Vulnerabilidades mediando o encontro do Cuidado em Saúde: por uma agência interseccional

Ana Cláudia Barbosa Simone Santos Oliveira Roberta Gondim de Oliveira Sobre os autores

Resumo

O presente ensaio articula os conceitos de Cuidado em Saúde e Interseccionalidade para suscitar reflexões sobre o encontro entre o/a trabalhador/a de saúde e aquelas que aqui denominamos uma Naná: uma mulher, negra, idosa e periférica, perfil historicamente vulnerabilizado ao longo da história brasileira. Considerando as argumentações que envolvem o conceito de Interseccionalidade e as diferentes vertentes acerca do Cuidado, observamos a necessidade de se ampliar o olhar sobre estas que buscam os serviços de saúde já atravessadas por suas histórias de vida, e ponderar sobre os atravessamentos que seu perfil pode acionar em quem exerce o Cuidado. Aponta ser primordial uma agência interseccional por parte das/os agentes deste encontro, Nanás e profissionais de saúde, para que se concretizem os princípios de integralidade e equidade no Sistema Único de Saúde (SUS).

Palavras-chave:
Vulnerabilidade em saúde; Cuidados de saúde; Interseccionalidade; Determinantes sociais da saúde

Introdução

Racismo e raça são estruturantes nas relações sociais no Brasil, constituintes das hierarquias de classes e das relações de gênero. Tal fato se ancora em nosso histórico como uma sociedade colonizada e escravocrata, cuja construção se deu sob o signo da escravização de pessoas africanas e indígenas, com a consequente subalternização destas em nosso cenário, o que nos ajuda a compreender as disparidades apontadas em indicadores de saúde, acentuadas pela pandemia de COVID-1911 Santos MPA, Nery JS, Goes EF, Silva A, Santos ABS, Batista LE, Araújo EM. População negra e covid-19: reflexões sobre racismo e saúde. Estud Av 2020; 34(99):225-244..

O contexto pandêmico caracterizou-se como uma experiência complexa, diversa e não monolítica, adoecedora e fatal para estas populações, por suas condições históricas de vida e saúde, pondo em evidência nossas vulnerabilidades sociais, o quanto os marcadores sociais da diferença (como a intersecção de gênero, raça, geração e classe) atuam de forma conjectural e/ou contextual para melhores ou piores desfechos em saúde e a necessidade de se refletir sobre o Cuidado ofertado quando a meta é a equidade em Saúde.

Este ensaio teórico traz como objeto de análise uma argumentação envolvendo a Interseccionalidade e o Cuidado em Saúde. Quando os marcadores sociais da diferença se interseccionam e temos uma mulher/negra/idosa/periférica em busca do cuidado, é preciso refletir sobre como tem se dado o encontro destas pessoas com trabalhadoras/es da saúde, sendo elas uma agente que desperta, por suas intersecções, acionamentos específicos naquela/e que irá proporcionar-lhe o cuidado. Seguindo os preceitos do Sistema Único de Saúde (SUS), o cuidado deve contemplar os princípios de equidade, integralidade, preceitos da humanização. Mas a depender de quem é cuidada/o, tais dispositivos serão mais ou menos acionados? Como trabalhadoras/es da saúde (a/o outra/o agente na relação de Cuidado) tecem a micropolítica do trabalho de cuidar, no que tange às características interseccionais? Como aciona e é acionado pelas experiências de cuidado quem encarna o perfil de ser mulher/negra/idosa/periférica? Doravante esta mulher será denominada pelo cognome Naná, intencionando personalizar esta agente e evitar a repetição exaustiva dos termos a respeito de seu gênero/raça/idade/classe. Advém do apelido da avó materna e ancestral mais significativa de uma das autoras.

Trazemos a Determinação Social da Saúde (DSS) como parte desta discussão, onde o debate se coloca e definições são campos em disputa, razão pela qual é preciso considerar os limites dos termos. Minayo22 Minayo MCS. Determinação social, não! Por quê? Cad Saude Publica 2021; 37(12):e00010721. (p.1-2) afirma que se “tudo o que é historicamente construído pode ser desconstruído pela ação humana”, a DSS seria algo passageiro, em contraponto a uma “reificação das estruturas sociais”. Logo, entende ser uma contradição em termos chamar de determinado algo cambiante. A autora afirma que aceitar a Determinação Social (DS) implica em “desdenhar [d]a criatividade, [d]a autonomia e [d]o poder de cada pessoa ou da sociedade para reagir”22 Minayo MCS. Determinação social, não! Por quê? Cad Saude Publica 2021; 37(12):e00010721. (p.9).

Entretanto, ponderamos que pessoas vulneradas, por diferentes estruturas de opressão, teriam menor autonomia, agência e reação. Para Breilh33 Breilh J. La categoría determinación social como herramienta emancipadora: los pecados de la "experticia", a propósito del sesgo epistemológico de Minayo. Cad Saude Publica 2021; 37(12):e00237621. (p.1), a DSS possui uma “caixa de ferramentas contra hegemônicas” que poderia servir como um modelo interpretativo para observar-se uma realidade complexa e incerta, onde pessoas e coletividades transitam com uma autonomia relativa.

