Para onde a roda nos levou? Uma conversa sobre promoção da saúde sexual para populações sexo-dissidentes

Luís Felipe Rios João Pedro de Souza Dias Júlio Henrique Magalhães Luckwu Sobre os autores

Resumo

O texto discute os desafios para promoção da saúde de homens que fazem sexo com homens (HSHs) por meio de dados oriundos de uma roda de conversa, com pessoas de instituições que prestam serviços para HSHs na Região Metropolitana do Recife. Os resultados permitiram identificar desafios para o trabalho de promoção à saude, não só para HSHs, mas para pessoas sexo-dissidentes: dificuldades com o uso das categorias de identidade; estigmatização por prestar-lhes cuidado em saúde sexual; racismo estrutural; contexto de privação de liberdade; extrema pobreza; letramento.

Palavras-chave:
Saúde sexual; HSH; Prevenção; Comunicação em saúde

Introdução

O texto discute os desafios para promoção da saúde de homens que fazem sexo com homens (HSHs) por meio de dados oriundos de uma roda de conversa sobre promoção da saúde de gays e outros HSHs. A roda foi parte do seminário “Para além da PrEP”, organizado para o lançamento do plano de difusão do conhecimento científico do Laboratório de Estudos da Sexualidade Humana (LabEshu), que cobre os anos de 2023 e 2024, exigência do Edital Pró-Humanidades 2022 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), apoiador de um dos projetos de pesquisa nele desenvolvidos. Este trabalho investiga a conduta sexual e a vulnerabilidade de jovens HSHs, considerando as epidemias de HIV e de Sars-Cov-2, por meio de pesquisa etnográfica. O plano de difusão, por sua vez, tem, entre outros objetivos, a perspectiva de estreitar a interlocução com organizações que prestam serviços para gays e outros HSHs, de modo a pautar, nas pesquisas-intervenções do grupo, questões que surgem no trabalho das pessoas que atuam nos serviços.

Além do seminário e outras ações, o plano consta da criação de um site direcionado ao publico beneficiário da pesquisa em questão, HSHs, de modo a atuar na prevenção do HIV, que assumiu papel importante na roda de conversa. É importante lembrar que, no Brasil, HSH é uma das categorias mais afetadas pelo HIV/Aids11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Boletim epidemiológico Aids. Brasília: MS; 2022.. Nos últimos anos, acompanhando o retrocesso moralista sobre sexualidade e gênero que vem marcando a vida social brasileira, houve quase que um completo abandono daquilo que produziu o êxito da resposta brasileira dos anos de 1990 e 2000, incluindo a mobilização e participação comunitária e campanhas robustas voltadas às especificidades das diferentes populações mais afetadas pelo HIV22 Paiva V, Antunes MC, Sanchez M. O direito à prevenção da aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface (Botucatu) 2020; 24:e180625.

3 Rios LF, Adriâo KG, Albuquerque AP, Pereira AF. 'Couro no couro': homens com práticas homossexuais e prevenção do HIV na Região Metropolitana do Recife. Saude Debate 2022; 46(Esp. 7):85-102.
-44 Seffner F, Parker R. Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à aids. Interface (Botucatu) 2016; 20(57):293-304..

Acompanhando o vácuo da prevenção, a prevalência do HIV entre HSHs cresceu. Entre 2009 e 2016, no Recife, a prevalência saltou de 5,2% para 21,5%, quase quatro vezes mais55 Kerr LR, Mota RS, Kendall C, Pinho Ade A, Mello MB, Guimarães MD, Dourado I, de Brito AM, Benzaken A, McFarland W, Rutherford G; HIVMSM Surveillance Group. HIV among MSM in a large middle-income country. AIDS 2013; 27(3):427-435.,66 Kerr L, Kendall C, Guimarães MDC, Salani Mota R, Veras MA, Dourado I, Maria de Brito A, Merchan-Hamann E, Pontes AK, Leal AF, Knauth D, Castro ARCM, Macena RHM, Lima LNC, Oliveira LC, Cavalcantee MDS, Benzaken AS, Pereira G, Pimenta C, Pascom ARP, Bermudez XPD, Moreira RC, Brígido LFM, Camillo AC, McFarland W, Johnston LG. HIV prevalence among men who have sex with men in Brazil: results of the 2nd national survey using respondent-driven sampling. Medicine (Baltimore) 2018; 97(Suppl. 1):S9-S15.. Nessa linha, os dados publicados no último boletim epidemiológico apontam para a persistência dessa categoria de exposição como uma das mais afetadas pelo vírus da Aids, com uma maior preocupação para os mais jovens11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Boletim epidemiológico Aids. Brasília: MS; 2022.. Dados que evidenciam a necessidade de desenvolvimento de tecnologias em educação em saúde sexual para HSHs fundadas em evidências científicas22 Paiva V, Antunes MC, Sanchez M. O direito à prevenção da aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface (Botucatu) 2020; 24:e180625.,33 Rios LF, Adriâo KG, Albuquerque AP, Pereira AF. 'Couro no couro': homens com práticas homossexuais e prevenção do HIV na Região Metropolitana do Recife. Saude Debate 2022; 46(Esp. 7):85-102..

