Democracia, cidadania e saúde no Brasil: desafios para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS)

Cristiani Vieira Machado Sobre o autor

Resumo

As relações entre democracia, cidadania e saúde permearam a conformação e a trajetória do Sistema Único de Saúde (SUS) nas últimas quatro décadas. Em que pesem dificuldades estruturais, conflitos entre projetos e diferenças entre momentos, até 2016 observou-se o fortalecimento da democracia e a expansão de direitos sociais. O SUS permitiu avanços no acesso e melhorias nas condições de saúde. Entre 2016 e 2022, os retrocessos nas políticas econômicas, sociais e de saúde foram expressivos. A situação foi agravada pela crise multidimensional associada à pandemia de COVID-19 a partir de 2020. A atuação do SUS, de universidades e de instituições científicas públicas foi fundamental para o enfrentamento da crise. A partir de 2023, os desafios de retomada de um projeto nacional democrático e voltado ao bem-estar social são imensos. O fortalecimento do SUS depende do caráter das políticas sociais e da democracia, e de transformações nas relações Estado-mercados-sociedade, para superar limites que persistiram mesmo durante governos progressistas. O SUS, como política universal ancorada em uma concepção ampla de saúde e em valores democráticos, é um pilar fundamental para a consolidação de um padrão de desenvolvimento orientado para a redução das desigualdades e a construção de uma sociedade mais justa.

Palavras-chave:
Democracia; Cidadania; Saúde; Política de saúde; Sistema de saúde

A reforma sanitária brasileira nos anos 1980 integrou um processo de democratização no país sem precedentes, fruto de intensa mobilização política, com o envolvimento de diferentes atores sociais11 Escorel S. Reviravolta na saúde - origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1999.,22 Paim JS. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição e crítica. Salvador/Rio de Janeiro: EdUFBA/Fiocruz; 2008.. A promulgação da Constituição de 1988, que expandiu direitos dos cidadãos e responsabilidades do Estado, estabeleceu um novo patamar para as lutas políticas nos anos posteriores33 Rodriguez Neto E. Saúde: promessas e limites da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2003.. O reconhecimento da saúde como direito e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), público e universal, representaram uma conquista da sociedade e destacaram o Brasil no cenário da América Latina, região marcada por desigualdades estruturais e pelo predomínio de políticas sociais segmentadas e excludentes.

As relações entre democracia, cidadania e saúde permearam a conformação e a trajetória do SUS nas três décadas seguintes. Em que pesem diferenças entre momentos, observou-se - ao menos até 2016 - o fortalecimento da democracia em suas dimensões formal e substantiva, com aumento da participação dos cidadãos na vida política e alargamento da cidadania. Ressalvadas as especificidades histórico-estruturais do caso brasileiro, que se expressam na persistência de desigualdades em diferentes dimensões, houve expansão gradual de direitos civis, políticos e sociais, tomando as dimensões descritas por Marshall44 Marshall TH. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1967..

Para refletir sobre as transformações nas relações Estado-sociedade no período, em seu imbricamento com a expansão de direitos, também é interessante a definição de Tilly55 Tilly C, editor. Citizenship, identity and social history. Inter Rev Soc Hist 1995; 40(Suppl. 3):1-17. para cidadania, que ressalta seu caráter multifacetado. Para o autor, como categoria, a cidadania designa um grupo de atores - cidadãos - diferenciados por sua posição privilegiada partilhada em relação a determinado Estado. Como vínculo, identifica uma relação mútua obrigatória entre um ator e os agentes do Estado. Mas a cidadania também pode ser concebida como um papel, que inclui as relações de um ator com outros, que dependem de sua relação com determinado Estado. E, finalmente, como uma identidade, a cidadania pode se referir à “experiência e à representação pública de uma categoria, vínculo ou papel”55 Tilly C, editor. Citizenship, identity and social history. Inter Rev Soc Hist 1995; 40(Suppl. 3):1-17..

Nas sociedades capitalistas contemporâneas, as políticas sociais universais são fundadas na afirmação do dever do Estado e do direito de todos a ações e serviços, independentemente de classe, renda, etnia/raça, inserção no mercado de trabalho e capacidade de pagamento. A universalidade é fundamental para contrabalançar as forças de mercado geradoras de desigualdades e para o estabelecimento de uma cidadania plena, baseada na igualdade social. O estudo comparativo de Esping-Andersen66 Esping-Andersen G. As Três economias políticas do welfare state. Lua Nova 1991; 24:85-115. identificou diferentes regimes de estados de bem-estar social. O regime social-democrata, fortemente ancorado em políticas sociais universais e abrangentes, apresentava melhores resultados em termos de promover a expansão de direitos, a “desmercantilização” no acesso aos serviços e a redução da estratificação social promovida pelo capitalismo. A pesquisa do autor, no entanto, se baseou em países capitalistas de alta renda e caracterizados como democracias. Em sociedades estruturalmente desiguais, as políticas universais são ainda mais essenciais, e precisam estar associadas a estratégias de promoção da equidade, para alcançar grupos historicamente excluídos e em situação de vulnerabilidade social.

