TEMA

 

Saber e a cidadania das classes populares: uma agenda para investigação*

 

 

Nilson do Rosário Costa

Professor do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ

 

 

Uma questão importante para que o tema organização social do saber possa ser pensado, em termos concretos, diz respeito à ampla literatura brasileira das décadas de 70 e 80 que trata da relação classes populares/saber. Acredito que essa literatura necessita hoje de uma extensa avaliação que indique em que ponto ela teria avançado na compreensão desta complexa articulação.

De qualquer modo, cabe chamar atenção para alguns traços regressivos dessa produção que, a meu critério, permanecem bastante vivos no pensamento médio sobre o tema do saber popular.

A primeira característica está vinculada a certa concepção rígida, dual e a histórica a respeito do campo da cultura. Esse traço regressivo costuma apoiar-se no pressuposto de que exista um campo do saber popular puro, autêntico; não profanado pelas impurezas dos códigos, regras e elementos do saber letrado, culto, "burguês". Chega-se em alguns momentos perguntar, por exemplo, "se a própria linguagem escrita não seria uma artimanha dos dominadores para manter sua dominação". O campo de cultura popular seria a expressão do "primitivo", mágico e intuitivo. Apresentaria expressões absolutamente diferenciadas do saber considerado racional, institucional e verticalizado das elites/classes dominantes/burguesia. As representações, práticas e modos da vida cotidiana popular tornaram-se então objeto de estudo de perfil etnográfico que procuraram ressaltar o que de singular apresenta, os seus hábitos e estilo de vida.

Esse interesse teve, sem dúvida, a importância de resgatar, do preconceito e da desqualificação, certas práticas populares que, na história do país, foram sempre lidas e reprimidas a partir de um olhar etnocêntrico e estreito.

Ainda assim, a excessiva fixação etnológica desse interesse fez com que, muitas vezes, o "popular" no Brasil fosse categorizado com o mesmo distanciamento que um antropólogo inglês apresenta quando diante de uma tribo no interior da África ou na Polinésia. O popular tornou-se sinônimo de generosidade, singularidade, inocência e criatividade. O que há de verdadeiro nesse julgamento? A respeito de qual sociedade fala essa literatura? Não representaria ela uma simples expressão ideológica do círculo cultural que a elabora?

Ficam freqüentemente sem resposta nessa literatura os efeitos que o rápido e brutal processo de modernização do país teria sobre a identidade cultural da população. A reorganização do espaço urbano, a violência cotidiana, a de estruturação da família, o desemprego estrutural, à imposição de padrões culturais através do consumo passivo do lazer etc., são referências ausentes nos estudos.

Parece hoje não haver dúvidas sobre a necessidade de colocá-las na agenda da investigação. Para que se possa compreender, com maior sensibilidade, as suas seqüelas sobre os modos e expressões culturais cotidianas das camadas populares.

Um segundo aspecto a ser ressaltado, diz respeito ao caráter antiinstitucional desse movimento de idéias. A aceitação da tese de que tudo que não expresse as praticas e percepções populares é impuro e falso, teve um resultado concreto: um escasso esforço em pensar os espaços institucionais onde se realiza a reprodução. Como conseqüência, a literatura sobre o tema do saber tomaria, implicitamente, todo o conjunto de instituições como aparelhos de Estado com funções de reproduzir as relações dominantes pela ideologia. As instituições operariam, assim, como um todo monolítico, coerente e impermeável ao conflito e à contradição.

Para esse círculo intelectual, as relações no campo institucional não estariam mediadas pelas lutas sociais. O espaço onde direitos e conquistas sociais são realizados apareceu obscurecido pela ênfase na afirmação simbólica da diferença cultural. A intervenção coletiva dos de baixo na afirmação dos direitos não estaria compreendida nas referências culturais cotidianas das camadas populares. No máximo, aceitou-se apenas considerar as reivindicações tópicas e corporativas por uma ou outra melhoria em termos de política urbana ou agrária.

Desse modo, a hipótese de um projeto contra-hegemônico que incorporasse uma luta cultural no interior do próprio campo institucional, jamais foi pensado seriamente. As instituições seria o terreno "deles". Para "nós" (o povo, simples e bom) a autenticidade e a pureza da independência e da autonomia.

Essa leitura da realidade faria com que, nas situações em que os grupos populares necessitaram de respostas concretas, a solução apresentada foi buscar caminhos "alternativos" e a construção de "micropolítica social". Os casos mais típicos foram o desenvolvimento da prática de educação popular e dos projetos de medicina popular, freqüentemente assistemáticos e de baixa resolutividade sobre os problemas da alfabetização ou da saúde.

Cabe aqui novamente sublinhar que essas iniciativas tiveram, em certo nível, o mérito de trazer elementos de prática pedagógica ou de concepções sobre saúde e doença que colocaram duras críticas aos modelos dominantes. No entanto, serviram também para consolidar, agora sob o verniz do discurso erudito, certos traços culturais do senso comum para o qual o mundo da política e, portanto, dos enfrentamentos no plano institucional, é restrito aos "poderosos" e, paradoxalmente, dos "corruptos e desonestos". Com isso deixou-se de lado a compreensão de que todo o conjunto de aparatos administrativos e provedores de serviços sociais (escolas, postos de saúde e hospitais, companhias de água e esgoto, etc.) têm suas relações para as camadas populares definidas a partir das posições de força que ps grupos e categorias sociais ocupam das lutas político-institucionais.

Poderemos entender, aqui, como luta política, não só o espaço de conflito por interesses imediatos. A instância da política compreenderia também o campo da afirmação intelectual e moral das camadas populares a partir da tomada de consciência de que faz parte de uma determinada força hegemônica. Este movimento implica a superação das concepções simplistas e parciais e "a possessão real e completa de uma concepção do mundo coerente e unitária", como afirma Gramsci (1978:21). Exige, igualmente, certo esforço de apropriação "técnica" de certos aspectos da dinâmica institucional que afetam diretamente a qualidade de vida. Em relação a educação essa afirmação ético-política compreende submeter a uma nova lógica e reprodução do saber e as práticas pedagógicas dominantes. Estas operam no âmbito escola não só inculcando ideologias, mas produzindo uma brutal exclusão das camadas populares. Que são as vítimas silenciosas e indefesas do fracasso e evasão escolar? Na feroz progressão dos dados, constrói-se os mecanismos formais da reprodução da desigualdade e da cidadania restrita. Será que estas questões não merecem ser incluídas no campo de preocupação a respeito do saber e as classes populares? Que respostas e encaminhamentos temos para superar tal situação e muitas outras nos diferentes níveis da vida social? Qual a mediação possível da ação coletiva para transformar esse tema uma "questão cultural" seriíssima para a cidadania e a nacionalidade? São os temas para nossa agenda de investigação e prática caso queiramos novamente ter a condição de senhores de nossa própria sorte.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

GRAMSCI, Antônio. Comcepção Dialética da História, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasleira, 1978.

 

 

* Trabalho apresentado ao Semináro Organização Social do Saber, UERJ, Rio de Janeiro, 1988

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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