DEBATE

 

Avaliação do uso dos medicamentos como estratégia para a reorientação da política de insumos em saúde*

 

 

Suely Rozenfeld

Pesquisadora visitante do Núcleo de Estudos de Medicamentos do Departamento de Administracão e Planejamento de Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ — Programa CNPq/FIOCRUZ

 

 

INTRODUÇÃO

As últimas décadas do Século XX vão se caracterizando pela ocorrência de crises. Crise econômica e crise de valores. Crise do conhecimento e das teorias, crise dos modelos para solucionar crises.

Os setores sociais, entre eles a saúde, não fogem a esta tendência geral. Questiona-se muito a eficácia do Welfare State (1, 2) e buscam-se saídas a partir da reflexão e da proposição de novos modelos assistenciais (3, 4).

Neste contexto, emerge o processo de Reforma Sanitária Nacional, exigindo a formulação de um pensamento criativo que nos ajude a superar os impasses nos quais estamos mergulhados. E, nele, destaca-se como critica a área de insumos para a saúde, cujas diretrizes devem ser objeto de reorientação global.

Para nós, essa reorientação deve ter como ponto de partida a adoção da idéia de que é urgente e inadiável a construção de uma nova cultura dos medicamentos, centrada no estudo sistemático dos impactos biológicos e sociais dos tratamentos médicos e na divulgação ampliados resultados desses estudos.

O objetivo desta nova cultura deve ser a transformação do medicamento de mercadoria em instrumento para preservação e restauração da saúde.

Esse objetivo deve ser atingido através do estímulo ao planejamento, realização e difusão de estudos científicos e úteis sobre os benefícios, os riscos e a acessibilidade às diversas intervenções terapêuticas. A informação que alimentará estes estudos deverá vir da observação metódica da prática cotidiana dos médicos, com vistas à avaliação crítica do instrumental terapêutico disponível.

Neste texto é apresentado, inicialmente, o pano de fundo no qual se inscreve a reflexão sobre esta nova cultura, que nada mais é do que a compreensão do medicamento como elemento constitutivo e participante da dinâmica social. A partir daí são expostos alguns conceitos empregados na Avaliação dos resultados das ações médicas. Para finalizar, apresentam-se, de maneira bastante resumida, algumas alternativas metodológicas no campo da Avaliação do Uso dos Fármacos e sua relevância para a formulação e implantação de novas práticas terapêuticas.

 

ENFOQUE GERAL

A produção não se limita a fornecer um objeto material para a necessidade, fornece ainda uma necessidade a um objeto material. (Marx)

O medicamento como um bem historicamente construído

Os animais e os vegetais têm sua história ligada à necessidade de se adaptar aos elementos da natureza, o que fazem de maneira inconsciente, através das múltiplas transformações que vão se dando ao longo do tempo. Já a história do homem é a história da luta para dominar a natureza e fazê-la operar a seu favor. Essa luta se dá através do trabalho humano e se expressa na construção da cultura, que se ergue entre ele e a natureza. Analisando os fatos históricos, observa-se que a construção da cultura é determinada pelas distintas formas de organização econômica e social e pelos meios científicos e técnicos gerados, os quais, como conseqüência, vão variar histórica e geograficamente.

A história dos meios que o Homem vem usando para mitigar a dor e o sofrimento faz parte da cultura. Os povos primitivos utilizavam remédios para tratar os doentes. Milhares de anos antes de Cristo os antigos utilizavam elementos do reino vegetal, animal ou mineral para preparar pílulas, pós, enemas, decocções, supositórios, pomadas e ungüentos. Tratava-se de uma época pré-técnica, no sentido de que os critérios explicativos das relações causais não estavam baseados nos parâmetros fornecidos pela objetividade científica. Coerente com o desenvolvimento material e o amadurecimento das forças produtivas da época, havia três correntes de pensamento: a primeira, empírica, baseava-se na observação dos fenômenos, a segunda, mágica, e a terceira, mista, onde, por exemplo, chamava atenção o aspecto raro de uma planta, e depois criava-se uma explicação para seu uso terapêutico. Há registro do uso de medicamentos para tratar doenças nos papiros egípcios, nos textos védicos da índia antiga, no Velho Testamento. Os chineses, e os índios americanos também deixaram registrados em pinturas e esculturas o testemunho de uma cultura do medicamento pré-científica (5).