Nedel e Bastos44 Nedel FB, Bastos JL. Para onde seguir com a pesquisa em determinantes sociais da saúde? Rev Saude Publica 2020; 54:15., em seu comentário crítico sobre pesquisas abordando a questão da DSS, salientam que desde os textos hipocráticos é disseminada a ideia do quanto as condições de saúde, adoecimento e morte são determinadas pelas condições sociais de reprodução da vida. O entendimento de que a saúde tem uma DS e o avanço do conhecimento biomédico, entretanto, não têm sido suficientes para libertar as sociedades das desigualdades moralmente injustificáveis, ou garantido a ideia de mudança e justiça social como um imperativo para melhoria das condições de vida. A lógica não-linear de que há uma sobredeterminação, ou seja, instâncias que são causa e consequência “da reprodução social de processos saúde-enfermidade” da qual nos fala Almeida-Filho55 Almeida-Filho N. Mais além da determinação social: sobredeterminação, sim! Cad Saude Publica 2021; 37(12):e00237521. (p.2), pode dialogar com o paradigma da interseccionalidade, tema que trazemos para a centralidade do Cuidado.

O Cuidado em Saúde tem interfaces com o racismo estrutural e institucional, pois ainda vivemos sob o mito da democracia racial, que através de uma gramática sociorracial fez valer a ideia de que vivíamos uma cordialidade entre as raças. “Corpos humanos não são homogêneos em todos os lugares, são variantes de inúmeras dinâmicas, com destaque para as históricas, sociais, ambientais e políticas”66 Oliveira RG. Vidas em exclusão e a reinvenção do Cuidado. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021. (p.30).

Considerando esta heterogeneidade, tomamos uma definição de agência do filósofo Molefi Asante77 Asante MK. Afrocentricidade: Notas sobre uma posição disciplinar. In: Nascimento EL, organizadora. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro; 2009. p. 93-110., que a define como “a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana”; agente “é o ser humano capaz de agir de forma independente em função de seus interesses”77 Asante MK. Afrocentricidade: Notas sobre uma posição disciplinar. In: Nascimento EL, organizadora. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro; 2009. p. 93-110. (p.94). Em seguida o autor discorre sobre a obliteração daquelas/es que descendem de africanas/os em um sistema de supremacia branca: vivem uma desagência quando são descartados como protagonistas, mesmo com o fim da escravização de seus corpos. Isto ocorre particularmente com os negros em diáspora, como no Brasil, que têm a branquitude como norma ideal, provendo interdição de temas como o racismo/raça na estrutura social brasileira.

Thiry-Cherques88 Thiry-Cherques HR. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. RAP Rio de Janeiro 2006; 40(1):27-55., em análise do trabalho de Bourdieu, ressalta ser contínuo o processo de constituição das estruturas, representações e práticas, renegando assim, um determinismo destas, bem como das condutas individuais. Sim, agentes sociais constroem a realidade social, mas o fenômeno social não é produto de ações individuais. Há uma “uma estrutura historicizada que se impõe sobre os pensamentos e as ações”88 Thiry-Cherques HR. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. RAP Rio de Janeiro 2006; 40(1):27-55. (p.30) e nós, agentes, somos o “produto de estruturas profundas”88 Thiry-Cherques HR. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. RAP Rio de Janeiro 2006; 40(1):27-55. (p.34), cada qual com sua visão de mundo e com agência para a construção, conservação ou transformação deste.

Narrativas sobre sexismo, classismo, etarismo, racismo e antinegritude apontam para iniquidades na possibilidade de autocuidado/cuidado em saúde. Para Breilh99 Breilh J. Una perspectiva emancipadora de la investigación y acción, basada en la determinación social de la salud. In: Asociación Latinoamericana de Medicina Social. Taller Latinoamericano sobre Determinantes Sociales de la Salud: documento para la discusión. México, D.F.: ALAMES; 2008., na América Latina há três elementos a serem considerados para uma teoria crítica da saúde, e o pressuposto é de que não será possível desenvolver um conteúdo progressista se não houver simultânea transformação dos três: tratar a saúde como um objeto complexo; como um conceito metodológico; e como um campo de ação. Logo, não basta estabelecer o princípio multicausal e transformar os riscos probabilísticos isoladamente, ou atuar sobre os fatores “determinantes” do adoecimento. É necessário incidir sobre os processos estruturais de determinação do adoecimento e seus contextos históricos e sociais, identificar suas conexões e associações, sem fragmentar a estrutura social em/entre fatores99 Breilh J. Una perspectiva emancipadora de la investigación y acción, basada en la determinación social de la salud. In: Asociación Latinoamericana de Medicina Social. Taller Latinoamericano sobre Determinantes Sociales de la Salud: documento para la discusión. México, D.F.: ALAMES; 2008..

Para que se promova saúde somada à justiça social é preciso, além da investigação, uma práxis crítica que vá além da delação. Uma prática crítica pressupõe uma rejeição e uma tentativa de correção, ou reorientação, de ações que gerem injustiças sociais, é “a maneira como as ideias são usadas em contextos históricos e sociais específicos”1010 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. Trad.: Rane Souza. São Paulo: Boitempo; 2021. (p.87).

A interseccionalidade busca investigar como as relações de poder influenciam as sociais, sendo a sociedade marcada pela diversidade e essa, pelas experiências individuais da vida cotidiana. A interseccionalidade como ferramenta analítica irá considerar uma série de construtos que se moldam, inter-relacionam-se, mas que não se manifestam nas relações como entidades distintas e excludentes. É uma ferramenta para entender e explicar “a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas”1010 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. Trad.: Rane Souza. São Paulo: Boitempo; 2021. (p.16).

