Vítimas indiretas da violência: um olhar sobre os impactos na saúde

Rayana Tavares de Oliveira Bueno Edinilsa Ramos de Souza Bruno Costa Poltronieri Sobre os autores

Resumo

Buscou-se investigar as percepções das vítimas indiretas, ou familiares de vítimas de homicídio, sobre as repercussões dessa morte em sua saúde. Fez-se um estudo qualitativo, exploratório, descritivo, a partir de oito entrevistas individuais semiestruturadas com dois grupos: familiares de agentes policiais vitimados por violência letal, e familiares de pessoas mortas em decorrência de intervenção policial, aqui designada como homicídio. Ambos os grupos relataram a percepção de que sua saúde piorou após o homicídio, e mencionaram problemas de depressão, síndrome do pânico, insônia, problemas cardíacos e distúrbios alimentares. Destacaram ainda a aquisição de hábitos danosos à saúde, como consumo de bebidas alcoólicas, tabaco e automedicação, e o agravamento de problemas de saúde pré-existentes. Observou-se que o homicídio praticado e sofrido por agentes policiais afeta vários aspectos da vida das vítimas indiretas que são indissociáveis das questões de saúde em sentido ampliado. Essas pessoas também são vítimas dessa violência, embora muitas vezes tenham seu sofrimento invisibilizado. Estudar o tema contribui para dar espaço ao sofrimento e ao luto, e para subsidiar a melhor atuação das instituições e serviços envolvidos.

Palavras-chave:
Violência; Homicídio; Vitimização; Impactos na saúde

Introdução

A violência tem sido objeto de estudos da saúde pública do Brasil desde meados da década de 1970 e 1980, devido ao crescimento dos indicadores epidemiológicos das causas externas (acidentes e violências). Esses eventos representavam a segunda causa de mortes no país e, os jovens, as suas principais vítimas. À época já se destacavam os impactos econômicos, sociais, políticos e familiares da violência11 Minayo MCS, Souza ER. Violência e saúde como um campo interdisciplinar e de ação coletiva. Hist Cien Saude Manguinhos 1997; 4(3):513-531..

O homicídio, expressão máxima da violência, se configura como um evento letal em que se tira intencionalmente a vida de outro. É um problema de interesse das áreas da Segurança Pública, da Justiça e da Saúde. Nessa última, constitui o subgrupo Agressão, no grande grupo de mortes por Causas Externas, segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-10 revisão). Na Segurança Pública, tem sido analisado como Morte Violenta Intencional (MVI), categoria constituída por homicídio doloso, latrocínio (roubo seguido de morte), lesão corporal dolosa seguida de morte e morte decorrente da ação policial (intervenção legal). No Brasil a taxa de mortes por homicídio atingiu o ponto máximo no ano de 2017, seguida de queda nos anos de 2018 e 2019. Porém, a tendência de queda não se manteve no ano de 2020, quando foram registrados 50.033 homicídios, com taxa de 23,6/100.000 habitantes22 Bueno S, Lima RS, Alcadipani R. Evolução das mortes violentas intencionais no Brasil. Anuario Bras Segur Publica 2021; 15(2021):380., o que demostra a magnitude e relevância do tema.

Entre os alarmantes números de homicídios no país, destacam-se as mortes envolvendo agente policial, seja como vítima ou perpetrador da violência. Em 2020, o país teve 6.416 vítimas fatais das intervenções policiais, sendo esse o maior número desde 201333 Bueno S, Marques D, Pacheco D. As mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil em 2020. Anuario Bras Segur Publica 2021; 15(2021):380., quando tal indicador passou a ser monitorado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O outro lado dessa realidade é a vitimização policial. Em 2020 foram 194 policiais mortos por Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) em todo o país, apresentando aumento de 12,8% em relação ao ano anterior. Entre os policiais vitimados, 51 foram mortos em serviço e 131 mortos na folga44 Socorro CD, Martins J. Vitimização Policial no Brasil em tempos de Covid-19. Anuario Bras Segur Publica 2021; 15(2021):380.. Esses dados mostram que o número de homicídios provocados pela polícia é 33 vezes maior que o de policiais mortos55 Zilli LF. Letalidade e vitimização policial: características gerais do fenômeno em três estados brasileiros. Repositório do Conhecimento do IPEA [Internet]. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2018 [acessado 2023 jun 13]. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8873/1/bapi_17_cap_10.pdf.
https://repositorio.ipea.gov.br/bitstrea...
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O perfil das vítimas letais da ação policial e de policiais vitimados é muito semelhante. Em sua maioria, são homens, negros, jovens e pobres33 Bueno S, Marques D, Pacheco D. As mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil em 2020. Anuario Bras Segur Publica 2021; 15(2021):380., demonstrando que questões de gênero, raça e classe social são características que se interseccionam e aumentam o risco de morrer de forma violenta66 Oliveira E, Couto MT, Separavich MAA, Luiz OC. Contribuição da interseccionalidade na compreensão da saúde-doença-cuidado de homens jovens em contextos de pobreza urbana. Interface (Botucatu) 2020; 24:e180736..

