“Eu sofria calada e certamente toda mulher é assim” - Silenciamentos: reproduções e rupturas da violência contra as mulheres que vivem em contextos rurais

Luciane Stochero Liana Wernersbach Pinto Sobre os autores

Resumo

Este estudo se dedica, através de histórias de vida, a analisar a violência contra as mulheres que vivem em contextos rurais, seu silenciamento e os desafios de rompê-lo. Trata-se de uma pesquisa qualitativa a partir de 20 entrevistas com mulheres rurais em dois municípios do Rio Grande do Sul. Através da Análise de Narrativas chegamos a duas categorias: “Eu sofria calada e certamente toda mulher é assim” - A violência e o silenciamento; e “A gente cuida dela” - Rompendo o silêncio. A primeira, faz referência a opressão do silenciamento e como as mulheres foram afetadas através da violência e do isolamento. A segunda, apresenta os desafios enfrentados pelas mulheres ao romper o silenciamento e sair da relação abusiva, e como, através de suas narrativas, acessamos a histórias de outras mulheres que sofrem violência. As narrativas reforçam que o silenciamento, advindo dos papeis de gênero e do cerceamento de liberdade, contribuiu para a permanência na relação abusiva. A violência teve sustentáculo no contexto rural, no qual as mulheres ficavam ainda mais isoladas, sozinhas e sem apoio, acentuando seus medos, culpa, vergonha, dependência financeira. É fundamental haver um trabalho intersetorial para o enfrentamento a essa problemática com mais informação e assistência às mulheres rurais.

Palavras-chave:
Violência contra a Mulher; Violência de Gênero; Área Rural; Narrativa

Introdução

A compreensão da problemática da violência contra as mulheres perpassa questões de gênero por estar ligada a relações desiguais de poder11 Saffioti H. Gênero, Patriarcado, violência. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Perseu Abramo; 2015.. Nessa direção, Bandeira22 Bandeira LM. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. In: Hollanda HB, organizador. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2019. p. 293-314. (p.295) afirma que “a expressiva concentração deste tipo de violência ocorre historicamente sobre os corpos femininos e as relações violentas existem porque as relações assimétricas de poder permeiam a vida rotineira das pessoas”. Dessa maneira, podemos ponderar que a violência de gênero exercida no cotidiano da vida das mulheres acaba por ser tolerada e socialmente aceita, silenciando-as. Segundo Saffioti11 Saffioti H. Gênero, Patriarcado, violência. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Perseu Abramo; 2015. (p.80), “paira sobre a cabeça de todas as mulheres a ameaça de agressões masculinas, funcionando isto como mecanismo de sujeição aos homens, inscrito nas relações de gênero”.

Os movimentos feministas exerceram um papel fundamental ao transpor a questão da violência contra as mulheres da esfera privada para a pública, colaborando para que seu enfrentamento fosse ampliando para as esferas política, de saúde pública e de direitos humanos22 Bandeira LM. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. In: Hollanda HB, organizador. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo; 2019. p. 293-314.. Com o tempo, foram surgindo avanços, como as Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher nos anos 1980, as Casas Abrigos nos anos 1990, o Sistema de Notificação de Violências Interpessoal e Autoprovocada em 2003, a Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180 em 2005, a Lei Maria da Penha em 2006, a Lei do Feminicídio em 2015, e outras iniciativas e serviços de atendimento às mulheres. Mesmo com tantos avanços continua sendo um desafio para as mulheres romperem o silêncio e chegarem aos serviços de ajuda. Souza e Silva33 Souza MB, Silva MFS. Estratégias de enfrentamento de mulheres vítimas de violência doméstica: uma revisão da literatura brasileira. Pensando Fam 2019; 23(1):153-166. assinalam que, geralmente, as mulheres buscam algum serviço somente em casos mais extremos de violência ou quando percebem que chegaram a um limite. Um ponto importante a mencionar é que ainda existem certas deficiências nos serviços, como a falta de conhecimento e preparação dos profissionais da rede de atenção para realizar os encaminhamentos e lidar com as situações de violência, subnotificação dos casos de violência, ausência de estruturas para acolher as mulheres, entre outros44 Santos JDLB, Santos CVM. Considerações sobre a rede de enfrentamento à violência contra as mulheres. Rev Contexto Saude 2020; 20(40):139-148..

Ao tratar especificamente do tema da violência contra as mulheres que vivem em contextos rurais, Scott et al.55 Scott P, Nascimento FS, Cordeiro R, Nanes G. Networks for facing violence against women in sertao of pernambuco. Rev Estud Fem 2016; 24(3):851-870. chamam atenção para a dimensão da “localidade”. De acordo com os autores, o contexto rural além de ter características próprias, como a maneira de viver, trabalhar e de relacionar-se com a terra, apresenta fragilidades, como a falta de acesso aos bens e serviços, que, geralmente, ficam nos centros urbanos. No que se refere ao enfrentamento à violência contra as mulheres ainda podemos destacar que, o meio rural também se apresenta mais desprovido quanto a instituições e serviços, como delegacias, centros de saúde, casas abrigo. Convém lembrar que, em cidades de menor porte, instituições específicas para atendimento às mulheres em situação de violência praticamente inexistem. Falta de informação, longas distâncias, acesso restrito ao transporte, dependência do companheiro e falta de capacitação dos profissionais de saúde para identificação e encaminhamento dos casos, são alguns fatores que contribuem para que as mulheres rurais continuem vivendo em situação de violência66 Costa MC, Silva EB, Soares JDSF, Borth LC, Honnef F. Mulheres rurais e situações de violência: fatores que limitam o acesso e a acessibilidade à rede de atenção à saúde. Rev Gaucha Enferm 2017; 38(2):e59553.. Dessa maneira, as mulheres que vivem em contextos rurais, “onde mal se ouvem os gritos de socorro”77 Scott P, Rodrigues AC, Saraiva JC. Onde mal se ouvem os gritos de socorro: notas sobre a violência contra a mulher em contextos rurais. In: Scott P, Cordeiro R, Menezes M, organizadores. Gênero e geração em contextos rurais. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres; 2010. p. 63-93. (p.63), estão relegadas ao silêncio e enfrentam sozinhas um cotidiano violento.