Para Henning1111 Henning CE. Interseccionalidade e pensamento feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediacoes 2015; 20(2):97-128. embora em voga nas produções acadêmicas, não há coesão ou consenso sobre o termo, que pode ser visto “como teoria, método, abordagem, paradigma, conceito, preocupação heurística, ‘lente de análise social’, base de trabalho analítico, metáfora analítica etc.” (p.102). E diante destas possibilidades, traz o termo “agência interseccional” para considerar os espaços de ação que se dão sob este signo, na teoria e na prática, em resposta a cenários estruturais de desigualdade, particularmente fomentados pelo racismo estrutural.

Desta forma, a interseccionalidade será usada, neste trabalho, como uma lente sobre a tríade gênero/raça/classe somada à idade, elucubrando sobre “o que surge, em termos de produção de sentidos sobre doenças e pessoas cujos corpos são historicamente atravessados por camadas de opressão”66 Oliveira RG. Vidas em exclusão e a reinvenção do Cuidado. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021., posto que é um conceito passível de aplicação em análises localizadas e contingenciais, contextualizadas histórica e culturalmente1111 Henning CE. Interseccionalidade e pensamento feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediacoes 2015; 20(2):97-128..

Interseccionalidade(s)

Collins e Bilge1010 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. Trad.: Rane Souza. São Paulo: Boitempo; 2021. consideram que, mais importante do que nos perguntarmos o que a interseccionalidade é, está em nos debruçarmos sobre as possibilidades que ela pode proporcionar para nossa compreensão da realidade, frisando a importância do conceito em ações que busquem justiça social. Considerando a política neoliberal e o espraiado populismo de extrema direita, podemos falar num acirramento de injustiças sociais, agravadas no pós-pandemia.

No uso da interseccionalidade como ferramenta analítica, as autoras1010 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. Trad.: Rane Souza. São Paulo: Boitempo; 2021. chamam atenção para como os movimentos sociais privilegiaram uma categoria de análise e ação descartando outras. Citam o Movimento Negro Brasileiro, que descartava a questão de gênero e o Movimento Feminista Brasileiro, que descartava a questão racial. Como exemplo prático de uso da interseccionalidade, trazem o Movimento das Mulheres Negras no Brasil (MMNB), onde Lélia González e Sueli Carneiro foram pioneiras no entendimento contemporâneo da interseccionalidade, num país que se recusava a reconhecer categorias raciais. Sob o mito da democracia racial e eliminando qualquer linguagem que remetesse à negritude e às desigualdades raciais que afligiam a população de ascendência africana, ao não existir negros (pretos e pardos) também não havia registro oficial das disparidades na educação, no emprego, na saúde ou em qualquer outro espaço. Assim, o avanço da discussão do feminismo negro no Brasil relaciona-se a um contexto social específico, pois desde sempre raça/cor foram determinantes na colocação no mundo do trabalho, na atenção à saúde e na conquista de outros bens sociais1010 Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. Trad.: Rane Souza. São Paulo: Boitempo; 2021..

Os desafios de Ser

Destacaremos alguns desafios na construção do Ser Naná, que se edifica sob o signo de múltiplas opressões. Em O Segundo Sexo, Beauvoir1212 Beauvoir S. O Segundo Sexo - vol. I e II. Trad.: Sérgio Milliet. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2019. se pergunta em que o fato de sermos mulheres terá afetado a nossa vida (p.25). Que possibilidades nos foram oferecidas e quais nos foram recusadas? Ampliando esse pensamento para a presença da velhice, da pobreza, da negritude/racismo, há um aspecto interseccional que se traduz em menores oportunidades concretas dadas a estas agentes. Qual é o lugar que a sociedade reserva para mulheres negras idosas em um sistema patriarcal branco, onde enfrentam estereótipos criados pela classe dominante? Esta autora nos diz que a mulher nasceu do “lado errado”; de que lado terá nascido a mulher negra?

O Dossiê Criola1313 Dossiê Criola. Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva [Internet]. Rio de Janeiro; 2021 [acessado 2023 abr 27]. Disponível em: https://assets-dossies-ipg-v2.nyc3.digitaloceanspaces.com/sites/3/2021/10/DossieCriolaJusticaReprodutiva_compressed-1.pdf.
https://assets-dossies-ipg-v2.nyc3.digit...
nos mostra que, no Brasil, a mortalidade materna é de 65,9% (mulheres negras) para 30,1% (mulheres brancas). Dados de violência obstétrica mostram que entre mulheres brancas e negras, estas têm menor possibilidade de analgesia para controle da dor, (farmacológica ou não) e maior possibilidade de sofrerem a já obsoleta Manobra de Kristeller (pressão na parte superior do útero). Casos de estupro ocorrem na proporção de 57,3% (mulheres negras) para 34,9% (mulheres brancas). Óbitos por aborto, 45,2% (mulheres negras) para 17,8% (mulheres brancas).

O racismo e seus derivantes, como a construção da ideia de raça, levaram à construção de um Outro1414 Brambilla BB, Rocha RVS, Oliveira WLG, Cordeiro RC. A branquidade e a (des)racialização do estado brasileiro e suas desigualdades. In: Cordeiro RC, Oliveira WLG, Vicentini F, organizadores. Saúde da população negra e indígena. Cruz das Almas: EDUFRB; 2020. p. 231-254.. Ser o Outro implica em ser o Outro de quem detém o poder da pronunciação deste Outro: o “Sujeito Absoluto”1212 Beauvoir S. O Segundo Sexo - vol. I e II. Trad.: Sérgio Milliet. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2019.. Outro é aquele a quem se impõe uma superexploração racial, os povos da periferia, como os que foram subjugados nas Américas, o não-humano, hierarquizado e socialmente classificado como uma espécie de subgente1414 Brambilla BB, Rocha RVS, Oliveira WLG, Cordeiro RC. A branquidade e a (des)racialização do estado brasileiro e suas desigualdades. In: Cordeiro RC, Oliveira WLG, Vicentini F, organizadores. Saúde da população negra e indígena. Cruz das Almas: EDUFRB; 2020. p. 231-254. (p.233). Para Grada Kilomba, na mulher negra há “uma Outridade dupla, pois somos a antítese tanto da branquitude quanto da masculinidade”1515 Kilomba G. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad.: Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó; 2019. [Edição em e-book]. (p.164).