A violência letal gera não só vítimas diretas, aquelas que morrem, mas também as denominadas vítimas indiretas, vítimas ocultas ou sobreviventes do homicídio77 Costa DH, Njaine K, Schenker M. Repercussões do homicídio em famílias das vítimas: uma revisão da literatura. Cien Saude Colet 2017; 22(9):3087-3097.. As vítimas indiretas, geralmente, fazem parte do círculo de convivência da vítima direta, com ou sem laços consanguíneos, e sofrem significativos efeitos da violência perpetrada88 Organização das Nações Unidas (ONU). Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder - Resolução 40/34. Nova York: ONU; 1985..

Estima-se que, para cada vítima de violência letal, há pelo menos três pessoas profundamente afetadas pelos impactos do homicídio em suas vidas99 Soares GAD, Miranda D, Borges D, organizadores. As vítimas ocultas da violência na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: Centro de Estudos de Segurança e Cidadania; 2007.. Esses impactos reverberam na saúde, provocam ou agravam adoecimentos, pioram a qualidade de vida e o bem-estar dessas pessoas. Estudos nacionais e internacionais apontam efeitos na saúde como: labirintite, anorexia, obesidade, insônia, aumento do tabagismo e etilismo por familiares da pessoa morta, distúrbios cardíacos, aumento do estresse e fobias, hipertensão, diabetes e ataques de pânico1010 Connolly J, Gordon R. Co-victims of Homicide: A Systematic Review of the Literature. Trauma Violence Abuse 2015; 16(4):494-505.

11 Costa DH, Schenker M, Njaine K, Souza ER. Homicídios de jovens: os impactos da perda em famílias de vítimas. Physis Rio J 2017; 27(3):685-705.

12 Domingues DF, Dessen MA. Reorganização familiar e rede social de apoio pós-homicídio juvenil. Psicol Teor Pesqui 2013; 29(2):141-148.

13 Fisher EC. Running head: Family Member of Homicide. Auckland: University of Auckland; 2014.
-1414 Vieira LJES, Arcoverde MLV, Araújo MAL, Ferreira RC, Fialho AVM, Pordeus AMJ. Impacto da violência na saúde de famílias em Fortaleza, Ceará. Cien Saude Colet 2009; 14(5):1773-1779..

Ações de cuidado e atenção aos danos causados às vítimas indiretas são temas pouco abordados e discutidos. Em muitos casos, os familiares e pessoas próximas não se veem e nem são vistas como vítimas da violência77 Costa DH, Njaine K, Schenker M. Repercussões do homicídio em famílias das vítimas: uma revisão da literatura. Cien Saude Colet 2017; 22(9):3087-3097.. Portanto, este estudo buscou investigar como as vítimas indiretas percebem as repercussões da violência letal em sua saúde física e mental e, para isso, abordou os familiares e pessoas próximas daqueles que perderam suas vidas pela violência.

A fundamentação teórica se baseou no conceito de sofrimento social1515 Kleinman A, Das V, Lock MM. Social suffering. Berkeley: University of California Press; 1997., que reconhece que o sofrimento humano é influenciado por diversos fatores sociais, culturais, econômicos e políticos, além dos biológicos. Isso permite a análise do impacto das estruturas sociais na experiência de luto por parte de indivíduos e comunidades. Ademais, foram incorporadas as teorias de Butler1616 Butler J. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press; 2015. sobre o luto não reconhecido e pessoas não enlutáveis. A autora destaca como algumas vidas são consideradas merecedoras de luto, enquanto outras não são reconhecidas como dignas de tal reconhecimento. Isso se manifesta a partir da desumanização e negação do luto público para certos grupos.

Método

Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório, descritivo, que investigou as percepções de vítimas indiretas sobre as repercussões que a morte violenta de um parente ou pessoa próxima tem em sua saúde. Para isso, foram abordados familiares de pessoas mortas por agentes policiais, e familiares de policiais mortos por violência.

Utilizou-se a metodologia qualitativa pela possibilidade de estudar as histórias, representações e interpretações que os sujeitos sociais fazem a respeito de como vivem, sentem e o que pensam1717 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abrasco; 1992.. Portanto, investigar os efeitos do homicídio envolvendo agentes policiais na vida das vítimas indiretas, por meio das suas falas, é também uma forma de dar visibilidade aos que perderam um ente querido, mas são invisíveis nas estatísticas e nas políticas públicas voltadas à redução dos impactos da violência na saúde.

Os participantes do estudo foram localizados a partir de associações e grupos com atuação em movimentos sociais de familiares e amigos de vítimas da letalidade policial, e de familiares de policiais vitimados, no município do Rio de Janeiro.

Ao contato inicial com estes atores, utilizou-se a técnica “bola de neve”1818 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: Tematicas 2014; 22(44):201-218., solicitou-se que indicassem outras pessoas com essa experiência de perda e interesse em participar. Esta técnica é útil para pesquisar grupos difíceis de acessar, em que os critérios de inclusão não são explicitados socialmente. E para estudar questões delicadas, de âmbito privado, que requerem o conhecimento das pessoas pertencentes ao grupo ou que são reconhecidas como informantes, para localizá-las1818 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: Tematicas 2014; 22(44):201-218..