O silenciamento sistemático das mulheres extirpou-as da história e as revestiu de padrões sociais, relegando-as ao anonimato até mesmo na esfera doméstica, destinada como “seu lugar”88 Perrot M. As Mulheres ou os Silêncios da História. Bauru: EDUSC; 2005.. Todavia, através da oralidade e de suas memórias, as mulheres foram escrevendo suas histórias e rompendo com o silêncio opressor. Para Del Priore99 Del Priore M. História das mulheres: as vozes do silêncio. In: Freitas MC, organizador. Historiografia brasileira em perspectiva. 4ª ed. São Paulo: Contexto; 2001. p. 217-235. (p.229), “evocando a subjetividade do privado, a história oral ajudou a restituir-lhes a dimensão política, dando significação política aos discursos pessoais das mulheres”. Daron1010 Daron VLP. Um grito lilás: cartografia da violência às mulheres do campo e da floresta. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres; 2009. (p.2), afirma que “precisamos constituir um conjunto de recursos de procura de dados e de análises para remexer no silêncio” ao qual as mulheres rurais foram submetidas. Nesse sentido, esse estudo se dedica, através de histórias de vida, a analisar a violência contra as mulheres que vivem em contextos rurais, seu silenciamento e os desafios de rompê-lo.

Caminhos metodológicos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa inspirada no Método História de Vida. Conforme Bertaux1111 Bertaux D. La perspectiva biografica: validez metodológica y potencialidades. Cahiers Int Sociol 1980; 69:197-225., as histórias de vida constituem um instrumento incomparável de acesso à experiência subjetiva e a riqueza de seu conteúdo são uma fonte inesgotável de hipóteses. A subjetividade do narrador pode ser vista, desse modo, como um elemento “único e precioso”. O importante não é a memória funcionar como um depositário passivo de fatos, mas sim como um processo ativo de criação de significações1212 Fraser R. La Historia Oral como historia desde abajo. Ayer 1993; 12:79-92.,1313 Portelli A, Ribeiro TMTJ, Fenelón RTDR. O que faz a história oral diferente. Revph 1997; 14:25-39.. Nesse sentido, a “imagem do mosaico é útil para pensarmos sobre este tipo de empreendimento científico. Cada peça acrescentada num mosaico contribui um pouco para nossa compreensão do quadro como um todo”1414 Becker HS. A história de vida e o mosaico científico. In: Becker HS. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec; 1993. p. 101-115.. Para Becker1414 Becker HS. A história de vida e o mosaico científico. In: Becker HS. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec; 1993. p. 101-115. (p.104), a atenção à diversidade é algo importante pois “diferentes fragmentos contribuem diferentemente para nossa compreensão: alguns são úteis por sua cor, outros porque realçam os contornos de um objeto”.

Para este estudo foram eleitos dois municípios de pequeno porte, Bossoroca e São Miguel das Missões, pertencentes a 12ª Coordenadoria Regional de Saúde do Rio Grande do Sul (RS), ambos com população em torno de 7 mil habitantes e aproximadamente 48% da população vivendo na zona rural. A escolha desses locais foi em razão da proximidade da pesquisadora principal com o território e com as informantes chaves. A relevância da proximidade foi levada em conta, pois, se tratando de áreas rurais, era necessário conhecer as estradas, ter alguém para acompanhar nos deslocamentos e fazer a mediação com as mulheres. As distâncias das residências na zona rural até o centro urbano variavam de dois a 45 km, todas com estradas de terra. Participaram da pesquisa 29 mulheres com idade acima de 18 anos, que residiam na zona rural a maior parte da vida. A pesquisa ocorreu nos meses de setembro e outubro de 2022.

Para chegar até as mulheres contamos com o apoio das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) rurais. As entrevistas foram realizadas nas próprias moradias em momentos nos quais as mulheres estavam sozinhas. A técnica escolhida foi a entrevista a partir de um roteiro norteador elaborado pelas pesquisadoras. As entrevistas que duraram, em média, 45 minutos, foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas na sua integralidade. Das 29 entrevistas, 20 foram escolhidas para compor este artigo em razão de suas narrativas de violência.