No século XIX houve grandes avanços nas ciências químicas e na fisiologia que, no entanto, não foram seguidos de imediato de grandes avanços terapêuticos. Sánente no primeiro terço do Século XX e que surgiram os primeiros barbitúricos, os arsenicais e a insulina. Mas foi apenas após a década de 1930 e nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial que foram maciçamente desenvolvidos os novos fármacos, como as sulfamidas, a fenitoína e parte importante dos antibióticos empregados atualmente (6). Isso ocorreu em função dos grandes processos de acumulação de capital que permitiram o desenvolvimento científico e tecnológico. Se assim não fosse, seria impossível imaginar a construção dos gigantescos tanques de fermentação usados na fabricação de antibióticos, que exigem grande concentração de recursos financeiros e tecnológicos.

O tempo foi passando e com de foram se modificando as técnicas de produção dos meios diagnósticos e terapêuticos, bem como as teorias explicativas para a ação terapêutica, até chegar à atualidade, na qual convivem, de nenhum modo pacificamente, produtos feitos à base de elementos extraídos da natureza, produtos oriundos das várias reações de síntese química ou fermentativa e ainda aqueles que vêm da manipulação genética pela tecnologia do DNA recombinante e o uso terapêutico dos raios laser.

As relações sociais e a saúde

Existe uma grande distância entre a ciência e sua aplicação prática na sociedade, que se traduz no chamado paradoxo das formações capitalistas modernas: nunca o homem teve tantas possibilidades de ter saúde e vida longa como tem nos dias atuais e, simultaneamente, nunca houve tantas doenças e mortes por causas evitáveis. Isto se deve a inúmeros fatores. Entre eles podemos destacar três, sem pretender esgotar os fatores e tampouco sem ordená-los em ordem de precedência: a influência das condições de vida sobre o perfil de saúde, a distribuição de bens e serviços numa dada sociedade e o consumismo.

A simples observação da realidade sanitária mostra que os padrões de doença e de morte dependem apenas parcialmente das descobertas e do emprego de novas tecnologias. Ou, dito de outra forma: nem sempre a elevação do nível de saúde das populações se deve aos avanços técnico-científicos. A assistência médica, em geral, e a quimioterapia, em particular, têm um peso relativo entre as causas dos êxitos alcançados no combate às doenças. Os estudos demográficos de McKeown (7) atestam que o declínio da mortalidade por doenças infecciosas ocorreu antes de 1930, ano da descoberta das sulfonamidas, e marco inaugural da moderna farmacoterapia. Atribui-se o declínio aos novos instrumentos agrícolas que permitiram um aporte maior de alimentos e as medidas de saneamento do meio.

Aqui não vamos nos deter na questão da distribuição dos recursos, cuja iniqüidade é por demais conhecida. Ela fica evidenciada no fato de que temos 40 milhões de brasileiros sem acesso à assistência farmacêutica num País que tem cerca de 800 indústrias fabricantes de medicamentos e que é o oitavo em vendas na escala mundial.

O terceiro fator que faz com que as invenções e o desenvolvimento tecnológico não tenham concorrido para transformações radicais na qualidade da vida humana é o consumismo, cujos efeitos negativos têm repercussões, inclusive, a nível do comportamento social. A produção em larga escala de alimentos e bebidas; o uso crescente de sofisticadas técnicas diagnósticas e terapêuticas; a difusão dos transplantes, dos fármacos modernos e das cirurgias mais ousadas não conseguiram compensar os efeitos negativos do uso abundante e destituído de critérios dos derivados químicos em alimentos, bebidas, inseticidas, pesticidas e outros produtos da vida cotidiana.