Na América Latina, as complexas relações entre democracia, políticas sociais e desigualdades têm sido exploradas por alguns autores. Huber e Stephens77 Huber E, Stephens JD. Democracy and the left: social policy and inequality in Latin America. Chicago: University of Chicago Press; 2012., em pesquisa histórico-comparativa sobre países latino-americanos que articulou análise de dados secundários e estudos de casos em profundidade, identificaram uma relação positiva entre a duração da democracia, a expansão de políticas sociais de caráter redistributivo e a redução das desigualdades sociais. Para os autores, são necessários períodos mais longos de estabilidade democrática para viabilizar que diferentes grupos sociais, em particular os historicamente excluídos, tenham acesso ao poder decisório e às instituições do Estado, pela via representativa, ocupação de cargos ou participação direta nos espaços de poder e decisão. Isso permitiria maior interferência nas políticas públicas e sociais, de forma a ampliar seu caráter redistributivo e a possibilidade de interferência nas desigualdades.

No Brasil, entre 1988 e 2016, as mudanças nas relações entre Estado e sociedade, associadas à democratização e à expansão da cidadania, permitiram em alguma medida o aumento da participação social, a ampliação e inovações em várias políticas sociais, inclusive as de saúde. No entanto, tais mudanças não foram suficientes para transformar as assimetrias de poder entre grupos sociais, nem para reduzir as marcantes desigualdades estruturais, expressas em múltiplas dimensões (de classe, raça, gênero, território), que por sua vez condicionam o acesso a poder, a recursos e à possibilidade de exercício efetivo dos direitos de cidadania. Em todo o período, observaram-se conflitos entre distintos projetos para a sociedade brasileira, que se traduziram em limites à expansão e à consolidação de políticas redistributivas, como as políticas de saúde e educação, cujo caráter universal é afirmado pela Constituição de 1988.

É certo que houve diferenças no sentido das políticas econômicas e sociais entre os momentos e os governos. Na década de 1990, marcada pela democratização política e a liberalização econômica88 Sallum Jr B. Crise, democratização e liberalização no Brasil. In: Sallum Jr B, organizador. Brasil e Argentina hoje: política e economia. Bauru: EDUSC; 2004. p. 47-77., registre-se a implementação de políticas de combate à pobreza, o aumento do acesso a serviços públicos e da participação social. Na educação, alcançou-se a universalização do ensino fundamental. Na saúde, na primeira década de implantação do SUS, observou-se a expansão de ações no território nacional, principalmente de atenção básica, a configuração de políticas de desenho universal que se tornaram exemplos mundiais (como a política de controle do HIV/Aids), mudanças no modelo de atenção à saúde (por exemplo, na área de saúde mental), a criação das comissões intergestores em saúde e de conselhos com participação social nas três esferas de governo. Porém, as políticas econômicas e de reforma do Estado prejudicaram a expansão de gastos, de serviços e de servidores públicos necessários para fortalecer as políticas universais e reduzir as desigualdades sociais e em saúde99 Machado CV, Lima LD, Baptista TWF. Políticas de Saúde no Brasil em tempos contraditórios: caminhos e tropeços na construção de um sistema universal. Cad Saude Publica 2017; 33(Supl. 2):e00129616..

Já no período dos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2011-maio de 2016), observa-se um aumento de políticas de caráter redistributivo, com impacto na redução da pobreza e em alguns indicadores de desigualdades. Entre elas, o aumento real do salário-mínimo, com melhoria da renda dos trabalhadores, a expansão de direitos trabalhistas (por exemplo, das trabalhadoras domésticas), a expansão de programas de combate à fome e de transferência de renda, com destaque para o Bolsa Família, a expansão das universidades públicas, de vagas para jovens de baixa renda e de ações afirmativas na educação (com crescimento da presença de pessoas negras e oriundas das classes populares no ensino superior). Na saúde, foram intensificados ou implantados programas e ações que contribuíram para a melhoria do acesso da população no âmbito do SUS, como: a aceleração da Estratégia Saúde da Família, o Brasil Sorridente, a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família, o Programa Mais Médicos, serviços de atenção às urgências como os Serviços de Atendimento Móvel às Urgências (SAMU) e as Unidades de Pronto Atendimento (UPA).

