TEMA
Reforma sanitária: uma análise de viabilidade*
Edmundo GalloI; Geraldo LuchesiII; Nilson Machado FilhoIII,; Patrícia Tavares RibeiroIV,
IEspecialista em Medicina Social FM/UFMG. Mestrando em Saúde Pública ENSP/FIOCRUZ
IISanitarista do Ministério da Saúde. Mestrando em Saúde Pública ENSP/ FIOCRUZ
IIISanitarista da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social RJ. Mestrando em Saúde Pública da ENSP/FIOCRUZ.
IVPesquisadora ENSP/ FIOCRUZ. Mestrando em Saúde Pública ENSP/ FIOCRUZ.
Para melhor entender e analisar a viabilidade da "Reforma Sanitária" na atual conjuntura, é necessário compreendê-la como um projeto setorial, articulado a uma estratégia maior, global para a sociedade, que está direcionada à consolidação da etapa democrática do capitalismo brasileiro.
Uma das diretrizes desta estratégia é a ampliação dos direitos de cidadania às camadas sociais marginalizadas no processo histórico de acumulação do capital, situação que se agravou enfaticamente com a supressão das liberdades de participação e organização e a limitação dos direitos civis durante os anos de autoritarismo.
É dentro desta perspectiva que a "Saúde como um Direito do Cidadão e Dever do Estado" se coloca como idéia social básica do "Movimento Sanitário", o qual remonta a meados da década de setenta e que agora se cristaliza em sua forma mais elaborada: A "Reforma Sanitária".
A VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de 1986 que consolida esta idéia confirma tal reflexão ao colocar SAÚDE COMO UM DIREITO, entre um dos seus três temas básicos, justamente o mais amplo, menos técnico e mais político deles.
O slogan "Saúde Para Todos no ano 2000" (SPT - 2000), pregado em âmbito maior pela OPAS/OMS, ao mesmo tempo que serve de sustentação àquela estratégia de consolidação do capitalismo no contexto global se coloca como pano de fundo, onde se projetam os pressupostos da "Reforma Sanitária", que responde à necessidade de uma política de reformas no espaço setorial.
Podemos então situar a "Reforma Sanitária" como um projeto específico, constituinte de uma trajetória maior juntamente com outros projetos econômico-sociais reformadores que se consubstancia por sua vez em uma série de "projetos parciais" que sinteticamente gravitam em torno dos seguintes eixos:
1. Unificação do Sistema de Saúde e sua hierarquização e descentralização para estados e municípios, com unidade na Política de Saúde;
2. Universalização do atendimento e equalização do acesso com extensão de cobertura de serviços;
3. Participação da população através de entidades representativas na formulação, gestão, execução e avaliação das políticas e ações de Saúde;
4. Racionalização e otimização dos recursos setoriais com financiamento do Estado através de um Fundo Único de Saúde a nível federal.
Através destes "projetos parciais" se busca o apoio social ao projeto da "Reforma Sanitária" visando a um somatório de forças para sua viabilização.
A universalização e equalização contempla aqueles segmentos populacionais que hoje não têm acesso, ou que têm um acesso difícil aos serviços de saúde e encontra respaldo nos movimentos sociais organizados (sindicais, populares, etc.) assim como o pressuposto da participação da população acolhe a vontade social de fiscalizar o Estado nas suas Ações e Políticas.
De outro lado, a perspectiva da racionalização e otimização dos recursos que tem como pano de fundo a crise fiscal constituiriam argumentos incontestáveis aos políticos e burocratas governamentais, conformando pilares de sustentação do projeto no interior do aparelho estatal.
Já a unificação do sistema e sua descentralização e hierarquização, somando-se às anteriores considera a vontade dos profissionais do setor com especial atenção àqueles ligados à saúde coletiva.