As reações ao consumo indiscriminado e compulsivo de produtos industrializados — incluindo aí o consumo de serviços médicos e de tecnologia — bem como a aversão à intensa "quimização" da vida moderna, geraram movimentos de volta à natureza numa quantidade enorme de países.

A compulsão pelo consumo crescente afeta não só os usuários do sistema de saúde como também os profissionais. Ela corresponde ao mito de que, em matéria de recursos médico-terapéuticos, quanto mais, melhor, embora não tenha sido comprovada até hoje a existência de correlação direta entre quantidade de serviços oferecidos e nível de saúde. Indivíduos e grupos que formularam as políticas sanitárias de inúmeros países acreditavam, e acreditam, que seria possível chegar a um nível ótimo de oferta de serviços, através da racionalização do modo de operar dos sistemas de saúde e da expansão de cobertura de ações médico-terapéuticas em quantidades tais que suprissem as necessidades.

No entanto, a realidade mostou que quanto mais se oferecia, mais se consumia. Isso ocorreu, por exemplo, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Bedinguer, no seu livro "A Reforma Sanitária na Itália e no Brasil" , reitera esta idéia afirmando que "o primeiro inimigo a ser identificado na lógica da mudança é a ideologia da quantidade" e diz que "não se devem dar respostas aos problemas de saúde, dando mais" (8).

O médico inglês Cochrane (9) foi um pioneiro ao realçar a importância da avaliação da eficácia e eficiência dos procedimentos médicos; ele nos dá um formidável exemplo que ilustra a discussão sobre a adequação quantitativa dos procedimentos frente às necessidades. Trata-se de analise de dois aspectos do mundo da otorrinolaringologia: amigdalectomia e aparelhos para surdez. Ele conclui que ambos são provavelmente tratamentos eficazes em campos limitados: o primeiro é eficaz num pequeno percentual de casos, porém esteve na moda o suficiente para ser usado indiscriminadamente, sem indicação e com elevação inútil dos riscos cirúrgicos. O segundo é provavelmente eficaz para melhorar a qualidade de vida de membros de um grupo populacional específico, mas é trabalhoso, não há recursos humanos treinados, não está na moda e serve para pessoas idosas. O primeiro é aplicado de maneira ineficiente porque é demasiadamente empregado; o segundo é aplicado de maneira ineficiente porque não é suficientemente utilizado.

O consumo de bens e serviços de saúde

Do ponto de vista teórico mais geral, inúmeros autores procuraram compreender a questão do consumo. Marx, Poulantzas e Gramsci formularam as idéias originais, ancorados no materialismo histórico. Do ponto de vista da relação do consumo com a saúde, Parsons na década de 1950 chamava atenção para o caráter social do consumo dos serviços de saúde. Também Boltansky no final da década de 1960 analisava as instituições médicas sob a ótica da divisão da sociedade em classes e defendia a idéia de que as representações simbólicas dos medicamentos eram determinadas pelas condições particulares das distintas classes sociais (1().

Caminhando na história, chegamos à década de 1970 na qual surgem os trabalhos de Foucault, Illich, Dupuy e Karsenty (11, 12, 13). Cada um a sua maneira, todos eles enfocaram a questão das práticas médicas sob o ângulo das instituições, utilizando-se do conceito de medicalização das sociedades avançadas, articulando a medicina, a indústria e os medicamentos. Destacaram a dependência e a passividade a que são levados os indivíduos como decorrência da medicalização. Os dois últimos autores acreditavam que nestas sociedades os medicamentos têm determinadas "funções", tais como racionalização do tempo de consulta, aumento da produtividade, reforço às relações de poder sobre o paciente, auxílio na construção do diagnóstico.

No ano de 1980 Hesio Cordeiro (14) e Geraldo Giovani (15) estudaram a questão do consumo de medicamentos e suas características no Brasil.

Esses autores nos levam a enfocar o problema do consumo de medicamentos tendo como ponto de partida a revolução industrial desenvolvida em meados do século XVIII na Europa, que modificou de maneira espetacular a situação econômica, política e social da humanidade.

