ENTREVISTA

 

Ciência e Resistência — Haity Moussatché: um otimista inveterado

 

 

Paulo GadelhaI; Wanda HamiltonII

ICoordenador da Casa de Oswaldo Cruz
IIPesquisadora do projeto Massacre de Manguinhos

 

 

Reintegrado aos quadros da Fundação Oswaldo Cruz, junto aos outros nove colegas cientistas cassados no "Massacre de Manguinhos" na solenidade festiva do dia 15 de agosto último o professor Haity Moussatché deve, ainda este ano, preparar suas malas, despedir-se dos amigos venezuelanos e voltar ao Brasil para ficar.

Na bagagem, a concretização do sonho de voltar definitivamente para o Laboratório de Fisiologia do Instituto Oswaldo Cruz que ele conheceu em 1934, ainda estudante de Medicina. Ali é que ele começou a se dedicar às experiências científicas que o absorvem até hoje e a ensinar a muita gente, atualmente trabalhando em diversas áreas da Ciência, até 1970 quando a cassação pelo AI-5 fez com que se retirasse.

Nos últimos 15 anos, o exílio transferiu suas atividades científicas para a Venezuela onde tornou-se professor e responsável pelas investigações da Universidade Centro Ocidental de Barquisimeto. Em 1985, fim do rigime militar, novas perspectivas. E o professor Haity Moussatché, de passagem pelo Brasil, aceita o convite para remontar o Laboratório de Fisiologia que ficou fechado por todos estes anos. Desta forma, a atual administração da Fundação Oswaldo Cruz dava os primeiros passos para atender ao seu compromisso de resgatar o patrimônio histórico da Instituição e trazer de volta os 10 cientistas cassados pela revolução de 64. cassados pela revolução de 64.

Antes de voltar para a Venezuela no início de 1986, em reunião de despedida na FIOCRUZ, na presença dos colegas cassados, o cientista de 76 anos entregou à presidência do Instituto relatório sobre os projetos de pesquisa em andamento e as perspectivas de implantação do laboratório. A expectativa do professor Haity Moussatché é dar continuidade a estas investigações quando chegar para ficar — o que ele pensou, em seus tempos de exílio, nunca mais fosse possível acontecer.

No período em que passou pelo Brasil, ano passado, o professor Moussatché conquistou a todos com quem conviveu. Carisma é o que não falta a este humanista romântico e empreendedor. A franqueza e o espírito crítico e questionador convivem naturalmente neste homem, sempre gentil e dedicado. Entre os seus sonhos, ressalta o propósito do dentista apaixonado: utilizar a ciência e a tecnologia para erradicar a fome e a miséria do mundo. E ele diz isso com todas as letras: — Não sou dos que crêem que a solução do mundo aconteça através da política, mas através da ciência utilizada para o bem social da humanidade.

Na entrevista Haity Moussatché discorreu sobre os mais variados temas: suas origens greco-judaicas e a imigração com a família para o Brasil em 1912, sua formação intelectual desde menino até as primeiras pesquisas científicas, contando como foi sua opção pela fisiologia; a experiência de cassado e exilado em um país latino-americano. Ele não escondeu seus pontos de vista políticos e falou de sua concepção sobre a ciência pelo que é, sem dúvida, um apaixonado. Haity Moussatché, segundo sua própria definição, "um otimista inveterado".

— Fale um pouco de suas origens e formação familiar.

— Sou do dia 21 de fevereiro de 1910. Tenho hoje 75 anos — o que já é uma longa história. Nasci numa Aldeia da cidade de Smirna que fica numa península e que pertenceu à Grécia por muito tempo. Naquela região o povo falava o grego, o turco pela proximidade da Turquia e o espanhol. Pertencíamos a uma colônia de judeus sefaraditas. Eu me lembro muito pouco daquela região porque vim para o Brasil com dois anos de idade. Assim que, realmente, sou brasileiro. Meu pai era algo parecido com um rabino, no sentido de fazer todas as coisas ligadas à religião — a circuncisão, por exemplo ... até que passou a ser ateu e nos educou sem religião.

Eu encontrava, na biblioteca de meu pai uma porção de livros com relação à biologia, como a História da Criação Natural, de Ernest Heckel; a Origem das Espécies, de Darwin . . . Como fui educado sem religião, já comecei a querer entender os fenômenos que se passam no mundo. Desde cedo fui uma pessoa muito dedicada aos problemas intelectuais. Nada tenho contra a religião, apenas não a tenho para uma explicação do mundo. Para mim, as coisas estão dentro de um ponto de vista do que é chamado materialista, mas eu acho que é tão espiritual quanto a crença religiosa. Não sinto falta da religião para ser quem sou e nada tenho contra a religião, apenas não a tenho para uma explicação do mundo.

Sou o que sou graças a meu pai, pela sua maneira correta, séria, de levar os problemas da vida. Sendo um homem de recursos muito parcos — ele lecionava hebraico — teve que viver do comércio porque simplesmente lecionar não dava para viver. Mas ele fez questão que nenhum de nós seguisse a carreira dele, de comerciante.

Na verdade ele nem pensava vir para o Brasil e sim, para a Argentina porque as notícias que se tinham eram de que a febre amarela matava a todos que por aqui aparecessem. No Oriente não se sabia ainda que Oswaldo Cruz tinha acabado com a doença, mas quando meu pai chegou aqui verificou que era uma terra em que se podia viver perfeitamente.

— Seu nome, traduzido para o português, tem um significado especial?

— Meu nome era uma complicação social entre as pessoas com quem eu lidava, que não conseguiam pronunciá-lo. Não sabiam pronunciá-lo com o 'H' aspirado e o trocavam por 'R'. Haim em hebraico é vida e Haiate é uma adaptação para o turco que quer dizer água da vida. Haity é uma adaptação que eu mesmo fiz. Eu achei que deveria mudá-lo um pouco. "Está muito complicado, meu pai", eu disse. "Vou botar Haity porque por aqui tem uma Ilha, Haiti, e com isso está liquidada tanta complicação".

— Em 1928 o senhor entrou para a escola de Medicina. Conte-nos como foi este período escolar, como foi sua decisão pela Medicina?

Se o senhor me permite, eu preferia voltar um pouco atrás. O último ano de meus preparatórios não fiz em Niterói. O ginásio que eu estudei não tinha História Natural, um dos preparatórios. Cursei no Rio , no Instituto Superior de preparatórios. Estudávamos Geologia, Zoologia, Botânica e Mineralogia. Algumas aulas eram dadas no Museu Nacional e no Jardim Botânico. Também estudei Física e Química nesse Instituto. Lá tive meu primeiro impacto. César Salles, o professor de História Natural. Ele era um homem incrível e fez experiências simples para a gente ver. Como por exemplo, uma rã que ele abre, tira o coração, o coração bate espontaneamente e a gente fica admirado.