Há democracias-capitalistas que invisibilizam estes “Outros”, ignoram-se dores e sofrimentos impostos pela supremacia branca, ansiando por um passado onde ainda não se contavam outras histórias que não as da colonialidade, subjugando toda uma comunidade em nome da cisheteronormatividade patriarcal masculina e branca. Este perfil de quem é o modelo de ser humano surge no processo colonial, cujas marcas ainda vemos, já que a supremacia branca é uma ação afirmativa de muitos séculos, vide o arcabouço legal brasileiro que apartou negros e indígenas da cidadania.

Necessário se faz considerar o papel subalternizado da mulher em nossa sociedade, potencializado na negritude; a divisão racial do trabalho que confere à população negra renda e ocupação majoritariamente inferiores às das pessoas não-negras; e a superlativação destas opressões quando chega o envelhecimento e o consequente etarismo.

Carla Akotirene1616 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Selo Sueli Carneiro, Ed. Pólen; 2019. traz como exemplo as dificuldades enfrentadas pela mulher negra, periférica e que envelhece após uma vida dedicada a trabalhos braçais. O mercado a rejeita pela velhice e a marcação de classe as mantém no lugar de empregadas, não de empregadoras: “Para a mulher negra inexiste o tempo de parar de trabalhar [...] Velhice é como a raça é vivida”1616 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Selo Sueli Carneiro, Ed. Pólen; 2019. (p.27). Podemos indagar: qual o valor de um corpo visto como útil ao trabalho pesado, braçal, quando esta possibilidade se torna inexistente? Há um outro tipo de “feminicídio”, o racializado, engendrado na velhice, caracterizado pelo abandono, pela negligência e vivenciado de forma mais intensa na presença de outras opressões?

Apesar do envelhecimento ser um fato biológico inexorável, a sua existência é um fenômeno cultural difícil de ser ignorado, pelo quantitativo de pessoas idosas que boa parte do mundo apresenta; entretanto a marginalização e a solidão experimentada por algumas delas depende da conjuntura e o adoecimento está relacionado à DS, à maneira como a pessoa idosa se alimenta, se cuida, de ter aposentadoria suficiente diante de doenças crônicas que a impeça de trabalhar: “...essa degradação não está naturalmente ligada à senescência”1717 Beauvoir S. A Velhice. Trad.: Maria Helena F. Martins. 4ª impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1990. (p.339). E neste contexto, a saúde precária, a indigência e a solidão adquirem o caráter de um tríplice encadeamento de fatores que levam pessoas idosas, por conta de sua capacidade diminuída, ao isolamento e ao asilamento1717 Beauvoir S. A Velhice. Trad.: Maria Helena F. Martins. 4ª impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1990..

Articulando a concepção de Outro à de produção nas sociedades capitalistas, recordamos que neste aspecto a pessoa idosa aparece como o Outro das/os jovens, para quem se dá maior importância visto serem elas/es quem irão “protagonizar” o mundo, consumindo e produzindo bens e riquezas. Nas famílias mais empobrecidas, com a precariedade do trabalho de pessoas adultas, pessoas idosas tem, por vezes, como moeda de troca, os seus proventos (aposentadorias e pensões) como parte (ou totalidade) da renda familiar, levando a uma troca intergeracional de benefícios: renda x cuidado.

Desta forma, com as reflexões trazidas por Beauvoir1212 Beauvoir S. O Segundo Sexo - vol. I e II. Trad.: Sérgio Milliet. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2019.,1717 Beauvoir S. A Velhice. Trad.: Maria Helena F. Martins. 4ª impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1990., podemos pensar a interseccionalidade a partir de alguns pressupostos que envolvem não apenas gênero e idade, mas também classe e raça. Pobreza, negritude, ser mulher e ter idade avançada constituem lugares no mundo; lugar onde NÃO se pertence às classes com acesso praticamente garantido a bens, serviços essenciais e direitos básicos, como saúde, trabalho digno e moradia; NÃO se pertence ao mundo de brancas/os, a quem sempre foram garantidos privilégios; NÃO se pertence ao mundo patriarcal-masculino-dominante; e NÃO se é jovem, gozando das benesses de diferentes ordens garantidas àquela/e. Como afirmam Souza et al.1818 Souza MF, Mariano SA, Ferreira LP. Tecendo fios entre interseccionalidade, agência e capacidades na teoria sociológica. Civitas 2021; 21(3):423-433., representam “a franja mais subordinada e explorada da nossa sociedade” (p.424).

Em razão das intersecções citadas, envelhecer torna-se uma experiência única de caráter coletivo. Há interseccionalidade e superposição de opressões na experiência do envelhecimento, pois se não há um jeito certo e único de ser mulher, tampouco há um jeito certo e único de se envelhecer. Mesmo com um discurso de sermos um “país de cabelos brancos”, ainda se discute o envelhecimento mais do ponto de vista geriátrico (o envelhecimento patológico ou senilidade) do que do ponto de vista gerontológico: o Ser uma Pessoa Idosa. Há silêncios sobre a sexualidade das pessoas idosas, sobre a violência doméstica cometida contra elas, e no campo da saúde, recursos escassos raramente são direcionados a esta parcela da população.

