ANÁLISE

 

Assistência médica alternativa

 

 

Fernando D. de Avila Pires

 

 

Comentários a um Texto de Apoio

O Texto

As contribuições ao tema, organizadas por Madel T. Luz, "abordam a questão das terapêuticas ditas alternativas. Mais especificamente, com a pesquisa Homeopatia, Uma Forma de Atenção Médica Alternativa abordam a questão (político-institucional, clínica e antropológica) da homeopatia."

Após uma introdução geral apresentada como contribuição à VII Conferência Nacional de Saúde, assinada por Jorge Biocchini, Madel T. Luz, Marcus Vinicius de J.B. Ferreira e Mario Eduardo Zibecchi, o volume é aberto com uma introdução histórica sobre a homeopatia no Brasil, de autoria de Madel T. Luz. Na introdução ao capítulo, a autora adverte que "Em todo o período, entretanto, transparece o fato de que a medicina oficial condena um sistema que desconhece ou que não compreende."

Maria Andréa Loyola contribui com um "Estudo antropológico da prática homeopática no Rio de Janeiro (1983-1985)", onde registra as opiniões de uma amostra da clientela constituída por 26 pessoas oriundas das zonas norte e centro da cidade.

Paulo César S. Santos registra as observações que fez em Niterói, por ocasião de uma experiência pioneira junto às Ações Integradas de Saúde. Seus "comentários dizem respeito a uma necessidade sentida no decorrer deste trabalho (. . .) na medida em que servirão de subsídios para o aprofundamento da compreensão da implantação da homeopatia na rede pública."

As "Relações médico-paciente" na clínica homeopática são analisadas por Madel T. Luz, no capítulo final.

O volume, publicado em 1987 na coleção Textos de Apoio do Programa de Educação Continuada da Escola Nacional de Saúde Pública com a colaboração da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, é apresentado como um documento preliminar e destinado à discussão em sala de aula.

 

Introdução

A institucionalização da clínica homeopática dentro do sistema assistencial do Inamps tem sido defendida e recomendada com argumentos de ordem teórica e prática. Por um lado afirma-se (p 7) que "A marginalização das práticas alternativas da rede oficial de saúde implica (. . .) numa restrição ao caráter democrático de que se deve revestir a universalização dos serviços de atenção à saúde como um dever do Estado e um direito de cidadania de cada brasileiro." Por outro lado, (p 8) "Sabe-se também que as medidas alternativas não necessitam tanto de investimentos em aparelhagens e materiais, reduzindo a demanda incessante de tecnologias importadas com seus elevados custos."

A tônica dos artigos destaca, ainda, a questão das relações médico-paciente, que constitui tema de crítica constante por parte dos usuários dos serviços oficiais de saúde.

Para a correta avaliação das questões levantadas, é indispensável considerar a argumentação em seus principais aspectos distintos, quais sejam:

1. aspectos relacionados à sociologia da medicina, especialmente no que se refere às relações médico-paciente;

2. aspectos relacionados à evolução da prática ou exercício da profissão médica e com o seu status na sociedade;

3. aspectos técnicos relacionados com o diagnóstico;

4. aspectos técnicos relacionados com o controle de qualidade dos medicamentos alternativos e com a avaliação criteriosa de sua eficácia e dos resultados de sua utilização.

Iniciarei com alguns comentários de ordem geral e, no correr da discussão, abordarei os itens acima.

Critérios de escolha do sistema médico

A verdadeira democracia envolve escolha consciente. No caso em pauta, o testemunho de Loyola (p 68) é importante e pertinente: "O desconhecimento dos princípios terapêuticos da medicina não é, entretanto, uma especificidade da clientela homeopática. Ele é próprio da condição de 'leigo' em geral válido também, acreditamos, para a clientela da medicina alopática, mesmo para aquela composta pelos estratos sociais mais altos da população. A relação que as pessoas mantêm com a medicina (como com o conhecimento científico e erudito em geral) é, em larga medida, uma relação de 'crenças' ou de 'fé'."