Aos domingos ele convidava os alunos para uma excursão ao Jardim Botânico e dava aulas sobre as flores, animais e aquilo ficava gravado na memória da gente tremendamente. Isso me impressionou muito e foi daí que tomei minha primeira decisão: estudar História Natural e Zoologia. Mas gostei muito de Química e Biologia. Aí surgiu um problema. Eu queria estudar Química e queria estudar Biologia. Eu não podia ir para a Escola de Química porque era uma Escola de Química Industrial que não tinha Biologia.

Decidi fazer Vestibular para Medicina mas não gostava de Medicina. Estudava Parasitologia com grande interesse, passei com distinção. As aulas práticas eram às oito horas da manhã e nós chegávamos um pouco antes e ficávamos conversando sobre Parasitologia até começar a aula. Um dia um colega chamado Antônio Francisco Rodrigues de Albuquerque, um colega e amigo de quem não poderia esquecer todo o nome, me disse: — Você gosta tanto de Parasitologia. Você não quer ver, além das aulas práticas que a gente tem e vê correndo no microscópio, em fila indiana, um atrás do outro . . você não quer ver as lâminas com mais detalhes? Você não quer ir ao Instituto Oswaldo Cruz?

E eu me batia, aos domingos, para o Instituto Oswaldo Cruz para estudar Parasitologia. Assim que eu apareci pela primeira vez no Instituto, no primeiro ano de Medicina. No segundo ano tive muita sorte. Depois de longo período fora da Escola de Medicina, Álvaro Osório de Almeida voltava para dar curso de Fisiologia. A primeira aula foi um deslumbramento e daí pra diante minha idéia foi trabalhar com Fisiologia. No terceiro ano procurei Carlos Chagas e Evandro Chagas e disse que queria trabalhar no instituto. E eles aceitaram que eu viesse trabalhar no Laboratório de Análise Clínica. Vinha todo o pessoal da Baixada Fluminense e era malária, anquilostomíase, etc., todo aquele pessoal na porta do ambulatório do Hospital Evandro Chagas, como foi depois denominado o Hospital do Instituto. Fiquei quase dois anos trabalhando e aprendi a fazer diagnósticos de malária, verminose, exame de urina. Fui para a Escola no quarto ano ser assistente de Álvaro Osório, deixei o IOC e lá fiquei até me formar.

— O senhor residiu no IOC durante o segundo e terceiro anos de faculdade?

Eu residi no Hospital Evandro Chagas dois anos. Ficava no Instituto o dia inteiro e somente ia às aulas práticas de algumas cadeiras em que se exigia freqüência. Eu achava que aprendia mais no laboratório fazendo exames e estudando nesta biblioteca fabulosa. Eu ia às aula do Álvaro Osório porque me interessava por fisiologia. No terceiro e quarto anos quase não ia à Escola.

Eu não estava interessado em medicina, se bem que fui trabalhar na assistência, aprendi um pouco de medicina para uma eventualidade. Naquela ocasião não havia postos para se trabalhar em fisiologia. Os únicos que haviam eram de assistente da Escola que estavam tomados por dois amigos meus. Eu era monitor e eles assistentes: o Thales Martins que trabalhava aqui no Instituto e Couto e Silva, que depois até deixou a fisiologia. Então, realmente, meu interesse era a fisiologia e investigação.

Eu queria era chegar ao fim do curso e, no sexto ano, disse a Álvaro Osório: — Olha, doutor Álvaro, eu não estou interessado em fazer medicina, estou aqui como monitor do senhor. Vou trabalhar em fisiologia, prefiro não me formar. E ele disse: "Não, não, não. Você tem que se formar". E fez um ultimato: "ou você se forma ou boto você pra fora". Não tive outra saída e terminei a medicina.

— A maneira como o senhor se formou, assistindo às aulas de Álvaro Osório e não indo a outros cursos me parece que era como todo mundo fazia na época. Aquele que queria ser clínico ou cirurgião ficava junto de um professor e em geral freqüentava pouco a faculdade. Será que a coisa melhorou? Essa organização que se tem tentado dar no ensino médico melhorou ou piorou?

— Quer saber minha opinião? Vou ter muita gente contra. Acho que piorou. Acho que essas exigências que se fazem hoje castram os alunos. Se um aluno não é capaz de pegar um livro e ler em inglês ou português, não é pessoa para estar em escola superior. Se ele precisa ir à aula para aprender, há uma deficiência mental nesse aluno. Eu ia pouco às aulas, estudava, fazia as provas e passava. É o mínimo que se pode exigir de um universitário

Pra que o professor? Pra estar nos hospitias. Você vai lá, discute com ele, examina os doentes, estuda. O professor não deve ficar só nos dando aula. Pode fazer seminários. Mas isso de ir lá, ter que seguir aquele cursinho, aquelas aulas, não.

— Existe a polêmica sobre a inexistência de um Departamento de Fisiologia em Manguinhos na gestão Oswaldo Cruz. O primeiro laboratório do país, o dos irmãos Osório, surgiu com o apoio da iniciativa privada e, segundo Olímpio da Fonseca, não se tomou esta iniciativa no maior centro de medicina experimental naquele período porque não havia fisiologistas no Brasil. O senhor tem alguma explicação sobre a questão?

— Eu creio que polêmica não há. Quer uma prova de que já existiam flsiologistas e já começavam a ser conhecidos até no exterior? Em 1917 morre o Oswaldo Cruz e o laboratório da Rua Machado de Assis, dos irmãos Osório, já estava organizado, com muitos trabalhos publicados e alguns de repercussão internacional. O que não é raro é que muita gente do Brasil é mais conhecida no exterior. Naquela ocasião Álvaro e Miguel Osório já eram bastante conhecidos.

Em 1910 Miguel Osório fez um estudo e mostrou que a perna de um paciente, que estava paralisada por um acidente cerebral, tinha um sinal clássico dessa doença — o Sinal de Babinsky. Esse sinal mudava suas características se se fazia anemia na perna referida. O dedo grande do pé, ao invés de ir para trás, quando se fazia uma fricção na planta do pé, flexionava-se. É um sinal muito objetivo, de grande valor diagnóstico. Isso agradou muito ao próprio Babinsky que estava vivo e se referiu a esta experiência.

