TEMA
Direito à saúde na Constituição: um primeiro balanço
Nilson do Rosário Costa
Departamento de Ciências Sociais da ENSP/FIOCRUZ
Que avanços no direito à saúde podem ser localizados na Constituição brasleira recem-promulgada? (1) E quais foram as demandas dos movimentos populares e profissionais de saúde que pesaram na definição desses direitos? Um primeiro aspecto a ser identificado diz respeito a significativa ampliação da noção de saúde contemplada na atual Carta. Ao contrário dos documentos anteriores que reduziam o conceito e, portanto, a extensão do direito à saúde, à simples e restrita assistência médica, encontramos agora uma conceituação ampla e generosa: a saúde "é assegurada mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e outros agravos". Ademais, aparece incluída na própria definição o direito "ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação" (Art. 196).
Aqui tenta-se superar a resistente tradição que registrou nas velhas Constituições brasileiras níveis diferenciados de cidadania no que diz respeito ao direito à saúde.
Freqüentemente colocava-se, de um lado, as populações "carentes" (desempregados, subempregados, miseráveis e deserdados) "para estes definia-se uma política filantrópica ou de saúde pública confusa e oblíqua. De outro, os trabalhadores do mercado formal, para os quais se buscavam políticas de atenção à saúde a nível do complexo previdenciário. Isto é, através da rede de serviços médicos próprios ou da compra de serviços médicos, via os convênios à medicina privada em suas diferentes modalidades. É necessário registrar que essa ampliação conceitual lança as bases para consideráveis avanços na realização da cidadania entre nós. Talvez tenhamos agora um lastro intelectual e moral capaz de situar o direito à saúde como revelador do valor que a sociedade é capaz de dar a seus filhos, principalmente quando criança pobre, morador da periferia ou trabalhador não-especializado.
Sabemos já que foram a reflexão e o bom senso da sociedade organizada que sinalizaram o direito à saúde nesses termos abrangentes e provocativos. A luta dos movimentos sociais pela afirmação da vida tem considerado que o pleno direito à saúde implica trabalho em condições dignas, com amplo conhecimento e controle pelos trabalhadores do processo e do ambiente de produção; moradia higiênica e digna; educação e informação plenas; qualidade adequada do ambiente; transporte acessível e seguro; descanso, lazer e segurança; participação da população na organização, gestão e controle dos serviços públicos, etc.
A intervenção da vontade popular indicou também uma nova compreensão da própria assistência à saúde. Defendeu-se a descentralização da gestão dos serviços; a integralização das ações, com a superação da dicotomia preventivo/curativo; a unidade da coordenação das políticas setoriais; a regionalização e hierarquização das unidades prestadoras de serviços; a participação popular, por meio de suas entidades representativas, na formulação da política e no planejamento, gestão, execução e avaliação das ações de saúde; o respeito à dignidade dos usuários pelos prestadores dos serviços, como dever inerente à função pública, etc. A Constituição registra efetivamente a força desse movimento de idéias através da incorporação da proposta, inédita à tradição brasileira, do Sistema Único de Saúde. Está lá no Art. 198: "As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - "participação da comunidade".
É colocada assim a possibilidade de construção de um sistema público e igualitário de atendimento à saúde. No entanto, algumas interrogações permanecem: quem pagará a conta desse sistema único, universal e irrestrito? O parágrafo único do Art. 198 diz que ele "será financiado com recursos do orçamento de seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes". O problema do financiamento é reportado também ao Art. 195 que diversifica a tributação das empresas para a Previdência Social até então feita exclusivamente sobre a folha de salários. A partir do novo texto, a tributação incidirá sobre o faturamento e o lucro das empresas. Acredita-se que com isso será diminuída a vulnerabilidade da receita providenciária aos ciclos econômicos recessivos que condicionam o número de trabalhadores empregados. Ademais, a inclusão da contribuição sobre o faturamento e lucro atenuará o tratamento desigual que sofrem as pequenas e médias empresas. Por serem usualmente intensivas em trabalho, elas contribuíam proporcionalmente muito mais do que os grandes grupos empresariais (intensivos em capital e com alto lucro e rentabilidade).
Um ponto a ser destacado é que, de imediato, o Finsocial (2) passa também a fazer parte do orçamento da Previdência Social.
