Participação social na regulamentação da Anvisa: evidências híbridas, coloquiais e científicas para decisão democrática

Telma Rodrigues Caldeira Ana Valéria M. Mendonça Sobre os autores

Resumo

A consulta pública (CP) da Anvisa é o mecanismo de participação social mais usado na regulamentação, consolidada com base em movimentos antagônicos: democratização da tomada de decisão e contrarreforma do Estado. Diante do conceito de participação social como várias ações relacionadas à decisão pública com valorização da diversidade e como exercício da cidadania, o artigo discute a possibilidade de as CPs configurarem um processo de regulamentação democrático ao considerar saberes populares e evidências coloquiais, além de promover a criação de evidências híbridas em um modelo moderado de evidências. Apesar dos diferentes interesses, as CPs abrem oportunidades para deliberação democrática da sociedade na busca do entendimento, onde se espera que o Estado escolha a melhor decisão e a justifique. Dessa forma, delimita-se o papel das evidências a esclarecer questões complexas em um espaço em que o dissenso, visto como caminho para a democratização da sociedade, é importante para revelar as limitações das evidências científicas em um ambiente de assimetria de informações. Por fim, espera-se refutar a tecnocracia como instrumento de poder na regulação sanitária e assim alcançar o maior potencial democrático da regulamentação da Anvisa.

Palavras-chave:
Participação social; Vigilância sanitária; Órgãos governamentais; Regulamentação governamental; Democracia

Introdução

O princípio constitucional da participação popular na gestão pública pavimentou a articulação entre Estado e sociedade na formulação de políticas, assim o Brasil se transformou em um país democrático e com diversidade de práticas participativas11 Avritzer L. Participatory institutions in democratic Brazil. Washington, D.C./Baltimore: Woodrow Wilson Center/Johns Hopkins University; 2009.. Entretanto, Koga et al.22 Koga NM, Palotti PLM, Couto BG, Nascimento MIB, Lins RS. O que informa as políticas públicas: "survey" sobre o uso e o não uso de evidências pela burocracia federal brasileira. Brasília: Ipea; 2020. observaram que 45% dos gestores públicos federais nunca se relacionaram com beneficiários. Segundo especialistas em regulamentação, ao privilegiar as evidências científicas, indica-se a racionalidade técnica das normas propostas33 Koga NM, Palotti PLM, Mello J, Pinheiro MMS. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Ipea; 2022.. Por um lado, a racionalidade instrumental apresenta limitações, além disso, é possível que as evidências científicas sejam enviesadas para deslocar a discussão do tema da saúde para aspectos econômicos44 Lencucha R, Pontes CL. The context and quality of evidence used by tobacco interests to oppose ANVISA's 2012 regulations in Brazil. Glob Public Health 2017; 13(9):1204-1215..

Por outro lado, os problemas sociais na área da saúde, que são motivadores para desenvolvimento de regulamentações, podem sempre ser reformulados em termos morais, com potenciais prejuízos à legitimidade e aos objetivos de prevenir, reduzir e eliminar os riscos à população55 Roth AL, Dunsby J, Bero LA. Framing processes in public commentary on US federal tobacco control regulation. Soc Stud Sci 2003; 33(1):7-44.. No Brasil, por exemplo, a influência da movimentação popular levou os poderes Judiciário e Legislativo a respaldarem o uso de fosfoetanolamina em 2016 para garantir o acesso a um medicamento sem eficácia, segurança e qualidade comprovadas66 Silva JAA, Costa EA, Lucchese G. SUS 30 anos: Vigilância Sanitária. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1953-1961.. Outros exemplos da articulação social via poderes Judicial e Legislativo, seja por interesses econômicos, seja por grupos de pacientes, são encontradas nas decisões da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) quanto à proibição do uso de substâncias aromatizantes em cigarros em 2012 e medicamentos anorexígenos em 201166 Silva JAA, Costa EA, Lucchese G. SUS 30 anos: Vigilância Sanitária. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1953-1961.. Assim, apesar de a participação social legitimar o processo de decisão da Agência77 Alves SMC. Processo de participação da sociedade civil nas consultas públicas realizadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2008., tais exemplos44 Lencucha R, Pontes CL. The context and quality of evidence used by tobacco interests to oppose ANVISA's 2012 regulations in Brazil. Glob Public Health 2017; 13(9):1204-1215.

5 Roth AL, Dunsby J, Bero LA. Framing processes in public commentary on US federal tobacco control regulation. Soc Stud Sci 2003; 33(1):7-44.
-66 Silva JAA, Costa EA, Lucchese G. SUS 30 anos: Vigilância Sanitária. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1953-1961. demonstram os riscos à saúde que a sociedade pode se colocar, baseada em informações indevidas ou por interesses contrários à saúde da coletividade. Nesse contexto, as evidências científicas são um contraponto importante.

Além da informação, existem questões relacionadas à comunicação, pois mediadores (profissionais e técnicos) que trabalham com a participação popular têm limitações para interpretar o conteúdo e o valor da fala popular. Possivelmente, a formação escolarizada dos interlocutores impede que a cultura popular seja entendida como um conhecimento acumulado e sistematizado da realidade88 Valla VV. Sobre participação popular: uma questão de perspectiva. Cad Saude Publica 1998; 14(Supl. 2):7-18., e consequentemente desconsideram a população como sujeito estratégico da ação pública em saúde.