Na base desta mudança está a acumulação capitalista, que origina a necessidade objetiva de produzir de modo incessante e crescente. O consumo, por sua vez, mantém uma relação dialética com a produção, na qual ambos aparecem como momentos de um mesmo processo, e onde a produção é o momento de partida. Desta maneira, o consumo de produtos, aí incluídos os meios diagnósticos e terapêuticos, fica subordinado às leis econômicas da produção industrial no sistema capitalista.

A assim chamada "necessidade", entendida pelo senso comum como aquilo que move as alavancas do consumo, deixa de ser uma qualidade de indivíduos isolados, ou um atributo que pode ser conhecido mediante a aplicação de instrumentos "neutros" de medição, (16) e passa a ser um elemento subordinado à produção. Desta forma, da mesma maneira que a produção tende a aumentar progressivamente, o mesmo ocorre com as "necessidades". Na área dos medicamentos, são bastante conhecidos os mecanismos, sobretudo propagandísticos, empregados pela indústria para gerar necessidades.

As repercussões do consumo na saúde

Uma das repercussões do consumo de tecnologia e procedimentos em saúde é a Iatrogenia, que consiste nos múltiplos distúrbios provocados pelas ações médicas, incluindo os decorrentes da prescrição. É importante sublinhar que a latrogenia está associada aos efeitos do uso de tecnologias, quer sejam elas eficazes e usadas de modo eficiente ou não.

O aforismo que diz que "muito é bom, mas o dobro de muito não é necessariamente o dobro de bom" tem sido muito empregado para traduzir o que ocorre com os medicamentos. Isto porque todo medicamento tem um potencial de risco de efeitos iatrogênicos ao lado da sua ação terapêutica. Esse risco é ainda maior para os potentes fármacos modernos.

Denomina-se efeito iatrogênico ou Reação Adversa ao Medicamento qualquer efeito prejudicial ou indesejável que se apresenta após a administração de doses normalmente utilizadas para profilaxia, diagnóstico e tratamento de uma enfermidade.

Os primeiros levantamentos formais da era contemporânea sobre problemas de segurança dos medicamentos datam do fim do século passado, quando se formou uma comissão encarregada de estudar os casos de morte súbita ocorridos com pacientes anestesiados com clorofórmio e outra encarregada de examinar os casos de icterícia após o tratamento de sífilis com arsenicais (17).

No entanto, o episódio que marca verdadeiramente a história dos danos que os medicamentos podem produzir é a tragédia da talidomida no início da década de 1960. Foi tremendo o impacto provocado pelo nascimento de mais de 4 mil crianças com defeitos esqueléticos graves nos membros, 10% das quais vieram a falecer. Este episódio modificou a legislação sanitária de inúmeros países europeus e produziu forte impacto na opinião pública mundial e entre os profissionais de saúde.

Mas o impacto deste fato não foi suficiente para modificar radicalmente os padrões de prescrição e as normas de registro de medicamentos, e por isso as reações adversas continuaram ocorrendo.

Entre outras razões pela dificuldade de estabelecer nexos causais entre a administração do fármaco e o efeito não desejado e também pela freqüência relativamente baixa. Embora admita-se que a incidência dos danos é muito variável de país para país, estima-se que 3 a 6% das internações ocorrem por reações adversas e que entre 10 a 20% dos pacientes hospitalizados sofrem algum tipo de reação medicamentosa durante a internação. Em relação à assistência ambulatorial, calcula-se que 2,5% das consultas médicas são causadas por reações adversas e que 40% dos indivíduos que tomam medicamentos apresentam uma reação indesejável .

Os efeitos iatrogênicos dos fármacos vão de simples náuseas ou tonturas até a morte, como no caso de anemias aplásticas ocasionados pelos antiinflamatórios não-esteróides. Embora as reações fatais não sejam as mais freqüentes, podem adquirir dimensões significativas num país como o nosso com grande contingente populacional e altos índices de automedicacão. Se considerarmos que em cada 100 mil pacientes tratados com produtos antiinflamatórios contendo fenilbutazona ou oxi-fenilbutazona um deles resulta num quadro de anemia aplástica, num País como o Brasil, onde pode-se chegar à casa de dezena de milhão de tratamentos por ano, o número de casos será bem maior (18).