Ainda assim, caberá tanto à legislação ordinária como à disputa no interior da orçamentação integrada, proposta no parágrafo 2, do Art. 195, definir o quanto a saúde, previdência ou assistência social terão de recursos para aplicar em seus programas. A temática do financiamento, no entanto, não se esgota aqui. A participação da função saúde no âmbito do Ministério da Previdência e Assistência Social tem efetivamente evoluído nos últimos três anos: de 25,37% em 1986, passou-se para 37,52% em 1987 e manteve a posição de 37,33% no presente ano (FELIPE, 1988).
No que diz respeito ao Ministério da Saúde, historicamente sua participação tem sido pífia, tomando em consideração o orçamento da União, conforme a tabela I. Esses dados indicam a falta de consistência e de seriedade com que são levados os programas sob sua coordenação. Agregando-se a participação relativa da assistência médica no âmbito da previdência social ao ralo orçamento do Ministério da Saúde e de outras fontes federais, é possível visualizar, de modo abrangente, o quanto é inexpressivo o gasto per capita em saúde entre nós quando comparado a outros países.
O gasto per capita em saúde no Brasil (US$ 37) em 1986, aparece abaixo de países como Colômbia (US$ 46,42) e Jamaica (US$ 41,62) (MAGALHÃES, 1988) e assustadoramente menor do que países como Canadá (US$ 1282), Alemanha (US$ 983), Japão (US$ 783), Suécia (US$ 678), Espanha (US$ 456) e Portugal (US$ 297) (dados de 1985) (DATAWATCH, 1987).
Permanece, portanto, a interrogação de como ampliar, quantitativa e qualitativamente, o direito à saúde com uma base financeira tão mesquinha e uma conjuntura econômica tão adversa ao gasto social? Sobretudo tendo ainda que superar tanto a ineficiência e o clientelismo dos serviços públicos de saúde, como a falta de ética dos interesses privados predominantes no setor.
Em relação ao primeiro problema, talvez não fosse tarefa da Constituinte apontar soluções: creio que este é um dos itens da urgentíssima revolução moral e cultural que solicita o país para que possa resgatar a própria dignidade. No que diz respeito ao capital privado, o Art. 199 indica que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada. É agregada uma afirmação nebulosa através do parágrafo 1º do mesmo Art.: "As instituições privadas poderão participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde, seguindo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos" (grifo nosso). Sabemos que sob o manto de "entidades sem fins lucrativos" estão muitas instituições cuja única finalidade é o lucro. É necessário que a legislação ordinária classifique melhor a natureza desses convênios preferenciais.
Ainda assim, uma das facetas mais nocivas da prática do capital privado no setor saúde sofreu um duro revés: o comércio de sangue. No Art. 199, parágrafo 4º está expresso "(...) a coleta, processamento, transfusão de sangue e seus derivados" estão vedados "a todo tipo de comercialização". Esta decisão é resultado direto da indignada mobilização da sociedade civil diante das conseqüências homicidas deste comércio sobre a população que depende de hemoderivados para a sobrevivência. Por exemplo, mais de 90% dos hemofílicos no Estado do Rio de Janeiro foram contaminados com o vírus da AIDS através de transfusão, o que prova a má qualidade e a inaceitável falta de controle sobre o produto no país.
Outra dimensão relevante na Constituição é a competência do Sistema Único de Saúde de "participar na formulação da política e da execução das ações de saneamento básico" (Art. 200). Esta indicação é importante pela atual indefinição da política de saneamento. Além do que, é necessário avaliar as políticas públicas recentes para o setor, como o Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), que operou na década de 70 e início de 80. Além da histórica escassez de recursos, o perfil de investimento e os critérios de acessibilidade explicam a desigual e extensiva carência de saneamento básico entre nós. Os dados de 1984 para o Nordeste revelam que 60% da população não contam com serviços públicos de água. No que diz respeito a esgoto, essa urgência de serviços chega dramaticamente a quase 95%. No Norte, a ausência de cobertura de serviços públicos de esgoto atinge a quase 100% da população. Esta situação contrasta razoavelmente com os dados do Sudeste que apresenta 74% da população abastecida e 46% atendida por serviços de esgoto (COSTA, 1988).