Os critérios de inclusão dos participantes foram: residir na cidade do Rio de Janeiro, ter mais de 18 anos, ter familiar/conhecido vitimado por violência letal envolvendo agentes policiais, e a violência ter ocorrido há pelo menos 2 anos; pela necessidade de tempo para a elaboração do luto1919 Alves TM. Formação de indicadores para a psicopatologia do luto [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2014., e pelo estudo analisar essa percepção a respeito do surgimento ou agravamento de problemas de saúde nos participantes.

Oito familiares atenderam aos critérios e concordaram em participar. Eles constituíram dois grupos: familiares/pessoas próximas de agentes policiais que foram vítimas de violência letal (grupo 1), e familiares/pessoas próximas de pessoas vitimadas em decorrência de intervenção policial (grupo 2).

O grupo 1 foi composto por três mulheres, duas se autodeclararam brancas, e uma negra, com idades variando de 41 a 71 anos; todas tinham curso superior e eram mãe, sogra ou irmã de policial morto. Em relação aos agentes, dois eram homens, policiais militares, e uma era mulher, policial civil. Duas vítimas diretas foram descritas como negras, uma como branca, com idades entre 24 e 51 anos. Os homicídios dos policiais militares ocorreram no exercício da atividade profissional. A policial civil foi morta durante a folga, por ter sido identificada como policial em um assalto; estava grávida do seu primeiro filho. As mortes ocorreram em bairros da cidade do Rio de Janeiro ou em municípios da região metropolitana da capital.

Duas entrevistadas deste grupo tiveram outras experiências de violência e luto envolvendo agentes policiais. Uma delas é casada com um policial militar que foi alvejado a caminho do trabalho, e outra teve um namorado policial militar assassinado.

O grupo 2 foi composto por quatro mães e um pai, a maioria se autodeclarou negra, com idades entre 42 e 58 anos. Duas participantes tinham curso superior. As vítimas da violência letal foram descritas como homens jovens e negros, com idades entre 16 e 29 anos, e um menino de 2 anos. A maioria das mortes ocorreu em operações policiais realizadas em bairros pobres e comunidades do Rio de Janeiro, como Manguinhos, Alemão, Acari e Maré. Uma das mortes aconteceu na unidade onde a vítima cumpria medida socioeducativa. A maioria dos perpetradores era policial militar, mas, em um caso, foi um agente penitenciário e, em outro, um soldado do exército brasileiro; cuja vítima sobreviveu com grave sequela permanente, o que modificou drasticamente sua vida e a de sua mãe.

Entrevistas individuais semiestruturadas foram feitas em locais escolhidos pelos participantes, respeitando sua privacidade. Focalizaram vários aspectos das suas vidas, como: a história de vida, as percepções sobre os impactos da violência letal em sua vida, os recursos e apoios sociais utilizados para lidar com o ocorrido. As entrevistas duraram cerca de uma hora e trinta minutos; foram gravadas e digitalizadas. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).

O material foi submetido à análise temática, que compreende leitura e interpretação do conteúdo do discurso dos entrevistados2020 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2000.. Por meio dessa análise é possível encontrar respostas para as questões formuladas e, confirmar ou não, as hipóteses que foram previamente estabelecidas. Este artigo recortou os impactos da morte do parente/pessoa próxima na saúde das vítimas indiretas, entre os temas abordados em uma pesquisa-mãe. A categoria saúde foi analisada por meio de três subcategorias ou, subtemas: adoecimento físico, adoecimento mental, tratamentos e medicamentos.

A pesquisa original foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, do Instituto Nacional de Saúde da Criança, da Mulher e do Adolescente (IFF)/Fiocruz, sob o parecer nº 3.420.525, de 27 de junho de 2019.

Resultados

Impactos dos homicídios na saúde física das vítimas indiretas

Eu tive tudo que foi “ite”: gastrite, sinusite, labirintite (Mãe da policial civil morta enquanto voltava para casa).

Problemas de saúde física são os mais facilmente reconhecidos e citados pelas vítimas indiretas. Entre esses, os mais relatados se referem ao sistema cardiovascular, como: descontrole na pressão arterial, hipertensão, taquicardia e sensação de infarto, mesmo entre as pessoas que não apresentavam nenhum desses problemas anteriormente. Duas participantes relataram ocorrências graves, como Acidente Vascular Cerebral (AVC) e aneurisma cerebral, com sequelas.

Gastrite, falta de apetite, mudança nos hábitos alimentares e perda ou aumento de peso também apareceram com frequência nos relatos. Outras alterações, como queda de cabelo e unhas fracas, contrações no abdômen, espasmos musculares, suor frio com pele gelada e enxaqueca foram mencionados. Houve ainda relatos do surgimento de doenças crônicas com grande impacto na vida dos participantes, como diabetes e labirintite.

Todos os entrevistados perceberam que sua saúde piorou depois do ocorrido. Alguns relataram o agravamento de problemas pré-existentes após o homicídio. As explicações para o adoecimento foram diversas: uns apontaram que os sentimentos de ódio e injustiça advindos dessa morte contribuíram para isso; outros relataram que, embora aparentem estar bem, se sentem adoecidos por dentro; referiram ainda mudanças de hábitos na forma de comer e de dormir, que também afetaram a saúde.