 

O CICLO DE VIDA DO MEDICAMENTO

O que distingue os homens dos animais é o desejo de tomar remédios. (Osler)

Cada tecnologia tem o seu ciclo de vida, isto é, nasce, cresce, vive e morre.

No caso dos medicamentos o ciclo de vida se caracteriza por três momentos distintos: a gestação, o nascimento e a vida útil. A gestação é o período que se inicia com a concepção de uma nova entidade terapêutica no interior dos laboratórios e centros de pesquisa e termina com o nascimento de um novo produto, no momento em que os fabricantes apresentam ao órgão de vigilância sanitária (no Brasil denominado DIMED) a documentação referente aos estudos deste novo produto e recebem autorização para comercializá-lo. A vida útil do medicamento corresponde ao período durante o qual ele é comercializado.

Os estudos apresentados à DIMED devem garantir que o produto tem condições de segurança e eficácia aceitáveis e devem cobrir as etapas previstas em lei, a saber ensaios em animais e ensaios clínicos em sadios e posteriormente em grupos de doentes.

Os estudos clínicos devem se basear em ensaios controlados e duplo cego, como descrito em grande profundidade por Pocock (19). Devem ser controlados no sentido de submeter o novo produto a comparação com outros produtos já conhecidos ou então com placebo, para que se possa provar que ele é mais eficaz do que o produto já empregado ou, no caso de placebo, para provar que ele é melhor do que se não houvesse havido qualquer intervenção, isto é, se estivéssemos diante da possibilidade de cura espontânea.

Os ensaios clínicos além de controlados devem ser duplo cego, no sentido de que nem o médico, nem o paciente devem saber o que está sendo administrado, se a substância ativa, se o placebo. Esta medida visa assegurar que nem o comportamento do médico, nem o do paciente interferirão nos resultados. Devem-se ademais evitar os erros casuais e os erros sistemáticos.

Na realidade as coisas não se passam desta maneira, pois, em geral, num País como o nosso, a documentação apresentada ao órgão de vigilância sanitária, no caso a DIMED, é mais do que insuficiente e de forma alguma corresponde aos requisitos apresentados.

Por seu turno, a DIMED, em função do descaso histórico a que esteve submetido todo o sistema de vigilância sanitária pelos sucessivos governos e em função das tremendas pressões que a indústria exerce, não tem cumprido seu papel. Ao invés de filtro capaz de evitar que a fome de lucros dos fabricantes imponha um padrão de consumo que não guarda correspondência com o perfil epidemiológico, a DIMED tem sido, ao longo de sua trajetória, quase sempre um cartório que coloca carimbos e assinaturas em documentos.

O resultado dessa ação ineficaz vai aparecer na terceira fase do ciclo de vida do medicamento que é a comercialização.

O estudo de Baldy (20) sobre antibióticos realizado na Universidade de Londrina mostra que, no Brasil, a proporção de produtos que contêm associações em doses fixas, sabidamente pior do que os produtos que contêm apenas uma única substância ativa, é quase cinco vezes maior que nos Estados Unidos. Além disso, o número de substâncias ativas existentes na classe de antibióticos no Brasil é de 91, enquanto nos Estados Unidos é de apenas 65, e a OMS indica apenas 25 como essenciais. Este dado ilude quem pensa que, por ter maior número de substâncias, estamos pesquisando e descobrindo mais que os Estados Unidos. A realidade é bem diferente, pois estes números revelam nada mais do que a abundância de produtos conhecidos internacionalmente como "eu também", ou seja, produtos que não passam de cópias de outros já existentes e que, mediante pequenas modificações cosméticas na fórmula, são anunciados com grande estardalhaço como novidades terapêuticas.

