Corpos-territórios e interseccionalidades: contribuições para uma vigilância popular em saúde

Cristiane Coradin Simone Oliveira Maria de los Angeles Arias Guevara Sobre os autores

Resumo

Corpos e territórios múltiplos vivenciam de diferentes formas impactos, conflitos e injustiças socioambientais. As consequências do padrão de acumulação neoextrativista recai de modo diferenciado sobre as mulheres, em especial não brancas. Esse texto traz narrativas de mulheres plurais, que vivem em diferentes territórios e que experienciam distintos impactos de grandes empreendimentos. Por meio de suas narrativas, buscamos compreender como constituem seus corpos-territórios, como são impactados e como resistem a dominação colonialista, defendem a vida e restituem a saúde. Os impactos analisados atingem os meios e modos de vida das mulheres, cerceiam suas formas de ser, poder e saber nesses territórios, tornam-nas vulnerabilizadas, sujeitas à precarização dos meios e modos de vida, imersas em intoxicações sistêmicas, chegando a situações classificadas como genocídios. Frente a tais ameaças, elas agenciam a resistência coletiva, acionam o que lhes torna subjetividade ativa, descolonizam-se como ser, saber e poder. Assim defendem a vida e restituem a saúde de si mesmas e de seus ambientes. Essas experiências apontam caminhos para o fortalecimento de perspectivas e redes de vigilância popular em saúde.

Palavras-chave:
Corpo-território; Conflitos socioambientais; Feminismos; Ecologia política; Vigilância Popular em Saúde

Introdução

A reprodução ampliada do capital em escala global no atual contexto aprofunda a condição de desenvolvimento subalterno brasileiro como exportadores de commodities por agrícolas e minerais. Em um processo de mercantilização crescente da natureza e da vida, afiançado em um modelo caracterizado pelo despojo territorial, a privação dos modos de ser, de fazer e de estar no mundo de povos e comunidades tradicionais constitui impacto irreversível a biodiversidade em sua totalidade.

Os conflitos e injustiças socioambientais que permeiam os processos de implantação e reprodução de grandes empreendimentos impactam de diferentes formas múltiplos corpos e territórios. Na condição moderno-colonial e neoextrativista11 Escobar A. Sentipensar con la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín: Ediciones UNAULA; 2014.,22 Harvey D. Para entender o capital. São Paulo: Boitempo; 2010., grandes empreendimentos se territorializam e geram consequências nos meios e modos de vida, especialmente na saúde dos que habitam esses espaços. Estudos recentes sobre conflitos e injustiças socioambientais33 Porto MF, Pacheco T, Leroy JP, organizadores. Injustiça ambiental e saúde no Brasil: o mapa de conflitos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013.,44 Oliveira SS, Portella S, Katona LL. Interseccionalidade e rupturas dos modos de vida pelos rompimentos de barragem: reflexões a partir de uma mídia em aderência. Rev Electron Comun Inf Inov Saude 2021; 15:319-332. apontam como os impactos atingem as populações mais vulnerabilizadas, tais como mulheres, povos originários, comunidades tradicionais, e populações periféricas, sobretudo negra.

Uma temática tão complexa exige uma abordagem de uma perspectiva conceitual da Ecología Política Latinoamericana55 Alimonda H, Pérez, CT, Marín F. Ecología Política Latinoamericana: pensamiento crítico, diferencia latinoamericana y rearticulación epistémica. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; 2017. que nos permite compreender conceitualmente os conflitos socioambientais como disputas pelo território e seus bens atravessados por relações de poder, assim como acompanhar as resistências e as lutas pela justiça ambiental. Nesse texto privilegiamos o enfoque interseccional para análise desses conflitos, por meio de contribuições do ecofeminismo, feminismo negro, feminismo decolonial, feminismo comunitário. Vigoya66 Vigoya MV. La interseccionalidad: una aproximación situada a la dominación. Debate Feminista 2016; 52:1-17. ao realizar a genealogia do conceito de interseccionalidade mostra a relevância do feminismo negro na crítica ao feminismo branco e universalista. Dá ênfase às intersecções entre sexo, raça e classe como desigualdades e opressões conjugadas e inseparáveis. Para a autora essas intersecções podem se dar de diferentes formas, em distintos contextos e culturas. Dessa forma, propõe a construção de uma noção de interseccionalidade cultural e historicamente situada.

O presente estudo aporta sua contribuição na perspectiva contribuição interseccional que sugere à construção de uma análise qualitativa dos conflitos e injustiças socioambientais, e sua relação com a construção de ações e redes de vigilância popular em saúde. Adotando a perspectiva do feminismo decolonial77 Lugones M. Colonialidad y género. Tabula Rasa 2008; 9:73-101.,88 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Estud Feministas 2014; 22(3):935-952., nos esforçamos por compreender como corpos situados em distintas condições de classe, raça, gênero e territórios são impactados e resistem a dominação colonialista, defendem e recuperam a saúde.

Por meio de narrativas de mulheres plurais, selecionadas de maneira intencional dada a riqueza de sua trajetória e história de vida, em sua condição de lideranças de lutas sociais pela manutenção da vida e da saúde em seus corpos e territórios frente aos impactos de grandes empreendimentos. É assim que buscamos compreender como constituem seus corpos-territórios, como são impactados e como resistem a dominação colonialista, defendem a vida e restituem a saúde, contribuindo com a construção de ações de vigilância popular em saúde.