Os dois já eram muito conhecidos por causa do laboratório que Álvaro Osório organizou. Foi o primeiro laboratório de Fisiologia do Brasil, montado na Rua Machado de Assis e sustentado pelo Cândido Gaffrée, um dos donos das Docas do Porto de Santos e muito amigo do pai de Álvaro e Miguel Osório, um engenheiro e Diretor da Central do Brasil. Aliás, quando se fala nos irmãos Osório é preciso lembrar da Dona Branca Osório de Almeida, depois Branca Fialho pois casou-se com o Dr. Fialho. Muitas vezes se esquecem de se referir a D. Branca quando falam do laboratório ou da própria Fisiologia. Ela foi partícipe de alguns dos trabalhos e era quem se encarregava de fazer muito das medidas técnicas.

Álvaro montou o laboratório porque a Escola de Medicina fechava e não se permitia fazer pesquisa lá. Por volta de 1910 ele tentou fazer investigações no laboratório da Escola e foi ao Diretor. O diretor simplesmente disse que investigação lá na Escola de medicina, não. Que ele procurasse outro lugar. Álvaro tinha voltado pouco antes do Instituto Pasteur e inclusive procurou por Oswaldo Cruz propondo a criação do Instituto em Manguinhos, mas o tempo foi passando e ele achou melhor montar um laboratório na casa dele.

Se o Olimpio da Fonseca não sabia e, se sabia, não dava a importância que havia, não é por falta de fisiologistas já conhecidos. Não sei por que Oswaldo Cruz não aceitou a vinda de Álvaro ou Miguel Osório para o Instituto logo . . . várias vezes ele se encontrou com Álvaro Osório e disse: "Olha, aquela tua proposta, estou pensando ainda". Isso está em um discurso que Álvaro Osório fez e se refere à sua tentativa de vir para o Instituto. O que importa e que, em 1919, Carlos Chagas convida e Miguel vem formar o Departamento de Fisiologia em Manguinhos.

— Vamos retomar a questão da implantação do Laboratório de Fisiologia no IOC porque ela tem duas etapas, não é? Há a presença de Miguel Osório no início, depois Thales Martins e Osório voltam em etapa posterior. Como foi a dinâmica desta implantação?

O laboratório era somente uma sala. Miguel Osório levou uma tesoura e uma pinça e Carlos Chagas mandou comprar o material todo na Europa. Miguel Osório entrou no laboratório pensando nas coisas que sabia fazer e lhe veio a idéia de uma experiência com a sensibilidade cutânea da rã. Isso foi contado por ele mesmo: "Eu fiquei pensando o que se podia fazer uma vez que já estou no Instituto . . ." E ele se lembrou dos casos relatados num livro de Patologia de pessoas surdas, cegas de um olho, com problemas de sensibilidade cutânea. Eram crianças que nasceram com anomalias.

A única porta para o exterior era o único olho que a criança tinha. As outras percepções sensoriais eram inexistentes ou tão elementares que não funcionavam. Ao se fechar o olho da criança, ela entrava num verdadeiro estado de torpor ou coma. E Miguel Osório se lembrou e disse: — O que acontece com um animal se sua pele for retirada? E ele retirou a pele de uma rã e verificou que o animal entrou em estado de torpor ou coma. Quer dizer, pelo menos para a rã é muito importante a sensibilidade cutânea para se manter o estado de vigília.

Muito crítico, Miguel Osório pensou: "Devo estar cometendo algum erro nessa minha interpretação". Na ocasião, um psicólogo francês muito conhecido, Henry Pieron,esteve visitando — como o fizeram Einstein, Madame Cury o laboratório da Rua Machado de Assis. E Miguel lhe falou da experiência. Ele disse: "mas isso é muito interessante. Deixa eu ver".

Miguel Osório lhe mostrou a experiência no Instituto Oswaldo Cruz e ela foi publicada em nome dele e de Henry Pieron. E assim começa o Departamento de Fisiologia: com uma verificação muito importante. Em 1921 Miguel Osório deixou o Instituto não sei por que e quando voltou, em 1972, atendendo a outro chamado de Chagas, já encontrou Thales Martins no Departamento. Então esse Departamento era de primeira linha, muito vivo, com gente do primeiro plano trabalhando.

— Doutor Moussatché, vamos falar mais da capacidade de criação dos irmãos Osório. Carlos Chagas fala dessa capacidade de inovação experimental criando um pensamento biológico muito próprio. O senhor falou dessa capacidade de inovação na instalação do laboratório — que só tinha uma tesoura e uma pinça. Existem outros exemplos que podem marcar essa especificidade, inovação e criatividade dos irmãos Osório?

— Eles se caracterizaram sempre como pessoas que, trabalhando num laboratório relativamente pobre, colhiam e encontravam resultados muito interessantes.

O Miguel Osório tinha um valor excepcional. Pode-se dizer que foi o primeiro biólogo, no Brasil, que utilizou a matemática mais amplamente em seus estudos. Estava sempre procurando uma equação que representasse o fenômeno da excitabilidade dos nervos, um dos assuntos que mereceu muito de sua atenção. A equação que ele fez para representar o fenômeno da excitabilidade foi utilizada por muito tempo.

— Thales Martins pode ser considerado um pioneiro na questão de comportamento animal especialmente nas relações entre comportamento e glândulas endocrinas. Fale sobre a importância do trabalho de Thales Martins.

— Thales era pessoa muito calada, mas homem extremamente inteligente. Ele foi realmente pioneiro nas pesquisas de endocrinologia. Uma reação que todo mundo faz, injetar urina em coelho para fazer diagnóstico de prenhês foi feita por Thales e, mais ou menos ao mesmo tempo, por outro físiologista, Friedman, em uma Revista estrangeira que alcançou maior divulgação e por isso é que tem o nome de Reação de Friedman. Ele tinha uma cultura literária enorme e seu livro sobre hipófise e glândulas é maravilhoso, muito bem escrito.

Thales Martins também é precursor, no Brasil, de estudos experimentais da psicologia do comportamento. Uma de suas experiências de especial importância é a seguinte: ele castrou cães machos muito pouco tempo depois de nascer e, ao tornarem-se adultos, urinavam como fêmeas. Isso mostrava uma interação hormonal na fixação de um comportamento na vida diária de um animal. O que não lhe faltavam eram boas idéias para trabalhar. O Thales era realmente um homem de grandes qualidades intelectuais.