Entretanto, a condição de leigo não deve ser responsabilizada pela escolha. Uma boa formação escolar deve proporcionar os elementos indispensáveis para o exercício de julgamentos racionais e decisões sensatas. Isaias Raw (1987), entretanto, critica a ineficácia da escola em proporcionar as bases para a escolha e a conseqüente (. . .) "esquizofrenia intelectual de uma sociedade capaz de utilizar os desenvolvimentos tecnológicos ao mesmo tempo que rejeita suas bases científicas." A atitude condescendente e paternalista perante os leigos, esta sim é, a meu ver, antidemocrática, ao admitir sua incapacidade de julgamento e de decisão. Por outro lado, classe social constitui, no caso, variável espúria. Indivíduos oriundos de classes altas têm maior chance de obterem uma boa formação escolar, mas estas classes não são integradas, necessariamente, por pessoas de bom nível cultural, especialmente quando existe a oportunidade de rápida ascensão ou de mobilidade social.

Cura e explicação

Para o doente, o importante é obter alívio dos sintomas agudos e a cura de sua doença. Quando é crônica, o paciente estabelece, com ela, um sentimento de propriedade e atribui-lhe características personalizadas, as quais ressalta ao discorrer sobre o seu caso.

A pesquisa das causas etiológicas e as teorias explicativas não entram em suas preocupações imediatas e, às vezes, nem mediatas. Para o bom clínico, o diagnóstico correto e o tratamento adequado vêm em primeiro lugar. Entretanto, como reconhece Johnston (1986), "all thought is theorethically guided, although often by a weak, if not inaccurate theory."

Havendo disponível um medicamento eficaz, um bom clínico, em qualquer época, teria a chance de ser bem-sucedido, ainda que guiado por concepções errôneas. Como sucede com a física newtoniana, que satisfaz dentro de certos limites, um médico poderia salvar seu paciente, dentro de um sistema conceitual errôneo.

Clínica e terapêutica

O progresso da farmacologia nem sempre acompanhou o da biologia, química e medicina e dependeu, não só do desenvolvimento de certas técnicas quanto da evolução do conceito de doença. Tratamentos heróicos, amplamente preconizados até fins do século passado, incluíam sangrias por venissecção, purgativos e eméticos violentos, aplicação de substâncias vesicantes e venenosas como o calomelano. A morte de George Washington, narrada por Carlini (1988) como um exemplo da prática curativa disponível às classes altas, deveu-se, sem dúvida, ao tratamento a que foi submetido. A leitura da Gazeta Médica do Rio de Janeiro permite uma visão do que significava adoecer nos tempos de nossos avós.

De nada valeu, para os enfermos, o reconhecimento amplo da teoria microbiana das infecções antes de dispormos das sulfas e antibióticos. Soros e vacinas tiveram papel importante, mas cedo demonstraram-se insuficientes como recurso terapêutico e aquém das primeiras previsões otimistas de Pasteur e de Koch. Da mesma forma, um diagnóstico perfeito não assegurava a cura, mas, com freqüência, um prognóstico sombrio.

Os mesmos medicamentos podem ser utilizados por adeptos de distintos "sistemas". Muitas substâncias foram descobertas e usadas de forma empírica, segundo concepções teóricas distintas de febre, infecção e doença, antes de serem incoporadas à farmacopéia alopática. Quinino foi administrado em casos de malária quando a doença era atribuída a emanações pestilenciais dos pântanos; hoje continua a sê-lo, quando se sabe que o impaludismo é uma infecção por um protozoário transmitido pela picada de certos mosquitos que se criam em águas estagnadas. De maneira análoga, psiquiatras, bruxos e clérigos utilizam-se da sugestão e do transe.

A ação de uma droga depende, por outro lado, da dose, da forma e da via de administração e das idiossincrasias individuais. Estricnina pode ser usada para matar ou para curar. Morfina, para aliviar a dor ou satisfazer um vício. O que ainda não foi convenientemente demonstrado é que a dissolução extrema resulte na dinamização e liberação de energia vital, com poderes curativos. Por outro lado, lembra Carlini (1988) que (. . .) "independentemente de qualquer efeito terapêutico que pudesse ter, a homeopatia era nitidamente superior por não agravar o estado do doente."