Se as empresas fabricantes realizassem sempre as investigações previstas na lei, e se a DIMED funcionasse satisfatoriamente, ainda assim as pesquisas efetuadas antes do registro não supririam de nenhuma maneira a necessidade de informações sobre segurança e eficácia no uso dos fármacos. Isso porque os ensaios realizados nesta fase, por melhores ou piores que sejam, são feitos em condições especialmente criadas para tal fim, ao contrário do que ocorre quando o medicamento, como se costuma dizer, "cai na vida".

Na fase anterior à comercialização, as pesquisas são efetuadas com pequenos grupos de pacientes, nos quais são excluídos os pacientes de risco, o controle médico costuma ser rigoroso, o uso se dá em curtos períodos de tempo. Já após a comercialização o medicamento é usado por milhões de indivíduos, onde nem sempre são excluídos os portadores de determinadas condições de risco, e nem sempre o acompanhamento médico é rigoroso.

É preciso agregar ainda um último fator não menos relevante para justificar a necessidade de estudos pós-comercialização. Ocorre, que a quase totalidade dos ensaios prévios à comercialização é realizada pelos fabricantes nos países-sede das grandes empresas multinacionais. Ou seja, além do viés econômico que possuem, descrevem os efeitos dos fármacos em populações com características nutricionais, geográficas e genéticas muito distintas das nossas.

Daí surge a necessidade de avaliar o que acontece durante o período de comercialização.

 

A AVALIAÇÃO COMO PRÁTICA EM SAÚDE COLETIVA

No caso da maioria das técnicas sanitárias a conexão entre intervenção e efeito é hipotética. (Peritos da OMS)

Conceitos e definições

Muitos autores têm tratado da questão da Avaliação em Saúde. Cochrane, Donabedian, Holland, Banta, Vuori, Drumond são alguns dos expoentes internacionais (21).

Vamos dizer algumas palavras sobre este tema tão amplo e de grande complexidade conceitual.

Nas sociedades modernas e democráticas vem sendo cada vez mais valorizada a importância da opinião das pessoas. Este é um dado muito positivo quando se trata de emitir juízo de valor, posicionamento político ou crenças. Porém, quando se trata de temas médicos, emitir opiniões não é suficiente. É preciso apresentar provas sobre as quais se baseiam as opiniões.

Numa conceituação bem abrangente Avaliação em Saúde é considerada como a determinação formal da efetividade, da eficiência e da aceitabilidade de uma intervenção planejada para atingir objetivos específicos, sendo que efetividade é a medida do resultado técnico em termos médicos, psicológicos ou sociais. Eficiência é um conceito econômico que diz respeito aos custos da intervenção relativos a efetividade e aceitabilidade é a qualidade da intervenção de ser social e profissionalmente satisfatória.

Delimitando um pouco o campo de abrangência da definição de avaliação, denominamos "Avaliação de Tecnologia" o estudo sistemático dos efeitos que podem ocorrer na sociedade quando uma tecnologia é introduzida, expandida ou modificada, com ênfase especial nos impactos inesperados, indiretos ou tardios.

Entre as tecnologias utilizadas em saúde estão os medicamentos, os dispositivos médicos, os procedimentos clínicos e cirúrgicos e os sistemas organizacionais. Neste último avaliam-se os resultados dos programas assistenciais, em particular a questão dos custos.

O campo mais tradicional da Avaliação é justamente o que se aplica sobre os medicamentos, cujo marco de criação é o célebre estudo de Daniels e Hills, realizado em 1952 sobre o valor da estreptomicina para o tratamento da tuberculose pulmonar.

A avaliação em Saúde pode ser empregada tanto para medir atividades de um processo como para medir resultados ou efeitos.

A Avaliação pode ser vista sob dois prismas distintos. No primeiro temos o nível operacional onde ela é usada para auxiliar os responsáveis por tomada de decisões, isto é, as autoridades sanitárias. O exemplo de aplicação neste nível é a própria vigilância sanitária. Num segundo nível, chamado estratégico, a Avaliação visa produzir impacto sobre determinados grupos através da difusão de informação independente. Os estudos pós-comercialização de medicamentos podem estar incluídos neste nível.