Conflitos e injustiças socioambientais pela linguagem interseccional nos corpos-territórios

Os conflitos socioambientais envolvem disputas por bens materiais, espaços geográficos e produção simbólica, sendo inerentes à lógica de acumulação neoextrativista global99 Harvey D. O novo imperialismo: acumulação por espoliação [Internet]. Socialistregister; 2004 [acessado 2023 jan 20]. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/social/2004pt/05_harvey.pdf.
http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libro...
. Denominada como “acumulação por despossessão”, constitui-se uma nova colonização baseada na mercantilização da natureza, que a título de “desenvolvimento”, responde às necessidades de produtos agrícolas e minérios do capital transnacional. Seus impactos, para Guevara e Moreira1010 Guevara MA, Moreira E. Conflictos socioambientales, la lucha por la tierra y el territorio en el sudeste del Pará. Ambiente Soc 2020; 23:2-23., são expressivos naqueles espaços ricos em bens, com consequências devastadoras para a biodiversidade, povos tradicionais e indígenas, provocando deslocamentos forçados, destruindo seus modos e meios de vida. Processos que não se dão sem resistências, em um campo de correlação de forças desiguais.

No Brasil esses conflitos ocorrem tanto em locais urbanizados, com ênfase para as questões de equidade social, quanto em espaços rurais, em geral, pela apropriação de bens naturais, ou em detrimento da preservação cultural dos povos tradicionais33 Porto MF, Pacheco T, Leroy JP, organizadores. Injustiça ambiental e saúde no Brasil: o mapa de conflitos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013.. Os conflitos socioambientais podem ser definidos como “disputas entre grupos sociais derivados dos distintos tipos de relação que eles mantêm com seu meio natural”1111 Little PE. Os conflitos socioambientais: um campo de estudo e de ação política. In: Bursztyn M, organizador. A difícil sustentabilidade: política energética e conflitos ambientais. Rio de Janeiro: Garamond Ltda; 2001. (p.107). Do conflito surgem resistências, que vão além do embate às formas de acumulação de capital e da ação estatal, pois representam também um campo de disputa simbólica e política sobre o meio ambiente, onde os grupos impactados visam instaurar a igualdade e a justiça na defesa de seus direitos sociais, territoriais e culturais no uso e apropriação da natureza1212 Acselrad H. Desigualdade ambiental, economia e política. Astrolabio 2013; 11:105-123..

Essa realidade é transversalizada pela violência do poder patriarcal global, gerando experiências específicas de resistência que interseccionam a posição de classe, gênero, etnia, raça, idade, dentre outras. O ecofeminismo crítico, enfatiza que a marginalização das mulheres e a destruição da biodiversidade são oriundos do modelo patriarcal:

Ameaça principal para a natureza e as pessoas provém da centralização e monopolização do poder e do controle, cujo impulso gera estruturas unidimensionais e que denominados ‘monoculturas da mente’. Tais culturas ameaçam a biodiversidade, como uma enferminadade, e criam estruturas coercitivas para modelar este diverso mundo nosso biológica e culturalmente, sobre as categorias privilegiadas e os conceitos de classe, raça e gênero, de uma só espécie1313 Shiva V. Las nuevas guerras de la globalización; semillas, agua y formas de vida. España: Editorial Popular; 2007. (p.53).

O Ecofemismo enfoca questões ambientais, sempre a partir das relações de poder transversalizadas por gênero, para dar conta das tramas dos conflitos socioambientais e desconstruir as hierarquias dualistas que a modernidade imprimiu às mulheres e a natureza, como esse outro a ser inferior, dominável e mercantilizável.

Maria Lugones77 Lugones M. Colonialidad y género. Tabula Rasa 2008; 9:73-101.,88 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Estud Feministas 2014; 22(3):935-952. introduz a categoria de gênero e sexualidade às lógicas de classificação racial e social da colonialidade do poder “[...] Quero enfatizar que a lógica categorial dicotômica e hierárquica é central para o pensamento capitalista e colonial moderno sobre raça, gênero e sexualidade”88 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Estud Feministas 2014; 22(3):935-952. (p.935). Para ela é “[...] somente ao perceber gênero e raça como entrelaçados ou fundidos indissociavelmente, podemos realmente ver as mulheres de cor”77 Lugones M. Colonialidad y género. Tabula Rasa 2008; 9:73-101. (p.82). Nesse bojo, a resistência torna-se a tensão entre a sujeitificação (a formação/informação do sujeito) e a subjetividade ativa, aquela noção mínima de agenciamento, necessária para que a relação de resistência seja uma relação ativa, capaz de questionar e desconstruir intersubjetiva e materialmente a colonialidade de gênero, afirmando a construção de outras intersubjetividades e materialidades possíveis.

