Epidemias no Brasil: conhecimentos a não serem esquecidos

Epidemics in Brazil: knowledge not to be forgotten

Laura Boraschi Mancini Bárbara Vitória Pires Tavares de Melo Larissa Maria Armelin Carla Jorge Machado Sobre os autores
2022

História da saúde pública - grandes epidemias no Brasil dos séculos XX e XXI é um livro publicado em 2022 pela editora Paco Editorial sob organização de Flávio Moutinho11 Moutinho F. História da saúde pública - grandes epidemias no Brasil dos séculos XX e XXI. Jundiaí: Paco Editorial; 2022.. Compreende cinco capítulos independentes, cujos autores são: Ana Silvia Semblano Nakamura; Anísia Valéria Chaves; Dayse Lima de Costa Abreu; Juliet Bax; Ligia Cantarino; Milena de Almeida Melo Costa; e Rodolfo Barbosa e Virgínia Léo de Almeida Pereira11 Moutinho F. História da saúde pública - grandes epidemias no Brasil dos séculos XX e XXI. Jundiaí: Paco Editorial; 2022.. Por meio da história de enfermidades com elevado potencial epidêmico, os autores demonstram o impacto da globalização e dos determinantes sociais na disseminação de doenças, bem como discutem medidas governamentais tomadas em cada momento e seu efeito sobre a incidência da condição analisada.

A primeira epidemia abordada é a da raiva. É uma doença viral, transmitida por mordeduras e arranhaduras de animais infectados, como cachorro, gato e morcegos. Na ausência de profilaxia pós exposição ao vírus, tem-se taxa de letalidade próxima a 100%22 Catherine MB. Clinical manifestations and diagnosis of rabies. UpToDate [Internet] 2023. [acessado 2023 set 25]. Disponível em: https://www.uptodate.com/contents/clinical-manifestations-and-diagnosis-of-rabies?search=rabies&source=search_result&selectedTitle=2~83&usage_type=default&display_rank=2
https://www.uptodate.com/contents/clinic...
. Concomitantemente à epidemia europeia do século XIX, tem-se registro dos primeiros casos da doença no Brasil. No entanto, a formulação de estratégias governamentais para contenção da questão tardou um século para ocorrer. Apenas em 1973 foi criado o Programa Nacional de Profilaxia de Raiva, que, por meio da vacinação de cães, reduziu 90% dos casos na espécie. O sucesso do programa foi tal que, atualmente, observa-se alteração do perfil epidemiológico da raiva, com maior incidência de transmissão por animais silvestres. Os casos em humanos predominam, hoje em dia, nas regiões Norte e Nordeste do país, cuja população tem, historicamente, piores indicadores sociais e econômicos, além de maior proximidade às florestas e, portanto, aos reservatórios do vírus. Essa população sob maior risco atual à infecção não deve ser negligenciada, sendo imprescindível a adoção de estratégias específicas e céleres em pontos do país. Inclusive, a raiva é considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma das doenças tropicais negligenciadas33 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Iniciativa da OPAS de eliminação de doenças: política para um enfoque integrado e sustentável visando as doenças transmissíveis nas Américas [Internet]. 2019. [acessado 2023 set 5]. Disponível em: https://www.paho.org/sites/default/files/2020-01/2019-cde-dc57-elimin-init-framework-pt.pdf
https://www.paho.org/sites/default/files...
. Por definição, doenças negligenciadas são aquelas que prevalecem em condições de pobreza ao mesmo tempo que corroboram a manutenção da desigualdade44 Departamento de Ciência e Tecnologia, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Ministério da Saúde (MS). Doenças negligenciadas: estratégias do Ministério da Saúde. Rev Saude Publica 2010; 44(1):200-202.. Exemplo de ação da OMS contra doenças negligenciadas é a Agenda de 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que coloca como meta para contenção da raiva zero mortes pela enfermidade até 203033 Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Iniciativa da OPAS de eliminação de doenças: política para um enfoque integrado e sustentável visando as doenças transmissíveis nas Américas [Internet]. 2019. [acessado 2023 set 5]. Disponível em: https://www.paho.org/sites/default/files/2020-01/2019-cde-dc57-elimin-init-framework-pt.pdf
https://www.paho.org/sites/default/files...
.

Por seguinte, aborda-se o influenza, vírus responsável por diversas infecções respiratórias, como a gripe. Diferentemente da raiva, a presença do vírus é ainda notória. Isso se deve à sua fácil transmissão, que propicia a ocorrência de mutações, que por sua vez impossibilitam a criação de uma vacina permanente contra o patógeno - daí a necessidade de vacinações anuais e vigilância efetiva à enfermidade.

Pela alta transmissibilidade do agente, sua aparição, enquanto pandemia, se faz notória em momentos históricos de grande movimentação de pessoas: Primeira Guerra Mundial (1GM), Guerra da Coreia e Guerra do Vietnã. Inclusive, historiadores defendem que tais epidemias tenham influenciado diretamente as guerras55 Chorba T, Breedlove B. Concurrent conflicts - the Great War and the 1918 influenza pandemic. Emerg Infect Dis 2018; 24(10):1968-1969.. Como exemplo, a “gripe espanhola” ocorreu conjuntamente à 1GM e provavelmente a encurtou, uma vez que a cepa acometia sobretudo a população de 20 a 40 anos, faixa etária dos soldados, e era altamente letal55 Chorba T, Breedlove B. Concurrent conflicts - the Great War and the 1918 influenza pandemic. Emerg Infect Dis 2018; 24(10):1968-1969..

