sendo um estudo ecológico, não é possível se desconsiderar a falácia ecológica quando se tenta levantar hipóteses para explicar as desigualdades encontradas, mas o foco principal não é este, mas apenas a descrição dos achados de mortalidade, que se basearam em dados censitários.
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Financiamento
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Maio 2024 - Data do Fascículo
Maio 2024
Histórico
- Recebido
09 Mar 2023 - Aceito
28 Ago 2023 - Publicado
30 Ago 2023