Neste estudo adotou-se a Análise de Narrativa, compreendida como uma “estratégia baseada no olhar crítico e reflexivo sobre as histórias e informações que emergem na etapa de produção dos dados. Tem como objetivo analisar os elementos da narrativa, especialmente os acontecimentos, as experiências e os discursos. Portanto, a interpretação introduz outra camada explicativa e interpretativa para as narrativas”1515 Ceccon RF, Garcia-Jr CAS, Dallmann JMA, Portes VM. Narrativas em Saúde Coletiva: memória, método e discurso. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022. (p.87). A atenção dessa análise é voltada para a experiência das entrevistadas e não para o encadeamento dos acontecimentos. A partir das transcrições foi realizada a leitura integral das entrevistas e síntese dos principais elementos com características semelhantes relacionadas entre si. Assim, as categorias temáticas foram sendo observadas e as organizamos em: 1) “Eu sofria calada e certamente toda mulher é assim” - A violência e o silenciamento; 2) “A gente cuida dela” - Rompendo o silêncio. O primeiro, faz referência a opressão do silenciamento e como as mulheres foram afetadas através da violência e do isolamento. O segundo, apresenta os desafios enfrentados pelas mulheres ao romper o silenciamento e sair da relação abusiva, e como através de suas narrativas, acessamos a histórias de outras mulheres que sofrem violência.

A fim de ilustrar as narrativas, apresentamos alguns trechos que consideramos de destaque. Para tal, a escrita dos fragmentos das histórias foi elaborada pensando num senso estético, com a finalidade de valorizar as experiências compartilhadas nas entrevistas, uma vez que, a “estética impulsiona e capta as sensibilidades, as subjetividades, os discursos e as experiências vividas, as histórias ocultas, invisibilizadas e minimizadas”1515 Ceccon RF, Garcia-Jr CAS, Dallmann JMA, Portes VM. Narrativas em Saúde Coletiva: memória, método e discurso. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2022. (p.103). Dessa maneira, os trechos apresentam as próprias palavras das entrevistadas, porém, esteticamente mais organizados na intenção de manter o relato principal.

Nos trechos das entrevistadas as participantes foram codificadas de M1 a M20, sendo que “M” faz referência ao nome Margarida Maria Alves, líder sindical, referência símbolo de resistência e luta contra a violência no campo, pela reforma agrária e os direitos dos(as) trabalhadores(as) rurais. Na tentativa de silenciá-la a assassinaram com um tiro em seu rosto em 12 de agosto de 1983. Mas “eles não sabiam que Margarida era semente”1616 Barack F. Eles não sabiam que Margarida era semente e se espalharia por todo o Brasil [Internet]. FETAG-PB; 2018 [acessado 2023 mar 15]. Disponível em: https://www.fetagpb.org.br/2018/08/10/eles-nao-sabiam-que-margarida-era-semente-e-se-espalharia-por-todo-o-brasil/.
https://www.fetagpb.org.br/2018/08/10/el...
e que sua morte continua inspirando as mulheres rurais na luta por seus direitos e a uma vida sem violência. Outras características das entrevistadas: idade, raça/cor, escolaridade, idade ao casar-se, estado civil, estão organizadas no Quadro 1, apresentado na seção Resultados e discussão.

Quadro 1
Características das mulheres rurais entrevistadas.

A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fiocruz, e aprovado em 09 de maio de 2022 sob parecer número 5.395.759. Todas as participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados e discussão

Adentrando no silêncio e apresentando as Margaridas

Percorrer os longos caminhos de terra cercados de campos, matas ou lavouras até as casas das mulheres era como adentrar num silêncio profundo, quebrado pelas vozes das narrativas, que, ora mais firmes, ora emocionadas e entremeado de pausas, ora baixando a voz ao falar dos assuntos que mais lhes causavam sofrimento. As mulheres que nos abriram as portas de suas casas, sentaram-se à sombra em seus quintais e, gentilmente, partilharam suas vidas, histórias e experiências, ao mesmo tempo que faziam suas próprias análises do passado e do presente. Silva et al.1717 Silva AP, Barros CR, Nogueira MLM, Barros VA. "Conte-me sua história": reflexões sobre o método de História de Vida. Mosaico 2007; 1(1):25-35. descrevem que a experiência de relatar a história de vida oferece àquele que a conta uma oportunidade de experimentá-la novamente, podendo ressignificar sua vida, reconstruí-la como numa dimensão terapêutica.

No que se refere às características das participantes da pesquisa (Quadro 1), a idade foi bem variada: duas delas tinham entre 30 e 39 anos, quatro entre 40 e 49 anos, nove tinham entre 50 e 59 anos e cinco entre 60 e 78 anos. Quanto a raça/cor da pele, 12 se autodeclararam brancas e, oito, pardas ou pretas. Quanto ao estado civil, a maioria era casada (12), sendo que metade delas estava no segundo casamento, cinco eram separadas e três viúvas, e todas tinham filhos. Quanto a idade ao casar-se, 11 delas tinham entre 13 e 18 anos, sendo que seis entrevistadas tinham entre 13 e 15 anos, as demais entre 19 e 31 anos de idade. Com relação a escolaridade, 16 delas tinham o ensino fundamental incompleto e apenas uma o completo, duas o ensino médio completo e uma o incompleto. Quanto a renda própria, nove recebiam aposentadoria ou pensão do marido, sete recebiam o auxílio do governo e destas, três complementavam o auxílio com trabalhos de diarista ou temporário. Apenas uma entrevistada recebia salário, duas não tinham renda própria, mas trabalhavam em conjunto com o esposo na venda de leite e excedentes, e outra tentava reaver a bolsa família que havia sido cancelada.