Estudos realizados no contexto da pandemia de COVID-19 informam sobre etarismo, pois se o envelhecimento em situações de “normalidade” já se apresenta como um fenômeno complexo, dinâmico e heterogêneo, neste cenário os preconceitos também se movimentam: ou se ampliam, ou se reduzem. Silva et al.1919 Silva MF, Silva DSM, Bacurau AGM, Francisco PMSB, Assumpção D, Neri AL, Borim FSA. Ageism against older adults in the context of the covid-19 pandemic: an integrative review. Rev Saude Publica 2021; 55:4. apontam para a especificidade do etarismo no Brasil, posto que em países de significativo envelhecimento populacional e com grandes desigualdades sociais, pessoas idosas estão mais suscetíveis aos impactos trazidos por grandes mudanças no corpo social, tal como ocorreu ao se decretar a pandemia. Além da imunossenescência, característica de cunho biológico que as deixava mais propensas às infecções e, portanto, às formas mais graves de COVID-19, o distanciamento social como forma de prevenção da propagação do vírus retirou-as do círculo já restrito de convívio e pertença social e as levou a desenvolver quadros de solidão emocional, aumento da vulnerabilidade à depressão e maior risco de morte. Apontam que a pandemia reforçou uma ideia corrente de homogeneização do que significa envelhecer. É algo que ocorre em nível estrutural e individual, de maneira implícita ou explícita, e negligencia as diferenças internas entre pessoas idosas, imputando atributos similares - e com frequência estereótipos - às pessoas a partir de sua idade cronológica1919 Silva MF, Silva DSM, Bacurau AGM, Francisco PMSB, Assumpção D, Neri AL, Borim FSA. Ageism against older adults in the context of the covid-19 pandemic: an integrative review. Rev Saude Publica 2021; 55:4..

Acrescentamos à esta análise sobre envelhecer a necessidade de se considerar gênero, posto que as mulheres alcançam maior longevidade que os homens; a de se considerar classe, visto que às pessoas mais pobres, a possibilidade de autocuidado, diagnósticos precoces e acesso aos serviços de saúde é menor e mais complexa; a de se considerar raça/cor, pelo racismo estrutural e institucional que exclui e segrega, que orienta tomadas de decisões clínicas, ainda que de maneira subliminar, a julgar pelos dados epidemiológicos. Estes três atributos, em conjunto, já indicam uma outra maneira de envelhecer em relação aos seus pares em condições opostas. É preciso considerar o etarismo para além das análises que situam o preconceito contra pessoas idosas no campo da diferença etária e da senescência, pois há elementos que constituem este Ser que antecedem seu processo de envelhecimento e ajudam a definir formas de nascer, viver e morrer.

O Cuidado em Saúde

O trabalho de cuidar, como um ato reflexivo, é objeto de estudo na Saúde Coletiva brasileira, onde temos uma produção teórica e propositiva sobre o Cuidado (com maiúscula por ser nesta concepção um substantivo próprio, e um tanto afastado da ideia de tratar, curar ou controlar), mas sem encontrar discussões que apontem para aspectos interseccionais. Refletimos sobre a forma como o cuidado em saúde é um processo inventivo e complexo para ambos, o/a trabalhador/a em saúde e aquela/e que é cuidada/o, sendo regulado por estes agentes. São vertentes sobre o Cuidado que vão no caminho inverso da ideia de um cuidado heterodeterminado e regulado pelo alto rendimento produtivo capitalista.

Ainda assim, leituras sobre a temática do Cuidado, em suas nuances, se direcionam para um corpo único, sem considerar as especificidades e a inteireza da pessoa, tal como ocorre com uma Naná. Algumas políticas encontram dificuldade em reverberar a equidade e a integralidade, como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), pouco convocada ao diálogo com as demais, o que é revelador de uma dinâmica social, traduzindo valores sociais.

Sobre o trabalho e o agir em saúde, Merhy2020 Merhy EE. O cuidado é um acontecimento e não um ato. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde: textos reunidos. São Paulo: Hucitec; 2013., propõe como plano político metodológico a análise micropolítica do trabalho vivo em ato e ao mesmo tempo que oferta uma caixa de ferramentas para pensar os tensionamentos e os desafios deste agir, ressalta a necessidade da (re)invenção da saúde como um bem público a serviço da vida individual e coletiva. Nesta valise tecnológica da/o profissional, estarão presentes tecnologias que servirão para construir, no cotidiano, os vínculos necessários entre trabalhadoras/es e usuárias/os, intervindo de maneira efetiva sobre suas necessidades individuais e coletivas e sobre o seu viver.

Ao propor que se pense as representações sobre o viver, Merhy et al.2121 Merhy E, Feuerwerker L, Cerqueira P. Da repetição a diferença: construindo sentidos com o outro no mundo do cuidado. In: Franco TB, Ramos VC. Semiótica, Afecção e Cuidado em Saúde. São Paulo: Hucitec; 2010. p. 60-75. nos trazem uma imagem bastante interessante: eles nos convocam a prestar atenção aos sete bilhões de seres que vivem na Terra sem que um seja, em absoluto, igual a outro, formando assim sete bilhões de singularidades, ainda que com muitas semelhanças. Há ainda o detalhe de que mesmo esses seres únicos, à medida que vive o seu viver, será singular em relação a si mesmo, pois os detalhes deste viver e as conformações no território da sua existência mudam a todo momento de forma que o único, também é vários. Assim sendo, a produção do cuidado não pode protagonizar um modelo de atenção em saúde “prescritivo, previsível e normatizador”. A repetição, se há o anseio de cuidar, não é desejável. Ou deve-se ao menos tentar produzir a diferença na repetição e na produção do ato de cuidar.

