Descolonizando a vida: um apelo aos corações oprimidos pelo capital

Decolonizing life: an appeal to the hearts oppressed by capital

Carolina Augusta Pereira Penido Helton Barbosa Damiani Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro Sobre os autores

O livro O preço de um crime socioambiental: os bastidores do processo de reparação do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho tem origem na dissertação de mestrado da autora, Marina Paula Oliveira, intitulada: “Acordo para quem? Uma análise do acordo firmado entre a Vale S.A. e o Estado de Minas Gerais no contexto do rompimento da barragem em Brumadinho MG”11 Oliveira MP. Acordo para quem?: uma análise do acordo firmado entre a Vale S.A. e o Estado de Minas Gerais no contexto do rompimento da barragem em Brumadinho (MG) [dissertação]. Belo Horizonte: PUC-MG; 2022., defendida na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG) em 2022.

O rompimento da barragem em Brumadinho (RBB) se caracteriza como um acidente de trabalho ampliado. Suas consequências afetam direta e indiretamente trabalhadores, população do entorno e milhares de pessoas em razão do impacto na saúde, na economia, nas relações sociais em geral e no meio ambiente, pelo espraiamento dos resíduos contaminantes por terra, água e ar22 Primo PPB, Antunes MN, Arias ARL, Oliveira AE, Siqueira CE. Mining Dam Failures in Brazil: Comparing Legal Post-Disaster Decisions. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(21):11346., tornando esse livro interessante para leitores das áreas de ciências sociais, saúde coletiva e direito ambiental.

Para seu termo, a autora utilizou o método da observação participativa, entrevistas e análise documental. Foram feitas e gravadas 33 entrevistas com distintos atores sociais envolvidos no rompimento da barragem do Córrego do Feijão e a análise de documentos e manifestações públicas dos atingidos. Os estudos de Antônio Gramsci, marxista italiano, foram sua principal base teórica.

Escrito em quatro capítulos, o livro se inicia com uma enfática dedicatória a todos os “atingidos pelo capitalismo”, para aqueles que “sabem que são”, os que “ainda não sabem” que são e os que “ainda não são, mas que em breve serão”. É um prelúdio para se referir ao capitalismo como base primordial do crime abordado, com prefácio de Leonardo Boff, teólogo e filósofo, e posfácio de Dom Vicente Ferreira, bispo católico, membro da Comissão de Ecologia Integral e Mineração da CNBB.

No capítulo 1 é discutido o modelo internacional de mineração, oriundo do sistema capitalista transnacional, no contexto atual do modelo neoliberalista, neodesenvolvimentista e neoextrativista. Segundo Harvey, esse sistema promove “o saque de recursos naturais, a biopirataria, a espoliação de saberes, a privatização, a expulsão das populações de seus territórios, a escravização”33 Harvey D. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola; 2014.. A autora destrincha como o capitalismo global e sua performance predatória se apresentam no caso específico de Brumadinho. Evidencia-se uma história repleta de contradições. Primeiramente, a mina do Córrego do Feijão está localizada em uma região de proteção ambiental, em segundo lugar, o potencial econômico local nos setores agrícola, cultural e turístico é esvaziado em detrimento de uma política “minério-dependente”.

Outro fato importante no contexto da mineração no Brasil são as dificuldades impostas contra as lutas e as organizações de trabalhadores e de populações atingidas nos casos crimes-desastres. O acordo firmado entre a Vale e o estado de Minas Gerais para a indenização dos danos e prejuízos coletivos provocados ao Estado e aos atingidos devido ao rompimento da barragem é abordado no capítulo 2. A autora explicita alguns dos limites desse acordo: as negociações ocorreram sob sigilo judicial; o valor determinado da indenização foi muito inferior ao definido por meio dos estudos técnicos e diagnósticos da Fundação João Pinheiro e do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG); os trabalhos realizados pelas assessorias técnicas independentes (ATIs), contratadas pelas comunidades atingidas, foram desconsiderados no processo; e as perícias judiciais elaboradas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foram, em sua maior parte, excluídas, deixando o processo de reparação ambiental a cargo de uma empresa contratada pela Vale, a Arcadis.

No capítulo 3, a autora analisa as entrevistas sobre o acordo, organizadas a partir de três grupos de atores sociais: Vale, estado de Minas Gerais e comunidades atingidas e suas organizações apoiadoras, utilizando um roteiro específico para cada grupo. As entrevistas, dadas as notáveis discrepâncias entre os grupos, apontam indícios de que o acordo não foi realizado em benefício das vítimas e atingidos pelo rompimento da barragem. Entre os achados, destacam-se: a) a falta de conhecimento dos funcionários da Vale sobre as demandas e necessidades das comunidades atingidas; b) a tentativa de apresentar tanto uma comunidade conformada com a minério-dependência quanto a defesa de um acordo que deixa “legados” positivos, como saneamento básico, segurança hídrica para a região metropolitana de Belo Horizonte e o Rodoanel; c) a insatisfação quanto à interrupção dos estudos da UFMG na região, a preocupação com as comunidades tradicionais, pouco consideradas no acordo, e a controversa ausência de investimento em desenvolvimento sustentável e em políticas públicas.