Cabnal1414 Cabnal L. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. In: Asociación para la cooperación con el Sur (ACSUR). Feminismos diversos: el feminismo comunitário. España: ACSUR; 2010. p. 11-25.,1515 Cabnal L. Corps-territoire et territoire-terre: le féminisme communautaire au guatemala. Entretien avec Lorena Cabnal. Cahiers Genre 2015; 2(59):73-89. e Cruz et al.1616 Cruz DT, Vazquez E. Ruales G, Bayón M, García-Torres M. Mapeando el cuerpo territorio: guia metodológica para mujeres que difienden sus terriotorios. Quito: Colectivo Miradas Críticas del Territorio desde el Feminismo; 2017., em conjunto com outras autoras feministas comunitárias indígenas, desenvolvem o conceito de corpo-território para explicar como os processos de territorialização e desterritorialização afetam seus corpos e habitats de modo interseccional: “pensamos no corpo como nosso primeiro território e reconhecemos o território em nossos corpos: quando os lugares em que habitamos são afetados, nossos corpos são afetados, quando nossos corpos são afetados, os lugares em que habitamos são violados”1616 Cruz DT, Vazquez E. Ruales G, Bayón M, García-Torres M. Mapeando el cuerpo territorio: guia metodológica para mujeres que difienden sus terriotorios. Quito: Colectivo Miradas Críticas del Territorio desde el Feminismo; 2017. (p.7). O corpo-território é constituído por um corpo humano que se produz no e com o território: “Através dos sentidos nos conectamos com os territórios: ouvimos o que o rio nos diz, conversamos com as fazendas, os campos de milho e rimos com os pássaros; isto é, são os sentidos que nos conectam aos territórios”1616 Cruz DT, Vazquez E. Ruales G, Bayón M, García-Torres M. Mapeando el cuerpo territorio: guia metodológica para mujeres que difienden sus terriotorios. Quito: Colectivo Miradas Críticas del Territorio desde el Feminismo; 2017. (p.7). Mediante conflitos socioambientais, Lorena Cabnal1414 Cabnal L. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. In: Asociación para la cooperación con el Sur (ACSUR). Feminismos diversos: el feminismo comunitário. España: ACSUR; 2010. p. 11-25.,1515 Cabnal L. Corps-territoire et territoire-terre: le féminisme communautaire au guatemala. Entretien avec Lorena Cabnal. Cahiers Genre 2015; 2(59):73-89. explica como as mulheres indígenas constroem resistências coletivas baseadas em práticas ecofeministas cosmogônicas, que reconectam seus corpos com a Terra e assim fortalecem suas capacidades de resistir, e recuperar sua saúde e da Terra. A noção de saúde que se expressa aqui é ampliada, abrange seus corpos, laços comunitários, territórios, bem como a Terra, baseia-se no autocuidado e no cuidado com a Terra.

A perspectiva de saúde emergente através dessas resistências coletivas é ampliada, pois se baseia em uma relação biopsicossocial e cosmogônica que se estabelece entre os corpos humanos e a Terra. À medida que resistem, se curam e ampliam sua saúde. À medida que se curam, curam e ampliam a saúde da Terra. Quando falamos de saúde, também nos remetemos as contribuições de Canguilhem1717 Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009., em que saúde é considerada como a capacidade de produzir variações diante do meio, com produção de novas normas de vida, tendo a capacidade de reinvenção como aspecto central no processo de reconstrução do meio. Nesse sentido, os modos de andar a vida não se dissociam das experiências culturais dos corpos e dos territórios.

É a partir dessa visão cosmogônica, biopsicossocial e da perspectiva interseccional que aportamos contribuições para ampliação das práticas de vigilância popular em saúde, em direção ao bem viver. Uma vigilância popular em saúde dialógica, estruturada na práxis cotidiana dos territórios, tendo o trabalho e o ambiente como forças motrizes de mudanças. Viva, em movimento, emergente e adaptativa aos contextos de vida e às populações que animam o espaço e o transformam em territórios de vida, de produção de sentido. Assim, apostamos em uma vigilância popular em saúde que tem como premissa a valorização da participação popular e comunitária, considerando os diferentes saberes, valores e sociabilidades que constituem as identidades culturais e afetividades territorializadas como instrumento de luta e transformação social1818 Oliveira SS, Machado JMH, Coradin C, Pena PGL, Portella S, Leão L. Vigilância popular em saúde: conceitos, experiências e desafios. Interface (Botucatu) 2023; no prelo..

Caminho percorrido

No âmbito do “II Seminário Internacional de Desnaturalização dos Desastres e mobilização comunitária: crises ampliadas, redes e resistências”, realizado em outubro de 2021, promovido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), como parte da programação geral, produzimos a oficina intitulada “Interseccionalidade e grandes empreendimentos: formas coletivas de resistência”. Essa oficina possibilitou ao público participante e a nós pesquisadoras a escuta das diferentes vozes, narrativas de distintas experiências, vividas em diferentes contextos do nosso país.

Tendo em conta que o tema desastres socioambientais e interseccionalidades é complexo e envolve conflitos, selecionamos experiências ricas que contribuíssem para o debate da saúde coletiva, especificamente para a vigilância popular em saúde. Aproveitamos nossas relações e redes de contato no âmbito do ensino, pesquisa e extensão, para identificar interlocutoras-chaves, que com suas experiências nos possibilitariam analisar os processos sociais que envolvem diferentes impactos territoriais, identidades étnico-raciais, questões gênero, a construção da saúde e formas de resistência.