De Campos2222 Campos GWS. A Clínica do Sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. In: Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2003. destacamos a ideia de Clínica do Sujeito, para pensar um deslocamento da centralidade da doença para a/o sujeita/o que a possui, que é concreta/o, com sua biografia singular, seu corpo, sua dinâmica e sim, uma doença. Sua humanidade comporta a dor, o risco de morrer e seu sofrimento. Desta forma para considerar a/o sujeita/o integral é preciso ponderar sua existência concreta em suas dimensões existenciais e sociais, sendo a doença apenas um dos componentes desta existência. Componente que pode perturbar, transformar, mas raramente liquidar as demais dimensões. Assim não é ignorar a enfermidade, mas compreender a necessária ampliação do objeto de trabalho da Clínica do Sujeito para a de um/a Sujeito/a-Corpo atravessado por uma história. Campos2222 Campos GWS. A Clínica do Sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. In: Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2003. reconhece haver idealismo ao pressupor-se uma racionalidade clínica que não seja atravessada pela DS, política e econômica de onde emerge a/o sujeita/o concreta/o. Esta agente, a Naná, é uma sujeita concreta.

O cuidado como valor se afirma como ético e político, atividade intrinsecamente humana. Zoboli2323 Zoboli E. Cuidado: práxis responsável de uma cidadania moral. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, CEPESC, ABRASCO; 2007. p. 113-126. irá dizer que “o profissional cuidadoso se move pela ética do cuidado e vai ao encontro do outro visando o vínculo e a criação de laços de confiança” (p.63). Considera o cuidado uma ação integral, um atendimento com respeito e acolhida, a observação da fragilidade da/o outra/o, não apenas biológica, mas social, construindo a saúde como um projeto de cidadania. É uma atividade relacional de perceber e responder às necessidades de saúde. Esta ética do cuidado pressupõe uma abordagem contextual, uma atenção às singularidades, às diversidades, inclui a emoção e a afetividade, e tem uma atitude de responsabilização. Ela nos lembra que a ação e a omissão são igualmente escolhas, e ser responsável é responder pelo que se fez ou pelo que se deixou de fazer no encontro para o cuidado.

A ideia de que estes encontros podem ser conflituosos, traz a ideia de reconhecimento e identidade, colocada por Ayres et al.2424 Ayres JRCM, Castellanos MEP, Baptista TWF. Entrevista com José Ricardo Ayres. Saude Soc 2018; 27(1):51-60.: pensar em políticas identitárias advindas das experiências concretas das vidas das/os agentes, implica em reconhecê-las/os, o que nem sempre ocorre... Uma agência interseccional deve ser precedida por um olhar interseccional, e este olhar pode ser denominado Cuidado quando, no ato assistencial, se amplia, se flexibiliza, se humaniza e se volta para o “sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou mental”2525 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc 2004; 13(3):16-29. (p.22), singular para quem a experimenta.

A saúde não pode ser concebida como um estado de coisas ou algo completo2525 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc 2004; 13(3):16-29., pois inviabiliza a ideia da conquista e da busca permanente por esse horizonte onde a saúde se encontra. Mas podemos pensar que os horizontes que se deslocam não o fazem na mesma velocidade, e os que que se alcançam, também não são alcançados na mesma velocidade a depender do seu lugar no mundo, por onde e como se caminha.

O autor traz a ideia de construção de um projeto de felicidade entendendo que a felicidade humana é uma experiência de caráter singular, porém que existem alguns valores constitutivos destas experiências que se dão no campo coletivo, a ponto de serem inseridos e potencializados através de propostas políticas que incluem o Estado enquanto propositor destas - como a PNSIPN. Inclusive pelo fato de que muitos destes valores só são passíveis de serem vividos em comum, em coletividade, no convívio com um outro2525 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc 2004; 13(3):16-29.. Os obstáculos à construção deste projeto também se constituem na vida em comum, e o racismo é um destes obstáculos, por isto é necessária uma resposta também coletiva a esta questão.

Para profissionais de saúde, é de fundamental importância refletir sobre quem está à sua frente no encontro de Cuidado. A construção identitária entre quem cuida e quem é cuidado é fundamental para que se instale entre estas/es agentes o vínculo necessário para um cuidado efetivo. Mas, como tal construção se dá na estrutura social é preciso ressaltar que com nosso histórico de desigualdades, pensar numa construção identitária em que ambos os lados assumam papéis equânimes na relação profissional-usuária, vivam um encontro dialógico, ainda é pouco plausível.

Nas palavras do autor, “O profissional que surge diante de um usuário é carregado (de) significados”, e quando se estabelece uma interação ela está sendo “retomada” e não “iniciada”2525 Ayres JRCM. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saude Soc 2004; 13(3):16-29., com todas as ideias previamente concebidas sobre o papel social de cada agente, pois não estamos por “estabelecer um diálogo”2626 Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cien Saude Colet 2001; 6(1):63-72.; vivemos imersos num diálogo que precede o encontro terapêutico, sendo necessário considerar “o universo de resistências que ao mesmo tempo nos opõe e aproxima desse outro”2626 Ayres JRCM. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Cien Saude Colet 2001; 6(1):63-72. (p.28).