Outros pontos importantes explicitados nas entrevistas foram a preocupação com a disponibilidade de empregos e as formas de gerar renda não vinculadas à mineração, com as perseguições políticas às lideranças que se posicionam contra a Vale e a minério-dependência, assim como com a saúde dos atingidos. Estudos continuados revelam o impacto ocasionado no sistema de saúde como um todo, sendo um dos reflexos o aumento do uso de psicofármacos44 Garcia FD, Neves MCL, Firmino JOA, Peixoto SV, Castro CE. Prevalência de sintomas psiquiátricos e seus fatores associados na população adulta da área atingida pelo rompimento da barragem de rejeitos: Projeto Saúde Brumadinho. Rev Bras Epidemiol 2022; 25(Supl. 1):e220011. e até mesmo da incidência de autoextermínio5Brasil. Ministério da Saúde (MS). Informações de saúde [Internet]. [acessado 2023 set 20]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinannet/cnv/violemg.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi....
. Outros nós críticos foram levantados: a contaminação da água (do rio Paraopeba e dos poços artesianos da região), do solo e do ar, e problemas de abastecimento de água, que é fornecida pela Vale.

Não obstante o Brasil participar de acordos sobre democracia ambiental66 Gazzinelli GT. In: Pinheiro TMM, Polignano MV, Goulart EMA, Procópio JC, organizadores. Mar de lama da Samarco na bacia do rio Doce: em busca de respostas. Belo Horizonte: Instituto Guaicuy; 2019. p. 248-284., a autora destaca o fato de que todas as 22 lideranças representativas das comunidades questionaram o teor e a dinâmica de construção do acordo. Relatam não ter participado de forma protagonista e que o acordo foi mais um arranjo para defender os interesses da Vale e do estado do que os dos atingidos e das vítimas do crime. Dessa forma, por meio de uma construção minuciosa do texto, Marina leva o leitor através de um caminho que evidencia as inúmeras divergências da história da mineração e do crime da Vale em Brumadinho. Apesar de algumas ideias congruentes, por meio das percepções dissonantes entre os grupos, a autora reafirma sua tese, que pode ser resumida no título do terceiro capítulo da obra: “Acordo para quem?”. E afirma: “o acordo alimenta os interesses das classes hegemônicas, representadas pela elite política - estado de Minas Gerais, e a elite econômica - a mineradora transnacional Vale S.A.” e “favorece muito mais os interesses do capital” (p. 123).

Por fim, a autora deixa, no último parágrafo do livro, seu desabafo pela dor que o capital inflige às pessoas atingidas por crimes-desastres do trabalho ligados ao setor da mineração e um convite à luta: “Eu preciso de corações e a minha escrita vai atrás deles. Porque se o jeito de minerar e escrever é colonialista, precisamos inverter o capital. Virar do avesso. Jogar água sanitária. Desinfetar tudo. Pensar em novas alternativas de se viver, de respeitar o outro, de produzir conhecimento e de descolonizar os corações” (p. 145).

Como sugestão para a próxima edição da obra, sugerimos uma revisão pormenorizada de algumas referências citadas ao longo do texto que não se encontram disponíveis no capítulo de referências. Essa observação não tira o mérito do livro. Todavia, estas referências agregariam ainda mais valor ao conhecimento transmitido pela autora.

Enfim, a autora graduada e mestre em relações internacionais pela PUC-Minas, é uma das atingidas pelo rompimento, participa de movimentos populares e do Grupo de Reflexão e Trabalho para Economia de Francisco e Clara (PUC/MG). Sendo uma atingida, ela rompe com o positivismo e se capacita a trazer à academia as vozes silenciadas, e aproxima a academia da base social, desejo da Abrasco77 Siqueira BP. A propósito do protagonismo na área de saúde coletiva. Cien Saude Colet 2001; 6(1):20-47.. Todo indivíduo é um potencial ator social, e sua transformação se dá através do acesso a informações como as contidas no livro, que, em conjunto com a experiência, pode resultar em práxis. Nas palavras de Paulo Freire, que muito têm em comum com as ideias difundidas no livro, pensamos que “ação e reflexão se dão simultaneamente”88 Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2013., criando uma abertura para ações libertadoras emancipadoras na luta contra a hegemonia e pela descolonização dos corações machucados pelo capital.

Referências

  • 1
    Oliveira MP. Acordo para quem?: uma análise do acordo firmado entre a Vale S.A. e o Estado de Minas Gerais no contexto do rompimento da barragem em Brumadinho (MG) [dissertação]. Belo Horizonte: PUC-MG; 2022.
  • 2
    Primo PPB, Antunes MN, Arias ARL, Oliveira AE, Siqueira CE. Mining Dam Failures in Brazil: Comparing Legal Post-Disaster Decisions. Int J Environ Res Public Health 2021; 18(21):11346.
  • 3
    Harvey D. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola; 2014.
  • 4
    Garcia FD, Neves MCL, Firmino JOA, Peixoto SV, Castro CE. Prevalência de sintomas psiquiátricos e seus fatores associados na população adulta da área atingida pelo rompimento da barragem de rejeitos: Projeto Saúde Brumadinho. Rev Bras Epidemiol 2022; 25(Supl. 1):e220011.
  • Brasil. Ministério da Saúde (MS). Informações de saúde [Internet]. [acessado 2023 set 20]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinannet/cnv/violemg.def
    » http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinannet/cnv/violemg.def
  • 6
    Gazzinelli GT. In: Pinheiro TMM, Polignano MV, Goulart EMA, Procópio JC, organizadores. Mar de lama da Samarco na bacia do rio Doce: em busca de respostas. Belo Horizonte: Instituto Guaicuy; 2019. p. 248-284.
  • 7
    Siqueira BP. A propósito do protagonismo na área de saúde coletiva. Cien Saude Colet 2001; 6(1):20-47.
  • 8
    Freire P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Maio 2024
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