A minha saúde foi de mal a pior, né. Tudo adquirido depois. A gente adoece, né. A gente não vê justiça pelo que aconteceu, a gente acaba adoecendo (Mãe de jovem morto por policiais da UPP em Manguinhos).

Eu tive gastrite. Eu cheguei a quase 90 kg. Eu comia, comia, comia, comia desesperadamente (Mãe de policial civil morta enquanto voltava para casa).

Alguns informaram ter adquirido hábitos danosos à saúde, como o consumo de bebidas alcoólicas e tabaco. Uma entrevistada contou que, depois do seu filho ter sido morto por um policial, voltou a fumar após 15 anos de abstinência. Porém, esse retorno não foi descrito como algo prejudicial à saúde, mas sim como algo que a distrai, ajuda a passar o tempo e preencher o vazio.

Foi logo assim que meu caçula nasceu, eu parei de fumar. Aí depois que ele faleceu, eu voltei a fumar. Foi a única coisa que eu consegui, assim, pra noite passar. Às vezes eu fico na janela fumando, olhando pro nada, pro silêncio (Mãe de jovem morto por policiais no Complexo do Alemão).

As vítimas indiretas do homicídio expressaram sofrimento ao falar sobre os problemas de saúde que as afetaram, principalmente por compreenderem que são consequências da morte de seu ente querido e de todas as mudanças que ocorreram em suas vidas após esse episódio. Muitas afirmaram que o processo de luto, a mudança em sua visão do mundo, o foco no lutar por justiça ou no cuidado dos outros filhos e familiares, fez com que negligenciassem a própria saúde, o que pode ter contribuído para o surgimento/agravamento de doenças.

Impactos dos homicídios na saúde mental das vítimas indiretas

No primeiro ano da morte do meu filho eu pensava em morrer todo dia (Mãe de um jovem morto por policiais no Complexo do Alemão).

Os impactos na saúde mental são de mais difícil verificação e mensuração, porém também foram relatados pelos entrevistados, cujas principais queixas foram o sofrimento após a morte do ente querido, as dificuldades vividas no processo de luto, a dificuldade de se sentir bem ou feliz, e as mudanças na forma de viver.

Foram relatados sentimentos de tristeza, depressão e desorientação, com o luto constantemente atualizado, não importando o tempo passado desde a morte, pois revivem o ocorrido com frequência. Também mencionaram grande sensação de vazio, de escuridão, de solidão, de morte em vida. Todos afirmaram não ser possível voltar ao “estado de felicidade”, ou ter a mesma visão que tinham sobre a vida antes da morte do seu ente querido.

Eu realmente pensei assim de chegar ao grau da loucura, com a morte da minha filha (Mãe de policial civil morta enquanto voltava para casa).

Hoje eu lembro muito do que aconteceu todos os dias, todas as noites. Eu ainda choro todas as noites (Mãe de um jovem morto por policiais no Complexo do Alemão).

Foram citados problemas de ansiedade, estresse, medo constante no dia a dia e medo de enlouquecer, de não suportar o sofrimento; um medo difuso, de que algo possa acontecer com eles ou com outros familiares, promovendo um estado de alerta e a sensação de risco constante.

Uma das entrevistadas relatou ter sido diagnosticada com Síndrome do Pânico no ano seguinte ao homicídio, e ainda apresentava os mesmos sintomas à época da entrevista, quatro anos depois. Ela descreveu sintomas de taquicardia, pressão no peito, sudorese, calafrios, arrepio por todo o corpo e desmaios que a acometem de forma progressiva. Outra participante, cujo filho sobreviveu à tentativa de homicídio provocado por um soldado do exército, referiu que desenvolveu Transtorno Obsessivo Compulsivo após o ocorrido. Atividades cotidianas, como andar de ônibus ou fazer passeios em família, passaram a ser momentos de tensão.

Tensão, infelizmente. É um troço...até no ônibus outro dia, entrou um cara que eu senti que ia, eu vi o volume na cintura dele, eu desci. Que eu sabia que ele estava arriscado a assaltar o ônibus (Pai de criança morta por policiais militares durante operação em Acari).

Cinco participantes relataram problemas relacionados ao sono, entre eles interrupção, insônia constante e hipersonia. Também passaram a ter reações emocionais exacerbadas, sendo comum os sentimentos de raiva profunda e revolta constante, agressividade ao lidar com as pessoas, vontade de entrar para a criminalidade e se aliar a atividades ilícitas, desejo de comprar armas, vontade de matar o perpetrador do homicídio, sentimento de que não há mais nada a perder, além do imenso desejo de vingança como a única motivação em suas vidas.

Em vez de dormir oito horas, eu dormia doze horas! Eu nem acordava. O pessoal até pensava que eu tinha morrido (Mãe de policial civil morta enquanto voltava para casa).

Entrou no meu cérebro, eu não consigo dormir mais do que duas ou três horas só. Escuto fogos dentro da favela, tiros, eu levanto. Já fico assustado (Pai de criança morta por policiais militares em operação policial em Acari).

Os participantes dos dois grupos relataram que sentem medo constante de que algo lhes aconteça. No entanto, os familiares das vítimas das intervenções policiais, falam como se não tivessem nada a perder, uma vez que o pior já aconteceu: o homicídio do seu ente querido. Os entrevistados desse grupo, comprometidos com o ativismo pela memória de seus filhos e justiça para o que lhes ocorreu, mostram que romperam a barreira do medo, falando sobre o assunto e lutando pelas vítimas diretas e indiretas desta violência.