Estes pressupostos ainda encontram apoio nos setores mais, progressistas e/ou nacionalistas da burguesia. O seu detalhamento e o tratamento técnico lhe emprestam argumentos e substrato de crença na sua viabilidade. Face ao deprimente quadro sanitário da população brasileira e ao deplorável sistema de saúde, para o seu enfrentamento nada seria tão adequado e lógico como a "Reforma Sanitária". A manutenção da área privada na prestação dos serviços minimizaria a reação desta tradicional frente de oposição que historicamente tem se colocado contra as Políticas Públicas do setor saúde, tendo em vista a garantia dos seus lucros ao continuar recebendo do Estado o pagamento de seus serviços.
No entanto, como estão se operacionalizando na prática esses princípios norteadores da "Reforma Sanitária"?
Em primeiro lugar, há que se ressaltar que os movimentos sociais, sindicais ou populares não aderiram à proposta com a intensidade esperada. Problemas em outros setores tais como as questões salariais, de transportes, habitação ou posse da terra, ainda constituem prioridades desses movimentos e seu interesse no setor saúde se toma relativo.
É como se estes fatos também representassem uma outra forma de se compreender e dizer que a Saúde depende mais desses outros fatores do que da organização do seu Sistema de Serviços.
Fica compreensível que numa sociedade como a nossa onde ocorre uma imensa desigualdade e injustiça na distribuição da renda, além da intensa concentração dos Meios de Produção se caracterize uma estratificação social máxima, com imensos contingentes populacionais carecendo de condições mínimas de subsistência. E nesse contexto de carência é também compreensível que os grupos sociais que compõem esses movimentos direcionem sua energia para as lutas sobre questões salariais e outras que, mais de imediato, põem em risco sua sobrevivência.
Em segundo lugar, se coloca a questão de que a proposta da "Reforma Sanitária" foi gerada no interior da tecnoburocracia e se estendeu no máximo ao conjunto dos profissionais do setor, chegando aos movimentos sociais de forma acabada, verticalmente, a partir do Estado. O seu processo de formulação priorizou a condução dentro dos limites das instituições governamentais.
O momento de efervescência política que atravessamos tendo na Constituinte seu epicentro, onde estão sendo debatidos e serão tomadas decisões sobre temas que interferem em grandes interesses de determinados grupos sociais fez com que os setores mais conservadores da sociedade se fortalecessem e se organizassem na defesa do "status quo". O setor privado de saúde e as multinacionais dos medicamentos e equipamentos aliados "naturais" do empresariado privado nacional que representam os interesses corporativos mais evidentes de oposição ao projeto da "Reforma Sanitária", adquirem novo fôlego com a "maré" conservadora que se arregimentou para interferir na Constituinte.
A participação popular na Política e nas Ações de Saúde por seu lado, tem escassos canais, representados pelas ineficazes Comissões Interinstitucionais de Saúde (CIS, CRIS, CIMS e CLIS) e não avança nem em quantidade nem em qualidade, a não ser em raros locais cuja excepcionalidade só confirma a regra: A "Reforma Sanitária" não tem o reforço da participação popular a não ser em seu próprio discurso, que visa fundamentalmente legitimar a proposta para o setor.
De outro lado o governo com suas desencantadas políticas econômico-sociais não merece mais a confiança que a população lhe dedicava nos primórdios da "Nova República". O desgaste do discurso oficial, a lentidão e os retrocessos da (re)democratização e os limites das medidas ao técnico-burocrático afastam a sociedade, cada vez mais das iniciativas governamentais.
O clientelismo político e o fisiologismo partidário ainda constituem uma das principais formas de como o Estado se movimenta e toma decisões, atropelando critérios técnicos, realidade e interesses sociais. Em resumo e em outras palavras: a "Reforma Sanitária" perde força com o descrédito da Nova República.
O aparelho estatal, que reproduz em seu interior os conflitos e contradições que acontecem na sociedade em geral (sem contudo ultrapassar os limites da burguesia), carece de comando homogêneo na condição deste processo.
Enquanto o MPAS elabora sua própria versão da "Reforma Sanitária" e investe na estadualização dos recursos no intuito de cooptar politicamente os governos estaduais, o Ministério da Saúde retrocede, se esvazia de técnicos e de propostas, não consegue ou não quer acumular forças em nenhum sentido, permanecendo inerte e ganhando de longe um dos primeiros lugares na corrida da administração retrógrada, pequena e clientelista que ainda é hegemônica no Estado brasleiro.