A educação em saúde no Brasil tem uma história marcada por diferentes concepções e práticas77 Vasconcelos EM. Educação popular e a atença~o à saúde da família. São Paulo: Hucitec; 1999.,88 Monteiro S, Vargas E, Cruz M. Desenvolvimento e uso de tecnologias educacionais no contexto da aids e da sau´de reprodutiva: reflexo~es e perspectivas. In: Monteiro S, Vargas E, organizadores. Educaça~o, comunicaça~o e tecnologia educacional: interfaces com o campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. p. 27-47.. Ainda prevalece uma abordagem de informação, educação e comunicação (IEC) com foco biomédico, expressa em produções que enfatizam o cumprimento de regras para manutenção da saúde. Entretanto, outra perspectiva começa a surgir já nos anos de 1970. Simone Monteiro, Eliane Vargas e Marly Cruz sublinham: “como um dos pressupostos dessa perspectiva crítica tem-se a valorização do processo de capacitação dos indivíduos e de grupos para a transformação da realidade em substituição ao processo de persuasão sobre os riscos de doença e agravo à saúde ou de transferência de informação” (p. 29)88 Monteiro S, Vargas E, Cruz M. Desenvolvimento e uso de tecnologias educacionais no contexto da aids e da sau´de reprodutiva: reflexo~es e perspectivas. In: Monteiro S, Vargas E, organizadores. Educaça~o, comunicaça~o e tecnologia educacional: interfaces com o campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. p. 27-47..

O site objeto de nossas discussões durante o evento se situa na segunda perspectiva de produção de ações de IEC, inspirado na pedagogia freiriana99 Freire P. Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1983., que considera aspectos culturais e estruturais como importantes para a mudança da conduta rumo a práticas sexuais mais seguras88 Monteiro S, Vargas E, Cruz M. Desenvolvimento e uso de tecnologias educacionais no contexto da aids e da sau´de reprodutiva: reflexo~es e perspectivas. In: Monteiro S, Vargas E, organizadores. Educaça~o, comunicaça~o e tecnologia educacional: interfaces com o campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. p. 27-47.,1010 Parker R. Na contramão da aids: sexualidade, intervenção, política. Rio de Janeiro: Editora 34; 2000..

Monteiro, Vargas e Cruz88 Monteiro S, Vargas E, Cruz M. Desenvolvimento e uso de tecnologias educacionais no contexto da aids e da sau´de reprodutiva: reflexo~es e perspectivas. In: Monteiro S, Vargas E, organizadores. Educaça~o, comunicaça~o e tecnologia educacional: interfaces com o campo da saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. p. 27-47. afirmam que, ainda que haja algum investimento nas ações de IEC na saúde pública, as análises da qualidade e a repercussão dessa produção ainda são pontuais. No campo que nos interessa, no período de maior mobilização em ações de educação em saúde relacionadas ao HIV/Aids, as autoras sinalizam o pouco investimento para compreendê-las e avaliá-las.

O site foi objeto das palestras iniciais e de materiais de divulgação utilizados na ocasião. Nas entrelinhas da roda, ele tornou-se protagonista das reflexões, já sendo submetido, sem que nos déssemos conta naquele momento, a uma primeira avaliação pelos participantes do evento. Mas precisamos ser rigorosos. O que apresentamos aqui é resultado de uma “quase-avaliação”, como definida por Maria Inês Nemes1111 Nemes MIB. Avaliação em saúde: questões para os programas de DST/AIDS no Brasil. Rio de Janeiro: ABIA; 2001.:

“Quase”, porque apesar de conterem idéias de valoração, não chegam a emitir juízos de valor. Suas evidências - mesmo quando colhidas com objetividade e confiabilidade - não foram tomadas como construtoras de parâmetros ou indicadores avaliativos. Esta questão é semelhante ao que ocorre com a pesquisa científica em geral. Vamos “ao campo” para afirmar, infirmar e/ou aprimorar hipóteses derivadas de teorias: o real só nos “diz” aquilo que perguntamos (p. 9).

De todo modo, entendemos que o diálogo estabelecido no evento gerou uma importante agenda de pesquisa-intervenção que não cabe apenas ao LabEshu responder, ou às pessoas participantes do seminário; interessa a coletivos da sociedade civil, grupos acadêmicos e de formuladores de politicas públicas espalhados por todo o Brasil, juntando-se a outras propostas correlatas para ampliar e melhor qualificar a atenção à saúde de HSHs e outras categorias sexo dissidentes1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Desafios da prevenção da epidemia pelo HIV/AIDS junto aos homens que fazem sexo com homens. Brasília: MS; 2002.

13 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: MS; 2013.

14 Gomes R. Narrativas do movimento homossexual brasileiro sobre a saúde de gays e lésbicas. Cien Saude Colet 2022; 27(2):555-565.
-1515 Gomes R. Agendas de saúde voltadas para gays e lésbicas. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3807-3814..

Metodologia

O site Alice Bee no Vale das Ninfas (www.alicebeesha.com.br) tem seis paginas: “Alice Bee” (apresenta a personagem que ciceroneia e dialoga com as visitantes por todas as páginas, uma drag queen), “Homossexualidades” (apresenta o projeto de pesquisa com o qual o site se articula), “O Vale das Ninfas” (apresenta os territórios de homossociabilidade da Região Metropolitana do Recife (RMR), “Baphons” (constitui uma espécie de noticiário dos eventos da cena gay da RMR), “Na agonia do tesão” (apresenta informações e medidas de prevenção) e “Troca-troca” (canal de comunicação entre os visitantes e a equipe). “Na agonia do tesão” apresenta materiais pós-pornograficos, uma perspectiva de ação teórico-política que reconfigura um importante modo de aprendizagem das sexualidades no ocidente, a pornografia1616 Gagnon J. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond; 2006., em um movimento de questionar os valores opressivos de sexo-gênero e sexualidades1717 Sarmet E. Pós-pornô, dissidência sexual e a situación cuir latino-americana: pontos de partida para o debate. Periodicus 2014; 1(1):258-276.. No site, a partir dos resultados de nossas pesquisas33 Rios LF, Adriâo KG, Albuquerque AP, Pereira AF. 'Couro no couro': homens com práticas homossexuais e prevenção do HIV na Região Metropolitana do Recife. Saude Debate 2022; 46(Esp. 7):85-102.,1818 Rios LF, Vieira LL. Sobre a "mundiça" e as "bichas cocotes": georreferenciação e classe social nos circuitos gay do Recife. Periodicus 2023; 1(18):217-250., narramos cinco cenas sexuais de modo que possibilitem uma reflexão rumo à redescrição de roteiros sexuais1616 Gagnon J. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond; 2006., na expectativa de promover uma cultura sexual não opressora, segura e prazerosa.