Assim, foram convidadas sete mulheres: Laura Ferreira, Membra da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ); Maria Conceição de Sousa Pinto e Ana Félix, assentadas rurais do Assentamento Maceió, localizado em Itapipoca, Ceará; Cleomar Ribeiro da Rocha, membra da Associação Quilombola do Cumbi, Aracati, Ceará; Ana Carla Cota, atingida da barragem do Doutor Minas Gerais; Juliana Kerexu, Cacique da Tekoa Takuaty-Ilha da Cotinga- Paranaguá, Paraná, e Neltume Espinoza, Rede Sementes da Agroecologia (RESA.) No entanto, problemas técnicos impossibilitaram a participação de Juliana Kerexu, Ana Félix e Maria Conceição de Sousa.

Trazemos as narrativas das interlocutoras presentes como ferramenta metodológica para construir conhecimentos que nos aproximem de uma melhor compreensão desses territórios e conflitos. Assim, adentramos na vida vivida com elas, ao complexo tecido social de cada espaço. Ao narrar a experiência, ela é ressignificada, contribuindo para um processo emancipatório, pois outras vozes são convocadas para transformá-la em uma história coletiva que contém em si a experiência corporificada nas mulheres1919 Arias-Cardona AM, Alvarado-Salgado SV. Investigación narrativa: apuesta metodológica para la construcción social de conocimientos científicos. Rev CES Psicol 2015; 8(2):171-181.. Permitem, dessa forma, um reposicionamento delas ante sua própria experiência, produzindo um saber localizado, que desde o ponto de vista metodológico e epistemológico, dá conta da perspectiva feminista decolonial e de um conhecimento situado.

Na oficina, as mulheres iniciaram suas narrativas apresentando o território em que vivem, explicaram como constroem e expressam seus modos de vida, identidades e culturas. Além disso, caracterizaram quais são os grandes empreendimentos que geram conflitos e impactam seus meios e modos de vida, identidades e adoecimentos de seus corpos-territórios. Relatam as várias formas de resistir que se constroem desde seus corpos. As narrativas das experiências trazidas foram divididas em dois itens para melhor expressão de suas vozes: Corpos-territórios que vivenciam os impactos e Corpos-territórios que resistem e defendem a vida.

Corpos-territórios que vivenciam os impactos

A primeira interlocutora, Neltume Spinoza se apresenta como agricultora agrofloresteira, filha de camponeses e que tem profunda tradição no trabalho da terra. Afirma que trabalha com a agroecologia muito antes desse termo ser cunhado como tal: “Desde a agroecologia... a gente trabalha hoje fortemente e antigamente também se trabalhava, só que a gente não chamava de agroecologia”. É essa construção agroecológica ampliada que a constitui como corpo-território e preenche de sentido sua experiência.

A agroecologia, através de práticas ecológicas, busca recompor a capacidade produtiva dos agroecossistemas e com isso produzir alimentos mais saudáveis para a população. Enquanto parte dos sistemas agroalimentares e da sociedade, intervém na desconstrução de desigualdades e opressões sociais, e se caracteriza pela organização e mobilização coletiva democrática, transformadora e emancipatória.

Na contramão da Agroecologia, Neltume destaca que a agricultura convencional, entendida como aquela baseada em insumos químicos, sintéticos, sementes transgênicas e uso intensivo de agrotóxicos, é fortemente apoiada por governos e que esta obtém os maiores incentivos, em detrimentos daqueles que cultivam alimentos agroecológicos. Ela narra que um dos grandes desafios atuais é a contaminação das sementes. Argumenta que desde os anos 1990 os(as) agricultores(as) têm sofrido a contaminação de sementes transgênicas, por não se ter uma legislação que regule e apoie a conservação das sementes crioulas, que são sementes culturalmente e tradicionalmente cultivadas e melhoradas pelas(os) agricultoras(es), mas que não sofreram processos industriais de melhoramento genético (hibridação, transgenia). Isso incide diretamente na perda de variedades crioulas, que além de patrimônio da humanidade, são patrimônio da vida. “A gente acaba perdendo vida, história, memória, uma série de coisas que acabamos não enxergando e que vão se perdendo, vamos ficando cada vez com menos diversidade, porque vai afetando as nossas vidas”. Estudos de gênero e agroecologia recentes2020 Boni V, Peron NL, Marques SA, Mohr NER, Bastiani TM, organizadoras. Mulheres camponesas e agroecologia. Curitiba: Editoria CRV; 2017. esclarecem o quanto as sementes crioulas são símbolos da produção e reprodução da vida para as mulheres agroecológicas, e o quanto a ligação delas com as sementes é profunda. Para elas, perder suas sementes significa perder a autonomia sobre sua capacidade de geração e reprodução da vida.

