A ressignificação do cuidado no contexto de pandemia

Daniella Teixeira Dantas Gouget Tatiana Wargas de Faria Baptista Sobre os autores

Resumo

Esse ensaio discute o processo de cuidado de profissionais de saúde no contexto da COVID-19 a partir das perspectivas da psicanálise, sob o prisma do espaço transicional de Donald Winnicott, e da saúde coletiva, sob o prisma da sabedoria prática de José Ricardo Ayres, da micropolítica do trabalho vivo em ato de Emmerson Merhy, e do cuidado prudente de Ruben Mattos. Propõe a elaboração de uma perspectiva de cuidado que se apresenta enquanto proposta de ressignificação possível ao adoecimento no contexto de pandemia, onde a saúde foi marcada com sentidos de calamidade e catástrofe sanitária, e expressões de sofrimento e angústia, no corpo e/ou mesmo subjetivamente. Desse modo, uma compreensão sobre a manifestação do cuidado do profissional de saúde, no contexto de pandemia, trazido com sentidos narcísicos e heroicos, e com sentidos de impotência e desamparo, contribui para a elaboração de uma concepção criativa do cuidado. Conclui-se que a perspectiva de um cuidado ampliado favorece a possibilidade criativa de novas produções de sentido e de sustentação para os profissionais, ressignificando suas experiências de vida, através do amor, da criatividade, da sabedoria prática, do cuidado prudente, do trabalho vivo em ato e do imaginário motor.

Palavras-chave:
Cuidado; Angústia; Profissionais de Saúde e COVID-19

Introdução

Com o advento inesperado da COVID-19 no ano de 2020, a sensação de percurso do tempo foi acelerada, acompanhada por uma elevação aguda de infecções virais pelo SARS-CoV-2, com mortes e colapso do sistema de saúde. Na assistência, profissionais da saúde se queixavam de não estarem conseguindo dar conta do processo de adoecimento que a pandemia estabelecia no corpo e na subjetividade, o que só reforçava que o tempo da pandemia compreendia um outro registro de adoecimento, para além do corpo. Tornou-se explícito que não é só pelo corpo biológico que o sujeito adoece e se queixa.

O mal-estar contemporâneo, com suas variações de narrativas clínicas, revela-se através de um excedente que provoca, na experiência psíquica, uma perda de sentido, manifestando-se nos registros do corpo, da ação e dos sentimentos11 Birman J. Excesso e ruptura de sentido na subjetividade hipermoderna. Cad Psicanal 2004; 26(17):175-195.. Os efeitos da pandemia repercutiram sobre esse mal-estar, atingindo as singularidades, a saúde mental e a economia - o que provocou desigualdades, desamparo e desalento22 Birman J. O trauma na pandemia do Coronavírus - suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2021.. Sob esse ponto de vista, Birman22 Birman J. O trauma na pandemia do Coronavírus - suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2021. associa a pandemia a uma catástrofe.

A ausência de uma imunidade, com garantia efetiva, contra o vilão invisível da pandemia (o vírus) refletiu na manutenção da integridade do organismo humano. Considerou-se sobre as mutabilidades do vírus uma possível invencibilidade. A vivência se tornou carregada de sofrimento para todos que passavam por essa experiência, em destaque para quem assumia a função do cuidado - com a sobreposição de tarefas e plantões, devido ao número reduzido de profissionais atuantes (com a disseminação cada vez mais acelerada da COVID-19). Profissionais da saúde descreviam uma progressiva experimentação de sentimentos inusitados, como impotência e desamparo, diante de toda pressão e expectativa embutidas no cenário de pandemia, como se fossem convocados a assumir (o que incorporavam a postos) o posto de exército da salvação. E na tentativa de responderem a um contexto marcado pela indefinição, os profissionais, muitas vezes, se apegavam a alternativas como automedicação, em busca de aumento do tempo acordado; e super otimização dos afazeres, abdicando-se do tempo de pausa e descanso.

O sofrimento se instalou através da angústia diante do desconhecido, onde se identificou uma relação entre o sentimento de angústia e a necessidade de sustentação (holding)33 Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1971., que, de acordo com Winnicott33 Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1971., traduz o sentimento de estabilidade e previsibilidade do ambiente, possibilitando que o sujeito se sinta seguro e acolhido em seu contexto de vida.

A angústia, a qual muitas vezes paralisa o sujeito em sua capacidade simbólica, pode vir a funcionar enquanto defesa, mas também pode facilitar a possibilidade de abertura de uma ressignificação subjetiva de sentido, através da perspectiva do cuidado, o que exige criatividade para provocar mudança. Segundo Figueiredo44 Figueiredo LC. As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta; 2009. (p.117), “[...] há sempre corte e costura no fazer sentido”. Compreendemos, assim, a necessidade de se dar lugar à palavra, na busca por uma possibilidade criativa e de elaboração de toda essa vivência. Quem adoece e sofre é, antes de tudo, um sujeito e não um corpo apenas. Logo, a fala deve ser privilegiada, conforme destaca Figueiredo55 Figueiredo AC. Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica psicanalítica no ambulatório público. 3ª ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1997. (p.43): “[...] como possibilidade de fazer outra dimensão da queixa que singulariza o pedido de ajuda”. Porém, como colocar em palavras essa vivência se faltavam conhecimentos e reconhecimentos a respeito do que se passava? Como encontrar suporte, reconhecimento e disponibilidade, em presença, se a medida de controle mais defendida era a do distanciamento físico? Vivenciávamos um tempo de múltiplos adoecimentos, onde quem cuidava também se encontrava adoecido - fosse pelo vírus ou pela ameaça de vazio e angústia que a reclusão representava. E, por isso, o cuidado representava uma resposta necessária pelo sentido da continuidade da vida.