As cinco histórias são verossímeis, apresentadas em carrosséis de cards que tratam dos seguintes temas: 1) retirada da camisinha em cenas de parceria fixa sem mediação da testagem; 2) sexo inseguro entre amigos, não conhecimento da profilaxia pós-exposição (PEP) e infecção pelo HIV; 3) sexo inseguro entre desconhecidos e uso da PEP; 4) uso correto da terapia antirretroviral por pessoa vivendo com HIV em relacionamento soro-divergente e intrasmissibilidade; 5) profilaxia pré-exposição (PrEP). Dois deles têm versões impressas, que foram distribuídas aos participantes do evento, que também receberam um material de divulgação impresso, com QR code e o endereço eletrônico do site.

“Para além da PrEP” contou com a presença de 40 pessoas, começando com a apresentação da professora Karla Galvão Adrião sobre as perspectivas epistemológicas, teóricas, ético-políticas e metodológicas que orientam, historicamente, as ações do LabEshu, criado em 2005 no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco. Na sequência, o professor Luís Felipe Rios apresentou as bases teóricas que orientam a produção dos materiais de educação em saúde do laboratório, justificando o site “Alice Bee no Vale das Ninfas” e as peças neste dispostas.

Após um intervalo para lanche e café, as pessoas voltaram ao auditório para a roda de conversa. Aproveitando as provocações da primeira palestrante, de que a disposição em auditório não seria a mais adequada às metodologias de intervenção do LabEshu, em especial para a realização de uma roda de conversa, o grupo resolveu redispor as cadeiras e o auditório ganhou um círculo na frente e as pessoas que não conseguiram lugar se reposicionaram mais próximas; tivemos então uma espécie de arena.

Na condução da roda estavam o professor Luís Felipe Rios e os bolsistas de iniciação científica João Pedro Dias e Júlio Luckwu. Na roda, além de estudantes, profissionais de ensino e de órgãos de instituições de educação, estiveram presentes represetantes de diferentes organizações que prestam algum tipo de serviço, não apenas a HSHs, mas a outras pessoas dissidentes de sexo, de gênero e de sexualidade - conferir Quadro 1.

Quadro 1
Origens institucionais dos/as participantes do evento.

Não tivemos um momento de apresentações, pois o café cumpriu essa etapa, mas foi solicitado que cada pessoa se identificasse e falasse brevemente de si e de sua instituição quando quisessem colaborar para fazer a roda rodar. Só foram necessárias duas questão disparadoras: “O que vocês observam sobre a prevenção do HIV hoje na atuação nas comunidades/com as pessoas para quem prestam serviço, especialmente HSHs? Em que vocês acham que o LabEshu pode ajudar, ou seja, temas que nós poderíamos pautar nas nossas pesquisas-intervenções-pesquisas?” Fizemos essas questões de três ou quatro diferentes maneiras, enquanto as ideias se preparavam para sair das cabeças… Mas não decorreu muito tempo e a roda se colocou a rodar.

O processo transcorreu por pouco mais de 1h30. Frente a pedidos antecipados de desculpas por não conhecerem todas as letras do alfabeto sexo dissidente, e/ou por estarem empregando algum termo de forma errada, veio, das pessoas que facilitavam o trabalho do grupo, a resposta-chave de acolhimento, ingrediente que marca a diferença entre um ambiente de disputa de ideias (argumentação) e uma forma dialógica99 Freire P. Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1983.,1919 Romao J, Carrao E, Cabral I, Coelho E. Círculo epistemológico: círculo de cultura como metodologia de investigação. Educ Linguagem 2006; 9(13):173-195. de conduzir um encontro: “Estamos num espaço protegido, aqui se pode errar! O mais importante é poder conversar e trazer nossas questões!”

Este texto busca localizar os principais temas que emergiram ao longo do encontro. No entanto, fomos um pouco além, trazendo referenciais apenas esboçados por nossa equipe na ocasião do evento, gerando uma discussão sobre os temas. Esta é uma escrita posicionada e atende aos interesses do LabEshu e do projeto “Condutas sexuais de jovens homens que fazem sexo com homens e vulnerabilidade ao HIV à COVID-19”. Certamente, qualquer outra pessoa participante da roda de conversa apresentaria os mesmo fatos, mas com inflexões mais afeitas aos seus posicionamentos institucionais.

Uma primeira versão do texto foi disponibilizada para as pessoas participantes do evento no Blog do LabEshu. Avisamos as participantes por e-mail, dando um prazo para sugestões de reparos e contribuições. Elas foram informadas que as sugestões seriam incorporadas ao texto numa futura reescrita e o produto seria submetido para publicação em uma revista especializada. Foram poucas as sugestões, feitas em encontros presenciais fortuitos com participantes, relacionadas ao uso de termos mais adequados para nomear categorias e melhor situar o evento dentro do qual a roda ocorreu. As pessoas participantes da roda concordaram em ter seus nomes e instituições revelados para materiais IEC oriundos do seminário, assinando uma autorização para isso.

Resultados e discussões: Os movimentos da roda

Em um primeiro movimento da roda, ela nos levou a ressignificar o escopo do projeto e o próprio público beneficiário das peças de comunicação apresentadas. As representantes do Espaço Trans, um dos cinco centros que realiza procedimentos gratuitos de transgenitalização no Brasil, trouxeram a importância de trabalhar a vulnerabilidade ao HIV para o público beneficiário do serviço, mas havia o receio de reforçar estigmas que associam HIV/ISTs e pessoas transgêneros.