Dando sequência ao diálogo, Cleomar, quilombola, pescadora e moradora do quilombo do Cumbe em Aracati no Ceará, da Associação Quilombola do Cumbe, descreve a comunidade como um lugar muito rico de água, com áreas de dunas, praia, manguezais, rio, de onde tiram suas rendas. Para ela, falar do território significa lembrar-se da infância, das memórias, de um território saudável, da busca pelo bem viver. É essa relação com o território que constitui seu metabolismo social, seu ser, saber e poder como corpo-território. Ela pondera que essa busca pelo bem viver não tem sido algo simples. A luta quilombola do Cumbe já dura 25 anos contra diferentes ameaças:

Na década de 1990 a gente recebe a carcinicultura, camarões criados em cativeiros, nas áreas de manguezais. Áreas essas que a gente tinha total liberdade, áreas essas que a gente cuidava, nós éramos os donos, nós cuidávamos, nos alimentávamos, era nosso lazer e quando a carcinicultura chega, essas áreas que nós tínhamos essa relação tão forte, nos foram tiradas, fomos impedidas de acessar aquelas áreas (Cleomar).

Ela relata que era cultura da comunidade as mulheres trabalharem na mariscagem, e a cata do caranguejo ser feita pelos homens. Quando a carcinicultura se implantou na localidade, muitas pessoas da comunidade se empregaram nesses empreendimentos, e em 2001 tiveram pela primeira vez uma grande mortandade de caranguejos. As famílias ficaram desesperadas. A grande produção da carcinicultura para exportação, apoiada pelo uso de insumos químicos, acabou contaminando as áreas de mangue. Essa atividade promoveu um grande desequilíbrio ambiental no território:

A gente daí pra cá, tivemos nossas águas contaminadas, nosso mangue degradado, os acessos tirados, nossas espécies de peixe, crustáceos, diminuindo, as águas muito salgadas, nossas áreas, nossos poços salgados, foi um prejuízo que a gente não sabe a quem recorrer (Cleomar).

A carcinicultura trouxe muitos conflitos, sobretudo envolvendo os grandes empresários, que passaram a perseguir as comunidades quilombolas. A violência colonialista se expressa no cerceamento dos seus meios de vida pela carcinicultura, na perda da qualidade da água e perda da saúde dos manguezais, vulnerabilizando assim a população quilombola. Reproduz-se assim o racismo ambiental, que vulnerabiliza os corpos-territórios dessas mulheres. Após esse processo vivenciado com o impacto da carcinicultura, em 2008 a comunidade do Cumbe recebe o parque eólico em outra área próxima:

Como se não bastasse viver tudo isso, a gente passou por uma grande dificuldade, em 2008, o parque eólico que tomava outro lado da comunidade, que também era de muito afeto para os(as) quilombolas. […] a gente vivia das pescas nas lagoas, a gente vivia de pequenas plantações nas vazantes, a gente colhia frutas nativas que davam só nas dunas, [...] nos morros e que é um lugar que a gente cuidava, um lugar nosso e que não tinha dono, enfim (Cleomar).

Quando chegam as eólicas, elas cerceiam os usos desses espaços pelos quilombolas. “Nós moradores na lagoa, a gente fazia barraquinha, vendia um bolo, um suco e a gente começou a ser expulsa dessas áreas” (Cleomar). Com esses empreendimentos, a cultura e o modo de fazer dessa comunidade estão sendo impedidos de existir. Ou seja, o que as produz como corpo-território saudável, está sendo cada dia mais descaracterizado. O território significa a vida para essa comunidade. “O território mostra quem somos a nossa história, a nossa identidade”.

Após a fala de Cleomar, Laura Ferreira da Silva, CONAQ, Quilombo Mutuca Mato Grosso dá continuidade às narrativas, destaca sua preocupação diante de um contexto atual marcado por um sistema moderno-colonial que incide de forma prejudicial na vida dos(as) quilombolas, afetando o que simboliza o território para o seu povo, lugar sagrado, de pertencimento, identidade, de conhecimentos ancestrais:

Hoje a gente não tem sequer o direito de existir, o direito de ir e vir e principalmente a liberdade de expressão. Porque se a gente fala alguma coisa nós somos motivos de sofrer fortes represálias por esse governo que está aí que é controlador, dominador, opressor... Que não respeita [...] as causas quilombolas (Laura).

No local, relata que empreendimentos agroalimentares convencionais têm impactado negativamente o cultivo dos frutos que a população quilombola produzia, e que não conseguem mais produzir, em decorrência do uso excessivo de pulverização de agrotóxicos, provenientes de monocultivos de soja da região e da escassez de água. Apesar de cuidarem e valorizarem suas sementes crioulas e suas águas com vistas ao bem comum, através de análise técnica, já foi constatado que dentro das águas em territórios quilombolas, inclusive as águas das chuvas, existe a presença de agrotóxicos que já foram banidos em outros países, mas que no Brasil continuam sendo usados:

O que hoje dentro do estado do Mato Grosso atravessamos é muito grande essa problemática da escassez da água, principalmente diante dessas mudanças climáticas. […] As produções que a gente planta a gente não consegue colher em decorrência de todo esse clima que tem ocorrido, em decorrência dessa alteração devido a própria ganância dessas implantações que tem interferido relativamente dentro do nosso território (Laura).