Com a ampliação dos espaços democráticos, impulsionados pela Constituição Federal de 198899 Brasil. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out., e com a instituição da participação da comunidade como diretriz do Sistema Único de Saúde (SUS), pergunta-se como a fala popular, com seus saberes e todo o conjunto de conhecimento, pode ser sistematicamente considerado na decisão da coisa pública, em conjunto com as evidências científicas. Na tentativa de levantar possibilidades, este artigo apresenta alguns dos desafios para a democratização da regulamentação sanitária por meio das consultas públicas (CPs) da Anvisa. Além disso, buscam-se pistas para integrar os tipos de saberes ao processo de regulamentação sanitária, discutindo as CPs como um lócus potencial de influência da decisão pública, onde é necessário um processo discursivo democrático para que outras racionalidades possam também ser consideradas evidências para a decisão final.

Para sustentar esse raciocínio, além da introdução e considerações finais, o debate teórico é dividido em três partes: na primeira será caracterizado o que se entende por participação social. Na segunda parte, serão apresentadas as CPs como mecanismo de participação social mais frequente da Anvisa, exemplificando alguns casos estudados pela academia. Por fim, será debatido como um modelo moderado de evidências pode ser uma saída para integrar diferentes formas de conhecimento, englobando evidências científicas, híbridas (construída durante a interrelação fecunda entre os diferentes atores sociais no processo de participação)1010 Fonseca IF, Koga NM, Pompeu JCM, Avelino DP. Instituições participativas e evidências híbridas: deliberação, relações fecundas e ecologia de saberes. In: Koga NM, Palotti PLM, Mello J, Pinheiro MMS, organizadores. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Ipea; 2022. p. 223-250. e coloquiais (empíricas, de opiniões e pontos de vista de especialistas, da população, além de outros dados e relatórios)1111 Sharma T, Choudhury M, Kaur B, Naidoo B, Garner S, Littlejohns P, Staniszewska S. Evidence informed decision making: the use of "Colloquial Evidence" at NICE. Int J Technol Assess Health Care 2015; 31(3):138-146..

Polissemia e contextualização da participação social

A participação social é um termo polissêmico, contextualizado na história e em diferentes áreas do conhecimento. Nas ciências sociais, o termo participação é usado em dois sentidos: o primeiro se relaciona ao grau de integração de um indivíduo a um grupo; o segundo está ligado ao valor pelo qual se avaliam organizações de natureza social, econômica, política, relacionada à democratização1212 Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Dicionário da educação profissional em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2009.

13 Gohn MG. Teorias sobre participação social: desafios para a compreensão das desigualdades sociais. Caderno CRH 2019; 32(85):63-81.
-1414 Silva B, Miranda Netto, AC, organizadores. Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: FGV; 1987..

O termo participação, nas décadas de 1950 a 1970, era associado à inclusão de “marginalizados” de uma sociedade de consumo capitalista, dada a situação de pobreza, ignorância e passividade, uma concepção de culpabilização do indivíduo por sua condição que desconsidera as desigualdades sociais estruturais. “Participação” também era vinculada a mutirões de ações sociais para construções de casas, escolas e outras estruturas precariamente providas pelo Estado. Derivados dessa visão de ação social, o associativismo ou o comunitarismo também são entendidos como formas de participação nas quais a população planeja suas decisões com pequeno financiamento do Estado, sem aumentar a participação da sociedade na divisão da riqueza produzida88 Valla VV. Sobre participação popular: uma questão de perspectiva. Cad Saude Publica 1998; 14(Supl. 2):7-18.,1515 Gohn MG. Movimentos sociais na contemporaneidade. Rev Bras Educ 2011; 16(47):333-362.,1616 Valla VV, Stotz EM, organizadores. Participação popular e saúde. Petrópolis: Editora Gráfica Serrana; 1989..

O termo participar também está associado à ideia de tornar o povo ator da sua própria história e dos seus próprios interesses. Nessa vertente, é usado como um recurso para pautar demandas distributivas e de acesso a serviços e direitos por camadas populares, inscrevendo-se na construção de uma sociedade sem exploração1717 Lavalle AG. Participação: valor, utilidade, efeitos e causa. In: Pires RR, organizador Efetividade nas instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: Ipea; 2011..

Nos anos 1970, passa a ser teorizada no campo das ciências sociais o sentido de participação popular da sociedade civil, em contraposição aos regimes político-militares latino-americanos1818 Gohn MG. Conselhos Gestores e participação sociopolítica. São Paulo: Cortez; 2011.. Essa visão se diferencia das anteriores, pois se referre às classes sociais populares e carrega consigo a concepção mais ampla do que o movimento sindical ou a política partidária. Assim, participação popular não se trata de atuação política de entidades representativas da sociedade civil na estrutura estatal88 Valla VV. Sobre participação popular: uma questão de perspectiva. Cad Saude Publica 1998; 14(Supl. 2):7-18.,1616 Valla VV, Stotz EM, organizadores. Participação popular e saúde. Petrópolis: Editora Gráfica Serrana; 1989., mas de ações coletivas de caráter sociopolítico e cultural organizadas para expressar e reivindicar demandas por diferentes estratégias de pressão1515 Gohn MG. Movimentos sociais na contemporaneidade. Rev Bras Educ 2011; 16(47):333-362.. No Brasil dos anos 1980, de recessão econômica, efervescência dos movimentos sociais e redemocratização política, atores engajados com a participação popular passaram a reelaborar seu discurso, incorporando a acepção cidadã1717 Lavalle AG. Participação: valor, utilidade, efeitos e causa. In: Pires RR, organizador Efetividade nas instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: Ipea; 2011.,1919 Costa AM, Vieira NA. Participação e controle social em saúde. In: Fundação Oswaldo Cruz, organizadora. A saúde no Brasil em 2030 - prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: organização e gestão do sistema de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República; 2013..