Também ficaram interessadas em criar metodologias de comunicação que permitissem trabalhar questões específicas de seu público beneficiário à distância, utilizando-se da internet. Relataram algum investimento na linha de explorar as possibilidades online no período mais crítico da pandemia de Covid-19, mas se restringindo a atendimentos individuais e em grupo. A questão colocada na arena foi: como potencializar essas formas de ação em saúde, ampliando os recursos da dimensão online?

Nas entrelinhas, apontaram para uma pouca expressão das pessoas trans (pessoas cuja identidade de gênero diverge do sexo atribuído no nascimento)2020 Vergueiro V. Pensando a cisgeneridade como crítica decolonial. In: Messeder S, Castro MG, Moutinho L, organizadores. Enlaçando sexualidades: uma tessitura interdisciplinar no reino das sexualidades e das relações de gênero. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 249-270. nos materiais, em especial nas histórias de “Na Agonia do Tesão”.

De HSH a pessoas sexo dissidentes

Essas colocações nos levaram a reparar os limites e escopos de nossas pesquisa-intervenções-pesquisas com HSHs. Explicamos que as justificativas do projeto partiam dos dados epidemiológicos relacionados à vulnerabilidade de jovens HSHs11 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Boletim epidemiológico Aids. Brasília: MS; 2022.,55 Kerr LR, Mota RS, Kendall C, Pinho Ade A, Mello MB, Guimarães MD, Dourado I, de Brito AM, Benzaken A, McFarland W, Rutherford G; HIVMSM Surveillance Group. HIV among MSM in a large middle-income country. AIDS 2013; 27(3):427-435.,66 Kerr L, Kendall C, Guimarães MDC, Salani Mota R, Veras MA, Dourado I, Maria de Brito A, Merchan-Hamann E, Pontes AK, Leal AF, Knauth D, Castro ARCM, Macena RHM, Lima LNC, Oliveira LC, Cavalcantee MDS, Benzaken AS, Pereira G, Pimenta C, Pascom ARP, Bermudez XPD, Moreira RC, Brígido LFM, Camillo AC, McFarland W, Johnston LG. HIV prevalence among men who have sex with men in Brazil: results of the 2nd national survey using respondent-driven sampling. Medicine (Baltimore) 2018; 97(Suppl. 1):S9-S15.. Relembramos a história do conceito de HSH, que se situa nas dificuldades no início da epidemia em acessar homens em risco ao HIV por não se identificarem como gays ou homossexuais. Foi uma categoria criada para ampliar a visão de pessoas pesquisadoras e formuladoras de políticas publicas, de modo a considerar a decalagem entre identidades e práticas sexuais, e a necessidade de adequar os fatos epidemiológicos (quem está em risco e porquê) aos contextos intersubjetivos (identidades e culturas sexuais) na produção de material de IEC em saúde.2121 Deverell K, Prout A. Sexuality, identity and community: the experience of MESMAC. In: Parker R, Aggleton P, organizadores. Culture, society and sexuality: a reader. London: UC; 1999.

Homens transgêneros também podem ser considerados HSHs se têm sexo com homens cisgêneros/cis (pessoas cuja identidade de gênero corresponde ao sexo atribuído ao nascer)2020 Vergueiro V. Pensando a cisgeneridade como crítica decolonial. In: Messeder S, Castro MG, Moutinho L, organizadores. Enlaçando sexualidades: uma tessitura interdisciplinar no reino das sexualidades e das relações de gênero. Salvador: EDUFBA; 2016. p. 249-270. ou trans e poderão estar incluídos na amostra da pesquisa. HSHs também fazem sexo e interagem com travestis, mulheres trans e mulheres cis. À medida em que narrativas sobre as pessoas dessas categorias populacionais venham a emergir nas entrevistas, serão objeto de reflexão. As pessoas trans também serão personagens de nossas observações participantes nos territórios, caso assim apareçam nas cenas - e, podemos dizer, efetivamente aparecem.

Se a pesquisa parte do recorte categórico explicitado, HSH jovem, a vida é soberana. E, na vida, as pessoas até usam as categorizações para pautar suas experiências, mas as próprias experiências borram os limites das construções analíticas. Em outras palavras, pessoas em suas diferentes posições identitárias de sexo-gênero e sexualidade estão interagindo social e sexualmente com HSHs - com implicações diretas ou indiretas para a saúde, nosso foco de trabalho.

A partir das provocações, nos comprometemos a afinar nossa escuta e nosso olhar para explorar a complexidade dos contextos em que interagem lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queers, interssexuais, assexuais, pessoas não binárias e outras categorias sexo dissidentes (LGBTQIAN+), e também heterossexuais, na compreensão e construção de ações relacionadas às vulnerabilidades ao HIV e à violência, expressos [se refere a “contextos”? fiquei na dúvida] tanto nos textos acadêmicos como nas produções educativas.

No caso da demanda do Espaço Trans, dar mais atenção para cenas com homens e mulheres trans, interagindo com homens cis e homens trans, pessoas não binárias e as muitas nuances da sexualidade e do gênero.

Populações sexo dissidentes, HIV e estigmatização

Sobre a questão de (re)estigmatizar a população beneficiária do Espaço Trans ao, em trabalhar prevenção, vincular HIV e transgêneridades; se recolocava para as integrantes da roda um dilema antigo, vivido na atualidade pelo Espaço Trans. Na história da resposta brasileira à Aids dos anos 2000, esse dilema se atualizava na polêmica que ocorreu dentro do próprio “Comitê HSH”, que assessorava ações de prevenção do HIV para essa população no Ministério da Saúde brasileiro: era ou não adequado campanhas de prevenção do HIV para o grande púbico, abordando pessoas identificadas, epidemiologicamente e no senso comum, como as mais afetadas pelo HIV e pela Aids1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Desafios da prevenção da epidemia pelo HIV/AIDS junto aos homens que fazem sexo com homens. Brasília: MS; 2002..