Sociologia da medicina: a prática médica

Enquanto o exercício da medicina caracterizava-se pelos diagnósticos brilhantes realizados com o auxílio dos cinco sentidos do médico, da sua experiência, intuição e carisma, coadjuvados com alguns parcos recursos laboratoriais, a doença permanecia restrita aos cuidados proporcionados no ambiente domiciliar e o enfermo não se encontrava exposto às infecções e erros comuns nos hospitais (Roth, 1979). As casas de saúde recebiam os pobres, os viajantes e os indigentes. Na Inglaterra, um Ato de 1848 estendeu o direito de voto a todas as classes sociais, mas não aos internados nas instituições assistenciais previstas na Lei dos Pobres. Assim, um rico artesão que fosse acometido por uma doença infecciosa, perdia os direitos de cidadão ao ser internado em um dos hospitais disponíveis (Cartwright, 1977). Inexistiam equipamentos sofisticados e de custo elevado, que estivessem além do alcance dos bons consultórios.

A evolução social da prática médica, entre nós, caracterizou-se pela transformação de um sistema privatizado, elitizado, personalizado, exercido por profissionais liberais, para um outro, institucionalizado, impessoal, corporativo, desempenhado por profissionais assalariados que dependem de uma coleção de empregos para somarem um salário razoável.

Com razão, Santos indaga (p. 84): "quem atualmente é o responsável pelo paciente nos serviços públicos? A instituição como um todo? O clínico? Ó especialista? Ou o paciente não é responsabilidade de ninguém? Seria ele um paciente do 'instituto' num sentido mais abstrato? Quando houver uma emergência, a quem recorrer? Até que ponto a diluição da responsabilidade sobre o paciente tem sido um fator da eficácia da terapêutica?"

A massificação do atendimento (que evoluiu da atenção médica para a desatenção institucional) resultou na forçosa redução do tempo disponível para a consulta, na preocupação com o diagnóstico e não com a pessoa do paciente, com o paciente como um caso e não como pessoa, e na inevitável despersonalização da relação médico-paciente. Santos (p 81) descreve esta situação onde, uma vez que o cliente não paga diretamente ao médico, este recorre a uma pletora de ECs, como um atirador medíocre, preocupado em acertar o alvo, que em lugar de um rifle usa uma espingarda de cartucho o reduzindo, em conseqüência, o seu alcance.

A dependência do emprego e do salário (baixo) trazem consigo o desestímulo vocacional e a insatisfação profissional. Por outro lado, a oferta reincidente de novos equipamentos cada vez mais sofisticados leva ao que Santos (p 81) define como um recurso à mágica: "A conclusão é que o ato médico passa a ser mais um bem de consumo e não um serviço. Passa-se então a consumir consulta e exames como se consomem rádio, televisão, automóvel (. . .). O resultado é uma inerente fragmentação do paciente, o que dificulta mais ainda a compreensão dos problemas do mesmo."

Grande número de profissionais diplomam-se em cursos de baixo nível e iniciam a carreira malpreparados. Frustram-se ao constatar, que suas pretensões e sua concepção idealista do exercício da medicina não se realizam mais na sociedade moderna. Suas relações com uma legião de pacientes são intermediadas pelo Estado e estão sujeitas aos empecilhos de uma burocracia malplanejada e estagnadora que não oferece incentivos aos mais dedicados. Os clientes de baixa condição social, por sua vez, sentem-se espoliados pela sociedade e pelo governo e sofrem no corpo e no espírito os males do subdesenvolvimento. Exigem, em troca de suas contribuições forçadas, uma atenção personalizada e o alívio temporário oferecido pelo sick-role, de que nos fala Parsons.

Por sua vez, a educação moderna formal e a divulgação informal, através dos meios de comunicação de massa, estimulam a iniciativa e o questionamento. A clientela não mais se satisfaz com explicações vagas. Pode conformar-se com elas, em troca de um crescente sentimento de frustração e de desconfiança do sistema e da conseqüente desmitificação do médico.