No campo da saúde coletiva, a Reforma Sanitária vincula o termo participação ao exercício da cidadania, como forma de realização democrática para além do modelo representativo tradicional. Assim, a sociedade brasileira, em sua diversidade de expressões, é convocada a participar da tomada de decisão como mobilizadora da redemocratização do Estado1717 Lavalle AG. Participação: valor, utilidade, efeitos e causa. In: Pires RR, organizador Efetividade nas instituições participativas no Brasil: estratégias de avaliação. Brasília: Ipea; 2011.,1919 Costa AM, Vieira NA. Participação e controle social em saúde. In: Fundação Oswaldo Cruz, organizadora. A saúde no Brasil em 2030 - prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: organização e gestão do sistema de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República; 2013.. Entretanto, para a prática da cidadania, é fundamental a criação de linguagem acessível e não excludente nos espaços participativos, além do desenvolvimento de meios de comunicação democráticos1818 Gohn MG. Conselhos Gestores e participação sociopolítica. São Paulo: Cortez; 2011..

Segundo Paim, a Reforma Sanitária configura a participação social como um conjunto de intervenções de diversas forças sociais para influenciar a formulação, a execução e a avaliação das políticas sanitárias. Uma reforma constituída por três elementos: democratização da saúde (a elevação da consciência sobre saúde e o reconhecimento como direito); democratização do Estado (assegurando a descentralização do processo decisório, o controle social e a transparência); e democratização da sociedade (alcançando os espaços da organização socioeconômica e da cultura, em torno de um conjunto de políticas e práticas)2020 Paim JS. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador/Rio de Janeiro: EdUFBA/Fiocruz; 2008..

Cavalcanti et al.2121 Cavalcanti MLT, Cabral MHP, Antunes LR. Participação em saúde: uma sistematização de artigos publicados em periódicos brasileiros - 1988/2005. Cien Saude Colet 2012; 17(7):1813-1823., ao revisarem estudos sobre participação no campo da saúde coletiva, identificaram três dimensões do sentido do engajamento: 1) estratégia de ampliação da cidadania e do reconhecimento do direito à saúde; 2) estratégia de democratização do Estado e fortalecimento do sistema de saúde, envolvendo a sociedade nas decisões políticas, gerenciais e fiscalizadoras; e 3) a participação comunitária, em que os indivíduos e as famílias dividem com o Estado a responsabilidade em saúde. Em especial, os estudos com o viés de democratização do Estado caracterizaram a participação como um elemento da “boa” governança, um meio para legitimar as decisões públicas frente às formas tradicionais de representação de interesses nas democracias liberais.

Apesar de a participação social ter sido vinculada a um projeto político democratizante, alinha-se também ao projeto neoliberal que busca garantir o Estado mínimo1919 Costa AM, Vieira NA. Participação e controle social em saúde. In: Fundação Oswaldo Cruz, organizadora. A saúde no Brasil em 2030 - prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: organização e gestão do sistema de saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz/Ipea/Ministério da Saúde/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República; 2013.. A reforma administrativa na década de 1990 no Brasil (ou a contrarreforma do Estado), calcada na ideia de ineficiência do poder público para resolver os problemas sociais, fundamentou seu projeto no trinômio do ideário neoliberal: privatização, focalização e descentralização, o que possibilitou a transferência de ações estatais para a sociedade civil2222 Paula APP, Palassi MP, Zanon RS. Políticas públicas, neoliberalismo e participação social. CGPC 2021; 26(85):1-18.,2323 Coutinho CN. Contracorrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez; 2008.. Diante de problemas relacionados à baixa eficiência, produtividade e qualidade dos serviços públicos, propostas gerencialistas começaram a ser aplicadas no setor público. Por outro lado, a reforma trouxe valores como accountability, transparência, participação e equidade na coisa pública2424 Pinto ICM. Reforma gerencialista e mudança na gestão do sistema nacional de vigilância sanitária. In: Costa EA, organizadora. Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EdUFBA; 2009. p. 171-194..

Nessa vertente, a participação social é apresentada como inovação na administração pública, para legitimara atuação das Agências Reguladoras, e superar o déficit democrático inerente ao exercício da função normativa pelo poder Executivo. Consequentemente, as CPs são estruturadas como um mecanismo de participação social no processo de regulamentação77 Alves SMC. Processo de participação da sociedade civil nas consultas públicas realizadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2008., com o discurso da necessidade de garantir eficácia dos resultados em função da democratização do processo e para atender aos interesses capitalistas2525 Tagatiba L. Os conselhos gestores e democratização das políticas públicas no Brasil. In: Dagnino E, organizadora. Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra; 2002. p. 47-104..