Em síntese, de sua criação pela Constituição de 1988 até 2016, em um contexto democrático, o SUS permitiu avanços importantes em termos do acesso da população à saúde e resultados sanitários positivos1010 Machado CV, Silva GA. Political struggles for a universal health system in Brazil: successes and limits in the reduction of inequalities. Glob Health 2019; 15(Suppl. 1):77.. Como política universal, foi um vetor importante de afirmação de direitos e de promoção da igualdade social. Porém, o processo de implementação do SUS expressou com vigor disputas de projetos e contradições, traduzidas, por exemplo, no insuficiente financiamento público, no crescimento de segmentos privados na saúde (planos e seguros, serviços de apoio diagnóstico, prestadores, empresas de capital nacional e internacional) sob incentivos estatais, nos constrangimentos à contratação, à remuneração adequada e à formação de profissionais de saúde para dar conta da expansão dos serviços e transformação do modelo de atenção e nas dificuldades para ampliar a capacidade de inovação e de produção nacional de tecnologias e insumos estratégicos para atender às necessidades do SUS99 Machado CV, Lima LD, Baptista TWF. Políticas de Saúde no Brasil em tempos contraditórios: caminhos e tropeços na construção de um sistema universal. Cad Saude Publica 2017; 33(Supl. 2):e00129616..

O impedimento da presidente Dilma Rousseff em 2016, após um período de crise política, significou uma ruptura com o curso da democracia brasileira, de avanços incrementais nas esferas política e social, embora sob dificuldades. Caracterizado como um “golpe parlamentar”1111 Santos WG. A democracia impedida. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2017., a interrupção do governo democraticamente eleito com base em motivos espúrios teria se diferenciado de golpes anteriores (como o de 1964) por ter buscado amparo em mecanismos institucionais. Experiências de erosão de regimes democráticos sem “tanques nas ruas” e aparentemente dentro de regras legais têm sido reportadas em outros países1212 Levitsky S, Ziblatt D. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar; 2018.. Acrescente-se que, em democracias relativamente recentes, como no Brasil, o risco de reversão de processos de consolidação democrática é maior do que em democracias consolidadas1313 Avritzer L, Rennó L. The pandemic and the crisis of democracy in Brazil. J Politics Latin America 2021; 13(3):442-457..

Para Santos1111 Santos WG. A democracia impedida. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2017., os golpistas no Brasil de 2016 teriam como “denominador comum” com os da década de 1960 a “rejeição ao progresso econômico e social das classes vulneráveis”1111 Santos WG. A democracia impedida. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2017.. Nesse sentido, Fortes1414 Fortes A. Brazil's neoconservative offensive. NACLA Report Americas 2016; 48(3):217-220. explora a ofensiva neoconservadora que destituiu a presidente eleita e interrompeu um ciclo histórico iniciado desde meados dos anos 1980, marcado pelo compromisso com a expansão de direitos sociais universais e da participação ativa da sociedade na formulação de políticas, ainda que em meio a limites relacionados à acomodação de forças políticas tradicionais e a dificuldades para romper com políticas econômicas neoliberais.

Durante os governos Temer (2016-2018) e Bolsonaro (2019-2022), os retrocessos nas políticas econômicas e sociais foram expressivos. Intensificaram-se as medidas de austeridade, restrição de gastos públicos (agravada pela Emenda Constitucional 95/2016, que instituiu o “teto de gastos”) e incentivos à privatização. Promoveram-se reformas que restringiram direitos, como a previdenciária e a trabalhista, aumentando a vulnerabilidade dos grupos de menor renda. Houve constrangimentos às políticas sociais universais - como de saúde e educação -, bem como às de assistência social1515 Abrucio FL, Rodrigues RV, Milanello TRS, Melo YM. Ascensão e crise do Sistema de Assistência Social (SUAS) no federalismo brasileiro. Katal 2023; 26(2):243-254., com fragilização de numerosos programas e piora de indicadores sociais. Os investimentos em ciência e tecnologia caíram muito, afetando negativamente as universidades, as instituições de pesquisa e a capacidade de inovação, produção de conhecimento e tecnologias no país. Observou-se também a fragilização de canais de participação social nas políticas públicas e, no governo Bolsonaro, um crescimento expressivo da presença de militares em cargos de diversos ministérios federais.