Talvez a Fisiologia, a Farmacologia ou mesmo a Bioquímica não conseguiram se integrar aos objetivos fundamentais para os quais o Instituto foi, em princípio, criado visando muitas vezes mais aplicações práticas. De modo que não se negava ao Thales a possibilidade de fazer suas experiências sobre psicologia animal, comportamento animal como a experiência sobre micção dos cães que, aliás, foram em grande parte feitas no Instituto Butantã, quando esteve lá trabalhando. Mas não lhe davam as condições de que precisava para seus estudos. E lamentavelmente, por isso não foi aqui no Instituto em que se começou seriamente o primeiro laboratório de comportamento. E poderia ter sido.

— Professor, observando seu currículo, percebe-se que o senhor entra como agregado interno ao Departamento de Fisiologia e ao longo de sua trajetória em Manguinhos passa pela área de biologia sendo professor de bioquímica, hematologia e mais tarde vai ser chefe da seção de farmacodinâmica. Como é que se dava essa titulação e como isso refletia definições e especialidades na área biomédica?

— As coisas se passavam de uma forma muito natural. Entrei para o laboratório em 1934, trabalhei dois ou três anos de graça e já graduado, quase aos 27 anos, continuava sem emprego. Falei com o Doutor Miguel sobre a possibilidade de trabalhar em Fisiologia e Henrique Aragão me perguntou se eu não queria trabalhar em febre amarela. Eu disse: "eu não sei nada de febre amarela". — Ah, mas é que vão fazer uma cultura do vírus de febre amarela aqui, quem sabe você não quer trabalhar um tempo, até que saia o seu contrato no Instituto." Eu achei interessante o fato de trabalhar com cultura de células e fiquei dois anos nisso. Quando entrei não sabia nada, mas acabei fazendo dois trabalhos científicos sobre febre amarela.

Depois me deram um contrato para cá que eles chamavam de extranumerário. E nessa posição, em 1937, fui até 1943, quando abriram concurso para o Instituto. Passei na área de fisiologia e fui indicado para biologista do Instituto Oswaldo Cruz no nível ... já não sei mais o nível, mas acho que era o nível J. Fui o primeiro colocado, íamos tomar posse no Ministério da Educação mas adoeci. Fui o último a tomar posse e por isso, o último na classificação. Só fui promovido 10 ou 12 anos depois para a letra de cima. Depois me indicaram para ser chefe da seção de Farmacodinâmica, que pertencia à Bioquímica. Foi o Gilberto Villela que me indicou. Quando deixei o cargo fui chefe da seção de Fisiologia. Sempre naquele posto, de letra, J, acho que a mesma letra que estou hoje.

— Gostaríamos que o senhor falasse mais sobre sua trajetória no campo da ciência.

— O laboratório de Fisiologia do Instituto foi crescendo, tínhamos umas 14 ou 15 pessoas trabalhando e era o centro de atração pra muita gente que estava interessada em investigação. Não havia pesquisa na Universidade até 1937, quando Carlos Chagas Filho fundou o Instituto de Biofísica. Muitos professores que não tinham onde fazer suas experiências vinham trabalhar conosco. Portanto, o laboratório já contribuía para a formação de pessoas e também para permitir que professores da Universidade se dirigissem a nós, já que aqui poderiam fazer suas teses de docente ou catedrático. O laboratório prestava um serviço à Universidade.

Entre os que por aqui passaram, posso citar Mauro Pena, um otorrinolaringologista famoso, que queria treinar a técnica de uma cirurgia no ouvido médio de macacos, visando a cura da surdez. E ele tornou-se um docente livre com tese feita aqui no Instituto. Couto e Silva, clínico, quis estudar o efeito protetor do urucum aos raios solares. Fez sua tese com este estudo experimental e apresentou-se para concurso na Escola de Medicina para professor de Higiene. Deolindo do Couto e Paulo Niemeyer fizeram experiências por aqui, como também Clementino Fraga, que fez sua tese no Instituto, prestou concurso e passou.

— Quer dizer que não eram só Fisiologistas profissionais que vinham, mas também pessoas que, de alguma maneira, estavam interessadas em uma base fisiológica e que procuravam desenvolver um trabalho nesse sentido.

— Exatamente, nosso laboratório era muito vivo, os trabalhos eram publicados continuamente, apresentados nas reuniões científicas.

— Essa colaboração entre pesquisadores que freqüentavam a universidade e vinham para o Instituto era sem convênio, a nível pessoal?

— Era praticamente a nível pessoal. A direção do Instituto estava informada, claro. Muitas vezes, quando eram clínicos, vinham trabalhar aos sábados, domingos e feriados, durante o ano todo.

— Essa coisa de convênio, estágio, assinar papel, é recente, não?

— É. Eu acho que a decisão deveria ser tomada nos próprios laboratórios. E o melhor material para treinar no laboratório é o estudante, não é o formado. Este já vem com uma segunda intenção: quer o lugar. O estudante não, trabalha voluntariamente, não tem exigências a fazer e vem espontaneamente.

— Na década de 30 teria havido um certo deslocamento cultural e científico do Rio de Janeiro para São Paulo. Baixos salários, pouco investimento em pesquisas básicas e outros fatores são apontados por historiadores como causa de uma decadência em Manguinhos, a partir desta época. O Sr. concorda com essa afirmação?

— Não, eu já fiz referências a isso numerosas vezes. Eu não sei por que chamam decadência de Manguinhos. Por que não se descobriu uma nova doença de Chagas? Carlos Chagas fez uma descoberta muito importante como também o Gaspar Viana, o Aragão, com o ciclo do Hematodium. Não sei se, do ponto de vista estritamente intelectual e não pelas suas projeções no campo da Saúde Pública, se a descoberta da Doença de Chagas é muito mais importante do que a observação do Miguel Osório sobre a rã sem pele e suas conseqüências. Eu acho que não. Eu sempre achei que o IOC era um Instituto onde você tinha um Miguel Osório, homens como Costa Cruz, a quem quase ninguém se refere. Ele, que foi um pioneiro no estudo da imunidade e, ainda, um Carneiro Felipe, de inteligência excepcional.

Em que essa gente era inferior ao Carlos Chagas? Ou os que falam na decadência do Instituto queriam que o Brasil tivesse umas 50 Doenças de Chagas e mais algumas leishimanioses e outras coisas? Aí o Instituto viveria sempre uma época heróica, sempre descobrindo doenças que seriam uma desgraça para o Brasil? É isso que eles querem dizer que é decadência do Instituto? Não, acho que é o contrário. Então eu chamo a atenção e digo: aí estão homens da mesma qualidade intelectual do Carlos Chagas. Quase não se fala do Arthur Neiva, uma das pessoas mais brilhantes que passaram aqui pelo Instituto. Ele é o homem que orientou o Herman para estudar os barbeiros. Nao acredito que tenha faltado qualidade intelectual aos pesquisadores que por aqui passaram.