Se colocarmos o Sistema Único de Saúde como a imagem-objetivo mais imediata do projeto da "Reforma Sanitária", podemos identificar na sua gênese os elementos básicos dos planos estratégicos: a ideologia e o conhecimento da situação atual.
Ainda que o conhecimento da situação de saúde seja condicionado pela ideólogia, não é neste terreno que mais transparecem os principais conflitos dos grupos sociais envolvidos no processo da "Reforma Sanitária" . É na forma de organização dos serviços (sistema nacional, unificado, único, estatizado, etc.) e no tipo de relação entre o Público e o Privado que se explicitam as concepções ideológicas daqueles grupos sociais, e onde ocorrem os embates mais ardorosos e os impasses.
Como, no entanto, poderíamos detalhar mais os movimentos dos grupos sociais e do governo para poder analisar melhor a viabilidade da "Reforma Sanitária"?
A matematização desses movimentos, isto é, a computação da força e a classificação dos grupos que apoiam ou se opõem à "Reforma Sanitária" como propõe Matus revela-se impraticável. E impossível esquematizar e quantificar as forças sociais em jogo de forma que isto subsidie eficazmente a estratégia, visto a complexidade da realidade social, especialmente a dinâmica de crise econômica e política que vivemos, caracterizada por descaminhos e perplexidades, seja nos aspectos gerais, seja nas questões setoriais.
O fato de que a maioria dos grupos políticos no Brasil não é conformada com base em idéias e princípios mas no ecletismo ideológico de permanecer ao lado do poder, cria também condições adversas para a avaliação da estratégia nos moldes que Matus propõe.
Se analisarmos quais foram os avanços significativos que a "Reforma Sanitária" experimentou desde a "Nova República" mais precisamente a partir da VIII Conferência Nacional de Saúde verificamos que afora os "feitos" de estadualização dos recursos que a Assessoria de Comunicação Social do MPAS divulga com esmero, pode-se dizer que, de forma geral, caminhamos a passos muito lentos em direção ao objetivo.
De acordo com os princípios de Planejamento Estratégico de C. Matus, um plano não deve ser interpretado como um "documento" mas como uma atitude em constante avaliação, tendo como referência a imagem-objetivo.
Poderíamos então definir o Planejamento Estratégico como a arte de conseguir avançar o possível para um determinado momento conjuntural, assim como o que está acontecendo com a "Reforma Sanitária"?
Acreditamos não ser este o fundamento do plano estratégico, ou pelo menos que ele não se satisfaça com esse limite (de avançar o possível) ou ainda, ele não pode ter essa idéia como fundamento básico, porque então não seria estratégico para os setores sociais que deveriam constituir a própria razão de sua formulação.
Em nossa perspectiva uma Reforma Sanitária deve se colocar bem além das formulações reformistas até agora implementadas, que se restringem aos limites colocados pela hegemonia burguesa, perdendo com isso seu potencial contra-hegemônico direcionado à transformação radical do atual Sistema de Saúde e do quadro sanitário do país.
Este deve ser o horizonte da vanguarda do setor, a que mais precisa ser estratégica a fim de que, nos embates do processo e dinâmica social, a imagem-objetivo colocada ganhe corpo e espaço.
A viabilidade técnica e a econômico-financeira que tradicionalmente constituem condicionantes da definição política, parecem não se caracterizarem como determinantes principais para sua não viabilização.
Falta à "Reforma Sanitária" a sustentação social que lhe dê força política, a qual só será conseguida a partir do momento que assumir um caráter operário e popular, ou seja, através do enfrentamento dos interesses capitalistas do setor, o que torna imprescindível sua articulação estreita com as lutas mais gerais dos setores oprimidos de nossa Sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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* Artigo modificado a partir do trabalho de conclusão da disciplina Introdução ao Planejamento em Geral e Metodologia do Planejamento em Saúde ENSP. 1º. semestre de 1987.
() Participaram da elaboração final