No exercício da partilha de poder, as experiências com participação social podem ser conflituosas. Nessa disputa, um dos obstáculos à efetiva participação social é a exigência de qualificação técnica e política, que um cidadão leigo por vezes não a tem2626 Dagnino E. Sociedade civil, espaços públicos e a construção democrática no Brasil: Limites e possibilidades. In: Dagnino E, organizadora. Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra; 2002. p. 279-301.. Logo, apesar dos avanços democráticos na saúde pública, devido à capacidade técnica dos mediadores, valoriza-se um certo “perfil”, composto por um conjunto de habilidades para o exercício deliberativo, como capacidade argumentativa e conhecimento especializado sobre a política de saúde2727 Paiva FS, Stralen CJV, Costa PHA. Participação social e saúde no Brasil: revisão sistemática sobre o tema. Cien Saude Colet 2014; 19(2):487-498., e assim a tecnocracia é caracterizada como um instrumento de poder nas relações com o Estado.

Diante das diferentes concepções e da necessidade de democratização do Estado, define-se participação social como diversas ações da sociedade que ocorrem para influenciar a formulação, execução, fiscalização e avaliação de políticas públicas, com o objetivo de a coletividade atuar no processo de tomada de decisão como direito à reflexão sobre as condições de saúde e à proposição de alternativas para solução de seus problemas, com a valorização dos saberes técnico-científico e popular, e, em última instância, como exercício de cidadania e democracia.

Consultas públicas da Anvisa: evolução e caminhos para democratização do processo de regulamentação sanitária

A expressão vigilância sanitária é própria do Brasil, mas suas atividades são globais, definida constitucionalmente como uma das vertentes do SUS, compreendendo um conjunto de ações capazes de eliminar, diminuir ou prevenir riscos sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde99 Brasil. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União 1988; 5 out.. Para tanto, as atividades de vigilância sanitária são resumidas em três grupos: 1) ação regulatória sobre produtos e insumos terapêuticos de interesse para a saúde; 2) ação normativa e fiscalizatória sobre os serviços prestados; e 3) permanente avaliação e prevenção do risco à saúde2828 Lucchese G. Globalização e regulação sanitária: os rumos da vigilância sanitária no Brasil:os rumos da vigilância sanitária [tese]. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 2001..

Os objetos de regulação sanitária são numerosos e abarcam medicamentos, alimentos, cosméticos, saneantes, derivados do tabaco, produtos e equipamentos médicos, reagentes para diagnóstico, agrotóxicos, sangue e seus derivados, órgãos e tecidos humanos para transplante, incluindo os ambientes, insumos, processos e tecnologias relacionados a esses produtos. Também exerce controle sobre serviços de saúde, laboratórios de saúde pública, portos, aeroportos e fronteiras2929 Piovesan MF, Labra ME. Institutional change and political decision-making in the creation of the Brazilian National Health Surveillance Agency. Cad Saude Publica 2007; 23(6):1373-1382.. A Anvisa é uma autarquia especial que tem como finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por meio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras. Devido à sua natureza de ação, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística estimou que 22,7% do produto interno bruto da economia brasileira em 2014 eram compostos por atividades reguladas pela Anvisa3030 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Participação das atividades reguladas pela Anvisa na economia brasileira. Brasília: IBGE; 2018., demonstrando sua relevância econômica e o quanto a Agência está inserida em um espaço de disputa de interesses econômicos.

Silva et al.66 Silva JAA, Costa EA, Lucchese G. SUS 30 anos: Vigilância Sanitária. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1953-1961. relataram as diversas controvérsias em reação ao exercício da Anvisa na sua função regulatória, apresentadas tanto por setores empresariais como por cidadãos com forte poder de pressão nos poderes Executivo e Judiciário que divergiram das decisões da autoridade sanitária66 Silva JAA, Costa EA, Lucchese G. SUS 30 anos: Vigilância Sanitária. Cien Saude Colet 2018; 23(6):1953-1961., demonstrando como a esfera pública representa o espaço de pressão para influenciar as decisões do Estado na totalidade. A maioria de tais ações de disputa se relacionaram aos regulamentos da Agência.

A falta de padronização dos procedimentos de regulamentação já era discutida na Anvisa desde a sua origem. Entretanto, impulsionado pelo Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (PRO-REG) do governo federal, a Anvisa realizou em 2007 um diagnóstico para identificar os problemas relacionados à normatização. Tal avaliação apontou uma série de necessidades, entre elas: uniformizar o processo de regulamentação, promover a transparência e aprimorar os mecanismos de participação da sociedade no processo regulatório3131 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Boas práticas regulatórias: guia para o programa de melhoria do processo de regulamentação da Anvisa. Brasília: Anvisa; 2008.,3232 Silva GHT. Performance regulatória: uma análise do Programa de Melhoria do Processo de Regulamentação da Anvisa no contexto da atual Agenda de Reforma Regulatória no Brasil [dissertação]. Brasília: Fundação Oswaldo Cruz; 2013..

Outra avaliação, feita pelo Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), detectou a necessidade de conceder mais espaço para a participação institucionalizada dos consumidores e da sociedade em geral. O IDEC entendeu que a falta de diversidade permite que as instituições ajam de forma ensimesmada, desconsiderem aspectos importantes para a sociedade e fiquem mais sujeitas à assimetria de informações a favor dos entes regulados3131 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Boas práticas regulatórias: guia para o programa de melhoria do processo de regulamentação da Anvisa. Brasília: Anvisa; 2008.,3232 Silva GHT. Performance regulatória: uma análise do Programa de Melhoria do Processo de Regulamentação da Anvisa no contexto da atual Agenda de Reforma Regulatória no Brasil [dissertação]. Brasília: Fundação Oswaldo Cruz; 2013..