Sob um novo tempo, o atual, de possibilidade de compreensão e ressignificação ao se olhar para trás, questionamos qual reflexão de cuidado seria possível naquele momento. A elaboração de novos sentidos para a perspectiva de cuidado se traduz, nesse ensaio, através da possibilidade de uma reflexão e de um direcionamento para a vivência de mal-estar que se produziu ao longo da pandemia de COVID-19.

Esse ensaio visa discutir o processo de cuidado de profissionais de saúde no contexto da COVID-19 a partir das perspectivas da psicanálise, sob o prisma do espaço transicional de Donald Winnicott33 Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1971., e da saúde coletiva, sob os prismas da sabedoria prática de José Ricardo Ayres66 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc 2004; 13(3):16-29.,77 Ayres JRCM. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática? Interface (Botucatu) 2000; 4(6):117-120., da micropolítica do trabalho vivo em ato de Emmerson Merhy88 Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2007.,99 Merhy EE, Feuerwerker LCM. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: Mandarino ACS, Gomberg E. Leituras de novas tecnologias e saúde. Salvador: UFS, UFBA; 2009., e do cuidado prudente de Ruben Mattos1010 Mattos RA. Cuidado Prudente para uma vida decente. In: Mattos RA, Pinheiro R. Cuidado, as Fronteiras da Integralidade. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2013.. Para a discussão, buscou-se, a partir da atuação clínica, enquanto psicóloga em uma unidade de saúde pública, durante o período da pandemia (em especial, de 2020 a 2022), retomar memórias desse tempo e colocá-las em análise crítica, dinamizando a argumentação e apontando para a integração teoria-prática no processo de ressignificação do cuidado.

Na perspectiva de um ensaio teórico, inspiradas em Larrosa1111 Larrosa J. A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educ Realidade 2004; 1(29):27-43., essa reflexão sobre o tempo da pandemia se apresenta como uma oportunidade de pensar no presente e para o presente, trazendo a prática que afeta trabalhadores da saúde, e as autoras desse texto, como uma oportunidade de olhar criticamente para a própria experiência. Acreditamos que o diálogo com os autores mobilizados possibilitará uma reflexão criativa sobre o cuidado durante a COVID-19.

O contexto pandêmico e o adoecimento pandêmico

Desde meados do século XX, ocorre um movimento de “Transição epidemiológica”1212 Omram A. The epidemiologic transition: a theory of the epidemiology of population change. Milbank Memorial Fund Quarterly 1971; 49(4):509-538., onde se entende uma redução nos óbitos por doenças infecciosas e parasitárias e uma elevação na quantidade de óbitos por doenças crônicas não transmissíveis1212 Omram A. The epidemiologic transition: a theory of the epidemiology of population change. Milbank Memorial Fund Quarterly 1971; 49(4):509-538.. Entretanto, nem todos os países apresentaram uma transição epidemiológica linear e completa1313 Sabroza PC. Concepções de saúde e doença. Rio de Janeiro: ENSP; 2004.. Países de formações sociais periféricas, como o Brasil, caracterizam-se pela vulnerabilidade e desigualdade social, produzindo a convivência da mortalidade por doenças crônicas e por doenças infecciosas e parasitárias. Essa realidade reflete em imensa fragilidade para os sujeitos, as redes de contatos sociais, a capacidade de consumo, a manutenção dos serviços de saúde e a produção da autonomia1313 Sabroza PC. Concepções de saúde e doença. Rio de Janeiro: ENSP; 2004..

Com o advento da COVID-19 agudizaram-se os problemas enfrentados em situações de extrema desigualdade social e somaram-se outros, como sintomas psíquicos e sociais, para além da infecção viral. O acontecimento pandêmico impôs uma quebra na estabilidade do sujeito, na sua rotina de vida diária, onde passou-se a incidir uma falta de sentido, pois registrou-se um rompimento na continuidade de significações mantidas pelos sujeitos. Todavia, faz-se importante a manutenção sempre ativa do processo de “fazer sentido”, propiciando a articulação e a simbolização das várias formas de expressões44 Figueiredo LC. As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta; 2009. - pois, como aponta Figueiredo44 Figueiredo LC. As diversas faces do cuidar: novos ensaios de psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta; 2009. (p.116), “quando o sentido se cristaliza ou é recebido ou tomado de forma cristalizada, o processo se interrompe e a criatividade se estiola”. Essa cristalização assombrou muitos sujeitos, ao longo da pandemia, através do medo que a ameaça do vírus representava como fechamento de sentido: medo, pavor, fuga, evitação e morte.

O sentido é sempre resultado de uma construção social, dependendo de uma disponibilidade1414 Sá MC. Por uma abordagem clínica psicossociológica de pesquisa e intervenção em saúde coletiva. In: Azevedo CS, Sá MC. Subjetividade, Gestão e Cuidado em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ENSP; 2013.. Esse caminho promove a compreensão do novo contexto e um possível diálogo para a constituição de possibilidades de novos sentidos. Mas, como construir novos sentidos?

A COVID-19 constituiu uma realidade que se afirmou através de um vírus intangível, cuja potência era até então desconhecida e imensurável. Nessa circunstância, uma nova reorganização coerente das percepções e dos afetos ainda precisava ser construída, facilitando a ação do cuidado e a constituição de sentido.