Eu sofria calada e certamente toda mulher é assim” [M20] - A violência e o silenciamento

O silenciamento, advém de uma opressão, algo que impede a pessoa de falar, de se expressar, forçando-a a permanecer calada. Para Solnit1818 Solnit R. A mãe de todas as perguntas: reflexões sobre os novos feminismos. São Paulo: Companhia das Letras; 2017. (p.17), “o silêncio é o oceano do não dito, do indizível, do reprimido, do apagado, do não ouvido”. As mulheres foram historicamente silenciadas e, conforme Perrot88 Perrot M. As Mulheres ou os Silêncios da História. Bauru: EDUSC; 2005. (p.9), foram “esquecidas” e suas histórias não foram narradas e documentadas, como se as mulheres estivessem fora dos acontecimentos. Para a autora, “o silêncio é o comum das mulheres” pois está ligado à sua posição secundária e subordinada. Nesse sentido, Beauvoir1919 Beauvoir S. O segundo sexo: fatos e mitos. Vol. 1. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2019. se refere a mulher como o “Outro”, ou seja, o homem como o sujeito absoluto, essencial, enquanto mulher é definida como “o segundo sexo”, não essencial. Ora, se as mulheres não fazem parte do mundo essencial, suas histórias não precisam ser contadas, ouvidas e, se ouvidas, não precisam da devida atenção. Dessa maneira, suas falas são deslegitimadas e não levadas a sério.

Os enraizados papeis de gênero na sociedade conferiram a primazia e poder ao homem, dando-lhe a chancela e a tolerância para punir o que se lhe apresentava como desvio e transgredia o comportamento culturalmente esperado das mulheres11 Saffioti H. Gênero, Patriarcado, violência. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Perseu Abramo; 2015.. Dessa maneira, a prática das mais diversas formas de violência contra as mulheres tendem a ser naturalizadas e invisibilizadas:

De primeiro quando namorávamos, eu não reparava, sabe, sempre gostei de cabelo preso, e ele vinha e desprendia, dizia que gostava de mulher com cabelo solto, e eu permitia isso. Eu achava que era assim. Depois, quando nos casamos, a princípio não era violência contra mim, foi a grosseria, a falta de carinho, a violência mesmo, veio depois [M14].

A entrevistada, ao olhar para seu passado, consegue perceber a sutileza do início da violência. Ou seja, a interferência em sua maneira de se apresentar, a partir do gosto do então namorado, que preferia o cabelo solto, “mais feminino”. O fato dela “achar que era assim” vem reforçar o papel de submissão da mulher. A princípio, a violência pode acontecer de forma velada, de modo que a mulher não perceba o que está passando. Ao mesmo tempo, ela começa a sentir que não consegue “agradar” suficientemente o parceiro, além da sensação de culpa por não atingir o que lhe era esperado2020 Nader MB. Violência sutil contra a mulher no ambiente doméstico: uma nova abordagem de um velho fenômeno. In: Silva GV, Nader MB, Franco SP, organizadores. História, mulher e poder. Vitória: Edufes; 2006. p. 235-252.. Outro aspecto que convém sublinhar é a “grosseria e falta de carinho” depois que se casaram. Essas atitudes podem ser interpretadas como uma violência psicológica, que acontece de forma sorrateira e silenciosa, sem que a própria mulher perceba como tal, como a entrevistada mesmo se referiu que “a princípio não era uma violência”. Assim, a autoestima da mulher vai sendo diminuída, deixando-a insegura e mantendo-a no papel de submissão. Consoante a isso, outras agressões vão surgindo2121 Clark LM, Silva LFI, Andrade RD. Violência psicológica contra a mulher. Eixos Tech 2018; 5:1-19.,2222 Gomes R, Minayo MCS, Silva CFR. Violência contra a mulher: uma questão transnacional e transcultural das relações de gênero. In: Brasil. Ministério da Saúde (MS). Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília: MS; 2005.. Ademais, essas situações vão provocando um sentimento de solidão e abandono. Para Nader2020 Nader MB. Violência sutil contra a mulher no ambiente doméstico: uma nova abordagem de um velho fenômeno. In: Silva GV, Nader MB, Franco SP, organizadores. História, mulher e poder. Vitória: Edufes; 2006. p. 235-252., a violência sutil da solidão é uma forma de abuso de difícil identificação, pois não deixa marcas no corpo e vai acontecendo ao logo do tempo.

Nessa direção, outro aspecto que contribui para a solidão, é o cerceamento da liberdade. Sete mulheres descreveram que em seus relacionamentos a falta de liberdade era presente, como não permitir que tivessem convivência com a família: “Eu não podia ver meus irmãos que moravam a quatro quilômetros de distância e não podia nem ver minha família” [M20]. Outras situações, como necessitar da concordância do marido para visitar a própria mãe, sair para consultas de saúde, ir ao hospital cuidar de algum familiar, participar de atividades sociais somente acompanhada por ele, ou então, quando precisava sair sozinha, o marido ia até o local para verificar se ela realmente estava lá. “Sozinha”, essa foi uma expressão que apareceu com frequência durante as entrevistas. Estar sozinha por ser afastada de seu convívio familiar e de amigos, por se sentir enfraquecida e humilhada:

Casei muito nova. Na época eu tinha 14 e ele tinha 33 anos e eu só queria ter um lar para mim, queria parar de apanhar e ver minha mãe apanhar. Mas depois de um ano começou a história com meu marido... a primeira coisa que ele fez foi me proibir de procurar minha família. [...] Eu tinha muito medo porque ele me agredia muito, ele me ameaçava muito. Eu era uma pessoa muito humilhada, sozinha, sem família, meus irmãos estavam afastados de mim e com a mãe eu não falava, ele me impedia [M2].