Em 2009, tem-se a emergência da gripe pela cepa H1N1. Orgulhosamente, o Brasil atuou conforme o Regulamento Sanitário Internacional, alertando precocemente a população, criando gabinetes para a discussão de estratégias e investindo no controle epidemiológico. Atualmente, o Brasil compõe o Sistema Global de Vigilância do Influenza, e a notificação de síndromes gripais é compulsória em unidades sentinelas.

Em sequência, a história da meningite no Brasil permite analisar a interferência política sobre a condução da saúde. Isso porque, entre 1971 e 1974, vivenciou-se no país uma epidemia de meningite em um contexto de ditadura militar.

O regime militar se caracteriza pela fidelidade e a obediência. Estruturado em disciplina e hierarquia, limita-se o questionamento de superiores por subordinados, e com isso o espaço para a democracia. O início da epidemia de meningite foi caracterizado por negacionismo, uma vez que acreditavam que nada poderia ofuscar o “bom governo dos militares”. Com o advento do AI-5, prejudicou-se sobremaneira a divulgação da situação epidemiológica. Apenas quando a doença se disseminou entre a população mais abastada houve pressão acerca de informações. O hiato entre o início da epidemia e ações efetivas de controle por parte do governo brasileiro foi de três anos.

A relevância de determinantes socioeconômicos é tanta no contexto da saúde que, para além da negligência quando a epidemia acometia primordialmente a população menos afortunada, muitos acreditavam que a epidemia estivesse erradicando a pobreza, sendo “benéfica” portanto. Condutas criminosas como essa, que flertam com a eugenia, infelizmente recorreram durante a gestão da pandemia de COVID-1966 Wisnik discute a relação entre eugenia e gestão da pandemia [Internet]. Jornal da USP 2020. [acessado 2023 set 25] Disponível em: https://jornal.usp.br/radio-usp/wisnik-discute-a-relacao-entre-eugenia-e-a-gestao-da-pandemia/
https://jornal.usp.br/radio-usp/wisnik-d...
. Quando, mais de cinco décadas depois, surge a COVID-19, em um governo de ex-militar, observa-se omissão acerca da gravidade da doença, escancarada pela permissibilidade quanto à permanência da maior festa do país (Carnaval) no início dos casos. Não obstante, com o decorrer da pandemia, manteve-se a negligência em relação às medidas de proteção, para além da pouca solidariedade com as mortes da nação, que ocorreram sobretudo em classes menos afortunadas.

Outro assunto desprezado pelo governo nesse contexto foi a insegurança alimentar. Durante a pandemia, milhões de brasileiros passaram fome devido às alterações econômicas e trabalhistas impostas pelas medidas de isolamento. Aponta-se que crises políticas impliquem instabilidades socioeconômicas, que acentuam desigualdades, como a alimentar. A insegurança alimentar é fato antigo no Brasil, altamente influenciado pela gestão executiva. Não à toa, alterações de governo, como a ocorrida em 2017, elevaram a insegurança alimentar. O retrocesso decorrente da pandemia, no entanto, foi ainda maior, com o retorno do Brasil ao mapa da fome, situação de que havia saído em 2014. Com o governo Lula III, volta-se a atenção para a questão, com a instituição do plano Brasil sem Fome, que tem como meta retirar o Brasil desse triste lugar, reconquistado em 2022, até o ano de 203077 Lula assina decreto que cria o plano Brasil Sem Fome [Internet]. CNN 2023. [acessado 2023 set 6]. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/lula-assina-decreto-que-cria-plano-brasil-sem-fome/
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/lu...
.

Na continuação é retratada a esporotricose e o conceito de “saúde única”, que ressalta a interdependência entre saúde humana, animal e ambiental. Desequilíbrios na tríade propiciariam doenças, como a doença fúngica do complexo Sporothrix, agente encontrado em restos vegetais e solos de climas tropicais. Trata-se de uma micose de implantação transmitida pelo contato direto com o solo em atividades de jardinagem e horticultura, ou pelo arranhão de gatos infectados, forma de maior importância epidemiológica atual. Embora bem adaptada ao território nacional, uma vez que corresponde à micose subcutânea mais comum no Brasil, também se caracteriza por ser uma doença negligenciada. Não é raro que profissionais de saúde desconheçam seu ciclo de transmissão, manifestações clínicas e tratamento, tal como evidencia estudo realizado no Sul do Brasil88 Poester VR, Saraiva LA, Pretto AC, Klafke GB, Sanchotene KO, Melo AM, Cardone S, Xavier MO. Desconhecimento de profissionais e ações de extensão quanto à esporotricose no extremo Sul do Brasil. Vitalle 2019; 31(1):8-14.. Para abordagem da questão, o capítulo enfoca a relevância da “saúde única”, uma vez que políticas que enfoquem a tríade saúde humana, animal e ambiental certamente serão mais efetivas.

A obra é singular por sintetizar dados epidemiológicos, sociais e políticos sobre as principais epidemias que acometeram o Brasil. O conhecimento sobre tais episódios contribui para a saúde pública ao ensinar com exemplos práticos que, mesmo que não haja como impedir que epidemias aconteçam, é possível ter melhor controle sobre sua evolução com base em exemplos do passado. Assim, destaca-se a importância da vigilância epidemiológica no reconhecimento precoce da fase de egressão de casos, das medidas de prevenção e da confiança no método científico. Para além disso, o livro é exemplar quanto ao que não fazer: não se deve negligenciar ou superestimar doenças infectocontagiosas. Tais lições são trazidas por meio de linguagem acessível, possibilitando o acesso pelo público geral, o que torna o livro ainda mais adequado quanto ao seu potencial educativo.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Jun 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br