Como a Sociedade Contemporânea se constitui por uma ruptura de sentido, a partir da imposição para que os sujeitos ajam sobre o imediatismo, sobre uma cultura da urgência1515 Sá MC, Azevedo CS. Trabalho, Sofrimento e Crise nos Hospitais de Emergência do Rio de Janeiro. In: Ugá MA, Sá MC, Martins M, Braga Neto FC, organizadores. A gestão do SUS no âmbito estadual: o caso do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2010., podemos inferir que a pandemia se inseriu num cenário que já se caracterizava como de crise. A conjuntura de pandemia se anunciou atualizando esse momento de crise; e sem possibilidade de qualquer tipo de reconhecimento, sem oportunidade de construção de sentido, apresentou como efeito angústias consecutivas de perdas simbólicas e de desfiliação social1515 Sá MC, Azevedo CS. Trabalho, Sofrimento e Crise nos Hospitais de Emergência do Rio de Janeiro. In: Ugá MA, Sá MC, Martins M, Braga Neto FC, organizadores. A gestão do SUS no âmbito estadual: o caso do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2010..

A angústia é entendida como um mal-estar1616 Bauman Z. Vida para Consumo: A transformação de pessoas em mercadoria. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de janeiro: Jorge Zahar; 2008. que representa uma carência de esperança, uma ausência de perspectiva de futuro, o que vai ao encontro com o que temos presenciado atualmente, onde a falta de sentido, de um encadeamento coerente de significantes, tem provocado um déficit nas perspectivas de quando vai findar todo o sofrimento gerado pela COVID-19 e ainda persistente. O sofrimento se iniciou e se posterga com a angústia, o desemprego e o elevado número de mortes provocado, constituindo perdas simbólicas, materiais e afetivas, respectivamente - processos de luto ainda ativos. A pandemia representou um desafio biográfico, afetando o corpo em seus aspectos material, simbólico e imaginário1717 Gaudenzi P. Cenários brasileiros da Saúde Mental em tempos de Covid-19: uma reflexão. Interface (Botucatu) 2021; 25 (Supl. 1):e200330..

Todos repetiam o mesmo coro: “vai passar”, talvez como forma de criar uma ilusão de coro coletivo e de temporariedade e brevidade; mas a ausência do entendimento de quando esse sofrimento iria de fato passar parecia apenas refletir em mais angústia. E a incerteza sobre o futuro só aumentava, produzindo ainda mais desesperança.

Uma crise de valores agia, associada ao avanço tecnológico e científico do conhecimento. Sem um encadeamento de significantes capaz de dar conta da produção de conhecimento necessária para responder com um sentido possível a tudo o que se vivia, instituiu-se uma catástrofe sanitária, o que configurou um trauma - uma experiência que nos toma inesperadamente, nos invade e nos remete ao desamparo psíquico22 Birman J. O trauma na pandemia do Coronavírus - suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2021.. A crise mundial se propagou, juntamente com o vírus, correspondendo a uma crise em várias dimensões. Compreendemos que essa crise se constituiu - e ainda se constitui - como uma crise de ligação entre as dimensões das realidades intrapsíquica, interpsíquica e material, como uma crise psicossocial, do intermediário1818 Kaes R. O grupo e o sujeito do grupo: elementos para uma teoria psicanalítica do grupo. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1997.. A ligação entre os sujeitos se tornou abalada, seja através do distanciamento físico, seja através do velamento das emoções com o uso das máscaras. O coletivo, o social, as trocas intersubjetivas, as possibilidades de contato se submeteram às necessidades de proteção e distanciamento físico. E o sofrimento se tornou banalizado, num contexto de baixa governabilidade e de baixo investimento dos hospitais, nos serviços públicos de saúde1515 Sá MC, Azevedo CS. Trabalho, Sofrimento e Crise nos Hospitais de Emergência do Rio de Janeiro. In: Ugá MA, Sá MC, Martins M, Braga Neto FC, organizadores. A gestão do SUS no âmbito estadual: o caso do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2010., favorecendo vivências de desamparo e de desconfiança no futuro22 Birman J. O trauma na pandemia do Coronavírus - suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2021.. Por mais que fosse mantida a possibilidade de contato social virtualmente, a ausência de permanência de vínculos presenciais, com a falta de representação de disponibilidade do sujeito ao outro, promoveu um grande prejuízo para a construção de incentivos a possibilidades de solidariedade e encontros afetuosos, o que afetou as trocas intersubjetivas, compassivas e a prática de cuidado.

Com as novas variações do vírus, e as exibições de sua capacidade vertiginosa de contágio, o sofrimento se tornou cada vez mais intensificado com a irrupção de sintomas, adoecimentos, faltas, perdas e (até) mortes. A doença crônica modela a identidade do sujeito conforme o seu adoecimento1919 Alves CA. Cuidado e cronicidade: Um encontro necessário. In: Alves CA. Tessituras do cuidado: As condições crônicas de saúde na infância e adolescência. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.. Entretanto, no caso do adoecimento pandêmico, a questão que emerge é a de como se moldaram os sujeitos, se lhes faltava o sentido sobre o seu próprio adoecimento. Com a aceleração do tempo que a doença na pandemia irrompe, poderíamos nos perguntar como se manteve a identidade do sujeito que padeceu, para além dos sintomas físicos.