Nesse trecho, podemos observar vários elementos. O primeiro deles, é o casamento na adolescência com um homem que tinha mais do dobro de sua idade, ocasionado pela busca de “um lar” sem violência. O casamento precoce muitas vezes é motivado pela busca da jovem em ter mais liberdade de sair, se divertir, ou mesmo ter uma vida melhor, sem violência ou pobreza. Mas o que acontece é o contrário. Em geral, a adolescente engravida e deixa de ir à escola. Consequentemente, tem menos possibilidade de ter um trabalho formal e fica dependente financeiramente do companheiro, relegada aos serviços domésticos e sujeita a sofrer violência, visto que o casamento precoce também pode ser entendido como uma violência2323 Taylor A, Lauro G, Segundo M, Greene ME. "Ela vai no meu barco." Casamento na infância e adolescência no Brasil. Resultados de Pesquisa de Método Misto. Rio de Janeiro, Washington, D.C.: Instituto Promundo, Promundo-US; 2015.. O segundo, a proibição de procurar a família, isolando-a, evidencia o relacionamento abusivo e demarca o poder de limitar as relações e espaço que ela poderia ter e frequentar. Para Kipnis2424 Kipnis BJ. Mulheres em situação de violência em áreas rurais [dissertação]. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas; 2018., entre os aspectos acarretados pelo isolamento estão a ausência de redes de apoio e o sentimento de solidão que favorecem a permanência da mulher na situação de violência. A autora observa que o isolamento social, além de ser o primeiro passo para outras formas de violências, pode ser em si próprio, uma forma de agressão contra a mulher, quando, por exemplo, é impedida de visitar familiares, amigas ou de trabalhar fora.

Nessa perspectiva, Solnit1818 Solnit R. A mãe de todas as perguntas: reflexões sobre os novos feminismos. São Paulo: Companhia das Letras; 2017. (p.19) afirma que a violência é uma forma de silenciamento, “um marido bate na mulher para silenciá-la”. A autora menciona também que as mulheres são silenciadas quando não têm sua vontade respeitada, como na violência sexual de seu parceiro, quando suas falas ou depoimentos são desvalorizadas e deslegitimadas, quando são interrompidas durante a conversa, humilhadas, menosprezadas:

Foram dez anos. Ele dizia, essa dor que você tem no peito é falta de serviço. Nunca me deixava ir ao médico, e o que eu tenho é um problema no coração. [...] Eu estava grávida e não sabia, trabalhava pesado e acabei tendo dois abortos. Meu útero foi retirado no segundo aborto, ele não me acompanhou ao hospital, e ainda ao chegar em casa ele não me respeitou [M20].

O relato, pleno de dor, traz, além do descaso em relação ao cuidado da saúde da esposa ao não levar em conta os sintomas de mal-estar ou mesmo acompanhá-la ao centro de saúde, o desrespeito a sua recuperação pós cirúrgica com a prática de relação sexual forçada. Conforme Saffioti2525 Saffioti H. O poder do macho. São Paulo: Moderna; 1987. (p.18), “o caso extremo do uso do poder nas relações homem-mulher pode ser caracterizado pelo estupro. Contrariando a vontade da mulher, o homem mantém com ela relações sexuais, provando, assim, sua capacidade de submeter a outra parte”. Dessa maneira, ao estabelecer sua vontade acima de qualquer situação o poder masculino é reforçado. Durante a pesquisa apenas duas mulheres falaram espontaneamente sobre a violência sexual, o que pode ser pelo fato de ser algo extremamente íntimo ou ainda entendido culturalmente como “deveres conjugais” da mulher para com o esposo, não sendo percebido como uma violência2626 Sousa RF. Cultura do estupro - a prática implícita de incitação à violência sexual contra mulheres. Rev Estud Fem 2017; 25(1):9-29.. Outro aspecto que convém considerar nessa fala é a dimensão da “localidade”, mencionado anteriormente por Scott et al.77 Scott P, Rodrigues AC, Saraiva JC. Onde mal se ouvem os gritos de socorro: notas sobre a violência contra a mulher em contextos rurais. In: Scott P, Cordeiro R, Menezes M, organizadores. Gênero e geração em contextos rurais. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres; 2010. p. 63-93.. A mulher, morando em área rural distante do centro urbano e de vizinhos, pode ficar limitada a sair de casa, até mesmo para uma consulta. A falta de transporte público ou privado faz com que aumente a dependência do marido, que, em geral, é o que possui carteira de habilitação, ou da ajuda de vizinhos para que consiga se deslocar2727 Bueno ALM, Lopes MJM. Rural women and violence: Readings of a reality that approaches fiction. Ambient Soc 2018; 21:e01511.,2828 Honnef F, Costa MC, Arboit J, Silva EB, Marques KA. Social representations of domestic violence against women and men in the rural settings. Acta Paul Enferm 2017; 30(4):368-374..