No grupo dos familiares de policiais vitimados, os participantes demonstraram resistência e medo ao falar sobre o assunto. Relataram a sensação de serem vigiados, eles próprios e suas famílias, e medo de se tornarem alvo dos perpetradores do homicídio de seu ente querido, gerando um estado de tensão e alerta constante, mesmo quando estão dentro de suas casas.

Isso aí é a minha vida, é a minha rotina, isso aí é comum demais. Tanto que, às vezes, eu evito ficar sozinha. Isso aí é fato, sempre tive isso, de lá pra cá. Eu tô aqui sozinha, aí acho que tem alguém me observando, eu venho ver e não é ninguém (Sogra de policial militar morto em operação no Jacaré).

Uso de medicamentos e tratamentos como recursos para amenizar o sofrimento e a doença

Eu acho que tô sobrecarregando meu fígado com tanto remédio (Sogra de policial militar morto em operação no Jacaré).

Os participantes informaram que passaram a usar remédios para problemas cardíacos e pressão arterial. Também mencionaram o uso de calmantes, remédios para enxaqueca e remédios para dormir. A automedicação é frequente em suas falas.

Várias vítimas indiretas se tornaram fármaco dependentes, devido ao sofrimento e adoecimento após o homicídio, e arcam com os efeitos adversos que a medicalização pode trazer, incluindo o agravamento dos problemas de saúde.

Eu sou a maluca dos remédios de enxaqueca. Meu marido fala que não aguenta mais comprar Naramig. Foi uma colega do meu trabalho que me passou (Sogra de policial militar morto em operação no Jacaré).

Em relação aos calmantes e remédios psiquiátricos, duas visões distintas foram relatadas. Por um lado, a ideia de que o medicamento foi a principal ajuda para lidar com a depressão, sendo visto como essencial no tratamento para superar a dor e o sofrimento pela perda, mesmo que não tenha sido prescrito por um profissional da saúde. Por outro lado, parece haver certa resistência de alguns entrevistados em relação ao uso desse recurso.

No dia que meu filho foi assassinado, depois que me tiraram da UPA e me levaram para a casa da minha irmã, as pessoas queriam me dar calmantes, mas eu trancava a boca. Eu queria estar lúcida. Ficava com medo de ficar dopada (Mãe de jovem morto por policiais da UPP de Manguinhos).

A maioria dos participantes relatou fazer psicoterapia individual. Alguns frequentam grupos terapêuticos. Uma faz psicoterapia em grupo, mediado por psicólogos, e voltado para familiares que tiveram filhos assassinados por agentes do Estado.

Os que mencionaram problemas graves de saúde, como AVC, afirmaram que frequentam consultas e fazem tratamento médico regular. Outros informaram que, frequentemente, consultam pelo menos um médico.

Os dados mostram que os impactos do homicídio nas vítimas indiretas, de alguma forma, acabam chegando ao Sistema de Saúde, mesmo que não haja uma relação clara e direta entre a morte do familiar e a busca pelo serviço.

Eu falo que meu tratamento é junto com as mães. Porque eu fazia tratamento com psicólogo. Ele trabalhava na Clínica da Família, mas ele saiu. O que eu faço com as mães é a minha terapia (Mãe de jovem que ficou paraplégico em tentativa de homicídio, perpetrada por soldados do Exército Brasileiro, em operação na Maré).

É interessante destacar que as vítimas indiretas mencionaram como ações terapêuticas a luta por justiça, pelo reconhecimento de seus direitos, pela memória do ente querido, bem como os apoios dos grupos ativistas por estes direitos.

Discussão

Os achados desta pesquisa mostraram que as vítimas indiretas da violência letal percebem vários problemas de saúde física e mental que podem ter sido desencadeados ou intensificados a partir da morte do ente querido, e que permanecem anos após a vivência dessa violência.

Estudos com vítimas indiretas de homicídio também apontam o surgimento de problemas de saúde como hipertensão, insônia, perda de memória, alterações gástricas e cardíacas, e diabetes77 Costa DH, Njaine K, Schenker M. Repercussões do homicídio em famílias das vítimas: uma revisão da literatura. Cien Saude Colet 2017; 22(9):3087-3097.,1010 Connolly J, Gordon R. Co-victims of Homicide: A Systematic Review of the Literature. Trauma Violence Abuse 2015; 16(4):494-505., com consequências graves na qualidade de vida dessas pessoas. Muitos desses problemas, além de outros casos de adoecimento grave, foram relatados neste estudo, o que indica um padrão no adoecimento percebido pelas vítimas indiretas.

A maioria dos estudos da área da saúde sobre vítimas indiretas de homicídio busca investigar o sofrimento psicológico causado pela morte violenta e suas consequências na saúde mental dos familiares77 Costa DH, Njaine K, Schenker M. Repercussões do homicídio em famílias das vítimas: uma revisão da literatura. Cien Saude Colet 2017; 22(9):3087-3097.. O contexto de desorganização emocional favorece a intensificação de hábitos prejudiciais à saúde dos familiares. Eles tendem a aumentar a ingestão de álcool e outras substâncias, devido a situações cotidianas de grande estresse, o que pode induzir à dependência e seus efeitos indesejáveis. Diversas emoções e grande sofrimento foram relatados aqui como tendo surgido ou se intensificado após o homicídio, com prejuízos à saúde mental.