Decorrente dos citados processos de avaliação, foi formulado o plano de ação para enfrentamento dos problemas identificados, desdobrado no Programa de Melhoria do Processo de Regulamentação da Anvisa (PMR) em 2008. Tal programa definiu como diretriz o fortalecimento da transparência e do controle social no processo de regulamentação. Além disso, padronizou os processos de regulamentação, entre eles a realização de CPs, com a publicação do Guia de Boas Práticas Regulatórias3131 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Boas práticas regulatórias: guia para o programa de melhoria do processo de regulamentação da Anvisa. Brasília: Anvisa; 2008.,3232 Silva GHT. Performance regulatória: uma análise do Programa de Melhoria do Processo de Regulamentação da Anvisa no contexto da atual Agenda de Reforma Regulatória no Brasil [dissertação]. Brasília: Fundação Oswaldo Cruz; 2013.. Após anos de experiência, em 2018 e em 2021, a Anvisa atualizou o PMR com diretrizes e procedimentos para melhoria da qualidade regulatória. Entre os objetivos, destacam-se fortalecer a análise de impacto regulatório e desenvolver normas e recomendações baseadas em evidências e de maneira mais participativa desde o começo da discussão3333 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Portaria nº 1.741, de 12 de dezembro de 2018. Dispõe sobre as diretrizes e os procedimentos para melhoria da qualidade regulatória na Anvisa. Diário Oficial da União 2019; 14 dez.,3434 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Portaria nº 162, de 12 de março de 2021. Dispõe sobre as diretrizes e os procedimentos para melhoria da qualidade regulatória na Anvisa. Diário Oficial da União 2021; 15 mar..

De 2008 em diante, a diversificação das formas de participação social da Anvisa se intensificaram, e para as tornar mais claras apara cidadãos, servidores e gestores da Agência, em janeiro de 2019 foi lançado o Cardápio de Participação Social (Figura 1). Um documento que descreve resumidamente os diferentes mecanismos que podem ser utilizados na interação com a sociedade durante o processo regulatório3535 Rabelo TMF, de Assis RRL, Caldeira TR, dos Reis MC, Cerutti JPP, Sousa FM, Coutinho RL, Troncoso GCBCC, Dantas GB. Cardápio de participação social: mecanismos de interação com a sociedade na construção regulatória da Anvisa. In: Anais do 8º Simpósio de Vigilância Sanitária. Belo Horizonte; 2019.,3636 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Cardápio de participação social em regulação. Brasília; 2021..

Figura 1
Cardápio de Participação Social na regulação sanitária da Anvisa3636 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Cardápio de participação social em regulação. Brasília; 2021..

Entre os diferentes mecanismos de participação dispostos no referido cardápio, a partir da pesquisa documental no sítio eletrônico da Anvisa (realizada em 9/8/2022), observa-se que as CPs são aplicadas com maior frequência no processo de regulamentação em relação aos demais. Segundo a Agência, a CP é um mecanismo de apoio à tomada de decisão, não vinculante, em que a sociedade é consultada previamente sobre uma proposta de norma para melhorar a qualidade da análise que orientará a decisão3636 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Cardápio de participação social em regulação. Brasília; 2021.,3737 Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mecanismos de participação social na regulação. Brasília: Anvisa; 2021., no entanto, nem sempre foi essa a realidade da regulamentação sanitária.

A ação normativa em vigilância sanitária existente na esfera federal antes da Anvisa era exercida por secretarias vinculadas ao Ministério da Saúde. Entretanto, não há registros públicos de realização de CPs por tais secretarias (conforme levantamento realizado em 10/8/2022 na base Saúde Legis - disponível em: http://saudelegis.saude.gov.br/saudelegis/secure/norma/listPublic.xhtml - com as palavras-chave (COP) Consultas Públicas, SNVS e SVS, para o período de 1/1/1989 a 30/12/1998). Assim, a instituição das CPs, a ampliação de sua publicidade e transparência, além de permitir a democratização do Estado e legitimar as decisões, abriu um campo de estudo para analisar as dinâmicas sociais travadas nessa arena de disputa de poder, o que permitiu à comunidade científica a avaliação de alguns casos.

Em análise do processo de CP da Agência sobre regulação de propaganda de medicamentos (CP nº 84/2005) dois estudos3838 Nascimento AC, De Paula FA. Controle social e regulação da propaganda de medicamentos: Consulta Pública sobre propaganda de medicamentos expõe fragilidades do processo de participação social da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). RECIIS 2010; 4(4):62-71.,3939 Lucena RCB. Novas regras e velhos desafios na regulação da propaganda de medicamentos. Physis 2012; 22(2):701-712. relatam ausência de transparência, justificativa e clareza da análise das contribuições em resposta à sociedade para expor os motivos de exclusão das contribuições de associações de defesa do consumidor e saúde coletiva. Já no caso da regulamentação de publicidade de alimentos, o estudo sobre o lobby das indústrias demonstrou a diferença que existe quando há poderes de organização e financeiro de entes regulados. Durante a CP nº 71/2006, uma parte de grupos empresariais apresentou uma série de pareceres, uma contra-argumentação durante a elaboração da minuta do regulamento, questionando inclusive a constitucionalidade da proposta de norma, que logrou êxito no poder Judiciário ao suspender os efeitos da norma publicada naquela época. O assunto despertou o interesse de um grupo variado, pois do total de participantes na CP nº 71//2006, cerca de 32% eram do setor regulado, 29% de pessoas físicas (cidadãos) e 25% de representantes da sociedade organizada, de instituições governamentais e de ensino, mostrando-se um dispositivo relevante de participação para diversos grupos4040 Baird MF. O lobby na regulação da publicidade de alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Rev Sociol Polit 2016; 24(57):67-91..