O Oswaldo Cruz conseguiu que o Aragão trabalhasse no hemopoteus e o Chagas na Doença de Chagas simultaneamente. O que se fez foi deixar o pessoal trabalhar. No início, a Saúde Pública e as pesquisas básicas estão na mesma casa e são as mesmas pessoas. Eu creio que no tempo do Oswaldo e mesmo do Chagas essas duas coisas se faziam simultaneamente, até porque diferenciar pesquisa básica e pesquisa aplicada é pura invenção de gente que não sabe o que é Ciência — eu diria que não há diferença nenhuma. Quer dizer, uma coisa hoje é básica, amanhã é aplicada e vice-versa. A metodologia é a mesma, podem conviver ou melhor, existir simultaneamente.

O Instituto começou a trabalhar numa época científica, a pasteuriana, onde determinadas descobertas científicas mostraram-se de uma importância enorme, já que se refletiam de imediato na saúde do povo, de modo geral. Por exemplo, o combate a doenças infecciosas.

Na área de Fisiologia muda bastante porque os resultados podem aparecer de repente, como na descoberta de Banting, que rapidamente demonstrou que a diabetes dependia de um hormônio, a insulina. E a insulina resolveu o problema de uma doença grave do metabolismo. Mas grande parte das doenças metabólicas ainda estão sendo estudadas com enormes dificuldades e a gente vê que algumas ainda vão esperar algum tempo para encontrar técnicas adequadas. Portanto, seus resultados não são espetaculares nem despertam atenção.

O Instituto, depois de grandes descobertas entrou num período de trabalho de coisas que não têm repercussão imediata. Continuou-se trabalhando em áreas cujos resultados dependem de técnicas que exigem uma aparelhagem bem mais sofisticada e cara, em temas que apenas estavam começando a ser investigados.

— Mas não houve uma degeneração de salários?

— Oswaldo Cruz deve ter conseguido salários razoáveis para aquela época porque passou a ter um prestígio enorme depois que saneou a cidade do Rio de Janeiro. Um investigador do IOC tinha salário quase equiparado ao de um Desembargador. Por isso é que se diz que o Instituto Oswaldo Cruz foi uma exceção, que teve depois de se adaptar á realidade do Brasil, e que a Ciência estava aqui acampada mas não tinha significado nenhum. Nós dizíamos: se um dia se fechassem todas as instituições científicas do Brasil, ninguém se dava conta.

Mas isso era o Brasil, não era o Instituto. E a degeneração de salários não representou a decadência do Instituto, mas do próprio Brasil, já que não se entendia o significado da Ciência. Talvez ainda hoje não se entenda muito bem e espero que vá melhorar com a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia. Quando falo que não houve decadência no Instituto, me refiro à gente que estava aqui, de muita qualidade. E não creio que houve esvaziamento do Rio de Janeiro em relação a São Paulo, na década de 30. Apenas souberam aproveitar, melhor, determinadas situações.

Como exemplo, Armando Salles Oliveira e Theodoro Ramos aproveitaram a crise do pré-guerra na Europa e fundaram uma Escola de Ciência muito boa em São Paulo. Já no Rio, a Escola de Ciências nasceu fraca. Claro que a situação econômica de uma região se reflete em seu crescimento científico.

É verdade que aqui no Instituto, ainda não havia uma consciência da importância da Ciência para o desenvolvimento social e econômico dos países. Isso foi uma coisa tardia pra muita gente. Nós do Instituto — e me refiro a Walter Oswaldo Cruz, Herman Lent, eu e alguns mais jovens — talvez já víamos na Ciência uma coisa fundamental para o desenvolvimento sócio-econômico de que o Brasil precisava e ainda precisa. Nós começamos, então, a batalha para a retirada do Instituto e da Saúde Pública do Ministério da Saúde.

Por quê? Porque estávamos olhando o mundo por um outro prisma que não era o dos nossos mestres, com quem havíamos formado nossa aprendizagem científica, ainda que pudessem ter qualidades intelectuais até maior do que as nossas.

Queríamos que o Instituto saísse de uma situação, ainda existente, em que se precisássemos comprar determinados aparelhos, ou material para a pesquisa de outra natureza, para continuar os trabalhos, cujos resultados não eram de tal importância que se impunham de imediato, tivesse a administração que justificar o emprego da verba, alegando que era para compra de animais (boi) ou material a ser usado na produção de vacinas ou soros. Achávamos que a importância da Ciência,no mundo, já eslava suficientemente justificada, que não precisávamos de mentiras junto aos poderes públicos para que pudéssemos continuar nossas atividades, nossa existência no Instituto.

Era essa a nossa discordância com alguns diretores ou colegas: continuar o desenvolvimento científico propriamente dito na Instituição, acompanhando o que ocorria em muitos outros países. Não estávamos inventando nada; sabíamos que o futuro do Brasil, como o de outros países pertencentes aos povos subdesenvolvidos, ao Terceiro Mundo, dependeria, fundamentalmente, de seu progresso científico, da capacidade de formar pesquisadores e técnicos de alto nível e dispor de instituições científicas adequadas. A comunidade científica de todos os países e, em especial, a dos países subdesenvolvidos, assim como todos os que dispunnham de algum poder político, social ou econômico, poderiam ler o livro de John Bernal "A Função Social da Ciência", publicado em 1939, antes do início da 2ª Guerra Mundial. O livro é fundamental e mostra o poder da atividde científica nas transformações sociais atuais e no passado. Mostra, mais tragicamente, que já se havia utilizado a bomba atômica, a nosso ver criminosamente, lançando-a sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaqui. Uma conseqüência tecnológica da má aplicação de conhecimentos científicos que representaria um marco essencial para uma tomada de consciência da maior importância.

Achávamos que o homem de ciência,especialmente,tinha a obrigação de ter uma consciência clara do significado social da pesquisa científica e o Instituto deveria deixar de ser uma simples fábrica de soros e vacinas, e de má qualidade.