Sabe-se que pessoas que perderam um familiar ou amigo por homicídio possuem até o dobro de chances de desenvolverem Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT)77 Costa DH, Njaine K, Schenker M. Repercussões do homicídio em famílias das vítimas: uma revisão da literatura. Cien Saude Colet 2017; 22(9):3087-3097.,99 Soares GAD, Miranda D, Borges D, organizadores. As vítimas ocultas da violência na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: Centro de Estudos de Segurança e Cidadania; 2007.,1010 Connolly J, Gordon R. Co-victims of Homicide: A Systematic Review of the Literature. Trauma Violence Abuse 2015; 16(4):494-505.,2121 Amick-McMullan A, Kilpatrick DG, Resnick HS. Homicide as a risk factor for PTSD among surviving family members. Behav Modif 1991; 15(4):545-559.,2222 Zinzow H, Rheingold AA, Hawkins A, Saunders BE, Kilpatrick DG. Losing a Loved One to Homicide: Prevalence and Mental Health Correlates in a National Sample of Young Adults. J Trauma Stress 2009, 22(1):20-27., comparadas àquelas que não passaram por situação semelhante. Muitas vezes seu luto se aproxima mais de um quadro de TEPT do que de um processo natural de luto2323 Hertz MF, Prothrow-Stith D, Chery C. Homicide survivors: Research and practice implications. Am J Prev Med 2005; 29(Supl. 2):288-295.. No entanto, durante as entrevistas, o TEPT, especificamente, não foi investigado, e nenhum dos participantes citou ter recebido tal diagnóstico.

As vítimas indiretas deste estudo também relataram sentimentos como tristeza, agressividade, ansiedade e somatização. Vieira et al.1414 Vieira LJES, Arcoverde MLV, Araújo MAL, Ferreira RC, Fialho AVM, Pordeus AMJ. Impacto da violência na saúde de famílias em Fortaleza, Ceará. Cien Saude Colet 2009; 14(5):1773-1779. (p.1777) afirmam que: “quando o ser humano internaliza sentimentos negativos e controversos, ele tem a sua saúde comprometida, porque passa a somatizar as suas culpas, os seus medos, suas angústias e os seus segredos”.

As emoções têm caráter social, cultural e são manifestadas e expressadas no corpo. Nesse sentido, recorre-se ao conceito de Sofrimento Social2424 Victora C. Sofrimento social e a corporificação do mundo: contribuições a partir da Antropologia. RECIIS 2011; 5(4):3-13. (p.99), que “resulta do que o poder político, econômico e institucional produz nas pessoas e, reciprocamente, de como essas formas de poder influenciam as respostas aos problemas sociais”. O sofrimento e a dor em situações de violência se entrelaçam no corpo, na forma dos adoecimentos, e não podem ser compreendidos apenas pela perspectiva biomédica, pois estão permeados de sentidos sociais e culturais2525 Souza B. Corpos Que Cuidam: Uma Etnografia Das Práticas em Enfermagem [tese]. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora; 2020.. Os entrevistados relataram sintomas e doenças que expressam o luto materializado em seus corpos, por meio de palpitações, tremores, depressão, ansiedade, entre outros problemas de saúde descritos.

O sofrimento social pode ser entendido como resultado da violência sistemática e estrutural na sociedade, na qual o homicídio representa uma de suas manifestações mais extremas. Observa-se nos relatos que o sofrimento não está apenas relacionado à perda do ente querido, mas também às consequências sociais e emocionais que derivam dessa perda, além dos problemas de saúde física e mental causados ou agravados pelo contexto social do homicídio e pelas mudanças em suas vidas após o evento. Portanto, pode-se entender que o sofrimento do luto narrado pelas vítimas indiretas é também social, pois não só o vivenciam em suas subjetividades, mas representam a experiência social e cultural de determinado momento histórico no qual estão inseridos, sendo um processo social corporificado nos sujeitos1515 Kleinman A, Das V, Lock MM. Social suffering. Berkeley: University of California Press; 1997..

Ressalta-se que, o processo de luto das vítimas indiretas possui particularidades se comparado ao vivido nas perdas por mortes naturais1212 Domingues DF, Dessen MA. Reorganização familiar e rede social de apoio pós-homicídio juvenil. Psicol Teor Pesqui 2013; 29(2):141-148.. A circunstância e imprevisibilidade de uma morte violenta pode ter grande efeito traumático nos familiares, dificultando a sua elaboração. Os entrevistados relataram sentir o luto constantemente atualizado, não importando o tempo decorrido desde a morte, pois revivem o fato com frequência.