O caminho reflexivo para um cuidado criativo

A proposta de reflexão sobre a perspectiva da clínica do sujeito, do cuidado ampliado, possibilita a consideração do contexto subjetivamente construído, incluindo uma disponibilidade de olhar e de escuta, para além da construção objetiva do doente, com sua doença66 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc 2004; 13(3):16-29.,2020 Campos GWS. A Clínica do Sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. In: Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2002.. O cuidado ampliado proporciona ao sujeito o desdobramento de suas potencialidades, para além do reconhecimento de suas limitações; identificando a possibilidade de novos encontros de sentido. Favorece, assim, uma possibilidade de fazer sentido. E através dessa abertura desponta a oportunidade de “prática reflexiva” e construção de projetos juntamente com outros sujeitos, numa colaboração voltada para a transformação do mundo2121 Onocko-Campos R. Humano demasiado humano: uma abordagem do mal-estar na instituição hospitalar. In: Onocko-Campos R. Psicanálise & Saúde Coletiva. Interfaces. São Paulo: Hucitec; 2012.. Seria através dos vínculos, da intersubjetividade, que se tornaria possível a estimulação da prática da clínica reflexiva2020 Campos GWS. A Clínica do Sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. In: Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2002., lugar este do qual poderíamos nos posicionar para pensarmos numa perspectiva de cuidado para enfrentamento e sustentação do adoecimento individual e coletivo durante a pandemia.

A sustentação, nomeada por Winnicott como “função de holding33 Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1971., se destaca no percurso de cuidado como uma função que possibilita ao sujeito se apoiar, encontrar estabilidade, e se constituir subjetivamente, o que implica na garantia de continuidade da vida e favorece o fortalecimento da identidade, da esperança e da produção de sentido.

Torna-se evidente que caminhamos para um tempo em que nos direcionamos não só para questões objetivas, biomédicas. Outros tipos de questões surgem, como medo, angústia e ansiedade, ratificando a importância do cuidado. Percebemos que os sujeitos adoecidos, nesse contexto, não são apenas os infectados pelo vírus da pandemia, mas também todos aqueles que se implicaram de algum modo com cuidar (do outro e/ou de si mesmo em quarentena). O que muitas vezes passa despercebido por quem cuida é que a necessidade de fazer o possível, de salvar, de enfrentar a realidade com todas as forças tende a diminuir as defesas do próprio sujeito que se propõe a cuidar. E as falhas constantes nos dispositivos sociais de acolhimento tendem a reproduzir ainda mais a ausência de sentido2222 Figueiredo LC. A metapsicologia do cuidado. Psyche 2007; 11(21):13-30.. Foi o que presenciamos constantemente na clínica, onde profissionais de saúde se arriscavam a adoecer, sofrer e perder. E sem espaço e condições, muitas vezes, não acessavam o processo reflexivo necessário para o próprio processo de cuidado e acolhimento.

A atuação na assistência hospitalar a pessoas em tratamento de doenças agudas e crônicas, durante a pandemia nos trouxe o contato com uma intensa angústia apresentada pelos profissionais de saúde, invadidos por questões relativas ao contexto da pandemia (como cobrança por presença, coragem e eficiência), as quais lhes afetavam o corpo e a subjetividade. Essa angústia lhes provocava intensas crises de ansiedade, as quais se manifestavam diariamente nas dinâmicas de convivência que estabeleciam. Esses profissionais intensificavam os seus tempos de cuidado, a partir do aumento de demandas e de jornadas, o que os fazia terem que lidar diretamente com as angústias dos pacientes e familiares, e precisarem suportar toda a pressão de produtividade externa e de sustentação interna. Nos encontros com os profissionais de saúde no hospital durante a pandemia nos foi possível observar constantemente a repetição de algumas situações:

- Alguns procuravam diretamente a psicóloga da Unidade de Saúde e/ou informavam terem se cadastrado em algum dos inúmeros serviços oferecidos de escuta psicológica virtual. Nesses casos foi possível perceber uma busca ativa pela escuta de um agente de saúde mental e o reconhecimento pelo profissional de saúde de sua limitação e necessidade de suporte e elaboração;

  1. - Era comum o encontro com profissionais agitados nos seus afazeres, buscando a inserção numa lógica constante de produtividade, o que parecia expressar uma provável rota de fuga à possibilidade de reflexão e de enfrentamento da realidade;

  2. - Também era possível o encontro com os profissionais de saúde em locais reservados, em isolamento, numa tentativa de esconder o sentimento de tristeza e frustração, como se buscassem, através de lágrimas, liberar todo o afeto retesado em sofrimento. Lágrimas descritas, na maioria das vezes, como sendo sufocantes;

  3. - Havia também aqueles que ainda negavam a realidade, buscando afirmar que estava tudo bem, que nada havia mudado, repetindo o mantra de que a vida seguia e continuava a mesma de sempre.

Alguns dos sujeitos que participaram dessas vivências se encaixam em mais de um desses momentos, configurando a angústia e a imprecisão do contexto que a pandemia trouxe e a limitação de um sentido disponível para uma perspectiva de protocolo de cuidado.

Os discursos dos profissionais de saúde geralmente questionavam a força pessoal em intensidade e durabilidade e expressavam o medo de ficarem doentes, a insegurança diante do futuro e a necessidade de também serem cuidados.

Tornou-se perceptível que em nenhum momento esses profissionais de saúde consideraram a possibilidade de desistência, de abandono do seu cargo. Muitas vezes, até identificavam suas limitações, e essas revelavam o medo, a insegurança, mas não uma desistência. Presentificavam constantemente a necessidade de enfrentamento e de manutenção de uma força sobre-humana, como se pudessem assumir o lugar de super-heróis, num cenário tão frustrante (com o rompimento de sentido), que se definia com a pandemia de COVID-19.