Em relação a acessibilidade, que foi condicionada pelo PLANASA à capacidade de pagamento do usuário, observa-se que, em todas as cidades do país, o consumo de água pública está concentrado na população de maior renda. Na cidade de São Paulo, por exemplo, 58,7% dos que têm acesso à água ganham cinco ou mais salários mínimos, enquanto apenas 2,2% dos que ganham l salário mínimo usufruem desse direito (IBGE, 1988). Uma formulação de política intersetorial nesta área poderá, sem dúvida, introduzir preocupações de equanimidade, universalidade e justiça social na aplicação dos recursos e no acesso aos serviços.
As relações entre saúde, ambiente e trabalho é um dos temas timidamente contemplados na atual Constituição: ao Sistema Único compete "colaborar na proteção do meio ambiente (sic), nele compreendido o do trabalho" (Art. 200, inciso IV). Torna-se, assim, difusa a possibilidade da política sanitária assumir a execução de ações de saúde do trabalhador e da proteção ambiental. Teríamos também, no caso, um espaço mais de intervenção integrada, capaz de superar a inoperância e fragmentação do setor público.
Dois últimos comentários: no âmbito da previdência cabe o registro da grande conquista que é a preservação do valor das aposentadorias em relação aos salários (Art. 201), que remete para a lei ordinária as condições de "reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real" (parágrafo 2º).
No front de assistência social, uma decisão notável: o Art. 200, alínea V, estabelece "a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família conforme dispuser a lei".
Cabe sublinhar que esses benefícios de política social terão como fonte de financiamento, ainda que não exclusivamente, os recursos da previdência social. São aumentos efetivos de gasto social que concorrem com a função saúde. Diante das eventuais dificuldades financeiras para a sustentação desses avanços nas três áreas referidas, corre-se sério risco de tais decisões ficarem na mera formalidade da lei não pegar, como se diz na linguagem do dia-a-dia. Porém, aqui estamos diante de decisões com repercussões decisivas no cotidiano de milhares de cidadãos. Retroceder seria fechar completamente as portas para uma nova definição de País e de cidadania.
Na área de saúde esta constatação é óbvia. Enquanto os trabalhos da Constituinte apontavam estes caminhos, algumas decisões foram implementadas. Surgiu, em fins de 1987, a proposta do SUDS - Sistemas Únicos Descentralizados de Saúde, que transferiu para estados e municípios a gestão e adminstração da assistência à saúde da Previdência Social. Esta decisão implicou o repasse financeiro dos recursos humanos e da capacidade instalada da máquina do INAMPS para a administração dos estados brasileiros. Quais as melhorias que essa brusca mudança - agora avalizada pela Constituição - pode concretamente trazer para a população? Até o momento não sabemos. No entanto, temos um inquietante exemplo de decisão em política pública que expõe estados e municípios à necessidade de visualizar respostas concretas e propor soluções. À imaginação política das camadas populares cabe a responsabilidade de criar instrumentos que possam medir os efeitos dessa descentralização e da criação de instâncias locais de decisão sobre o gasto público e a qualidade dos serviços prestados à população. Por enquanto, as informações que chegam dos estados - salvo raras exceções - revelam que o setor saúde encontra-se verdadeiramente paralisado. Os problemas de incompetência administrativa, clientelismo e as resistências imediatas e corporativas são de tal ordem que colocam desde já sob risco os ideais reformadores alimentados pela Constituição que acaba de nascer. Estamos, assim, diante de um verdadeiro teste para as intenções de criar um novo sentido para os serviços públicos e levar adiante o projeto de descentralização de poder. Creio que este é um ponto relevante que devemos discutir em outro momento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. COSTA, Nilson do R. e FIZSON, J. T. "Reforma Sanitária e Saneamento" in Boletim ABRASCO (29) - jun/jul 88, p. 3.
2. DATAWATCH, Fall, 1987, p. 107.
3. FELIPE, J. Saraiva. Alguns Aspectos sobre a Gestão do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) in Seminário Internacional sobre Financiamento do SUDS, São Paulo, 8-11/08/88.
4. IBGE. Indicadores Sociais, 1988.
5. VIANNA, Solon M. O Papel do Orçamento Fiscal no Financiamento do Sistema único de Saúde in Seminário Internacional sobre o Financiamento do SUDS, São Paulo, 8-11/08/88/
(1) Em 05 de outubro de 1988.
(2) Fundo de financiamento a programas sociais, criado em 1982, que incide sobre o faturamento das empresas.