Entretanto, a tensão, o grande número de pacientes, a variedade de situações difíceis também afligem o clínico de interior que sofre, além de tudo, com o isolamento profissional, a escassez de recursos técnicos, a falta de bibliografia e de auxiliares capacitados, sem que isso leve à despersonalização das relações que caracteriza o serviço de previdência oficial.

Está explícito no volume aqui analisado que, no sistema homeopático, o homem é encarado sob ótica holística. Critica-se a consulta alopática pela preocupação com os sintomas localizados que resulta no desmembramento do paciente. Um argumento pervasivo em todo o texto é o de que (p 8) "É sabido que um dos fatores do descontentamento da população quanto à medicina alopática, sobretudo quanto à prática institucional, é o esfriamento das relações médico-paciente." Por outro lado argumenta-se que (p 8): "As técnicas alternativas vêem o paciente como um todo, e a homeopatia se utiliza, como metodologia de sua prática, da pesquisa individualizante das várias áreas de vida dos pacientes, durante as consultas." Observação semelhante encontra-se em Paula Monteiro (1985) e em Fontenele (1959).

Ora, tais críticas feitas à adoção oficial privilegiada da alopatia não devem ser dirigidas ao sistema médico, ou melhor dito, aos fundamentos teóricos da alopatia, mas a fatores que caem na esfera da sociologia da medicina, isto é, particularmente referem-se à prática e à ética prevalentes nos institutos de previdência governamentais. Ainda mais que voltando à menção de Loyola (p 68) "O desconhecimento dos princípios terapêuticos da medicina não é, entretanto, uma especificidade da clientela homeopática (. . .) Suas dúvidas e desconfianças dirigem-se comumente para o médico de quem exigem competência no diagnóstico e na indicação terapêutica, pois o agente de fato, é o medicamento." Num inquérito em que 26 pessoas foram ouvidas, "apenas 2 clientes apresentaram um esboço de teoria ou forneceram elementos explicativos sobre a homeopatia."

Verifica-se aqui uma certa contradição, pois ou se exige (p 68) um diagnóstico exato e uma terapêutica eficaz ou então (p 8) uma atenção personalizada e confortadora, como requisitos prioritários. É a contradição de que nos fala Isaias Raw, no editorial já mencionado: "Fica bem claro ao se observar o comportamento numa farmácia, onde consumidores aconselhados por um balconista mal-alfabetizado adquirem altas doses de vitamina C, que são urinadas em horas, ou gelatina idêntica à do supermercado, sem valor nutricional, como complemento que reforce unhas e cabelos. (...) Neste contexto o ensino de ciências é fundamental. Mais do que adquirir informações, deve facilitar que o estudante tenha uma atitude científica, sendo capaz de examinar evidências, tirar conclusões, prever implicações e testá-las experimentalmente e verificar a validade das próprias conclusões."

Diversos sistemas alternativos deixam de levar em conta o "paciente total". A irisdiagnose e o diagnóstico através do estudo da letra, este feito por correspondência, constituem práticas correntes e acatadas inclusive por pessoas de classe média alta (de minhas relações). Em segundo lugar, as comparações foram feitas entre o atendimento em postos de saúde oficiais, no caso da alopatia, e, com uma exceção, na clínica privada homeopata. Luz (p 93) reconhece que "Consultar-se num consultório particular, com hora marcada e exclusiva, é muito distinto de ser atendido num ambulatório público, com filas de pacientes e tempo exíguo para a consulta. (...) Há portanto, diferenças significativas entre as consultas de um consultório particular e as de ambulatório e posto de saúde."

Os médicos homeopatas também divergem na maneira de proceder e Santos registra (p 100) "casos de duração de consulta em que o médico não ultrapassa mais de cinco minutos com seu paciente", e ainda assim os clientes mostram-se satisfeitos. Portanto, não é o tempo reduzido da consulta alopata, nos postos, o responsável pelo descontentamento e pela sensação de falta de atenção.

Por tudo isso, é fundamental não confundir-se a teoria da doença com sua prática. A má prática da medicina independe de seus princípios.