Aqui o avanço de um modo de produção agroalimentar colonialista, baseado em cultivos convencionais de grãos visando exportação, aparece enquanto agente do impacto socioambiental, de modo análogo ao caso relatado por Neltume. Outro exemplo sobre essas ações danosas aconteceu na comunidade Jejum, conforme Laura descreve:

Em março nós tivemos uma problemática muito grande na comunidade Jejum, que as famílias sofreram com um impacto muito grande em decorrência da poeira tóxica da colheita da soja, que ali tem criança recém-nascido, que querendo ou não acabaram passando por vários constrangimentos e a gente vê que pouco se faz (Laura).

Laura esclarece que a chegada abrupta desses empreendimentos agroalimentares nos territórios tem trazido transtornos para as famílias, impactando não apenas a produção de alimentos, mas também o acesso à água potável. Ela salienta que a água está mais escassa nas fontes terrestres, e que água da chuva está contaminada com o uso de agrotóxicos. Por cercear e contaminar os meios de vida dessa população, esse sistema colonialista patriarcal, expresso nesses empreendimentos agroalimentares, provoca a expulsão dos quilombolas dos seus territórios:

Se tirar nosso povo do nosso território aonde eles vão vamos residir? Nas periferias? Porque eles não têm conhecimento nenhum... os conhecimentos que nos foi dado é dentro do nosso espaço, é dentro do nosso território...ali nós constituímos família, criamos vínculos com a terra, com a mãe natureza, somos guardiãs de saberes, detentores de todo conhecimento e que está realmente sendo colocada a jogo a partir do momento que não nos dão esse direito da gente existir (Laura).

A fala de Laura esclarece como esses empreendimentos agroalimentares reproduzem o racismo estrutural, na medida em cerceiam e contaminam os recursos para a reprodução da vida, o que Laura classifica como o genocídio das populações negras quilombolas que vivem nesses territórios. O racismo estrutural, como categoria da colonialidade do poder, anula o direito de existir. Anula o ser, saber e poder dos quilombolas, e com isso gera genocídio.

Após a fala de Laura, Ana Carla Cota relatou sua experiência. Ela se apresentou enquanto atingida da Barragem do Doutor, Minas Gerais, distrito de Antônio Pereira. De partida anuncia que sofrem com o impacto da mineração há aproximadamente 40 anos. E que desde fevereiro de 2020, após a legislação “Mar de lamas nunca mais”, a barragem do Doutor, precisou ser descondicionada (precisa deixar de existir).

Ana Carla expõe que desde essa data o território tem passado por uma atuação perversa, violenta e desumana por parte de mineradoras. Situação que produz corpos-territórios atravessados pela dor, sofrimento e morte. A extração de ferro realizada nessa região é orquestrada por dois empreendimentos mineradores muito influentes, a Vale e a Samarco. O processo de descondicionamento acontece de forma autoritária e sem transparência “É um processo que a mineradora impõe sem diálogo com a comunidade, tudo é de forma muito impositiva”.

Sendo um território dominado pela mineração, os chefes de família acabam trabalhando nesse campo. No total de 5.000 habitantes, estima-se que cerca de 85% trabalham direta ou indiretamente nessas empresas de mineração. A maioria desses homens, por medo, não se expõe, e nesse cenário as mulheres acabaram assumindo o protagonismo da luta de resistência. Sendo uma das únicas três moradoras das chamadas Zonas de Auto Salvamento (ZAS), caracterizadas como áreas onde não é possível o salvamento em situações de rompimento de barragens, necessitando, portanto, de realocação, Ana Carla não aceitou as imposições da mineradora e teve a casa invadida por cinco vezes, todas com registro de boletim de ocorrência.

Sempre elas são assim quando eu tenho postura muito firme em reuniões, então a última me fez fugir do território. A vale queria impor um comitê eleito por ela na comunidade, […] com as lideranças que ela quer... […] nós mulheres éramos impedidas de entrar nas reuniões, a gente tentava, recebia o link de outras pessoas para entrar nessas reuniões virtuais e a Vale negava nossa participação. [...] e nós somos a favor da assessoria técnica independente, [...] há mais de um ano que gente vem lutando e conseguimos junto com o Ministério Publico fazer eleição. Temos hoje uma assessoria técnica eleita pela comunidade e a Vale faz de todas as formas para inibir a atuação dessa assessoria técnica, a gente sabe que ela não quer (Ana Carla).

Ela destaca que as retaliações acontecem de forma individualizada, chegam para “Ana Carla, para Maria Helena, vem paras lideranças da comunidade e elas nos silenciam”. Aqui o empreendimento, na sua condição colonialista patriarcal aciona a violência contra as mulheres como estratégia de coerção. Cala-se as vozes das mulheres que agenciam a resistência, como meio de legitimação da sua dominação colonialista. Ana Carla salienta que é preciso falar como as mulheres têm lidado com o machismo na comunidade. Pois segundo ela, não existe uma unidade pela causa na comunidade contrária à forma como a Vale aborda os(as) moradores(as). A comunidade está dividida entre um lado político, composto por pessoas que estão no poder público e a favor da Vale, e outro lado das mulheres guerreiras pelos direitos humanos. Relata que por ser geóloga, ter capacidade técnica e informações sobre os direitos da comunidade, acaba silenciando os homens, que não tem argumentos para lhe contrapor e agem com retaliações contra ela. Da última vez foi orientada a sair do território, a partir do programa de defensores públicos de direitos humanos do qual está participando, por conta do risco de sua integridade física.