Não estávamos sós. Com a criação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, esses e outros problemas passaram a ser discutidos em suas reuniões anuais, nos simpósios organizados para assuntos específicos, em conferências, etc. Fizemos reuniões no Rio de Janeiro para discutir o problema de energia nuclear no Brasil, a estrutura arcaica de nossas universidades e institutos de pesquisa, etc. Nessas reuniões, tomaram parte muitos dos nossos pesquisadores em plena atividade como Leite Lopes, Mário Schenberg, Jayme Tiomno, Marcelo Damy, Herman Lent, Goldemberg, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Jacques Danon, Maurício Rocha e Silva; Walter Oswaldo Cruz, etc. O pessoal que promovia essas reuniões, esses debates, era considerado de esquerda. Pessoalmente, isso não me importava porque sem ser político, ou pertencer a algum partido político, era socialista, e achava que a organização social e política capitalista tinha contradições que não lhe permitiria solucionar os problemas existentes e os que viriam. Essa nossa posição e de outros era, aqui no Instituto, criticada e combatida.

Nossos ideiais sociais não interferiam em nossas atividades de pesquisa e o Departamento de Fisiologia e Farmacodinâmica mantinham-se trabalhando em uma muito boa atmosfera de colaboração com seniors e juniors procurando novos achados.

Muito se fala nos cassados. Sem dúvida os cassados, a velha guarda, são os mais conhecidos, os chefes dos laboratórios, mas talvez muito mais importante foi o pessoal jovem que saiu. Agora, já está maduro, na casa dos quarenta ou um pouco mais, e o Instituto perdeu. Acho mais importante esse fato do que nossa ausência, porque eles estariam ativamente trabalhando e eu aos 61 anos, quando foi cassado, já poderia ter morrido . . .

— O Senhor poderia citar algumas das pessoas que ficaram no laboratório depois das cassações e que acabaram transferidas?

— O Fontana, Ivan Caldas Marins, Júnia Peixoto, Lopes Quadra, Marisa Jurberg, como os que foram deixando o Departamento com o início das dificuldades, além dos já citados: Bráulio de Magalhães Castro, Paulo Ramos, Maria Queiroz, Maria da Guia Silva Lima, Nuno Álvares Pereira, etc. Isso em nosso laboratório. Já me referi parcialmente a jovens de outros laboratórios.

— O senhor poderia nos contar um pouco da história dos auxiliares de laboratório que ficaram aqui depois da cassação e que conservaram equipamentos, reagentes?

— Quando cheguei, várias pessoas das que trabalharam comigo, como o Francisco Gomes, o "Chico Trombone'', me devolveu substâncias químicas que havia guardado em geladeiras na Escola Fluminense de Medicina e que valem alguns milhões de cruzeiros. O Mário Viana Dias c o Ivan me entregaram o fisiógrafo,o cilindro registrador; a Júnia trouxe o microscópio de contraste de fase. Esse grupo não foi cassado mas teve que ir embora e levou o que pôde quando viu que tudo seria destruído. Durante quatorze anos eles guardaram esse material para devolver quando voltássemos a refazer o laboratório. O Chico Trombone chegou um dia aqui em Manguinhos e me disse: "Dr. Moussatché, o Sr. não vai acreditar, mas eu estou trazendo aqueles reagentes que o Sr. deixou na geladeira quando saiu daqui em 1970". Foi emocionante. Muita coisa foi vendida como sucata e outras eu encontrei nos depósitos de material velho.

— A Universidade de Brasília sofreu muito com o Golpe de 64. O senhor poderia falar um pouco da experiência de participar do projeto de sua criarão e instalação?

— Quando Juscelino foi eleito Presidente havia críticas de que ele estava industrializando o país e não fazia nada pela cultura. Então o Juscelino disse: — Vamos criar uma universidade. E propôs ao Ciro dos Anjos, chefe da Casa Civil, para que estudasse um programa e ele falou com o Darcy Ribeiro que trabalhava na Casa Civil e que era amigo meu. Nessa época, durante reunião da SBPC, chamei o Darcy. Então o Darcy que tinha que formar um grupo para estudar uma proposta para a universidade de Brasília chamou o Leite Lopes, o Danon, O Herman Lent. Bem, as origens da UNB são espúrias para o Governo de 64.

Quer dizer, o Governo não quis imaginar que, pela primeira vez no Brasil, se criava uma universidade, porque não havia outra. Havia um conjunto de escolas mas, universidade ainda não. Nós trabalhamos por mais de um ano até chegar ao conceito do que seria essa universidade. A criação de institutos básicos que depois deu a eles um caráter de departamento. Eu era o secretário regional da SBPC na ocasião e promovi várias reuniões da própria Sociedade para discutir a criação da universidade e colaborava gente de São Paulo e vários outros lugares. Pedro Calmon fez parte das comissões, Anísio Teixeira foi chamado para ser Reitor. E a universidade foi organizada. Começou-se a contratar uma porção de gente ligada a este grupo inicial, quer dizer, uma gente suspeita . . .

Quando veio o Golpe, a Universidade de Brasília e muitos dos professores que faziam parte dela eram suspeitos pelas suas origens. Uma série de medidas do Governo e acontecimentos na Universidade obrigaram muitos professores, dos mais categorizados, como Jayme Tiomno, Roberto Salmeron, etc ... (cerca de 200), a pedir demissão porque se via que logo iriam começar as perseguições.

Nenhuma universidade resiste à renúncia de tantos professores de seus quadros. E esse pessoal de primeira classe da pesquisa no Brasil foi substituído por gente que ninguém sabia para que veio. De uns anos para cá, a Universidade de Brasília vem se equilibrando, convidando professores de boa categoria. Agora que saiu o Reitor, um Capitão de Fragata responsável por esses muito longos anos, esperamos que a Universidade retome os caminhos que seus primeiros promotores idealizaram.

— Após o Golpe de 64 Rocha Lagoa é diretor do Instituto. Como repercutiu esse fato?

Havia dois grupos no Instituto: o nosso que queria que os diretores dos institutos levassem nossos problemas como coisa de Ciência mesmo e não alegando que tínhamos que fazer umas tantas coisas para o público, como soro e vacinas, que nós sabíamos que eram de má qualidade ou o que seja. Achávamos que não era necessário utilizar essa mentira para justificar nosso trabalho aqui. O outro grupo, que ficou contente com a vinda do Rocha Lagoa, achava que o IOC deveria continuar no Ministério da Saúde.

— O Herman Lent afirma que desde a época do Oswaldo Cruz existiam dois grupos de conflito no Instituto por dissidências e brigas internas. Como foi isso?

— São duas linhas de política científica totalmente diversas; são atitudes diferentes frente a problemas, os mais variados. Isso não aconteceu só no Instituto, entre os que defendiam a prioridade para o investimento em Ciência Aplicada e os outros que não aceitavam que a Ciência Básica fosse relegada a um segundo plano.