As vítimas indiretas de homicídios percebem que seu sofrimento não é reconhecido, e que a vida dos seus entes perdidos parece não ter importância, denotando que não são enlutáveis1616 Butler J. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press; 2015.. Reclamam da pouca ou nenhuma sensibilidade com que são tratadas pelos profissionais da saúde, da justiça, da educação e de outras áreas. Acrescenta-se a isso a indiferença das empresas/empregadores diante de trabalhadores que passaram por este processo e adoeceram, e a forma insensível, desrespeitosa, estereotipada e preconceituosa com que profissionais da mídia noticiam essas mortes2626 Cardoso FLMG, Cecchetto FR, Corrêa JS, Souza TO. Homicídios no Rio de Janeiro, Brasil: uma análise da violência letal. Cien Amp Saude Colet 2016, 21(4):1277-1288..

O sofrimento silenciado e a indignação ao ver a memória de seu ente querido vilipendiada, são formas de revitimização. Junta-se a isso a longa duração dos processos na Justiça, que contribui para prolongar o luto e o sofrimento dos familiares77 Costa DH, Njaine K, Schenker M. Repercussões do homicídio em famílias das vítimas: uma revisão da literatura. Cien Saude Colet 2017; 22(9):3087-3097.. Os parentes de policiais mortos também informaram não sentir sua dor reconhecida pela instituição a qual a vítima pertencia, ou pelo Estado.

Segundo Butler1616 Butler J. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press; 2015., a desumanização que se segue à negação do luto público pela vida perdida de um não enlutável requer a reversão de um processo de desumanização, ou seja, torna necessária a familiaridade com o sujeito, a capacidade de identificar-se com ele. Os discursos que desumanizam as vítimas de homicídios, sobretudo dos homicídios praticados por agentes policiais, contribuem para a não autorização e a contestação do sofrimento dos seus parentes. E, não ter seu sofrimento reconhecido, pode contribuir para um processo de luto difícil, longo, e causador de adoecimento.

Nenhum familiar, em nenhum dos dois grupos, relatou ter recebido tratamento ou auxílio em relação à saúde após o ocorrido. Pelo contrário, não se sentiram acolhidos pelas instituições de Saúde, de Segurança Pública ou da Justiça.

A respeito da medicalização, sabe-se que muitas vítimas indiretas de violência letal se tornam fármaco dependentes1414 Vieira LJES, Arcoverde MLV, Araújo MAL, Ferreira RC, Fialho AVM, Pordeus AMJ. Impacto da violência na saúde de famílias em Fortaleza, Ceará. Cien Saude Colet 2009; 14(5):1773-1779.. Entretanto, os relatos presentes sobre o uso de medicamentos, divergem: alguns entrevistados relataram resistência ao uso de medicamentos psiquiátricos, por medo de se tornarem dependentes, por não quererem se sentir “anestesiados” ante a dor da perda; outros os consomem apenas em momentos de crise de ansiedade, por insistência do médico; e há os que os usam com frequência e, afirmam que exageram no consumo, o que pode causar ou agravar problemas de saúde. Aqui, convém refletir sobre a medicalização da vida, em que os problemas (da vida e do luto) podem ser representados como doença e, supostamente, tornam-se tratáveis com o uso de medicamentos ou procedimentos médicos2727 Siqueira MD, Víctora C. O corpo no espaço público: Emoções e processos reivindicatórios no contexto da "Tragédia de Santa Maria". Sex Salud Soc Rio Jan 2017; (25):166-190.. Compreende-se que o fato de alguns familiares recorrerem ao uso de medicamentos e tratamentos para amenizar o sofrimento, pode ser entendido como uma busca de alívio a partir daquilo que as estruturas e as condições socioculturais disponibilizam.

Ao investigar os efeitos da morte violenta de um ente querido na saúde dos familiares, percebeu-se que não só a saúde, mas amplos aspectos da vida dos familiares foram afetados. Na fala das vítimas indiretas também apareceram relatos de impactos econômicos e financeiros, mudanças na organização e relação familiar, e impactos na forma de enxergar e se relacionar socialmente.

Enquanto o relacionamento com algumas instituições apareceu como algo que agravou o sofrimento das vítimas indiretas, aqueles que relataram participar ativamente das associações de familiares criadas após a tragédia, conseguiram reorganizar suas vidas2727 Siqueira MD, Víctora C. O corpo no espaço público: Emoções e processos reivindicatórios no contexto da "Tragédia de Santa Maria". Sex Salud Soc Rio Jan 2017; (25):166-190.. Quando um número de pessoas se reúne no espaço público em torno de alguma demanda, o espaço, o tempo e os corpos configuram um poder performativo que compõe a ação política2828 Le Breton D. Antropologia da dor. São Paulo: Editora Unifesp; 2018.. A mobilização social apareceu como uma das principais formas de apoio e proteção à saúde dessas pessoas. A forma como lidaram com a perda, e as ações que buscaram para mitigar os impactos dela, também possuem caráter social.

O acesso a uma rede de apoio organizada e a grupos de ativismo foi uma das maiores diferenças percebidas entre os dois grupos pesquisados. O grupo de parentes dos que foram mortos por policiais mostrou-se mais unido e organizado em redes de apoio, ao passo que, os familiares dos policiais mortos pouco mencionaram a experiência do ativismo social em suas vidas. O sofrimento solitário parece contribuir para que esse último grupo se sinta desorientado e carente de apoio.