Corpos-territórios que resistem e defendem a vida

Mediante tais conflitos e injustiças socioambientais, vistos sob um prisma interseccional, as interlocutoras agenciam resistências, que possibilitam a defesa da saúde de seus corpos-territórios. Para tanto, buscam apoio no feminismo comunitário, em redes de movimentos sociais, na representação sociopolítica do Estado e na sua conexão com a Terra.

A experiência relatada por Neltume destaca a importância da agroecologia no fortalecimento de sistemas agroalimentares ecológicos. Em 2015 surge a Rede de Sementes da Agroecologia. Através dessa rede, várias agricultoras(es) passam a reconhecer-se como guardiãs(ões) de sementes e fortalecem a produção e a conservação das sementes crioulas, que são tanto a base de sua alimentação quanto da agroecologia. As mulheres são protagonistas desse trabalho. É por meio da defesa da agrodiversidade, enquanto defesa da vida, que elas agenciam suas resistências coletivas: “Então a gente se viu no momento de se reconhecer também como guardiãs de sementes e que os guardiões de sementes não são só do arroz, do feijão e do milho, mas também guardiãs de sementes de muda, guardiãs de sementes de palmeira no litoral, das pupunhas...” (Neltume). Estudos recentes no campo de gênero e agroecologia2020 Boni V, Peron NL, Marques SA, Mohr NER, Bastiani TM, organizadoras. Mulheres camponesas e agroecologia. Curitiba: Editoria CRV; 2017.,2121 Siliprandi E. Mulheres e agroecologia: transformando o campo, as florestas e as pessoas. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; 2015. visibilizam a importância das mulheres na conservação das sementes crioulas, entendidas como base para a reprodução e sustentação das experiências agroecológicas. Assim, a conservação das sementes crioulas, associada às demais práticas agroecológicas, se torna uma estratégia da resistência coletiva e de promoção da saúde delas e de seus ambientes de vida.

Neltume destaca a importância da organização e conscientização sociopolítica de gênero das mulheres, como mecanismo para coibir violências de gênero e reconhecimento da importância do trabalho produtivo das mulheres. Finaliza dizendo que é importante trabalhar com as novas gerações e se manter firme no que se acredita. “Lutamos por uma vida muito mais justa”. A organização sociopolítica de gênero das mulheres dentro da luta pela agroecologia, é apontada como categoria constitutiva do processo de decolonialidade de gênero no campo como apontam estudos recentes sobre esse tema2222 Coradin C. Entre buvas e flores vermelhas: autorias das mulheres Sem Terra na ecologização da reforma Agrária no Paraná [tese]. Curitiba: Universidade Federal do Paraná; 2020..

Na experiência do Quilombo do Cumbe, Cleomar destaca a resistência das mulheres negras na desconstrução do racismo estrutural. Ela relata que o quilombo foi certificado em 2014 pela Fundação Zumbi dos Palmares. Mas que até os dias atuais lutam para conscientizar a população e sensibilizar autoridades locais para entenderem, valorizarem e respeitarem o processo coletivo identitário do grupo social. Preocupa-se com a formação da população local e gestão pública para o entendimento sobre o que é ser quilombola, e sobre o cuidado ao trazer informações seguras para não dar espaços às Fake News, que reproduzem racismo e depreciam a identidade dos(as) quilombolas:

A gestão não nos reconhece, a nossa escola não é reconhecida como escola quilombola, hoje nós temos 110 famílias cadastradas na associação e a luta para nos vacinar, nós sabemos o quanto foi difícil, tivemos que ir pra justiça […] Eu acredito que é um direito de cada um se reconhecer como quer, mas “não tirar o meu direito de ser” (Cleomar; grifo nosso).

A medida em que ampliam sua organização e conscientização sociopolítica, e que acionam costumes, simbologias, valores e práticas que fortalecem os tecidos comunitários e a identidade do grupo social, se sentem mais acolhidas, valorizadas e respeitadas enquanto direito de ser, saber e poder, e ampliam a capacidade de construção de uma subjetividade negra descolonizada, fortalecendo a construção de corpos-territórios emancipados. Em todas essas atividades, Cleomar reforça o papel das mulheres em sua comunidade. Acredita que a mobilização social desenvolveu mais capacidades das mulheres e a sua voz ativa. Essas ações são reforçadas por atividades de turismo comunitário:

Como exemplo temos o turismo comunitário. Essa rede vem fortalecendo muito, os visitantes que aqui nós recebemos, os caminhos que a gente fazemos, os caminhos do turismo e esses caminhos levam a lugares sagrados, aos quintais produtivos, as famílias […] então hoje esse turismo vem mostrando nossa história, a nossa vivência, o quanto isso fortalece a nossa comunidade e de que forma queremos viver, esse turismo é baseado nisso, o que somos, o que fazemos, como queremos fazer, cuidar da natureza, do território e de nossa história (Cleomar).