Os superpoderes se multiplicavam através do aumento de horas de trabalho (com qualidades de sono e de descanso interrompidas), da negociação por equipamentos de proteção individual a partir de laços informais, da tentativa de aplacamento da dor com estratégias de intermediação entre médicos e pacientes.

Sobre a disponibilidade dos profissionais da saúde ao enfrentamento, no decurso da COVID-19, encontramos em Dejours et al.2323 Dejours C, Abodoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 1994. a estratégia de defesa coletiva. Essa é definida como sendo um dispositivo construído coletivamente, a partir de um consenso, produtor de coesão, e através do qual o sujeito/trabalhador se apoia, na busca de transformar sua percepção sobre a realidade que o faz sofrer2323 Dejours C, Abodoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 1994.. Atuando como uma resistência ao Real, a estratégia defensiva coletiva proporciona proteção ao sujeito contra o sofrimento gerado pelas condições de trabalho. Por outra via, também pode se constituir em armadilhas, representadas por agressividade, passividade e até mesmo alienação, um não reconhecimento do próprio sofrimento e do sofrimento do outro, o que pode acabar gerando ainda mais sofrimento.

Existem também as estratégias de defesa individual, as quais podem gerar o cinismo, a dissimulação, a racionalização, a passividade e até mesmo o individualismo2424 Mendes AM. Psicodinâmica do trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2007.. E, entre essas estratégias de defesa, identificamos a emergência do “super-heroísmo” como reflexo de uma armadilha narcísica. Desse modo, o profissional de saúde se defendia da falta de sentido que emergia em sua prática, através da precária efetividade de sua função durante a pandemia, alienando-se ao outro, de quem cuidava, e assumindo a experiência solitária de exaltação própria de potencialidades (ilusão) de sua função. Como defesa contra o adoecimento, um narcisismo forte constituiu-se2525 Freud S. Sobre o Narcisismo: Uma introdução. In: Freud S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1996.. E sob a criatividade de uma outra perspectiva, o amor, o qual pode ser representado através do cuidado, constituiu-se um recurso potencial criativo contra qualquer forma de adoecimento.

Embora o sofrimento produzido, no contexto de pandemia, possa caracterizar um sofrimento singular ao sujeito - profissional de saúde - agente do cuidado, ao adentrar em uma lógica produtivista neoliberal (que implica a exigência pela produtividade e pelo consumo alienante), o sujeito tende a se apropriar de uma defesa, a qual pode ser coletiva, sob o imaginário de super-herói, na tentativa de aplacar as dimensões de precarização e ineficiência, geralmente suplantadas pela realidade do SUS. Tentando se esquivar de uma possível frustração diante da vivência de heroísmo, o sujeito pode, ainda, gerar uma nova frustração, pois o imaginário de super-herói não representa a realidade. Todavia, buscando seguir pelo caminho da esperança, o imaginário pode fecundar o real, trazendo para além de frustração, uma nova possibilidade, a de produção criativa2626 Azevedo CS. A dimensão imaginária e intersubjetiva das organizações de saúde: implicações para o trabalho gerencial e para a mudança organizacional. Cien Saude Colet 2010; 15(Supl. 1):977-986.. Sem imaginário não há possibilidade de projetos, nem esperança.

Sobre a imaginação, consideramos que seja essa ação que nos possibilita conhecimento e aprendizagem, afetação e encantamento2727 Diniz D, Gebara I. Esperança Feminista. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos; 2022.. A imaginação favorece a sensibilidade e promove o cuidado. Torna-se importante transformarmos a angústia positivamente numa afirmação de viver, como forma de criarmos novos símbolos sociais e políticos de mediações possíveis11 Birman J. Excesso e ruptura de sentido na subjetividade hipermoderna. Cad Psicanal 2004; 26(17):175-195.. Eis assim o que compreendemos como imaginário e possibilidades criativas para fortalecer a imaginação.

Seguindo por esse entendimento, e associando à noção de espaço transicional33 Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1971. - uma área de compromisso, de experiência cultural, um espaço potencial entre a realidade interna e a vida externa - refletimos sobre a viabilidade de uma ligação entre o imaginário de heroísmo e o real, promovendo a possibilidade de produção de um sentido criativo para a perspectiva de cuidado, onde a compreensão sobre o imaginário de herói favoreceria uma produção de sentido sobre a perspectiva de cuidado no real. Acreditamos que essa produção de sentido também perpassa a possibilidade de encontro dos profissionais de saúde com fontes de prazer. Segundo Dejours et al.2323 Dejours C, Abodoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 1994., as exigências organizacionais e de trabalho se constituem em fontes de sofrimento para os sujeitos, mas também de prazer. O prazer se apresenta através da valorização e do reconhecimento no trabalho2323 Dejours C, Abodoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas; 1994., o que demonstra se relacionar com a questão do heroísmo. E é assim, vivendo, integrando trabalho e prazer, que o profissional de saúde pode ir se (re-)criando e se (re-)imaginando, fazendo sentido e ressignificando suas vivências de cuidado.

Trabalho, Cuidado e Criatividade

Sobre a relação entre trabalho e cuidado, chamamos atenção para a realização de um trabalho comprometido com a vida1919 Alves CA. Cuidado e cronicidade: Um encontro necessário. In: Alves CA. Tessituras do cuidado: As condições crônicas de saúde na infância e adolescência. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.. Constatamos através da prática clínica, cotidianamente, o comprometimento dos profissionais de saúde em suas atividades de cuidado. O cuidado proporciona ao trabalho uma perspectiva de flexibilidade técnica e de integralidade1919 Alves CA. Cuidado e cronicidade: Um encontro necessário. In: Alves CA. Tessituras do cuidado: As condições crônicas de saúde na infância e adolescência. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.; e esses profissionais flexibilizavam suas técnicas de modo a se posicionarem com integralidade e aptidão para atenderem às necessidades e demandas que o novo contexto imputava.