Em outras palavras, mencionar as categorias em campanhas de massa poderia reforçar o estigma que associava homossexuais à Aids, fazendo com que pessoas que não se viam como parte de tais categorias se sentissem fora do risco de se infectar pelo HIV. Ao mesmo tempo, poderia aumentar o estigma e a discriminação que, em uma de suas atualizações nas cenas sociais, produziam segregação por aquelas pessoas vistas como não afetadas pela epidemia (supostamente as heterossexuais), por medo de “contágio”. Segregação que se manifestava por diferentes nuances de violência. Destacando que, por si só, HSH e outras categorias mais afetadas pelo HIV, como travestis e transexuais femininos, já eram estigmatizadas anteriormente à identificação da doença no mundo, havendo a compreensão científica de que o próprio estigma era um dos componentes que as tornam mais vulneráveis à infecção pelo HIV e ao adoecimento por Aids1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Desafios da prevenção da epidemia pelo HIV/AIDS junto aos homens que fazem sexo com homens. Brasília: MS; 2002..

No caso de HSH, o outro argumento para construir o dilema era a necessidade de chegar em HSHs que não têm uma identidade gay, e/ou que não frequentam os espaços de sociabilidade gay mais usuais, onde havia uma maciça presença de organizações governamentais e não governamentais fazendo ações corpo-a-corpo de prevenção. Do mesmo modo, havia a compreensão de que era preciso desestigmatizar as homossexualidades na sociedade abrangente.

A resolução do dilema se construiu coletivamente no próprio comitê, que contava com representantes das esferas governamentais em diferentes níveis, da sociedade civil e da academia. No comitê, chegou-se à compreensão de que era possível realizar uma ação midiática mais abrangente, com efeito na diminuição da vulnerabilidade dos HSH ao HIV sem precisar enfatizar a AIDS, fomentando a desestigmatização das homossexualidades em campanha pública. O embasamento teórico para tal posição vinha da teoria da vulnerabilidade e dos modos de intervir em saúde coletiva - naquilo que se chama de intervenções estruturais1010 Parker R. Na contramão da aids: sexualidade, intervenção, política. Rio de Janeiro: Editora 34; 2000.. A campanha foi então produzida e veiculada em horário nobre na TV1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Desafios da prevenção da epidemia pelo HIV/AIDS junto aos homens que fazem sexo com homens. Brasília: MS; 2002.,2222 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Campainha - Campanha HIV, 2002 [Internet]. 2002. [acessado 2023 mar 27]. Disponível em https://youtu.be/KI1VGM7UQwA
https://youtu.be/KI1VGM7UQwA...
.

No entanto, isso significou também que eram precisos materiais específicos para ambientes por onde circulam HSHs gay-identificados, falando tanto diretamente sobre prevenção do HIV como mobilizando-os para a participação política, o que resultou em uma pluralidade de peças sobre assuntos diferentes que impactavam a suscetibilidade ao vírus e o acesso à prevenção1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Desafios da prevenção da epidemia pelo HIV/AIDS junto aos homens que fazem sexo com homens. Brasília: MS; 2002..

A associação feita na roda foi de que o Espaço Trans já trabalha, estruturalmente, para a diminuição do HIV entre as pessoas beneficiárias, posto que o acesso ao processo transexualizador e a outras ações ofertadas é um meio para inserção social com dignidade, reconhecimento político e identitário, advindo do Estado - o Hospital das Clínicas da UFPE, onde se localiza o Espaço, é um ente federal. Em adição, todas as pessoas concordaram sobre a importância de produzir estratégias de IEC sobre as questões que tornam a população trans ainda mais afetada pela epidemia de HIV/Aids2323 Magno L, Silva LAVD, Veras MA, Pereira-Santos M, Dourado I. Estigma e discriminaça~o relacionados a` identidade de ge^nero e a vulnerabilidade ao HIV/aids entre mulheres transge^nero: revisão sistemática. Cad Saude Publica 2019; 35(4):e00112718. do que a de gays e outros HSHs.

Sinergia de opressões: classe/renda, raça, privação de liberdade, letramento

Girando a roda, foi dada visibilidade a outras categorias populacionais que, na sinergia de opressões que marca a sociedade brasileira, estão em situações ainda mais delicadas de vulnerabilidade: pessoas em privação de liberdade, população em situação de rua, e também as marcadas pelo racismo estrutural, em especial as que residem nas periferias da Região Metropolitana. Destacamos que o racismo estrutura as duas populações mencionadas anteriormente.

Privação de liberdade

As representantes da assistência prisional relataram a existência da “Casa das Dindas”, territórios nas prisões onde residem pessoas LGBTQIN+ - geralmente pessoas que configuram feminilidade. Apontaram para o esforço da equipe para oferecer dignidade ao público, que, pela própria estigmatização, vive em condições sub-humanas, com dificuldades de acesso a requisitos básicos de habitação, higiene e saúde.

Relataram a dificuldade com a utilização das denominações usadas pelos movimentos sociais e a academia. Muitas vezes, as categorias usadas nos movimentos e na literatura não se expressam, ou não têm o mesmo significado, dentro dos presídios, o que cria obstáculos de entendimento na busca de subsídios e no próprio trabalho.

O LabEshu tem algumas pessoas pesquisando em contextos prisionais, abordando direta ou indiretamente as pessoas sexo dissidentes2424 De Paula L. Sexualidades Encarceradas: afetos, desejos e prazeres no cotidiano do cortiço-prisão feminino do interior pernambucano [dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2018.,2525 Silva PG. A experiência de encarceramento sob a ótica da população LGBT: uma análise a partir da criação das alas LGBTs em unidades prisionais masculinas [dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2020.. Pensamos em futuramente organizar uma oficina em que tais questões possam ser aprofundadas. Mas, já nos antecipando, apontamos que as categorias do movimento e da academia para nomear as pessoas devem servir como referência. A fluidez, circunstancialidade e polissemia das expressões utilizadas para se referir às pessoas sexo dissidentes devem ser consideradas, e quem deve dar o sentido e o nome para suas identidades é a pessoa em situação de atendimento, e não os serviços, os movimentos sociais ou a academia.