Nesta perspectiva, cabe refletir, sob a ótica interseccional, que, se pudéssemos citar uma única coisa que opõe e afasta, o que seria? Há uma estrutura secular que rege este país. Esta estrutura racializou, objetificou, inferiorizou e excluiu pessoas que carregam, na cor de sua pele, um não-lugar. Se nasceu mulher, viveu seus ciclos de vida na pobreza, e por resistência, envelheceu nestas condições, será um corpo em desvantagem frente ao poder biomédico, frente às possibilidades de projetar-se enquanto ser humano, posto que sistematicamente desumanizado. Como projetar felicidade se o projeto principal é sobreviver, fazer sobreviver os seus no contexto da diáspora, ou apenas ser livre para viver, sem as dores e náuseas que cotidianamente nos atravessam, em experiências pessoais ou coletivas?

Rita Borret et al.2727 Borret RH, Araujo DHS, Belford OS, Oliveira DOPS, Vieira RC, Teixeira DS. Reflexões para uma prática em saúde antirracista. Rev Bras Educ Med 2020; 44 (Supl.1):e0148. traz o termo “cuidado em saúde antirracista”. Essa é uma das lacunas, na proposição de cuidado integral ao perfil das Nanás, nas vertentes de Cuidado acima citadas. Porque cartografar o trabalho em ato, sem racializar e observar as questões de gênero e classe nas tecnologias leves, não contempla o ato de cuidar em plenitude, tampouco garante as leve-duras e as duras para este público. Para uma Clínica do Sujeito que alcance sua integralidade, é preciso ver todos os elementos intersubjetivos desta/e Sujeita/o. Se o Cuidado é de fato um valor, a influência do racismo/sexismo/classismo/etarismo nos processos saúde-adoecimento não pode ser silenciada nem deixar de ser reconhecida.

Uma agência interseccional permeando o Cuidado em Saúde

Para além de compreender as condições de vida e saúde da população negra, no recorte de gênero/raça/classe/idade proposto, torna-se vital refletir sobre a necessidade de contextualizar estas multicausalidades que trazem tantas desvantagens. Resgatar, desde um ponto de vista histórico - e isso passa pelos cuidados em saúde - quais são os reais produtores de morbimortalidade, pois estas pessoas não estão num “vácuo social”44 Nedel FB, Bastos JL. Para onde seguir com a pesquisa em determinantes sociais da saúde? Rev Saude Publica 2020; 54:15.. Não basta replicar o conhecimento sobre interseccionalidade, não basta denunciar, pois até o excesso de denúncia, se acrítico, pode funcionar como uma naturalização do fato social, como sendo inerente àquela sociedade; é preciso propor ações e políticas públicas que reduzam estas iniquidades e iniciem uma reversão deste quadro. Entre uma denúncia estéril e uma potencial proposição, flutua uma escolha política44 Nedel FB, Bastos JL. Para onde seguir com a pesquisa em determinantes sociais da saúde? Rev Saude Publica 2020; 54:15., entre a vontade e a capacidade de agir na estrutura social.

Lugones2828 Lugones M. Rumo a um feminismo descolonial. Estud Fem 2014; 22(3):935-952. ressalta que a opressão historicamente veio acompanhada de resistências concretas e vividas. A ideia de resistir é rejeitar sua sujeitificação e realçar sua subjetividade em um processo infrapolítico de libertação pela contestação da colonialidade. Para Henning1111 Henning CE. Interseccionalidade e pensamento feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediacoes 2015; 20(2):97-128. representa fazer uso de suas marcas identitárias para questionar a estrutura e desconstruir desigualdades, o que implica, por exemplo, que pessoas brancas se racializem e reconheçam seus privilégios.

Dentro ou fora da militância institucionalizada, buscando não se calcificar na dor, a mulher negra, resiste e re-existe. Cestari2929 Cestari MJ. Vozes-mulheres negras ou feministas e antirracistas graças às Yabás [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2015. sublinha a militância política cotidiana de cada mulher negra, mostrando sua insubordinação cada vez que o trauma colonial é reencenado e atualizado, pronta para o enfrentamento quando, por exemplo, veem seus filhos mortos pelo Estado, quando sua casa é invadida pelas águas, ou quando a um dos seus ou a ela própria, é infligido sofrimento e dor nos serviços de saúde.

Esta militância faz com que a mulher negra protagonize o discurso sobre si e sua coletividade, afastando-se da homogeneização advinda dos estereótipos de um imaginário pós-expropriação colonial sobre gênero-raça-classe. Afasta-a da objetificação e da condição de “objetos sem agência/corpo sem mente”, desafiando a “divisão social da enunciação” (p.31) ao promover um diálogo que, muitas vezes, se choca com limites historicamente e epistemologicamente impostos2929 Cestari MJ. Vozes-mulheres negras ou feministas e antirracistas graças às Yabás [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2015.. O dubitável exercício de pensar uma Naná neste lugar de enunciação de si, em um serviço de saúde, no encontro a dois dos consultórios, já nos faz postular por uma agência interseccional.

Tomemos como exemplo a narrativa de Grada Kilomba1515 Kilomba G. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad.: Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó; 2019. [Edição em e-book]. em um consultório: ela - menina de 13 anos, negra - passa de paciente a trabalhadora doméstica sob os olhos do médico - homem branco: “Durante nossa viagem de férias, você gostaria de cozinhar, lavar e limpar para a minha família?”. A criança deu lugar à servente, o médico tornou-se o senhor. Esta fantasia colonial, possível na mente do médico, ocorre em virtude da manutenção de um racismo genderizado, razão pela qual entendemos que o ato de cuidar precisa ser dialogicamente transformado, pois que agenciado pela interseccionalidade.