O silenciamento faz com que as mulheres permaneçam na relação abusiva, pois além de se sentir sozinhas e isoladas, não se sentem confortáveis em falar do assunto com outras pessoas: “A verdade é essa, ninguém se abre, conta o que está acontecendo. Hoje ainda não se abrem, ainda não falam. É difícil uma pessoa se abrir e dizer eu apanhei do marido, ele me xingou” [M18]. Para Nader2020 Nader MB. Violência sutil contra a mulher no ambiente doméstico: uma nova abordagem de um velho fenômeno. In: Silva GV, Nader MB, Franco SP, organizadores. História, mulher e poder. Vitória: Edufes; 2006. p. 235-252., é comum que as mulheres ocultem de suas famílias e outras pessoas próximas as situações de violência que vivem. Em parte, deve-se por elas nutrirem sentimentos ambivalentes em relação ao companheiro, bem como de auto culpabilização e vergonha. Essa dificuldade de “se abrir” e falar pode carregar outros dois aspectos, o religioso e moral. Schmitz2929 Schmitz AM. Mulheres camponesas de Itapiranga e a invisibilidade da violência. Grifos 2013; 22(34/35): 195-213., ao entrevistar mulheres rurais de uma região de colonização alemã, observou que a influência religiosa proporcionou uma educação para serem boas mães e esposas obedientes, sem reclamarem do excesso de trabalho, submissas ao marido e pedindo licença para tudo, e fez com que elas “sofressem em silêncio”, resguardando a honra e moral familiar. Isso faz com que a mulher seja levada a se sentir a responsável pela unidade da família a qualquer custo “a família, então, a gente não troca, por pior que seja” [M12].

Adicionalmente é significativo que, entre as entrevistadas, três eram viúvas e carregavam um relato de resistência de que “foram até o fim” ao lado de seus companheiros, como neste trecho:

Ele faleceu tinha 54 anos, mas eu aguentei tudo, sempre respeitando ele, até a última hora de vida. Naquela época ali a gente tinha vergonha de separar, eu fui criada naquele sistema que o casamento era um só. Agora estou aqui com minha filha e me sinto outro tipo de pessoa, tenho minha liberdade, eu posso sair, pois antes eu não podia nem visitar um filho [M5].

Podemos observar a influência da educação rígida que influencia a permanência no relacionamento por “vergonha de se separar”, preservando a honra. Somente a viuvez lhe trouxe a “liberdade”. Para Motta3030 Motta AB. Viúvas: o mistério da ausência. Estud Interdiscip Envelhec 2005; 7:7-24., um dos aspectos das mulheres que ficam viúvas é a saída do papel de subordinação que viviam durante o casamento, agravado por situações de violência, pobreza, falta de convivência familiar ou social. Dessa maneira, elas encontram um certo “alívio”, podendo retomar a sua vida e ter novas experiências de diversão, trabalho e independência.

A gente cuida dela” - Rompendo o silêncio

Romper o silêncio é um ato de ousadia e coragem, uma vez que a mulher está rompendo com tudo aquilo que lhe foi imposto como norma pela sociedade patriarcal. Algumas participantes falaram que a permanência no relacionamento estava ligada à dependência financeira, por não ter aonde ir, medo, proteção aos filhos, vergonha, receio de ser julgada e criticada, por se culpar, por achar que o esposo iria mudar, por ter sido educada num regime religioso e moralista. Mas tudo tem limite e “chega um ponto que não tem honra que pague” [M13]. As mulheres que romperam com a relação abusiva, relataram como principais desafios do processo de separação, o de se manter financeiramente e ter de enfrentar as ameaças do ex-marido. Com relação a este último, três registraram boletim de ocorrência e solicitaram medida protetiva, o que lhes afastou do convívio com o ex-marido e puderam, assim, se sentir mais seguras:

Ele começou a encher o saco, incomodar e dizia que ia me matar. Daí eu dei parte na polícia. Ele maltratava as crianças, eu não deixava, e daí ele saiu. Mas depois que foi embora nunca mais me incomodou. Mas também eu tenho a medida protetiva dele. Não dá para facilitar [M4].

Entre as mulheres que solicitaram medida protetiva nenhuma delas tinham acesso a transporte público. Tanto que, tiveram de ir para a cidade caminhando ou pedindo carona: “Não aguentei mais, peguei carona e fui lá fazer o que tinha que tinha que fazer [se refere a pedir medida protetiva], porque aqui a gente não tem ônibus, depende de pegar carona” [M15]. O “pedir carona”, evidencia a dependência da “boa vontade” de alguém e a dificuldade de locomoção de seu local de moradia até o centro urbano. Esses fatores muitas vezes acabam por obstaculizar a mulher de pedir ajuda, fazer a denúncia e solicitar a medida protetiva, ou retardam esse processo, deixando-as expostas a violência e ao risco de feminicídio3131 Grossi PK, Grossi ML, Gasparotto G, Vieira MS, Coutinho ARC. Violence against rural women in Rio Grande do Sul, Brazil: challenges for public policies. ESJ 2014; 1(10):295-310..