No entanto, é importante lembrar que a classificação acadêmica tem outros propósitos. Por exemplo, mulheres cis, homens trans e mulheres trans ou qualquer pessoa que use hormônios à base de estradiol não podem usar o esquema da PrEP (profilaxia pré-exposição para HIV) sob demanda2626 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Nota Técnica nº 8/2023-CGAHV/.DCCI/SVS/MS [Internet]. 2023. [acessado 2023 jan 31]. Disponível em: http://azt.aids.gov.br/documentos/SEI_MS%20-%200030684487%20-%20Nota%20T%C3%A9cnica%20563.2022.pdf
http://azt.aids.gov.br/documentos/SEI_MS...
. Mas na prisão talvez as categorias homem trans e mulher trans não façam nenhum sentido. Lá existem “papais”2424 De Paula L. Sexualidades Encarceradas: afetos, desejos e prazeres no cotidiano do cortiço-prisão feminino do interior pernambucano [dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2018., no campo das transgeneridades masculinas, e “bichas”, “travas” e “travestis”, na feminina2525 Silva PG. A experiência de encarceramento sob a ótica da população LGBT: uma análise a partir da criação das alas LGBTs em unidades prisionais masculinas [dissertação]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco; 2020.. O caminho sugerido é ouvir a academia, assim como os movimentos e adequar os conceitos à linguagem nativa de modo a produzir ações dialógicas.

Raça: desafios metodológicos na pesquisa e no acesso à prevenção

No caso da raça, nos foi lembrado que nas periferias se observa uma maior dificuldade de homens pretos e pardos para acessarem a PrEP. Os representes da ONG Gestos e do CTA/SAE Gouveia de Barros foram categóricos em apontar para o fato de que a PrEP, dada a peculiaridade de uso, e dado o modo como a divulgação tem sido feita, é mais utilizada por homens gays, brancos, de classe média e universitários2727 Vasconcelos R. Entre erros e acertos, oferta gratuita de PrEP no SUS completa 5 anos [Internet]. 2023. [acessado 2023 mar 28]. Disponível em: https://agenciaaids.com.br/noticia/rico-vasconcelos-uol-entre-erros-e-acertos-oferta-gratuita-de-prep-no-sus-completa-5-anos/
https://agenciaaids.com.br/noticia/rico-...
.

Perguntaram-se, em voz inaudível, mas a questão se fez estrondosamente presente, atualizada pelos próprios corpos dos que atenderam ao chamado do evento, em sua maioria pessoas brancas: em que medida nosso material e nossa investigação dá conta das questões raciais que atravessam a vulnerabilidade dos HSHs e outras pessoas LGBTQIAN+ ao HIV e à Aids?

A resposta foi: temos nos esforçado. O racismo à brasileira muitas vezes dificulta nossas intenções de analisar os impactos de raça nos contextos intersubjetivos de exposição ao HIV. Numa equipe formada, em sua grande maioria, por bolsistas de iniciação científica, é preciso formar cada pessoa que entra nas problemáticas raciais, o que implica instigá-las a descrever o racismo em suas diferentes nuances - inclusive eróticas.

No caminho para explorar esse campo, nossa ferramenta analítica é a da estilização corporal, definida como configurações estéticas que resultam de agenciamentos corporais (constituição física, gestual, vestuário, adorno, sotaque, cheiro, gosto, textura etc.), com efeitos de enunciações identitárias, com implicações de produção de sentidos (disposições, significados, valores, emoções) que vão mediar a ação33 Rios LF, Adriâo KG, Albuquerque AP, Pereira AF. 'Couro no couro': homens com práticas homossexuais e prevenção do HIV na Região Metropolitana do Recife. Saude Debate 2022; 46(Esp. 7):85-102..

Ou seja, identificar configurações racializadas, como são denominadas, e seus efeitos nas interações. A título de exemplo de como temos usado o conceito, explicamos como acontecia uma dificuldade analítica no início do projeto de usar a autoclassificação de gênero para análise dos dados. A maioria das pessoas entrevistadas se dizia homem. Decidimos fazer uma “heteroclassificação”. Numa oficina com todas as pessoas da equipe, a partir de dados de observação e de rememoração das situações de entrevistas, chegamos às principais categorias nativas, escolhemos nomes que melhor expressassem as configurações (são várias as formas de chamar as de gênero, que, na prática, correspondem a determinadas nuances, que foram exploradas em momentos posteriores das análises), e classificamos nosso entrevistados.

Os dados, então, puderam falar, mostrando como as pintosas (homens que configuram feminilidade, supostamente passivos/que são penetrados) são as que mais sofrem discriminação e violência, são menos desejadas etc., se comparadas aos boy (homens que configuram masculinidade, gays identificados, supostamente ativos/quem penetra). Na sequência das análises, emergiu a figura do cafuçu (homem preto ou pardo, não gay identificado, que configura masculinidade e rudez, supostamente ativo).

Nosso caminho atual, além de explorar as classificações nativas na prática (cafuçu, boy padrão, bicha poc, bicha cocote etc., todas marcadas racialmente)1818 Rios LF, Vieira LL. Sobre a "mundiça" e as "bichas cocotes": georreferenciação e classe social nos circuitos gay do Recife. Periodicus 2023; 1(18):217-250., nos aproximou das discussões das comissões de heteroidentificação racial nas universidades públicas2828 Dias GR, Tavares Junior PR, organizadores. Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas: IFRS Campus Canoas; 2018., na perspectiva de adensar critérios para classificação de nossos entrevistados e das pessoas que interagem durante as observações de campo.