A partir de 2020, a situação foi agravada pela crise multidimensional associada à pandemia de COVID-19, que teve marcante impacto no Brasil em termos de repercussões sociais e da alta mortalidade pela doença. A postura negacionista do presidente da República atrasou a adoção de medidas econômicas e de proteção social no enfrentamento da crise e fragilizou a ação do Ministério da Saúde na coordenação da resposta à emergência sanitária. O quadro só não foi pior pela existência do SUS, de universidades e de instituições científicas públicas (como a Fiocruz e o Instituto Butantan), que se mobilizaram fortemente para o controle da COVID-19, incluindo os esforços em pesquisa, formação, desenvolvimento e produção de vacinas, atenção e comunicação com a população, visando a disseminação de informações confiáveis. Destaque-se o compromisso de pesquisadores, profissionais de saúde, alguns gestores do SUS, governantes e parlamentares, e movimentos sociais e comunitários, diante de omissões ou de orientações políticas de governantes dissonantes das recomendações técnico-científicas para o enfrentamento da emergência1616 Freitas CM, Pereira AMM, Machado CV. A resposta do Brasil à pandemia de Covid-19 em um contexto de crise e desigualdades. In: Machado CV, Pereira AMM, Freitas CM, organizadores. Políticas de saúde em tempos de pandemia: nove países, muitas lições. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. p. 295-322..

Um novo momento histórico se anuncia no país a partir de 2023, com o retorno de Lula à Presidência da República para um terceiro mandato, após um processo eleitoral disputado, em que teve 50,9% dos votos válidos (contra 49,1% do então presidente Bolsonaro). A coalizão vencedora apresentou na transição um amplo diagnóstico da situação das políticas públicas no país1717 Gabinete de Transic¸a~o Governamental. Relato´rio final - dezembro de 2022 [Internet]. 2022. [acessado 2024 maio 25]. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/relatorio-da-transicao-detalha-retrocessos-sob-o-governo-bolsonaro-leia-a-integra/
https://www.cartacapital.com.br/politica...
e uma proposta de governo orientada à transformação do padrão de desenvolvimento nacional, em um sentido mais inclusivo e democrático, comprometendo-se com a adoção de políticas voltadas à redução das desigualdades estruturais e à busca de outra posição do país no cenário mundial.

O governo se iniciou com muitos desafios políticos, incluindo a ausência de maioria no Congresso Nacional, e uma importante polarização na sociedade. Uma semana após a posse presidencial, em 8 de janeiro de 2023, a invasão de prédios públicos em Brasília (incluindo o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal) sinalizou a persistência de movimentos golpistas, resultando em investigações criminais.

Em que pesem as dificuldades, nos oito primeiros meses do governo foram sinalizadas mudanças importantes em diversos âmbitos: na composição dos ministérios e do primeiro escalão do governo, com maior representação de mulheres, pessoas negras e indígenas (embora ainda insuficiente e sob pressões de segmentos do Congresso para acesso a cargos); na retomada de uma série de políticas que haviam sido descontinuadas ou fragilizadas; na expansão de políticas orientadas à equidade; no compromisso com políticas intersetoriais; na ênfase no diálogo intergovernamental e no fortalecimento de relações federativas cooperativas; na revalorização das instâncias participativas na formulação de políticas públicas; na reorientação da política externa brasileira, em busca de novo realinhamento geopolítico por meio do fortalecimento da integração e da cooperação com outros países do Sul Global. Persistem tensões, no entanto, entre os imperativos de equilíbrio orçamentário e as necessidades de expansão dos gastos públicos para dar conta das imensas necessidades sociais, como expresso nos debates em torno do novo arcabouço fiscal aprovado em 2023, em substituição ao teto de gastos públicos.

Na área da saúde, nos primeiros meses do governo foram registradas mudanças importantes. Uma delas foi a escolha de uma mulher como ministra da Saúde pela primeira vez na história: Nísia Trindade Lima, socióloga, pesquisadora e presidente da Fiocruz de 2017 a 2022, que esteve à frente da instituição no enfrentamento da pandemia de COVID-19, comprometida com o SUS e a redução das desigualdades sociais. Os demais cargos do Ministério da Saúde são preenchidos com dirigentes de perfil técnico-político com trajetória de atuação no SUS. Assume-se a necessidade de resgatar o papel estratégico do Ministério da Saúde na condução da política nacional de saúde, com rearticulação dos mecanismos de coordenação federativa e de participação social. Diversas políticas e programas que haviam sido interrompidos ou fragilizados são retomados, como os voltados à atenção primária à saúde e à vigilância em saúde; à gestão do trabalho e da educação em saúde; ao complexo econômico-industrial em saúde, com ênfase no desenvolvimento científico e tecnológico e na produção nacional de insumos para o SUS. Ressalte-se ainda o destaque conferido a novas agendas, como a saúde digital, e à promoção da equidade, como a retomada de políticas direcionadas às populações negra, indígena e a outros grupos em situação de vulnerabilidade social, em articulação com outras áreas do governo.