Atualmente é impossível imaginar um efetivo planejamento em atenção à saúde sem o conhecimento das conseqüências médicas e sociais das tecnologias utilizadas. Entre os usos dos estudos de Avaliação de Tecnologia estão os seguintes: alocação mais eficiente de recursos, alteração da política de adoção de inovações, abandono mais rápido do uso de tecnologias ineficazes, resolução de controvérsias sobre tratamentos alternativos e, como resultado final, benefícios maiores para os pacientes.

Farmacovigilância e Estudo de Utilização de medicamentos

Por que a avaliação de medicamentos está se colocando hoje como perspectiva?

Eu diria que há algumas razões para isto. A primeira delas é o aumento do nível de consciência acerca do baixo valor terapêutico de um grande número de produtos abundantemente consumidos e do uso inadequado de um grande número de drogas.

Quais os fatores que geram estas inadequações?

Alguns deles já foram explorados nas páginas anteriores: a criação artificial de necessidades pelos fabricantes; a ineficácia dos órfãos governamentais de registro e fiscalização; a limitada utilidade dos ensaios clínicos prévios à comercialização, que ajudam pouco na prospecção do que ocorre quando o produto é consumido em larga escala.

Gostaria de agregar um outro grupo de fatores que vão influenciar negativamente a qualidade da assistência farmacêutica, situado na esfera da prescrição. Estou me referindo à enorme influência da indústria farmacêutica sobre a informação que o médico possui e a precariedade da formação em farmacologia clínica a nível dos cursos de graduação.

Um dos efeitos resultantes da confluência desses fatores consiste no abandono de produtos que não sejam considerados "de ponta" e a obsolescência precoce dos meios terapêuticos.

O resultado da combinação desses elementos é o emprego abundante de um grande número de medicamentos inúteis: os tônicos e vitaminas, os hepatoprotetores, os imunomoduladores, os estimulantes do sistema nervoso central e muitos outros. Há de feto poucos fármacos que modificam a história natural da doença: a insulina no diabetes, a vitamina B 12 para anemia perniciosa, a penicilina para certas infecções. Entre os medicamentos úteis mal-empregados estão os antiarrítmicos para indivíduos assintomáticos que têm alterações eletrocardiográficas e antimicrobianos para diarréias e infecções virais.

Há ainda outros argumentos que explicam por que a Avaliação de Medicamentos está na ordem do dia, e que são de natureza gerencial. A expansão dos programas de seguridade social e a ampliação de cobertura de serviços médico-assistenciais em inúmeros países geraram demandas crescentes e conseqüente aumento dos custos assistenciais. Ademais, as políticas de financiamento dos medicamentos cobrem parcelas cada vez maiores dos gastos com este insumo. Há países europeus (22) nos quais a seguridade social chega a reembolsar 70% dos custos da grande maioria dos produtos farmacêuticos.

Por todas estas razões surgiu há cerca de 25 anos atrás um movimento da OMS no sentido de criar uma inteligência na área de medicamentos que fosse independente dos interesses dos fabricantes. Este movimento foi estimulado por profissionais de vários países europeus que têm cumprido um papel fundamental na difusão dessas idéias em países como o Brasil.

Algumas estratégias importantes foram elaboradas e implementadas, entre as quais a definição dos medicamentos essenciais e a elaboração de guias terapêuticos, como forma de difundir informação cientifica e útil aos médicos (23).

Finalmente, foi definida uma estratégia de investigação que já conta no plano internacional com uma produção científica bastante respeitável, mas que, infelizmente, entre nós, ainda se encontra em fase embrionária. Dois conceitos-chave na implementação desta estratégia têm sido os de Estudos de Utilização de Medicamentos (EUM) e Farmacovigilância (24).

EUM são aqueles voltados para a comercialização, distribuição, prescrição e uso dos medicamentos numa sociedade, com ênfase especial sobre as conseqüências médicas, sociais e econômicas.