No recorte de CPs realizadas entre 2000 e 2006 na área de serviços de saúde, Alves77 Alves SMC. Processo de participação da sociedade civil nas consultas públicas realizadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2008. demonstra que diversos segmentos da sociedade civil participaram em maior ou menor grau e que, além daqueles setores organizados em torno de ideais econômicos, existe envolvimento de cidadãos e ONGs de defesa de interesses coletivos. Além disso, a autora destaca a completa ausência de ONGs de defesa do consumidor, confirmando a avaliação do IDEC3030 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Participação das atividades reguladas pela Anvisa na economia brasileira. Brasília: IBGE; 2018.. No que diz respeito à influência, a autora77 Alves SMC. Processo de participação da sociedade civil nas consultas públicas realizadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária [dissertação]. Brasília: Universidade de Brasília; 2008. observou que as empresas de consultoria têm maior sucesso na incorporação de sugestões na proposta de norma, seguidas pelas pessoas físicas e empresas privadas sujeitas à regulação sanitária. Naquele período, a autora sinalizou alguns obstáculos à participação, entre eles a divulgação restrita aos meios oficiais ou à internet; ausência de divulgação dos motivos que embasaram a decisão; demora na conclusão das consultas em normas; e falta de transparência quanto aos resultados da consulta.

Os estudos sobre os casos de CP citados se referiram a casos anteriores ao PMR. Tal programa iniciou a padronização dos procedimentos de CPs, implicando algumas obrigações, entre elas a publicidade da análise das contribuições.

Outro estudo aponta como as CPs podem ser usadas como instrumento de influência na tomada de decisão a partir do uso estratégico de evidências científicas. Lencucha e Pontes44 Lencucha R, Pontes CL. The context and quality of evidence used by tobacco interests to oppose ANVISA's 2012 regulations in Brazil. Glob Public Health 2017; 13(9):1204-1215. analisaram o documento apresentado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em defesa do uso de aditivos nos cigarros, um relatório dirigido à Anvisa durante as CPs realizadas em 2010. Os autores concluíram que a informação científica foi utilizada como ferramenta retórica e estratégica para criar incerteza e dúvida. Tal tática é classificada como reframing (reenquadramento) dos dados e compreende a manipulação de informações para desviar o tema da saúde para alguma outra preocupação, como economia ou emprego.

A avaliação do relatório da FGV pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) concluiu que ele se apoiou em estudos não confiáveis gerados com financiamento da indústria de tabaco. Além disso, apontou que a FGV usou declarações malversadas de fontes reputadas, e que suas conclusões são baseadas em hipóteses sem apresentação dos métodos e materiais utilizados4141 Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Análise do "Estudo dos Efeitos Socioeconômicos da Regulamentação, pela ANVISA, dos Assuntos de que tratam as Consultas Públicas nº 112 e 117, de 2010", assinado pela Fundação Getúlio Vargas. OPAS; 2010.. Tal fundamentação corroborou a decisão da Agência pela proibição do uso de aditivos com sabor, ervas, frutas e outras substâncias usadas para mascarar o gosto e o aroma desagradáveis44 Lencucha R, Pontes CL. The context and quality of evidence used by tobacco interests to oppose ANVISA's 2012 regulations in Brazil. Glob Public Health 2017; 13(9):1204-1215..

Outro estudo4242 Saab F, Bermejo PHdS, Garcia GC, Pereira JS, Silva SdAM. Does public consultation encourage social participation? J Enter Inform Management 2018; 31(5):796-814. teve como objeto as CPs nº 42/2015 (boas práticas de fabricação de embalagens para alimentos), nº 255/2016 (declaração obrigatória da presença de lactose nos rótulos dos alimentos) e nº 256/2016 (regulamento técnico referente a alimentos para dietas com restrição de lactose). Tal pesquisa analisou, com base na teoria cultural douglasiana, em que medida a CP incentiva a participação de pessoas com diferentes pontos de vista. Segundo tal referencial teórico, a cultura torna-se o aspecto central na explicação da vida social, pois as pessoas compartilham valores e crenças - suas “orientações culturais” - que determinam tanto seu modo de vida quanto suas interações sociais. A partir dessa estrutura, o discurso pode ser avaliado em uma matriz com dois eixos: o comportamento (se o indivíduo é limitado por regras ou se seu próprio comportamento pode ser negociado) e a identidade (se o indivíduo pertence a uma unidade ou pode formar sua própria identidade social). O cruzamento dessas dimensões leva a quatro tipos de vozes que permitem analisar como umas podem tentar persuadir outras com argumentos. Concluíram que a participação social é desigual, pois alguns pontos de vista são dominantes na decisão final, e isso indica a necessidade de promoção de um engajamento público mais inclusivo e pluralista.