Somando as falas de Akotirene1616 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Selo Sueli Carneiro, Ed. Pólen; 2019. - “É da mulher negra o coração do conceito de interseccionalidade” (p.24) - e Angela Davis3030 Silva B. A mulher negra e o futuro do país [Internet]. Portal Geledés/O Globo; 2022 [acessado 2023 abr 24]. Disponível em: https://www.geledes.org.br/a-mulher-negra-e-o-futuro-do-pais/.
https://www.geledes.org.br/a-mulher-negr...
- “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela” (p.1) - gostamos de imaginar que a agência interseccional1111 Henning CE. Interseccionalidade e pensamento feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediacoes 2015; 20(2):97-128. como propõe Henning, se dará entre os atores principais da relação de cuidado: as Nanás, sendo agentes do seu cuidar a partir das interseccionalidades que a compõem; e as/os profissionais de saúde, sendo agentes do Cuidado a partir de um olhar integral que reconhece as interseccionalidades que atravessam as Nanás, sua agência e que não as subjugue ou as infantilize, ações particularmente comuns a mulheres e pessoas idosas1818 Souza MF, Mariano SA, Ferreira LP. Tecendo fios entre interseccionalidade, agência e capacidades na teoria sociológica. Civitas 2021; 21(3):423-433..

Desta forma, após a pandemia de COVID-19, e diante da necessária reorientação dos saberes e práticas nos serviços de saúde, é preciso refletir sobre um Cuidado que não pode prescindir de referências críticas deste campo, que refutem práticas medicalizantes hegemonicamente constituídas pelo racismo institucional e que tiveram berço numa “Europa que se entende como regra, norma e parâmetro para a definição e produção do sentido daquilo que pode ser considerado como humano”66 Oliveira RG. Vidas em exclusão e a reinvenção do Cuidado. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021. (p.31). Práticas que, por ocorrerem em contextos coletivos de iniquidades devem, além de reconhecer o impacto da DS, possibilitar “um cuidado emancipatório da saúde”66 Oliveira RG. Vidas em exclusão e a reinvenção do Cuidado. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2021. (p.185).

Grifamos o fato de o contexto ser coletivo porque as Nanás são muitas. Entre 2012 e 2021 a PNAD Contínua3131 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). PNAD Contínua. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Características gerais dos moradores 2020-2021 [Internet]. 2022 [acessado 2023 abr 24]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101957_informativo.pdf.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
mostra aumento da população brasileira que se autodeclara negra (pretos e pardos somam 56,1%). No mesmo período, cresce o quantitativo de pessoas com 60 anos ou mais: de 11,3% em 2012, representam 14,7% da população em 2021, em todas as Grandes Regiões do país, com predominância do sexo feminino nesta faixa etária, dados os “diferenciais de mortalidade entre os sexos”, indicando uma feminização da velhice3131 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). PNAD Contínua. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Características gerais dos moradores 2020-2021 [Internet]. 2022 [acessado 2023 abr 24]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101957_informativo.pdf.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
(p.4). Em relação à extrema pobreza/pobreza, embora a desagregação dos dados por sexo não mostre diferenças significativas (51,1% para as mulheres, 48,9% para homens), quando o recorte é por raça/cor “pretos ou pardos representavam mais de 70% dos pobres e extremamente pobres”3131 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). PNAD Contínua. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Características gerais dos moradores 2020-2021 [Internet]. 2022 [acessado 2023 abr 24]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101957_informativo.pdf.
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(p.66). Entre as mulheres pretas ou pardas, 11,6% viviam em situação de extrema pobreza e 39% em situação de pobreza. Em contraponto, em relação aos homens brancos, estes percentuais foram de 4,7% (extrema pobreza) e 18,1% (pobreza)3232 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Coordenação de População e Indicadores Sociais [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2022 [acessado 2023 abr 24]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101979.pdf. (p.67).

Ao compreender o lugar vulnerado ocupado por Nanás em uma estrutura social racista, profissionais de saúde podem e devem fazer escolhas conscientes pelo desmantelamento destas desigualdades, ao menos no campo do Cuidado. Trata-se aqui do uso do poder de ação inferido a estas/es profissionais no exercício de sua atividade, e que se apresenta nas relações interpessoais com as Nanás, afastando-as ou aproximando-as. A capacidade de agenciamento das/os profissionais, moldada por todas as complexas interações da estrutura, impacta positivamente na experiência de saúde das Nanás quando reconhecem a trajetória social destas e abordam as interseções de suas identidades no contexto do Cuidado, na busca pela Integralidade.

Assim, é preciso contar com ambas as agências neste encontro entre Nanás e profissionais da saúde. Uma agência de verve interseccional, que não reduza a experiência de ser uma Naná “a um único eixo primário de desigualdade”1111 Henning CE. Interseccionalidade e pensamento feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediacoes 2015; 20(2):97-128.; que o olhar de cuidado seja aperfeiçoado, avaliando cada marcador social como potencialmente afetado e alterado pelos demais. Enfatizamos a necessidade de um cuidado que perceba, estimule e compreenda esta identidade, suas subjetividades, para que não seja mais uma “paciente”, “sujeitos meramente subalternos, submetidos, invisibilizados, silenciados e desempoderados”1111 Henning CE. Interseccionalidade e pensamento feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediacoes 2015; 20(2):97-128.. Há uma potência de uso destas marcas identitárias interseccionais para tensionar este cuidado, criar relações, questionar o modelo hegemônico e desconstruir as diferenciações e desigualdades sociais, em especial na saúde, em especial no SUS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jul 2024

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
  • Publicado
    13 Mar 2024
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br