Quem garante que a adoção de clínicas homeopáticas nos postos de saúde não criará idênticas situações, burocratizando o atendimento, tornando-o impessoal e massificado? Santos levanta esta importante questão (p 84): "No caso da consulta homeopática que acompanhamos, dentro de um espaço institucional (Posto de Saúde, Niterói), praticamente todos estes aspectos levantados em relação à prática da medicina oficial aconteceram, à exceção do uso do jaleco, que existiu, e do tempo de consulta, que foi o necessário."

Na página 97 foi transcrita uma entrevista onde o dr. J. L. afirma que "A socialização feita por parte do Inamps contribui muito para isto, porque tira o estímulo do médico de fazer uma boa medicina. Ela não dá tempo para um bom atendimento; em uma hora o médico tem que atender dezesseis pacientes. . ." E Santos indaga (p 92) "Até que ponto conseguirá a homeopatia manter sua 'pureza' no espaço institucional?".

Não há dúvida que os baixos preços dos medicamentos homeopáticos, que são impossíveis de se sujeitarem a um controle de qualidade, o apelo popular à credulidade e às idéias vitalistas e místicas atrairão um grande número de pacientes.

As consultas particulares de médicos homeopatas já custam o equivalente às dos alopatas. Logo, quem garante que não caminharemos para a situação de dispor de uma prática homeopata de elite e outra popular, com a repetição dos problemas que já temos?

A alegação (p 82) de que "Não se trata de negar a importância e o valor da prática médica e muito menos da tecnologia aí incorporada. Trata-se tão-somente de tentar um meio de se racionalizar e adotar critérios de controle de qualidade da prática, para que os custos envolvidos tenham benefícios correspondentes" deve ser cuidadosamente pesada. Antes da questão do custo deve vir a da eficácia. Voltando à opinião de Loyola (p 68), o leigo (e muitos que tecnicamente não o são) "Mantém uma, relação com a medicina (. . .) numa larga medida, uma relação de 'crenças' ou de 'fé'."

A humanização das relações médico-paciente constitui um problema para o sociólogo da medicina e, a meu ver, não será resolvido com a adoção de sistemas alternativos.

A grande diferença entre a medicina alopática e as chamadas práticas alternativas reside em que a primeira assenta sobre uma base sólida de conhecimentos biológicos e busca comprovar a correção de seus diagnósticos e a eficácia da terapêutica com o emprego de uma metodologia que permite testar as premissas e hipóteses levantadas. Mesmo assim, está sujeita a incorrer em erros, que independem dos fundamentos filosóficos do método, mas dependem de sua aplicação. O método não é privilégio da alopatia, mas uma proposta filosófica e epistemológica de verificação de hipóteses. Os demais sistemas apóiam-se na tradição de curas.

Ciência e Cultura publicou, em setembro de 1985, uma coletânea de trabalhos apresentados por ocasião do 4º Simpósio Internacional de Farmacologia e Terapêutica Homeopática, realizado em 1984. De sua análise fica a certeza de que muito há que se fazer para demonstrar a eficácia da terapêutica homeopática.

Segundo Josefina Sánchez Resendiz (p 1468) "(. . .) a pesar de tantas hipóteses existentes, lo único que se ha podido comprobar en México y en Europa, con el resonador nuclear magnético, es que el espectro del solvente varía, demonstrando cambios en la ecología molecular del soluto. . .", expressão que soa mal aos ouvidos de um ecólogo.

Alexandre Pinto Corrado (p 1480) cita um relato de Pozetti, onde este afirma que "a homeopatia só será definitivamente reconhecida como ciência e como alternativa válida quando a pesquisa homeopática ganhar dimensão, saindo das clínicas e consultórios para ocupar espaços nos laboratórios." E ainda ''(. . .) até que se estabeleçam estudos experimentais suficientemente demonstrativos do processo homeopático, será difícil considerar a homeopatia como uma ciência."

A análise crítica de Carlini (p 1482/1485) é perfeita e merece ser lida com atenção.

Abstenho-me de discutir os aspectos ligados ao vitalismo (p 39), por se colocarem fora do âmbito do conhecimento científico. Hoje, o tema retém interesse apenas aos cultores da história da biologia (entre os quais me incluo). Como afirma o homeopata Vervolet (p 1476) "O vitalismo é uma teoria filosófica espiritualista".