Refletindo sobre o cuidado, chegamos à importância do exercício de um cuidado prudente, tal como proposto por Mattos1010 Mattos RA. Cuidado Prudente para uma vida decente. In: Mattos RA, Pinheiro R. Cuidado, as Fronteiras da Integralidade. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2013., que valoriza as consequências/os efeitos da ação do cuidado, contribuindo para uma vida decente do profissional1010 Mattos RA. Cuidado Prudente para uma vida decente. In: Mattos RA, Pinheiro R. Cuidado, as Fronteiras da Integralidade. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2013., a partir de uma ação de cuidado consciente, responsável e sensato. O cuidado assim se desponta como favorecedor do comprometimento profissional com uma vida digna1010 Mattos RA. Cuidado Prudente para uma vida decente. In: Mattos RA, Pinheiro R. Cuidado, as Fronteiras da Integralidade. Rio de Janeiro: CEPESC, IMS/UERJ, ABRASCO; 2013.,1919 Alves CA. Cuidado e cronicidade: Um encontro necessário. In: Alves CA. Tessituras do cuidado: As condições crônicas de saúde na infância e adolescência. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.. Podemos inferir que o cuidado implicado e comprometido com o outro, durante a pandemia, refletiu para o próprio agente do cuidado enquanto uma possibilidade de lhe proporcionar uma vida comprometida de sentido, decência e dignidade. O reconhecimento, assim traduzido, desse potencial configura um sentido criativo ao cuidado.

O trabalho em saúde é dependente do trabalho vivo em ato88 Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2007., o qual, como expresso por Mehry88 Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2007., indica o trabalho que se realiza enquanto é executado, produtor de cuidado - o que colabora para a configuração de sua existência através da dinâmica relacional, de presença, constituindo a cartografia da micropolítica do trabalho vivo em ato - um caminhar produtivo, construtor de vínculos, no agir em saúde. O profissional de saúde, na maioria das vezes, exerce sua função de cuidado em presença, tornando-se difícil o distanciamento físico na sua atuação, como foi requisitado, durante a pandemia, a muitas outras funções. Sua função em presença ganhou notoriedade e essa se intensificou nesse tempo, pois, além do cuidado físico, representou a possibilidade, ao outro sujeito, de uma proximidade com um cuidado emocional, afetivo e social - o que tendeu a reforçar a pressão pessoal do profissional de saúde pela ocupação do lugar de salvador.

O trabalho vivo em ato, sob a ótica da micropolítica, considera o processo de vínculos como promotor do trabalho criador, onde a criatividade e a autonomia possibilitam a emergência de uma prática que, além de técnica, se constitui social e facilitadora da produção de um novo produto de cuidado - uma prática que se configura técnica, social e, também, afetiva99 Merhy EE, Feuerwerker LCM. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: Mandarino ACS, Gomberg E. Leituras de novas tecnologias e saúde. Salvador: UFS, UFBA; 2009.. Através dos vínculos, da criatividade e do afeto, mais um sentido para o cuidado durante a pandemia se tornou possível. E sobre o sentido da afetividade, identificamos sua notoriedade através da dimensão simbólica nas práticas de saúde1414 Sá MC. Por uma abordagem clínica psicossociológica de pesquisa e intervenção em saúde coletiva. In: Azevedo CS, Sá MC. Subjetividade, Gestão e Cuidado em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ENSP; 2013..

O cuidado, assim dimensionado, se constitui para além do paradigma biomédico (que reduz o sujeito paciente ao seu corpo doente), representando um cuidado ampliado, voltado para a clínica do sujeito. De acordo com Canguilhem2828 Canguilhem G. O normal e o patológico. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. (p.79): “O homem, mesmo sob o aspecto físico, não se limita ao seu organismo. [...] É, portanto, para além do corpo que é preciso olhar, para julgar o que é normal ou patológico para esse mesmo corpo”. Além disso, com a contemporaneidade, uma ruptura se produziu sobre a nossa compreensão de continuidade histórica, e a subjetividade se tornou incapaz de antecipar o que se apresenta como perigo11 Birman J. Excesso e ruptura de sentido na subjetividade hipermoderna. Cad Psicanal 2004; 26(17):175-195. - e isso é o que vimos se atualizar com a COVID-19, através do esvaziamento da segurança psíquica do corpo em relação ao mundo/à natureza.

A criatividade no trabalho se tornou necessária. Ela se encontra integrada à continuidade do ser, sendo considerada uma condição necessária para que o sujeito se sinta vivo, expressando seu verdadeiro self (eu)33 Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1971.. Seria a capacidade da criatividade que permitiria a adaptação do sujeito à realidade, com suas demandas, desafios e experiências de sofrimento, promovendo assim a continuidade do ser. Essa possibilidade de continuidade configura um sentido possível para o cuidado, possibilitando o fluir da vida - estimulando esperança para o que se presentifica em catástrofe.