Outra preocupação importante das entrevistadas foi a questão de se manter financeiramente, sobretudo pela razão de terem filhos e estes permanecerem com elas. Algumas contaram inicialmente com o apoio da família e benefícios do governo, como o programa bolsa família e auxílio-doença até que, com o passar do tempo, foram se estabilizando. Algumas mudaram durante um tempo para trabalhar, na cidade, como empregadas domésticas. Outras permaneceram em suas propriedades rurais e, com ajuda de filhos ou irmãos, se mantiveram com dinheiro do leite ou outras vendas, ou trabalhavam em propriedades rurais próximas como empregadas. Um aspecto que convém ressaltar é que as mulheres que moravam de três a quatro quilômetros da cidade conseguiram trabalho com mais facilidade, como diaristas ou domésticas, mesmo sem meio de transporte, pois se deslocavam a pé nas estradas de terra, fosse no calor intenso, poeira, frio, chuva e barro. A autonomia financeira “não envolve, portanto, apenas independência financeira e geração de renda, mas pressupõe também autonomia para realizar escolhas”3232 Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU MULHERES). Gênero e Autonomia Econômica para as Mulheres. Caderno de Formação. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres; 2016. e funciona, inclusive, como um mecanismo auxiliar no rompimento da relação de violência. Desse modo, é imprescindível ter políticas públicas de auxílio financeiro direcionadas a mulheres que saíram de relacionamos abusivos, além de oferta de qualificação profissional e inserção no mercado de trabalho3333 Piciula LN, Pavarina AF, Morong FF. Aspecto financeiro diante da violência doméstica: como fator de risco e característica emancipadora da mulher. Colloquium Socialis 2021; 5(3):45-58.. Ademais, ter ações voltadas especificamente para as mulheres rurais, como cursos de administração de sua propriedade, o fortalecimento da agricultura familiar, financiamento, venda de sua produção, entre outros, para que possa se manter na zona rural, de modo que não tenham, forçosamente, migrar para a zona urbana, deixando sua cultura e modos de viver.

Dentre os apoios recebidos, além da família, estão os das vizinhas e profissionais de saúde:

Uma comadre, que era minha vizinha, me disse, “por que tu não vai num médico, mulher?!” Aí fui. A doutora me encaminhou para a psicóloga, ela me disse, “o teu caso é grave, tu está em último grau de depressão e ansiedade”, e aí puxei a história de meu marido. Mas meu marido me proibiu de frequentar psicóloga para poder me ajudar. Aí a minha irmã se meteu, pois me deu uma crise muito forte e eu parei no hospital. [...] Então fui na psicóloga, conversei, perguntei o que que eu podia fazer [se refere ao relacionamento abusivo] [M2].

Dentre as entrevistadas, apenas uma conversou com a médica e psicóloga e outras duas contavam com o apoio da ACS. É interessante pensar que, no decorrer dos anos em que as mulheres sofreram violência, elas, em algum momento, tiveram que passar por algum profissional de saúde ou receberam a visita da ACS. Será que não poderia ter sido feito algo a mais por elas através dos serviços de saúde? Arboit et al.3434 Arboit J, Costa MC, Silva EB, Colomé ICS, Prestes M. Domestic violence against rural women: Care practices developed by community health workers. Saude Soc 2018; 27(2):506-517. identificaram em seus estudos sobre o enfrentamento a violência contra as mulheres rurais, que entre as ACS lhes faltava qualificação, apoio multiprofissional e intersetorial para responder de modo eficaz às demandas de violência trazidas pelas mulheres rurais. Quanto aos profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF), Costa et al.3535 Costa MC, Silva EB, Arboit J, Honnef F, Marques KA, Barbieri J, Silva, DM. Violência doméstica contra a mulher em contexto rural: reconhecimento das estratégias de atenção. Rev Bras Promoc Saude 2019; 32:9271. observam que estes sentiam que lhes faltava habilidades para atuar tanto no reconhecimento quanto no enfrentamento de situações de violência contra as mulheres rurais. Desse modo, o silêncio também está contido nas instituições que deveriam oferecer ajuda e não se encontram plenamente capacitadas para o cumprimento de seu papel no enfrentamento da violência. Enquanto isso, as mulheres vão ficando submersas no silêncio, que também acaba sendo uma forma de comunicação.

Algumas mulheres que participaram da pesquisa, não falaram de suas vivências de violência, mas suas histórias foram emergindo no decorrer de entrevistas de outras mulheres com quem suas vidas se cruzavam:

Eu a conheço e sei que ela passa por conflitos. Não sei se ela contou, mas ela passa. Ela está muito depressiva. Ela sofre conflito com o marido, já saiu de casa e veio parar aqui ao lado, na casa da minha filha que é cunhada dela. Da casa dela até aqui dá uns 12 quilômetros. Vem para se escapar dele. A gente cuida dela [M8].

Segundo um provérbio africano, “o silêncio é também uma forma de falar”. Dessa forma, podemos interpretar que as mulheres continuam subjugadas, silenciadas e que seu silêncio é um grito de socorro pela sua própria vida.

A memória traz uma confluência de passado e presente, individualidade e coletividade. Assim, ao narrar a própria história, permeada de violências, também está narrando a história de outras mulheres. De acordo com Tedeschi3636 Tedeschi LA. Os lugares da História Oral e da Memória nos Estudos de Gênero. OPSIS 2015; 15(2):330-343. (p.356), “apesar de as memórias pessoais serem únicas e irrepetíveis, uma pessoa nunca recorda sozinha, sempre está imersa em uma ordem coletiva que a contém”, rompendo, dessa maneira, o silêncio de forma coletiva.