Não sei se todos os homeopatas concordam com o seu colega B. de Godoy Ferraz, lembrado por Vervolet (p 1476), o qual teria escrito: "Retiremos à homeopatia a 'força vital' e será como se a um edifício retirasse o alicerce. Tudo desabará fragorosamente." Se assim é, a tentativa de se agregar a homeopatia ao sistema oficial será como reunir o entulho ao desastre.

As citações de médicos que discorrem sobre teorias do campo da física, buscando apoio para seus argumentos (p 40/41) na tentativa de relacionarem a dinamização com dissociação atômica não merecem crédito. Knight (1986) diz bem: "What is interesting is that outside their own field scientists may be as credulous as the rest of us. . . In the nineteenth century, there were thus eminent physicists and chemists who were seriously concerned with the spirits, for example, and other who patronized fringe medicine, such as homeopathy". Simpson (1963), ao focalizar o mesmo tema em relação ao programa espacial norte-americano e às opiniões expressas por certos físicos e astrofísicos sobre a origem da vida, escreveu: "Another curious fact is that a large proportion of those now discussing this biological subject are not biologists. Even when biochemists or biophysicists are involved, the accent is usually on chemistry and physics and not on biology strictly speaking".

Quanto ao uso da fitoterapia, a questão não é tão simples como possa parecer. Elaine Elisabetsky (1987) descreve as dificuldades que encontram os estudos botânicos, farmacológicos e etnofarmacológicos entre nós. "O desenvolvimento de tais medicamentos é possível desde que se invista em testes de eficácia, segurança e controle de qualidade". E adverte que "É fundamental. . . entender-se os próprios conceitos de saúde e doença da população na qual se levantam os dados etnofarmacológicos. Tais conceitos são válidos em cada cultura e, portanto, é necessário levar em consideração o contexto cultural no qual uma determinada espécie é considerada como medicamento".

É evidente, para o cientista e para o historiador, que não se pode argumentar nos dias de hoje com os conceitos enunciados por Hanemann, apesar de que a maioria dos homeopatas assim procede. O significado dos termos muda com o lugar e com a época. Os conhecimentos disponíveis a Hanemann eram paupérrimos em comparação com o que existe nos dias de hoje. Em ciências cumulativas, como a biologia, os argumentos de Hanemann, Darwin, Mendel e de todos os que "contribuíram para seu desenvolvimento, guardam valor histórico, mas não necessariamente factual. Ainda assim, eu ficaria com os de Claude Bernard.

Como observação final, quero ressaltar que não só os homeopatas foram alvo de críticas severas no século passado. As crônicas de Cyrillo Silvestre publicadas na Gazeta Médica do Rio de Janeiro (1862-1864) assim o demonstram. Em outubro de 1862 criticou os cirurgiões que (. . .) "só estão satisfeitos quando cortão carne humana." Cita o conselheiro Jobim, o qual atacara a Junta Central de Hygiene: "Procurando prestar ao paiz um relevante serviço, S. Ex. propoz que fosse suprimida esta repartição, cuja utilidade ainda niguem pôde descobrir, e que até agora só tem servido de espelho reflectidor do maior desleixo, da cega protecção concedida ao charlatanismo, da constante violação ás leis do paiz, e finalmente da nossa vergonha perante as nações estrangeiras civilisadas." No artigo com que inaugurou suas colaborações, seu alvo fora a Academia: "O mez de julho foi rico para a Academia Imperial de Medicina, que somente em dias extraordinários costuma dar signal de vida. Á semelhança de um moribundo, cuja agonia data de longo tempo, ella tem seus paroxismos, que passão rápidos, e dos quaes logo sae para tornar a cahir no mesmo estado de abatimento (. . .). A academia vae definhando de dia em dia, até que chegue a sua hora extrema, que não está muito longe."

No tempo dos medicamentos heróicos e das cirurgias criticadas por Cyrillo Silvestre a homeopatia possivelmente salvou mais de um paciente de um destino cruel. Mas a responsabilidade de adotá-la sem poder justificá-la cientificamente, explorando a credulidade e o misticismo naturais do povo merece ser pesada.

 

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