Faz-se importante que o trabalhador de saúde possa acrescentar algo de si ao seu trabalho2929 Fonseca MLG. Inteligência Prática e o exercício do cuidado na enfermaria oncológica. In: Fonseca MLG. Da prescrição à criação: Inteligência prática, produção de cuidado e invisibilidade no trabalho de uma equipe de enfermagem em oncologia [tese]. Rio de Janeiro: ENSP; 2014.,3030 Dejours C. Inteligência Prática e Sabedoria Prática: Duas Dimensões Desconhecidas do Trabalho Real. In: Lancman S, Sznelwar LI. Chistophe Dejours: Da Psicopatologia à Psicodinâmica do Trabalho. Rio de Janeiro, Brasília: Fiocruz, Paralelo 15; 2008., manifestando sua capacidade de interpretar a realidade e de usar sua criatividade, para assim conseguir vencer as barreiras do desafio estabelecido pela realidade. Nessa perspectiva, emerge o conceito de sabedoria prática como sendo uma capacidade de aprendizagem, valorativa das dimensões da palavra e da escuta. Essa capacidade possibilita a inteligência criadora77 Ayres JRCM. Cuidado: tecnologia ou sabedoria prática? Interface (Botucatu) 2000; 4(6):117-120. - um saber-fazer astucioso, criativo e efetivo, com dimensão corpórea e adquirido através da experiência. Essa inteligência revelou-se como a ferramenta inventiva da prática dos trabalhadores heróis durante a COVID-19. Uma ferramenta investida de poderes de emancipação humana, onde cada trabalhador pôde administrar um pouquinho de sua subjetividade na tomada de consciência de como agir em cada situação, o que se tornou um instrumento de ação narrativa e criativa.

A sabedoria prática possui uma dimensão intangível, essencial para a produção de cuidado3030 Dejours C. Inteligência Prática e Sabedoria Prática: Duas Dimensões Desconhecidas do Trabalho Real. In: Lancman S, Sznelwar LI. Chistophe Dejours: Da Psicopatologia à Psicodinâmica do Trabalho. Rio de Janeiro, Brasília: Fiocruz, Paralelo 15; 2008.. Entendemos que seja a partir dessa sabedoria que se torna possível, ao trabalhador, a construção e a mobilização sobre o sofrimento do outro e sobre o seu próprio sofrimento, a partir de uma troca simbólica com o campo social, onde o sentido da identidade pessoal poderá ser então elaborado. E nesse intercâmbio simbólico, o trabalhador pode ir se reconhecendo e se fortalecendo enquanto profissional e subjetividade, agente e paciente de mais uma possibilidade criativa da ação do cuidado.

O potencial do imaginário motor

Diante da perspectiva de estudo, nesse ensaio, desenvolvida, percebemos a coexistência de dois polos de possibilidades: a existência do imaginário enganoso (o qual interpretamos como sendo as estratégias de defesa desenvolvidas durante a pandemia, sobretudo através do papel de heroísmo) e do imaginário motor (o qual entendemos a partir da estratégia de cuidado)2626 Azevedo CS. A dimensão imaginária e intersubjetiva das organizações de saúde: implicações para o trabalho gerencial e para a mudança organizacional. Cien Saude Colet 2010; 15(Supl. 1):977-986.. Compreendendo que o contexto pandêmico se constituiu sobre os moldes do imaginário enganoso, acreditamos que seria a partir do reconhecimento e da valorização do imaginário motor que as possibilidades de criatividade e de sabedoria prática poderiam ser reforçadas, funcionando como espaço transicional2626 Azevedo CS. A dimensão imaginária e intersubjetiva das organizações de saúde: implicações para o trabalho gerencial e para a mudança organizacional. Cien Saude Colet 2010; 15(Supl. 1):977-986.. O espaço transicional atua como um espaço intermediário entre os mundos interno e externo; um espaço potencial, onde se desenvolve a criatividade e torna-se possível uma atividade reflexiva2626 Azevedo CS. A dimensão imaginária e intersubjetiva das organizações de saúde: implicações para o trabalho gerencial e para a mudança organizacional. Cien Saude Colet 2010; 15(Supl. 1):977-986.. Esse fluxo favorece a construção de sentido, sob a forma de uma perspectiva de cuidado, orientadora da vida, que se destina para além do tempo de pandemia; onde o acolhimento da dor do outro torna possível a criação de novos circuitos pulsionais1717 Gaudenzi P. Cenários brasileiros da Saúde Mental em tempos de Covid-19: uma reflexão. Interface (Botucatu) 2021; 25 (Supl. 1):e200330.. Sobre a tarefa de cuidar, entendemos com Sá1414 Sá MC. Por uma abordagem clínica psicossociológica de pesquisa e intervenção em saúde coletiva. In: Azevedo CS, Sá MC. Subjetividade, Gestão e Cuidado em Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ENSP; 2013. (p.202) que essa “é a única forma que dará à vida que levamos e ao mundo em que vivemos sentido e valor”. O cuidado compreende, assim, ele próprio um sentido para si mesmo, para a ressignificação da pandemia, da subjetividade, do trabalho e da continuidade da vida.

Conclusão

A elaboração de uma perspectiva de cuidado possível, frente ao momento de crise psicossocial, que a COVID-19 presentificou, facilita ao sujeito, encontrar continência e sentido para suas vivências, ressignificando assim toda a sua experiência de cuidado e de vida durante esse tempo. O amor, a criatividade, a imaginação, a inteligência criadora, a sabedoria prática, o cuidado prudente, o trabalho vivo em ato e o imaginário motor representam, nesse cenário, possibilidades de sentidos possíveis à compreensão da perspectiva de cuidado, favorecendo a mudança, no contexto da COVID-19 - a partir de um código simbólico factível de sentido. Seria assim, através da criatividade, do uso positivo da angústia, da possibilidade de fazer diferente, em nome da vida, que o sujeito (profissional de saúde) poderia superar o sofrimento - que o paralisa - e encontrar um sentido para sua existência - o que perpassa a prática do cuidado e seu sentido em si. Conforme acentuam Fonseca e Sá3131 Fonseca MLG, Sá MC. A insustentável leveza do trabalho em saúde: excessos e invisibilidade no trabalho da enfermagem em oncologia. Saude Debate 2015; 39(n. esp.):298-306. (p.299): “[...] o trabalho em saúde possui uma dimensão intangível que é muito maior e muito mais definitiva para a qualidade do cuidado produzido do que aquilo que do trabalho pode ser mensurado ou apreendido por indicadores formais”.