Na esteira da fala de Cleomar, Laura relata que as experiências de resistência das comunidades quilombolas do Mato Grosso acionam, valorizam e buscam cultivar a memória, a ancestralidade, meios e modos de vida desses grupos sociais, em associação com o uso sustentável dos bens naturais. Laura finaliza falando que os processos organizativos acontecem a partir das necessidades de luta, para defender seus direitos nos territórios. “Ser mulher já é difícil, imagine ser mulher, preta, lésbica, é mais difícil ainda” e “podem até nos impedir de acessar a faculdade, mas o nosso conhecimento eles nunca vão nos impedir”. Fortalecendo os elementos lhes constituem como identidade e territorialidade quilombola, essas mulheres defendem seus corpos-territórios, seu direito de ser, existir e viver bem e com saúde em seus territórios de vida.

Por fim, no caso das atingidas pelas barragens da mineração em Minas Gerais, em Antonio Pereira, Ana Carla narra que foi criado um Comitê das Atingidas pela Mineração. Por meio dessa organização, as mulheres se organizam e passam sensibilizar autoridades locais. Por meio da mediação com o Ministério Público, conseguem construir uma assessoria independente, que tem possibilitado redução de violências e melhores condições de negociação com a mineradora.

Diante de todo processo vivenciado, formaram um grupo composto por essas mulheres para se fortalecerem, por estarem adoecendo em virtude dessa situação, sobretudo no que concerne à saúde mental. “Essas doenças tanto mentais quanto físicas, elas são reais, como nosso corpo realmente reage com isso e isso é uma forma de nos silenciar”. Essa experiência reafirma a importância da conscientização e organização sociopolítica das mulheres, associadas a práticas de cuidado em saúde, sobretudo mental, como base para ampliação da subjetividade ativa, agência e resiliência das mulheres, mediante situações de conflito.

Ana Carla finaliza destacando a importância da educação, pois: “quanto mais conhecimento, mais liberdade... Resistência é o caminho, precisamos educar nossas futuras gerações”. E reafirma que estar em espaços como esse do Seminário é fundamental para que as mulheres tenham um lugar para contar suas histórias, serem acolhidas e poder perceber que ainda que sejam fortes, também são vulneráveis e que precisam se fortalecer em redes como essa: “fazendo resistência que vamos conseguir mudar. Vai levar tempo? Vai, mas eu ainda acredito que nós enquanto comunidade vamos conseguir mudar sim esse sistema predatório, desumano, aonde o lucro vem acima das vidas... ‘A vida em primeiro lugar’[...]” (Ana Carla).

Em síntese, em que pese toda expropriação e violência sofrida em seus corpos-territórios, de diferentes formas, essas mulheres recriam formas de ser, saber e poder desde seus corpos e em seus territórios de vida, mantém e recriam modos, meios de vida e identidades. Ao serem impactadas, elas acionam a defesa das suas vidas e de seus ambientes da vida, enfrentam as violências patriarcais, racistas e colonialistas, resistem e descolonizam-se como ser, saber e poder de modo interseccional. Recriam assim seus corpos-territórios e garantem mais saúde para si mesmas, suas comunidades e territórios. Contribuindo assim, com a construção de ações e fortalecimento de redes de vigilância popular em saúde.

Considerações finais

As narrativas das mulheres explicitam como diferentes empreendimentos se utilizam de forma transversal de opressões de classe, gênero e raça para impor e legitimar sua dominação extrativista colonialista e patriarcal, produzindo adoecimentos. Frente a tais contextos, as mulheres resistem e reinventam seus modos de ser e viver nesses territórios. Acionam sua pertença a uma ancestralidade comum, sua ligação com o sagrado, enfrentam as violências patriarcais que experienciam, apoiam-se umas nas outras por meio da organização coletiva, reafirmam e defendem seus meios e modos de vida e identidades sociais, e assim lutam pela saúde de seus corpos, comunidades e territórios. Essas resistências abrangem uma relação que extrapola o corpo biopsicossial e se vincula ao agenciamento descolonizador da construção territorial e comunitária. Nessa relação se produzem e se reinventam, restituem saúde de si mesmas e de seus ambientes, criam fraturas na colonialidade e ampliam sua capacidade de se emancipar.

A perspectiva de agenciamento expressa nas resistências dessas mulheres gera contribuições para a pensarmos construção de uma perspectiva de vigilância popular em saúde, capaz de considerar essas interseccionalidades na sua proposição. Por meio da mediação dialógica pode-se problematizar essas questões de modo transversal, e compreender como distintos corpos-territórios impactados resistem, restituem, defendem e mantém a vida e a saúde de seus corpos e ambientes e assim, podem contribuir com o fortalecimento de redes de vigilância popular em saúde.

Como lacunas de pesquisa indicamos a necessidade de novos e mais ampliados estudos para compreensão de outras narrativas, de outras mulheres, presentes em outros territórios, contemplando diversidade de biomas brasileiros, bem como a inclusão de narrativas de mulheres urbanas periferizadas e vulnerabilizadas. As novas questões, emergentes desse estudo, apontam para a necessidade de novos estudos para compreensão mais aprofundada e pormenorizada dos impactos desses empreendimentos nos processos epidemiológicos que afetam a vida dessas mulheres, para compreensão das redes de solidariedade que agenciam, bem como pela análise do caráter e qualidade do atendimento que desfrutam do sistema público de saúde em seus territórios de vida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    27 Fev 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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