Nos materiais de comunicação em saúde, estamos buscando usar do contra-intuitivo sobre relacionamentos, trabalhando as questões raciais que atravessam a sexualidade para produzir reflexões sobre as estilizações, por exemplo, do negão ativo, da maricona passiva, do branco que toma as decisões sobre prevenção. Esses e outros estereótipos têm efeito negativo na prevenção e, sobretudo, reforçam opressões.

Ainda a título de exemplo, no primeiro “Na agonia do tesão”, intitulado “Amor e camisinha”, temos um casal interracial. O homem branco é mais velho e pintoso, e o preto é mais novo, estilo cafuçu. Tudo levaria a pensar que o mais novo, preto, “comeria” (penetraria) o mais velho. Mas as imagens mostram que é o homem negro quem interrompe a transa, quando estava a ponto de ser penetrado. O motivo é a ausência de camisinha. O negro puxa a conversa, que a literatura chama de segurança negociada: testar e fazer acordos antes de deixar de usar a camisinha. Nos nossos materiais, a raça aparece menos nos textos em si e ganha sua maior expressão nas imagens. No cotidiano, as interações são entabuladas de modo irrefletido, mediadas pelas imagens, que vão produzir emoções (desejo, medo, nojo etc.) e disposições para ação.

População em situação de rua

Ainda trazendo a discussão sobre a PrEP como norteadora para refletir sobre marcadores sociais, acesso e usabilidade do material de IEC recém lançado, as representantes do Consultório na Rua sublinharam que os HSH para quem prestam atendimento muitas vezes têm dificuldade de usar outras medicações, como a para tuberculose, o que certamente se estenderia para a PrEP.

Já havíamos lembrado, nas palestras que antecederam a roda, que o acesso gratuito à PrEP e sua utilização cotidiana exige uma disciplina que se faz, por exemplo, na necessária vinculação aos serviços de saúde, com exames regulares e consultas médicas de rotina, além de ser necessário o uso correto da medicação, seja na PrEP de uso contínuo ou na por demanda2626 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Nota Técnica nº 8/2023-CGAHV/.DCCI/SVS/MS [Internet]. 2023. [acessado 2023 jan 31]. Disponível em: http://azt.aids.gov.br/documentos/SEI_MS%20-%200030684487%20-%20Nota%20T%C3%A9cnica%20563.2022.pdf
http://azt.aids.gov.br/documentos/SEI_MS...
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https://agenciaaids.com.br/noticia/rico-...
. Para algumas pessoas, ter um remédio em casa ou na bolsa que remeta ao HIV e às sexualidades dissidentes pode ser mais uma fonte de estigma e discriminação. Elementos que também foram importantes na ocasião da implementação do acesso à terapia anti-retroviral (TARV) para pessoas vivendo com HIV e Aids (PVHA). Certamente os estudos de adesão à TARV podem nos ajudar a pensar estratégias para a implementação da PrEP2929 Teixeira PR, Paiva V, Shimma E, rganizadores. Tá difícil de engolir? experiências de adesão ao tratamento anti-retroviral em São Paulo. São Paulo: Nepaids; 2000..

Mais um movimento da roda, conduzido ainda pelas profissionais do Consultório na Rua, apontou que muitos HSH usuários do serviço fazem sexo com homens por troca de dinheiro para compra de drogas, mas não se percebem como gays, bichas ou garotos de programa. Questionamos onde estão esses homens. Não víamos mais michês nos tradicionais pontos de prostituição masculina das pesquisas já realizadas no LabEshu3030 Souza Neto EN, Rios LF. Apontamentos para uma economia política do cu entre trabalhadores sexuais. Psicol Soc 2015; 27(3):579-586.. Foi o momento em que outro ponto alto do rodar da roda se fez, pelo menos para o grupo de pesquisa.

Responderam, corroboradas por outras pessoas presentes, que eles continuavam nas ruas, talvez mais ou menos nos mesmos lugares já etnografados por nós. Mas pelas descrições de nossas interlocutoras, o que chamamos de estilização mudou. Em vez dos boys de programa (estilisticamente próximos do que as bichas denominam de cafuçus/negros e boys padrão/brancos), temos os “noiados”: homens, em geral negros, magérrimos, mal vestidos e de precária higiene corporal, pessoas vivendo na rua, que, conforme nossas interlocutoras, fazem o “chupa chupa” (sexo oral) pelo dinheiro do crack.

Certamente não temos escutado esse público, até porque nossas redes de informantes para as entrevistas se constroem a partir de pessoas pobres e remediadas, que ainda que façam sexo com essas pessoas, ou não relatam, ou não fazem descrições que nos auxiliem a identificá-las nas cenas.

A equipe ficou impressionada mesmo foi com a nossa “miopia”. Como não percebíamos essas pessoas nas ruas nas nossas observações? Seria elitismo nosso? Naturalizamos a figura do boy de programa a partir dos nossos próprios desejos? O fato é que sentimos falta dos michês nas ruas do centro e acreditamos que haviam migrado para as saunas em busca de mais segurança para o exercício do negócio. Pode ser que isso tenha acontecido, mas o que sugerem as pessoas participantes da roda é que, se isso aconteceu, homens com outras estilizações assumiram o negócio do sexo na rua. A roda fez o seu papel dialógico e recolocou para as pesquisadoras experiências e questões para investigação - permitiu estanhar o que se tornou ou já era familiar.

Letramento - quem chegaria até Alice?

A “desorganização” provocada pela roda não ficou só aí. No caminho das críticas, muito delicadas e apontadoras de novas direções, fomos nos dando conta dos limites de nossas produções recém lançadas. Materiais que, por mais que tratem, nas entrelinhas, das questões raciais e de classe, muito provavelmente serão mais efetivos para bichas letradas.