— Com o Golpe de 64 qual foi a política do novo Governo em relação à Ciência?

— A única coisa que se pode dizer é que não se fez política especial ou nova política para a Ciência.

— Mas os cientistas estavam se mobilizando pela criação do Ministério da Ciência e Tecnologia.

— Nós já nos mobilizávamos para a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia em 1958, 59. Isso nasceu de conversações do pessoal ligado à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e da Academia de Ciências. Na época, o Conselho Nacional de Pesquisas perdia prestígio e, com isso, a Ciência estava ficando cada vez mais incapaz de atingir altos postos políticos, os cientistas com mais dificuldades de dizer o que pensam e o que têm a fazer. Nós achávamos que era importante ter um Ministro que defendesse nossos interesses, levantasse nossos problemas na hora de repartir o bolo orçamentário . . . Com a Nova República, vamos ver se a Ciência passa a ter significado nos altos níveis da administração do país.

— Falávamos do massacre. Foram vários inquéritos e IPMs. E 16 cientistas foram chamados para depor, dos quais só 10 foram cassados, O senhor lembra quem foram esses cientistas?

— Não me lembro e creio que não foram só 16. A primeira comissão de inquérito ficou por aqui dois meses e interrogou de cientistas a bedéis. Era uma comissão militar e uma civil. Na militar veio o General Aluíso Falcão, se não me engano. Eu fui o primeiro a ser chamado e fui falar com o General Falcão que, como os outros militares, foi muito amável. A primeira pergunta que ele me fez, ao lado de outros dois militares e uma pessoa que batia à máquina, foi se eu era comunista. Então eu disse ao general Falcão. "Em primeiro lugar quero agradecer essa distinção de ser o primeiro a ser chamado por ter uma projeção muito especial aqui no Instituto, como diz o senhor. Acho muito difícil responder a estas questões assim eu sou comunista ou não sou comunista porque isso tudo é motivo de discussão. Nunca pertenci a partido comunista, a nenhum partido político, porque não sou dos que crêem que a solução do mundo seja através da política, mas através da Ciência utilizada para o bem social da humanidade. Mas tenho minhas idéias políticas.

Sou socialista e acho que o capitalismo entrou numa contradição que certamente não resolverá os problemas sociais do mundo. De modo que se tenho ou não, razão, não quero discutir. Penso que as ideologias políticas perderam sua capacidade de resolver os problemas do mundo atual. O Brasil está metido num complexo, como todas as nações do mundo, de maneira que a solução dos seus problemas sociais está estritamente ligada à solução dos problemas sociais dos outros países, particularmente os do Terceiro Mundo. Continuo achando que o socialismo, pela distribuição mais equitativa da riqueza, é uma solução. Mas o problema transcende a isso porque tenho dúvidas se, mesmo que se queira fazer um regime socialista para distribuir as riquezas do mundo de forma equitativa, seja possível. Será que somos capazes de alimentar toda essa gente e dar a ela melhor condição de vida como desejamos para nós? Pode ser possível, mas não tenho certeza."

— Quais são então os caminhos para se chegar lá?

— Não estaremos contaminando a atmosfera, o meio ambiente, ao querer dar, para todos, melhores condições de vida. Uma das providências que os governos deveriam tomar é a redução da natalidade a um nível que se permitirá dar a todos uma vida humana, decente, utilizando a tecnologia conhecida. Isto reduziria o número de crianças que estão morrendo diariamente de fome em todos os países do Terceiro Mundo. Sei que nos países socialistas não se aceita a proposta de redução da natalidade, mas acho que isso é problema de países capitalistas. Por que? Porque em todos os lugares os homens devem ter o direito a uma vida digna, com liberdade de escolher, de dizer o que pensa, de fazer o que quer e gosta.

— O senhor falou isso tudo para o General? E o que ele achou?

— No final de cinco horas, com alguns intervalos, eu fui embora. Eu sei que ele informou a algumas pessoas que nós tínhamos aqui um grupo de idealistas e que nenhum deles era perigoso.

— Os senhores sabiam que seriam cassados ou foi uma surpresa?

Não foi surpresa ... era morte anunciada. Quando subiu o Rocha Lagoa sabíamos que seríamos cassados. Era só uma questão de tempo.

— Havia base legal para a cassação? Houve justificativa a cada um ou nenhuma explicação?

— Nós nunca conseguimos ler o que eles atribuíram, fomos cassados e aposentados mas nunca tivemos acesso às razões disso. Os processos correram durante seis anos, aí é que nos cassaram. A decisão não foi imediata.

— A possibilidade de cassação era dada por uma linha de Governo. . .

— O senhor imagina, por exemplo, que o Rocha Lagoa tenha dito ao Médici: "Olha, isso é gente que quer tirar o Instituto Oswaldo Cruz do Ministério da Saúde ... e o Ministério precisa do Instituto porque é lá que se faz vacinas importantes para a população, pesquisas para resolver problemas imediatos do Brasil. Essa gente só faz Ciência que a gente não sabe o que significa, novas experiências que não se sabe para que valem e a verba é pequena". E então o Médici deve ter dito: "Então essa gente tem que sair imediatamente, não há dúvida que não serve ..." O que quero dizer é que se conseguiu cassar pessoas que davam problemas para o Governo. Venceu um dos grupos ligados ao Instituto, uma orientação diferente da nossa. Eu, por exemplo, assinei documentos contra a guerra, protestei contra explosões atômicas. Devem ter lido meu depoimento e dito: "Este marreco aqui é da esquerda . . .".

— O senhor foi cassado em 1970 e no ano seguinte já estava trabalhando na Venezuela. Como foram os contatos para ir viver lá? Demorados?

— Quando fomos cassados pessoas amigas escreveram perguntando se nós queríamos ir para os lugares. Eu ia para a Inglaterra, mas o processo foi mais demorado e eu teria problemas porque já tinha 61 anos e lá, aos 65 as pessoas devem ser aposentadas. Além disso, não poderia ser contratado para um cargo inicial já que tinha um certo prestígio e como a Inglaterra estava passando por uma crise econômica, ficava difícil contratar num nível mais elevado. Neste meio tempo, o Fernando Ubatuba, que já estava na Univerdade Centro Ocidental, em Barquisimeto, na Venezuela, me chamou, dizendo que lá estavam fazendo uma coisa interessante, em uma escola recém-criada. Fui para a Universidade Centro Ocidental, pude treinar vários jovens na pesquisa científica, organizei o Conselho Científico da Universidade em colaboração com outros professores e lá fiquei 14 anos.