A prática do ativismo também foi citada como algo que pode gerar adoecimento, pois a frequência com que falam a respeito do ocorrido, faz com que o tema esteja sempre presente em suas vidas. No entanto, o que poderia ser percebido como parte do “custo social” da militância, é visto como um preço menor a ser pago. A mobilização e a fala, em particular, representam os meios pelos quais os familiares das vítimas conseguiram seguir com suas vidas, passando a sentir que algo estava sendo feito em nome de seus entes queridos2929 Lacerda P. O sofrer, o narrar, o agir: dimensões da mobilização social de familiares de vítimas. Horiz Antropol 2014; 20(42):49-75.. O corpo e o discurso no espaço coletivo elaboram o sentimento de “justiça”, de maneira que não seja confundido com vingança, pois é uma resposta, é uma representação da “injustiça” que os familiares sentem, e contra a qual protestam3030 Araújo VS, Souza ER, Silva VLM. "Eles vão certeiros nos nossos filhos": adoecimentos e resistências de mães de vítimas de ação policial no Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2022; 27(4):1327-1336..

A partir da mobilização social, as vítimas indiretas encontraram espaço para expressar suas dores, dar sentido às suas vidas e buscar reparação moral diante da opinião pública, já que, muitas vezes, são estigmatizadas como “mães de bandidos”3131 Birman P, Pierobon C. Viver sem guerra? Poderes locais e relações de gênero no cotidiano popular. Rev Antropol 2021; 64(2):e186647.. Muitas dessas mães são compelidas a lidar com o cotidiano de sofrimento, com a necessidade de reconstruir suas próprias vidas e a das pessoas do seu entorno. O sofrimento do dia a dia e as violências atualizadas aparecem como uma diferença crucial entre os dois grupos de familiares estudados, e impactam na forma de vivenciar o luto e o adoecimento3030 Araújo VS, Souza ER, Silva VLM. "Eles vão certeiros nos nossos filhos": adoecimentos e resistências de mães de vítimas de ação policial no Rio de Janeiro, Brasil. Cien Saude Colet 2022; 27(4):1327-1336..

As dificuldades vividas no processo de luto e adoecimento das vítimas indiretas, também podem ser compreendidas como consequências das normas culturais que envolvem o luto. O conceito de sofrimento social e as teorias de Butler, consideram que o luto é moldado por normas culturais e sociais e que a sociedade pode limitar a forma das pessoas vivenciarem e expressarem o luto. A medicalização e a busca por terapias individuais ou em grupos, podem ser vistas como estratégias de enfrentamento em um contexto social onde luto e sofrimento não são compreendidos nem reconhecidos. Nesse sentido, o reconhecimento social ou não da violência sofrida, desempenha um papel crucial para mitigar ou exacerbar os impactos do homicídio na saúde e na vida dos familiares.

Considerações finais

Os resultados mostram que o homicídio praticado e sofrido por agentes policiais impacta a saúde física e mental de familiares e pessoas próximas, tornando-as também vítimas dessa violência. As mudanças explicitadas no estado de humor, na visão de mundo, nas relações familiares, nas questões econômica e financeira, e os percalços envolvendo a luta por justiça são indissociáveis das questões de saúde em seu sentido amplo. Assim, políticas de saúde, a criação de grupos de acolhimento, a oferta de tratamento psicológico, embora importantes para mitigar os impactos, não darão conta da complexidade dessa questão, pois trata-se de um viver e um adoecer fortemente marcado pela violência estrutural que exclui social, econômica e politicamente parcelas da população, há séculos, no Brasil.

Para avançar nesse campo de estudo e obter uma compreensão mais abrangente dos fatores que moldam as consequências à saúde dessas vítimas, futuras investigações devem incorporar uma análise mais detalhada das interseções entre: raça, classe e gênero, ampliando o conhecimento sobre as complexidades do sofrimento humano em contextos marcados pela violência.

Políticas Públicas de saúde são importantes ferramentas para garantir tratamento adequado à saúde das vítimas indiretas, à inclusão e à condução do sofrimento em ambientes seguros e saudáveis. Serviços de saúde podem se tornar espaços de vocalização para as vítimas indiretas, onde recebam os cuidados de saúde física e mental, e o reconhecimento da sua dor pela violência vivida. O reconhecimento do sofrimento social em toda a sua dimensão, aponta a verdadeira demanda dos familiares por uma vida com direitos e dignidade.

Este estudo pode contribuir para uma melhor atuação dos serviços de saúde, dos movimentos sociais e dos aparelhos institucionais que atendem a esses familiares. E para a compreensão acadêmica sobre os efeitos da violência na vida das pessoas, assim como para a visão das emoções e do luto como processos coletivos e mobilizadores políticos.

Agradecimentos

O estudo e o presente trabalho dele resultante, contaram com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código Financeiro 001.

O presente trabalho também contou com o apoio financeiro da Vice direção de Pesquisa e Inovação da ENSP/Fiocruz, por meio do Edital do Programa de Fomento ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico Aplicado à Saúde Pública - ENSP/Fiocruz, para a tradução de artigos científicos de idioma da língua portuguesa para a língua inglesa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    Set 2024

Histórico

  • Recebido
    25 Jul 2022
  • Aceito
    18 Ago 2023
  • Publicado
    20 Ago 2023
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revscol@fiocruz.br