A questão que a roda nos colocou foi: como produzir dispositivos (materiais educativos, insumos e acesso a eles) adequados para pessoas em situação de rua, pessoas privadas de liberdade, para os homens pretos das periferias, para pessoas não letradas? No caso das duas primeiras categorias, elas não teriam acesso a computadores e celulares, seja por custo seja por proibição legal. No caso das populações pobres e remediadas, por mais que encontremos um grande uso de smartphones, muitas vezes também há uma grande presença de pessoas analfabetas funcionais. E o nosso material pede pela capacidade de leitura formal, ainda que use das imagens para exprimir estilizações e emoções que concorrem no “drama do sexo inseguro”.

A roda fez o seu trabalho! Nos fez refletir! Nos dispor a enfrentar desafios que são de todas as pessoas empenhadas na promoção da dignidade humana na saúde, no sistema de responsabilização, na ação social, para HSHs, e, mais amplamente, por estarem todas enredadas socialmente, pessoas LGBTQIAN+.

Contribuições para uma agenda da saúde LGBTQINA+

Gomes1515 Gomes R. Agendas de saúde voltadas para gays e lésbicas. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3807-3814., dando continuidade a uma pesquisa sobre narrativas do movimento gay e lésbico brasileiro sobre saúde1414 Gomes R. Narrativas do movimento homossexual brasileiro sobre a saúde de gays e lésbicas. Cien Saude Colet 2022; 27(2):555-565., submete à apreciação das pessoas que foram suas interlocutoras uma agenda de temas, reiterados como relevantes para a ação, são eles: “violência física ou psicológica; atenção às lésbicas relacionada aos cânceres de útero e mama; saúde mental; capacitação de profissionais de saúde; prevenção e atenção voltadas para a Aids; reprodução assistida para lésbicas; atenção a gays relacionada ao atendimento urológico e proctológico; desenvolvimento de materiais informativos sobre a saúde em geral; e informação e tratamento das infecções sexualmente transmissíveis” (p. 3807).

Os temas que a nossa roda de conversa desvelou reforçam muitos dos identificados acima1414 Gomes R. Narrativas do movimento homossexual brasileiro sobre a saúde de gays e lésbicas. Cien Saude Colet 2022; 27(2):555-565.,1515 Gomes R. Agendas de saúde voltadas para gays e lésbicas. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3807-3814., que impactam a produção de cuidado não apenas no campo do HIV/AIDS, e não apenas para HSHs, mas para todas as letras do alfabeto sexo-dissidente, que podem ser resumidos em: 1) dificuldade com o uso das categorias de identidade x fluidez das experiências; 2) possível reforço da estigmatização dessas populações por prestar-lhes cuidado em saúde sexual; 3) racismo estrutural e seu amplo impacto na vulnerabilidade de pessoas moradoras das periferias, pessoas em privação de liberdade e pessoas em extrema situação de pobreza; 4) letramento que dificulta o acesso a muitos do materiais de IEC em saúde.

Certamente os temas e os desdobramentos apontados ao longo do texto situam importantes obstáculos na promoção da saude integral de pessoas LGBTQUIAN+, contribuindo com outras agendas de pesquisa e intervenção1212 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Desafios da prevenção da epidemia pelo HIV/AIDS junto aos homens que fazem sexo com homens. Brasília: MS; 2002.

13 Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: MS; 2013.

14 Gomes R. Narrativas do movimento homossexual brasileiro sobre a saúde de gays e lésbicas. Cien Saude Colet 2022; 27(2):555-565.
-1515 Gomes R. Agendas de saúde voltadas para gays e lésbicas. Cien Saude Colet 2022; 27(10):3807-3814.. O registro da discussão que se estabeleceu durante nossa roda de conversa pôde qualificar melhor alguns pontos cegos, como a dificuldade com o vocabulário sexo dissidente e seu impacto na ação de profissionais e na produção de IEC. Também sublinha as nuances provocadas em cada “letra” pelas intersecções dos marcadores sociais, produtores de opressões. Ou seja, como o racismo estrutural, a classe e o letramento impactam as ações de promoção à saúde, muitas vezes invisibilizando atores ou impossibilitando acesso pleno à informação - como revelam as críticas ao nosso próprio site.

Considerações finais: a roda continua a rodar…

Não saímos daquele auditório/arena, no oitavo andar do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, com respostas. Elas precisam ser construídas. Olhar o já feito e continuar no exercício da imaginação e da criatividade para instaurar instrumentos novos de trabalho. E, para quem pensa que a roda parou de rodar quando entregamos as chaves do auditório, a roda é potente e persiste em movimento.

Nas conversas pós-encontro, pensamos que talvez o uso de vídeos e animações que pululam no Instagram e WhatsApp pudessem ser mais acessíveis para as pessoas pouco letradas e analfabetas funcionais, que têm celulares e usam esses e outros aplicativos compartilhando o que acham interessante, e, no caso do último, as mensagens de voz. A áudio-narrativa do site também poderia ser um caminho para incluir essas pessoas e aquelas com deficiência visual.

O desafio das ruas, entretanto, permanece e precisa ser enfrentado. Reiteramos o convite ao Consultório na Rua para se juntar ao LabEshu para re-escutar as pessoas que usam o serviço, na perspectiva de inventar métodos de intervenção em saúde sexual ali mesmo, na própria rua.

O tempo de ouro da resposta brasileira à Aids nos ensinou que foi o profícuo diálogo entre sociedade civil, academia e serviços um dos elementos que a fez modelo internacional. Essa é a nossa aposta pra manter a roda rodando!

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  • Financiamento

    A pesquisa que originou este artigo contou com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no formato de Bolsa de Produtividade em Pesquisa (processo 309265/2021-5) e auxílio para pesquisa, edital 40/2022 (processo 409990/2022-1), e também com o apoio dos programas de concessão de bolsas de Iniciação Cientifica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Pernambuco (FACEPE) e da Universidade Federal de Pernambuco.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Set 2024

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2023
  • Aceito
    16 Set 2023
  • Publicado
    18 Set 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br