Por conseguinte, o discurso no processo das CPs importa para a regulação, e tal fala se baseia em diferentes fontes de legitimidade, em que ciência e orientação cultural podem influenciar a decisão final. Uma participação ampla o suficiente permitirá, em tese, que diferentes tipos de entendimentos, advindos de diversas esferas públicas, sejam colocados em debate. Cabe, portanto, à Agência, além de se utilizar de técnicas de análise crítica de evidências, desenvolver estratégias e ações para obter as diferentes perspectivas (vozes) sobre o problema em questão e as considerar na decisão final.

Vislumbra-se, como um dos caminhos para um processo de regulamentação democrático, a disposição de mecanismos participativos como espaços de debates pautados na racionalidade comunicativa habermasiana, ou seja, locais para empreender discussões para escolha do melhor argumento em um processo discursivo livre e igualitário. Lugares de engajamento social para o exercício do agir comunicativo, em que os participantes interagem com o objetivo de entender o problema e as propostas de superação em debate; um lócus onde os discursos (com sua variedade de contribuições) atendam a condições de compreensibilidade, verdade, veracidade e justeza (legitimidade)4343 Habermas J. Facticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva do direito e da democracia. São Paulo: Editora Unesp; 2020.

44 Pinzani A. Habermas. Porto Alegre: Artmed; 2009.
-4545 Reese-Schäfer W. Compreender Habermas. Petrópolis: Editora Vozes; 2017.; em que a desinformação ou o reenquadramento das evidências científicas para interesses contrários à saúde (caracterizada como agir estratégico) não tenha lugar na decisão final.

Nesses espaços de engajamento social, para garantir a participação democrática, deve-se atentar ao protagonismo de especialistas, pois dificilmente o cidadão comum terá voz nas suas diferentes expressões. Portanto, defende-se a democracia em oposição à tecnocracia, um sistema ao qual são convocados para decidir apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos específicos4646 Young IM. Desafios ativistas à democracia deliberativa. Rev Bras Cienc Polit 2014; 13:87-212.,4747 Bobbio N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1986.. Entende-se que a tecnocracia na regulação sanitária fere os princípios e diretrizes do SUS, em especial a equidade e a participação comunitária.

Apesar das dificuldades apresentadas, entende-se que as CPs abrem oportunidades de participação para argumentação de quaisquer interessados, como um meio de interação social na busca do melhor entendimento, pelo discurso (escrito), em que se espera do Estado a tomada da melhor decisão e a justificativa de sua escolha de maneira clara, transparente e acessível. Assim, para que as CPs, como parte de um processo decisório baseado em evidências, configurem o caráter democrático da regulamentação, a Agência deve procurar formas de tratar de maneira equânime a diversidade de manifestações (incluindo crenças, valores e saberes), observando-as como evidências em um sentido amplo.

Democratização do processo de regulamentação: diversidade do discurso e modelo moderado de evidências

Segundo Bobbio4747 Bobbio N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1986., a democracia é caracterizada pelo dissenso, mas também pelo consenso da maioria, que em um sistema no qual o dissenso é livre para se manifestar, o consenso é real. O autor concluiu, portanto, que a liberdade de discordar é necessária em uma sociedade pluralista, com uma maior distribuição do poder, abrindo as portas para a democratização da sociedade civil.

Não obstante, se o dissenso é o caminho para democratização da sociedade, a participação social na regulamentação sanitária precisa ser diversa; as múltiplas vozes necessitam ser tratadas devidamente como diferentes fontes de evidências para a decisão final. Essa ideia rompe com o modelo hegemônico de uso de evidências, constituindo um modelo moderado.

O modelo moderado de evidências é discutido por Pinheiro4848 Pinheiro MMS. Políticas públicas baseadas em evidências: um modelo moderado de análise conceitual e avaliação crítica. In: Koga NM, Palotti PLM, Mello J, Pinheiro MMS, organizadores. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Ipea; 2022. p. 58-84., que critica as abordagens restritas a uma racionalidade instrumental e defende o uso das evidências após análise de determinado contexto do caso. Esse modelo moderado compreende a realidade social e as condições de decisão pública como situações multifacetadas, por conseguinte, deve ser capaz de abrigar e conciliar a diversidade de evidências em diferentes áreas. O caráter moderado do modelo dá abertura à pluralidade e à diversidade, atento aos limites do conhecimento e das realidades de ação, que requer o uso de métodos específicos para a produção de evidências para as decisões de políticas públicas alinhadas a seus objetos.

Segundo o pesquisador4848 Pinheiro MMS. Políticas públicas baseadas em evidências: um modelo moderado de análise conceitual e avaliação crítica. In: Koga NM, Palotti PLM, Mello J, Pinheiro MMS, organizadores. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Ipea; 2022. p. 58-84., para que crenças, valores e saberes apoiem as decisões públicas, é necessário algum trabalho de base (conceitual, metodológico e teórico) previamente desenvolvido, demonstrando a correlação entre aqueles outros tipos de evidências e as conclusões teóricas. Isso permite que tais aspectos mais “subjetivos” possam ser submetidos ao escrutínio crítico-racional e inseridos em um pano de fundo coerente e centralizado por um arcabouço conceitual, metodológico e teórico4848 Pinheiro MMS. Políticas públicas baseadas em evidências: um modelo moderado de análise conceitual e avaliação crítica. In: Koga NM, Palotti PLM, Mello J, Pinheiro MMS, organizadores. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Ipea; 2022. p. 58-84.. Diminuem-se, portanto, os riscos dos efeitos deletérios do uso de informações malversadas.