Os desafios, no entanto, são imensos. Aos retrocessos nas políticas públicas acumulados desde 2016, somaram-se as repercussões da pandemia de COVID-19, cujos impactos sociais e sanitários extrapolam a morbidade e a mortalidade relacionadas a essa doença. A piora nas condições de vida da população e os efeitos da sobrecarga do SUS sobre o atendimento a outros problemas de saúde podem ter efeitos de médio e longo prazo, e de difícil precisão. Além disso, os problemas estruturais do sistema de saúde brasileiro antecedem a ruptura política de 2016 e a crise relacionada à COVID-19. Entre eles, o insuficiente financiamento público e o dinamismo do setor privado de saúde no Brasil, sob incentivos e subsídios estatais, que persistiram em todo o período de implantação do SUS e se agravaram com a financeirização na saúde1818 Mattos LV, Carvalho EMCL, Barbosa DVS, Bahia L. Financeirização, acumulação e mudanças patrimoniais em empresas e grupos econômicos do setor saúde no Brasil. Cad Saude Publica 2022; 38(Supl. 2):e00175820..

Esses e outros limites à consolidação de um sistema público e universal de saúde no país expressam conflitos distributivos não equacionados, mesmo durante governos democráticos e progressistas. Além da recuperação de políticas que sofreram retrocessos e de inovações incrementais, a consolidação de um sistema universal e a redução de desigualdades em saúde dependem de mudanças estruturais, condicionadas pela direcionalidade da agenda política, pela capacidade de governo e pelas condições de governabilidade, em meio a disputas de distintos projetos e interesses nacionais e internacionais.

O fortalecimento do SUS depende, portanto, do lugar que as políticas sociais universais ocuparem no padrão de desenvolvimento do país, o que requer transformações amplas nas relações Estado-mercados-sociedade. A gravidade da crise associada à pandemia, cujo enfrentamento evidenciou a necessidade de políticas públicas coordenadas em diferentes áreas, suscitou um debate sobre uma possível “volta do Estado”, no sentido do aumento da intervenção estatal nas áreas econômica e social1919 Carvalho L. Curto-circuito - o vírus e a volta do Estado. São Paulo: Todavia; 2020.. Após três décadas de desastres do neoliberalismo, a pandemia teria deixado evidente que “todos dependemos das atitudes de outros e da estrutura coletiva de cuidados para a nossa sobrevivência individual e coletiva”2020 Gerbaudo P. O grande recuo - a política pós-populismo e pós pandemia. São Paulo: Todavia; 2023..

O aumento dos investimentos públicos em educação, na ciência e na tecnologia também é estratégico para a reconfiguração do Estado, por sua importância em termos de enfrentamento das desigualdades e para uma inserção soberana nas nações no cenário mundial2121 Arbix G. Ciência e tecnologia em um mundo de ponta-cabeça. Estud Av 2020; 34(99):65-76.. Já o fortalecimento nacional do complexo econômico-industrial da saúde, sob incentivo e regulação estatal, assinala uma possibilidade de articular de forma virtuosa as dimensões econômica e social, ao contribuir para a modernização do SUS, a geração de empregos qualificados e o acesso à saúde2222 Gadelha CAG, Gimenez DM, Cajueiro JPM, Moreira JDD. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) como espaço estratégico para a modernização do SUS e para a geração dos empregos do futuro. Cien Saude Colet 2023; 28(10):2833-28432023..

No entanto, a reconfiguração dos Estados está em disputa nos diferentes países, inclusive no Brasil. Mais do que isso, o sentido da atuação estatal depende da correlação de forças em torno das finalidades das políticas públicas e do caráter da democracia em suas várias dimensões. O SUS, como política social universal ancorada em uma concepção ampla de saúde e bem-estar e em valores democráticos, é um pilar fundamental para a consolidação de um padrão de desenvolvimento orientado para a redução das desigualdades e a construção de uma sociedade mais justa.

Agradecimentos

A autora é bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Cientista do Nosso Estado da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    12 Fev 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br