Como bem expressaram Borges e Soares3737 Borges GS, Soares PHF. Mulheres (in)visíveis: A opressão e a luta das mulheres do campo de São Lourenço do Sul [Internet]. 2021 [acessado 2023 mar 15]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UsOKRrcFA-A
https://www.youtube.com/watch?v=UsOKRrcF...
“não estamos dando voz a essas mulheres, voz elas sempre tiveram, mas nem sempre foram ouvidas, pois foram sistematicamente silenciadas”. Dessa maneira, narrar a própria história se torna um ato político, como menciona Ricoeur3838 Ricoeur P. Teoria da Interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70; 1976., a experiência enquanto experienciada, como vivida, permanece privada, mas a partir do momento em que há um compartilhamento de experiências e transferências de informações, ela ganha significação tornando-se pública. Uma das formas de tornar visível a histórias de mulheres comuns é através da oralidade. De acordo com Perrot88 Perrot M. As Mulheres ou os Silêncios da História. Bauru: EDUSC; 2005., as mulheres mobilizam suas memórias ao contarem suas histórias pois a “memória das mulheres é verbo” e está intimamente ligada a oralidade das sociedades tradicionais com a missão de contadoras de histórias. Sendo assim, percebe-se o potencial do Método de História de Vida para acionar as vivências de violência no decorrer da vida das entrevistadas. Esse método as incentivou a romper o silêncio em que vivem ou que já viveram em suas relações, a rever suas memórias e a fazer suas próprias análises, podendo dar um novo significado ao vivido. A maioria delas já não vive em um relacionamento violento, mas convém recordar que as experiências de violência e suas consequências ainda perduram de diferentes formas em suas vidas: “é um processo para a vida inteira” [M14].

Consideração finais

Fiquei feliz em poder te ajudar e ajudar outras mulheres que possam tentar seguir, mudar ou melhorar, né? E fico muito grata! Até quando minha comadre me ligou perguntando se eu aceitava participar, eu disse, vai ser um prazer dar uma entrevista, porque jamais ia me passar pela cabeça, sabe? Assim de contar a realidade que a gente viveu [M2].

Narrar a própria história é uma oportunidade de revisitar suas memórias e dar novas significações ao vivido. Ao compartilhá-la, as mulheres tornaram pública suas trajetórias e resistências frente a tudo o que viveram. Romper o silêncio não é tarefa simples. As mulheres que aceitaram participar da pesquisa e narrar suas histórias, entremeadas de violências sofridas, não falaram apenas por si próprias, mas por um coletivo de mulheres que são suas mães, avós, cunhadas, amigas, vizinhas, parentes e mesmo aquelas que não lhes são conhecidas, mas que estão representadas em suas falas. Todas(os) nós, enfim, somos responsáveis de colaborar para o rompimento do silenciamento. A escuta atenta e respeitosa durante o atendimento em unidades de saúde e assistência, capacitação dos gestores e profissionais, incentivo ao fortalecimento de políticas públicas para as mulheres que vivem em contexto rurais, realização de pesquisas com essa temática, discussão da temática em espaços de formação acadêmica, entre outros, são modos de enfrentar e dar visibilidade a essa problemática.

No decorrer do artigo podemos observar as mais diversas formas de violência as quais as mulheres foram submetidas, e que a “violência de gênero, inclusive em suas modalidades familiar e doméstica, não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gênero, que privilegia o masculino”11 Saffioti H. Gênero, Patriarcado, violência. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Perseu Abramo; 2015. (p.85). Além disso, observamos que a violência encontrou sustentação no próprio contexto rural pela suas longas distâncias e difícil deslocamento, fazendo com que as mulheres ficassem ainda mais isoladas e se sentissem sozinhas, acentuando seus medos, culpa e vergonha. Bem como a ausência de testemunhas, contribuindo para que a mulher não fosse vista e ouvida ao pedir socorro. Ademais, percebemos que as mulheres foram encontrando apoio à medida que falavam com pessoas de sua confiança e buscavam sair da situação de violência. O apoio às mulheres adveio da família, vizinhas e profissionais de saúde, especialmente em momentos limites pelos quais estavam passando. Esse é um aspecto importante e que poderia ser mais presente na vida das mulheres. O que fazer para que não se sintam sozinhas? Como chegar até elas e fazer com que se sintam compreendidas e acolhidas? Se ainda é presente entre as famílias a cultura patriarcal que as silencia, e que requer mudança de consciência a longo prazo, precisamos de medidas a curto prazo, pois quem sofre violência não pode esperar. Nesse sentido, o trabalho intersetorial entre o setor saúde com os sindicatos, movimentos, assistência social, delegacias, é urgente e pode fazer a diferença para as mulheres na garantia da segurança, saúde, auxílio financeiro, jurídico e, principalmente, na garantia de sua própria vida.

Assim, é imprescindível que haja mais informação às mulheres que vivem em contextos rurais para que conheçam seus direitos, saibam onde recorrer e com quem contar quando precisarem. Esperamos que esse artigo possa colaborar com o rompimento do silêncio acerca da temática da violência contra as mulheres rurais, incentivando, desse modo, que outros estudos, visto que ainda são escassos, possam ser realizados a fim de fortalecer a discussão e o enfrentamento à violência para esse público.

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  • Financiamento

    Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    17 Fev 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br