A tecnocracia por vezes se faz em prejuízo ao uso de informações coletadas de diversos atores sociais - principalmente os cidadãos e demais sujeitos-estratégicos das políticas -, contribuições consideradas de qualidade inferior. Tal prejulgamento gera impactos negativos à legitimidade das políticas públicas em um regime democrático. Em um modelo moderado, o papel das evidências é esclarecer os problemas complexos, clarificar as questões e informar um debate público mais amplo, além de desvincular a ideia de um instrumento neutro de informações para a tomada de decisões4848 Pinheiro MMS. Políticas públicas baseadas em evidências: um modelo moderado de análise conceitual e avaliação crítica. In: Koga NM, Palotti PLM, Mello J, Pinheiro MMS, organizadores. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Ipea; 2022. p. 58-84.. É ardiloso compreender a evidência científica como completa, pois, apesar da sua relevância, tem limitações, entre elas problemas de validade externa que impactam nos resultados alcançados em saúde, por exemplo.

Assim, ao reconhecer as limitações das evidências científicas para decisão pública, a evidência coloquial surge como uma possibilidade de complemento (aumentando o cenário de evidências) ou de contestação das evidências científicas. Trata-se, portanto, de um termo abrangente que reúne diferentes tipos de dados, incluindo opinião de especialistas informais, de médicos e/ou pacientes, seus pontos de vista e narrativas, dados eletrônicos, documentos de políticas e outros relatórios etc. No Reino Unido, o processo de incorporação de tecnologias em saúde considera os insumos dos processos deliberativos de conselhos consultivos, compostos por profissionais da saúde e pacientes1111 Sharma T, Choudhury M, Kaur B, Naidoo B, Garner S, Littlejohns P, Staniszewska S. Evidence informed decision making: the use of "Colloquial Evidence" at NICE. Int J Technol Assess Health Care 2015; 31(3):138-146..

A perspectiva de evidência coloquial dialoga com o conceito de “evidências híbridas”1010 Fonseca IF, Koga NM, Pompeu JCM, Avelino DP. Instituições participativas e evidências híbridas: deliberação, relações fecundas e ecologia de saberes. In: Koga NM, Palotti PLM, Mello J, Pinheiro MMS, organizadores. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Ipea; 2022. p. 223-250., que no campo das políticas públicas considera aspectos como linguagem, argumentação, representações, ideias e significados para entender os processos de produção de políticas públicas e seus efeitos, construídos a partir da interrelação de atores sociais em mecanismos e instituições de participação social. “Evidências híbridas” são definidas por Fonseca et al.1010 Fonseca IF, Koga NM, Pompeu JCM, Avelino DP. Instituições participativas e evidências híbridas: deliberação, relações fecundas e ecologia de saberes. In: Koga NM, Palotti PLM, Mello J, Pinheiro MMS, organizadores. Políticas públicas e usos de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Ipea; 2022. p. 223-250. como conhecimentos que surgem das relações fecundas entre distintos atores nos espaços de participação social, suas formas vão além do conhecimento técnico, científico ou burocrático. Tais evidências podem gerar soluções baseadas na diferença, e não na tentativa de uniformização de linguagens em direção ao consenso. Para tanto, é necessário que os técnicos se abram ao “saber do cidadão comum”.

Isso posto, para que os mecanismos de participação social sejam democráticos e com espaço para tratamento equânime dos diversos discursos, entende-se que a aplicação do modelo moderado de evidências no processo de regulamentação promoverá espaços de participação favoráveis para gerar evidências híbridas, abertos ao uso de evidências coloquiais, aliadas às evidências científicas, como um conjunto de insumos para a melhor tomada de decisão.

Perspectivas e considerações finais

As CPs da Anvisa se configuraram como um importante mecanismo de participação social, em que a sociedade, na sua diversidade de expressão, pode influenciar a regulação sanitária. Uma forma de participação que ganhou força pelo processo de democratização do Estado e pela contrarreforma dele.

Ao longo dos anos de existência da Anvisa, as CPs se consolidaram como o mais frequente mecanismo de participação na regulamentação sanitária, passando por processos de padronização e melhoria na transparência das decisões. Apesar das desigualdades estruturais sociais, entende-se que promover processos de deliberação entre elementos distintos e discordantes na esfera pública é a melhor estratégia para promover maior justiça social em vigilância sanitária. Por isso, defende-se as CPs como um espaço para exercício de direito à cidadania e à democracia, entretanto é necessário que os saberes populares e outras formas de conhecimento sejam sistematicamente considerados no processo de tomada de decisão, desenvolvido sob o modelo moderado de evidências. Além disso, é fundamental enxergar e desenvolver as CPs como um espaço para geração de soluções alternativas, a partir do conceito de evidências híbridas.

Por fim, o uso do dissenso como forma de expressão discursiva também é relevante para que outras vozes demonstrem os potenciais limites das evidências científicas, pois a Agência também se encontra em um ambiente de assimetria de informações. Entende-se que isso pode impedir o uso da tecnocracia (com sua falsa imparcialidade) como instrumento de poder na regulação sanitária, colocando as evidências científicas em pé de igualdade com outros tipos de evidências, para assim incrementar o potencial democrático que a regulamentação da Anvisa pode também alcançar.

Este texto é de responsabilidade dos autores, não refletindo a opinião da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    27 Fev 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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