O fortalecimento dos processos que valorizam o acesso do sujeito a sua própria subjetividade, como o reconhecimento do que lhe faz sofrer e do que lhe traz prazer, é o que funciona como antídoto contra o sofrimento3232 Cecílio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos "mais do mesmo"? Rev Saude Soc 2012; 21(2):280-289.. Sendo assim, estudos sobre as variáveis constituintes de sofrimento no cenário de pandemia se faz importante de modo a ajudar os profissionais de saúde, num primeiro momento, na identificação dessas variáveis; favorecendo a reflexão sobre a prática de cuidado possível. Nesse movimento, o profissional de saúde pode encontrar autonomia na sua prática e se orientar pelo percurso de desvendar o seu próprio sentido do trabalho, enriquecendo seus registros de linguagem11 Birman J. Excesso e ruptura de sentido na subjetividade hipermoderna. Cad Psicanal 2004; 26(17):175-195. - enquanto supera o imaginário de conformismo que caracteriza as organizações públicas de saúde1515 Sá MC, Azevedo CS. Trabalho, Sofrimento e Crise nos Hospitais de Emergência do Rio de Janeiro. In: Ugá MA, Sá MC, Martins M, Braga Neto FC, organizadores. A gestão do SUS no âmbito estadual: o caso do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2010..

Através de uma perspectiva criativa de cuidado, torna-se possível o resgate da função simbólica da linguagem, esvaziada pelo medo, pela angústia e pela ansiedade - sintomas da pandemia - configurando assim a possibilidade de um lugar reflexivo para o sujeito. Estudar as ressignificações do cuidado na época de pandemia se faz fundamental, uma vez que o contexto favorece a reprodução da dimensão de mal-estar.

As alianças inconscientes entre os sujeitos podem ser geradoras de cuidado, possibilitando a constituição da subjetividade, a partir dos processos coletivos1515 Sá MC, Azevedo CS. Trabalho, Sofrimento e Crise nos Hospitais de Emergência do Rio de Janeiro. In: Ugá MA, Sá MC, Martins M, Braga Neto FC, organizadores. A gestão do SUS no âmbito estadual: o caso do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2010.. Sendo assim, podemos colaborar para a ressignificação da perspectiva de cuidado a partir de práticas dimensionadas à atenção, escuta, diálogo, mediação, vínculos e suporte, diante de momentos de sofrimento; tornando possível a reflexão sobre paradigmas, a elaboração de perdas, mudanças, e, assim sendo, a produção de novos sentidos.

O cuidado, nessa configuração, pode encontrar novas possibilidades de sentido, e ser ressignificado, como já ocorrera em outros momentos, com a perspectiva do cuidado biomédico (centrado no corpo do sujeito doente) e do cuidado ampliado (valorizando outras dimensões, como o afeto, a fala e o desejo).

Uma possível ressignificação ganhou forma, no início da conjuntura da COVID-19, com a figura do super-herói, a qual se apresentou, e ainda se apresenta, como uma tentativa de aplacar o vazio de ausências, perdas e sobrecargas. Compreender como o cenário da COVID-19 se revelou, através das formas como o cuidado se apresentava na prática clínica, desde o início do contexto pandêmico, facilita o trabalho sobre a compreensão de uma perspectiva de cuidado que possa promover um maior suporte e entendimento sobre as circunstâncias de adoecimento vivenciadas durante a COVID-19. Essa perspectiva aponta para a realização de práticas reflexivas de cuidado, com atuações criativas, dialógicas e produtoras de sentidos. Deslumbramos, assim, a possibilidade de construção de mais espaços coletivos, destinados ao amparo do sofrimento, como grupos de reflexão - com investimentos na produção de acolhimentos, pesquisas e intercâmbios disciplinares. O projeto de construção do SUS, a partir de discussões que consideram a relação entre teoria e prática de modo indissociável3232 Cecílio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos "mais do mesmo"? Rev Saude Soc 2012; 21(2):280-289., promove um diálogo que torna possível a reflexão sublinhada por Cecílio3232 Cecílio LCO. Escolhas para inovarmos na produção do cuidado, das práticas e do conhecimento: como não fazermos "mais do mesmo"? Rev Saude Soc 2012; 21(2):280-289. (p.281) sobre “como não fazer mais do mesmo”. Fazer diferente em direção ao encontro de novas possibilidades de sentido, ou pelo menos de redefinições de sentidos, inscreve novas possibilidades de ressignificação e ações de saúde pública, voltadas para o cuidado no enfrentamento ao adoecimento, e, assim, para o suporte ao sujeito em sofrimento. Nos encorajamos, e nos fortalecemos com a importância de nos desfocarmos da ótica de saúde e doença para nos direcionarmos em busca de novas possibilidades de sentido de vida33 Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1971., mesmo que o contexto esteja constituído pela catástrofe e pelo caos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    04 Mar 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br