— E como foi sua experiência de exilado? Como foi a tentativa de manter esse grupo que ficou disperso?

O que se manteve foi uma relação de amizade pura e simples. Eu sabia que o Rabinovich estava na Universidade de Nova Iorque e mantínhamos uma correspondência, fui até lá encontrá-lo. Mas sabíamos que estávamos exilados e que a volta ao Brasil era uma incógnita total. Pensava que fosse passar o resto de minha vida na Venezuela ou só voltaria quando estivesse doente. Mas seria o final.

— Como é a experiência de um exilado num país latino-americano?

— É um negócio muito sério. Fui com minha senhora e a única pessoa que conhecia era o Ubatuba. Mas só posso fazer elogios ao tratamento que me deram.

— A Fundação tem atualmente um ramo de controle de qualidade, o de produção de vacinas, o ensino na Escola Nacional de Saúde Pública e no IOC a pesquisa básica. Como o senhor analisa o quadro atualmente, as coisas estão equilibradas? Qual é o seu diagnóstico para as tendências da FIOCRUZ?

— Não há diferença da metodologia científica entre a ciência básica e a aplicada. Uma procura um resultado mais imediato, outra analisa o problema e busca resultados mais a longo prazo. O que importa é ter gente de qualidade aqui investigando e tendo apoio tanto do Ministério da Saúde como do Ministério da Ciência e Tecnologia.

— Como o senhor vê o panorama atual da política científico-tecnológica brasileira e os reflexos dela na FIOCRUZ.

— O Ministério da Ciência e Tecnologia ainda está se estruturando, mais cedo ou mais tarde vai se definir a política científica nacional. Fizemos uma carta que será entregue ao Ministro Archer em que fizemos sugestões especialmente sobre os institutos de investigação. Mostramos que a Universidade não vem cumprindo, há algum tempo, sua principal função que é a de investigar e que os pesquisadores das universidades estão sempre marginalizados. Achamos uma alternativa: a criação de institutos fundamentalmente destinados à investigação para o desenvolvimento da pesquisa básica e tecnológica. Eu creio que a Fundação pode continuar como está e colaborar estreitamente com o novo Ministério tudo isso é assunto a ser debatido.

— O senhor tem uma avaliação sobre o que acontece hoje na política geral do país?

— É muito cedo para dizer o que esse Governo pode fazer, não é? Os problemas criados neste período de regime militar são inúmeros se bem que eles não fizeram só besteiras. Há coisas boas que estão aí e vão ficar, muitas para se corrigir. Não aceito a idéia de que estamos derrotados, sou otimista. Acho que o Brasil precisa se independizar.

— Na busca de relações com outros países, saindo da relação de dependência dos Estados Unidos, o senhor vê possibilidades de desenvolvimento na área científica?

— Sempre há algo a acrescentar quando a gente busca relações científicas com outros países. Se há alguma coisa extremamente impessoal, que pertence a todos, é a atividade científica que se realiza em todos os países que são capazes de contribuir para a evolução da Ciência. A relação do Brasil com estes países é necessária, deve ser incentivada e mantida. Temos que manter relações científicas mais estreitas com a União Soviética — e não se mantém hoje porque estamos sob o domínio dos americanos que realmente têm uma atividade científica extraordinária. Mas seria muito útil que se mantivesse também com outras potências.

— O senhor está aqui há três ou quatro meses elaborando projetos de trabalho, mas sua reincorporação definitiva continua em suspenso, assim como a de outros cassados na mesma época. Como o senhor vê e sente isso em termos profissionais e afetivos?

Se a direção do Instituto me sugere a criação de um novo departamento é porque está interessada. Não acredito que tenha feito isso por uma atenção especial porque fui cassado. Agora, o que o Instituto tem que fazer é contratar o pessoal, aumentar o laboratório, trabalhar.

— Mesmo que sua reintegração não se concretize a curto prazo, este trabalho aqui já lhe é suficientemente atrativo?

— Claro, mas não pensamos ficar trabalhando, tanto Tito como eu, por amor à arte, ficar trabalhando de graça. Estamos fazendo agora como uma contribuição a esse Instituto que tanto representa prá nós em toda essa já longa vida, fazendo tudo que é e será necessário para dar início às atividades do Departamento, às experiências que fazem parte de nossos projetos de pesquisa.

— O senhor volta, passa uns meses lá. . . como o senhor pensa em manter essa ponte?

— Já falei com o Arouca sobre a possibilidade de fazer um convênio com a Universidade de Barquisimeto. Eu penso em ir, voltar . . .

— Professor, o que fica dessa experiência toda, dessa trajetória dos seus últimos anos?

Acho que há sempre uma esperança quando as coisas estão ruins. Sei que o Brasil passa por uma fase de transformação séria e a gente não pode ficar angustiado com isso, mas estar sempre alerta. Olha, sou um otimista inveterado.

Esta entrevista foi concedida nos dias 28 de novembro de 1985 e 17 de janeiro de 1986, no Laboratório de Fisiologia da FIOCRUZ, antes, portanto, da reintegração dos 10 cientistas cassados no "Massacre de Manguinhos." A reintegração foi possível através da excepcionalidade para contratação de pessoal aprovada pelo Presidente da República, José Sarney, e ocorreu no dia 15 de agosto de 1986. Esta publicação é uma versão reduzida e editada da entrevista concedida pelo Professor Haity Moussatché à Casa de Oswaldo Cruz. O depoimento integra dois projetos em execução: "O Massacre de Manguinhos" e "Acervo de Depoimentos Orais sobre a História da Fundação Oswaldo Cruz e das Práticas de Saúde Pública." A versão final foi revista e aprovada pelo Professor Haity Moussatché.

Entrevista concedida a Paulo Gadelha Coordenador da Casa de Oswaldo Cruz e Wanda Hamilton — Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz.

Revisão, edição e texto final — Ruth Martins, Jornalista, revisora e redatora da Casa de Oswaldo Cruz e Paulo Gadelha.

Participaram também desta entrevista em diversos momentos:

— Luiz Fernando Ferreira da Silva — Vice-Presidente de recursos Humanos da FIOCRUZ;

— Arlindo Fábio Gómez de Sousa — Vice-Presidente de Desenvolvimento da FIOCRUZ.

— Tereza Cristina de Aguiar Tavares — Assessora de Imprensa da Presidência da FIOCRUZ.

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br