Farmacovigilância consiste na identificação e avaliação dos efeitos do uso agudo e crônico dos tratamentos farmacológicos no conjunto da população ou em subgrupos de pacientes expostos a tratamentos específicos.

No primeiro grupo são enfocados a quantidade, a variabilidade e os custos dos tratamentos e, no segundo grupo, os efeitos dos medicamentos no que tange à eficácia e aos riscos. Como os limites entre uns e outros são muito tênues, há uma tendência a considerá-los todos como EUM.

Existem as seguintes modalidades de estudo:

Oferta — utilizam informação de catálogos gerais, como o DEF, e fornecem dados sobre qualidade da oferta e da informação oferecida aos médicos.

Consumo — empregam cifras de vendas ou de aquisição de medicamentos por órgãos governamentais, para analisar tendências de consumo, motivação dos médicos para prescrever, comparação entre regiões e períodos.

Qualidade do consumo — usam amostras dos medicamentos mais vendidos para avaliar a qualidade do consumo e evolução no tempo.

Hábitos de prescrição — empregam amostras de receitas, histórias clínicas, para conhecer a prevalência da prescrição, a relação entre diagnóstico e prescrição.

Estatísticas vitais — dados de morbimortalidade podem ser empregados para identificar reações adversas causadas por medicamentos.

Coorte — identificação de populações de usuários, para comparar patologias sofridas em expostos e não-expostos.

Caso controle — identificação de população de doentes e de controles, para obtenção de informação sobre exposição prévia.

Vigilância pós-comercialização — usada como forma de obrigar as empresas a fornecerem feed-back dos resultados do uso dos medicamentos em larga escala.

Notificação voluntária — talvez um dos métodos mais importantes como sistema de alerta para detectar reações adversas raras porém graves.

Os EUM poderão oferecer informações sobre inúmeros aspectos e atender a vários objetivos, a saber:

— detectar problemas e definir áreas de investigação sobre eficácia e segurança de fármacos

— medir mudanças nos padrões de vendas, prescrição e de utilização ao longo do tempo;

— definir relações causais entre acontecimentos clínicos e uso de fármacos;

— identificar o uso inadequado de fármacos;

— averiguação da influência cultural em situações para as quais há alternativas terapêuticas não-farmacológicas;

— integrar análises de eficácia com os custos dos tratamentos no interior dos distintos programas assistenciais e outros.

Um avanço recente na área de EUM são os ensaios populacionais que são estudos em larga escala, conduzidos era situações que mimetizam o máximo possível a prática rotineira. Esses estudos focalizam mais as populações com as doenças e menos os tratamentos farmacológicos. Assim, o padrão clássico de medição da eficácia se modifica. A resposta ou não-resposta a um determinado fármaco fica agora contextualizada (25).

Esse tipo de estudo faz, na verdade, a ponte entre a experimentação controlada e a prática rotineira. Outra virtude que eles têm é seu caráter interdisciplinar, pois habitam as fronteiras de várias áreas — políticas, planejamento, epidemiologia, farmacologia — e, portanto, a flexibilidade metodológica deve ser a regra.

Para terminar, gostaria de dizer algumas palavras sobre a importância da aplicação destes conhecimentos na atual conjuntura sanitária e política do nosso País.

Quero sublinhar a importância e a oportunidade da criação de uma nova cultura de medicamentos como foi mencionado no início, com base nas idéias apresentadas e o impacto que essa novidade trará ao processo de Reforma Sanitária.

Quando se diz que a RS não deve ser um mero processo de mudanças administrativas, mas que pretende atingir a essência mesma da atenção à saúde, é lícito supor que isso implicará uma reversão das estratégias na área tecnológica, na qual o fomento à pesquisa sobre o "comportamento" dos fármacos em sociedade terá papel de destaque.

Finalmente, ressalto o fato de que nesta perspectiva estaremos transpondo os umbrais da crítica de fundamentação econômica ou de caráter puramente doutrinário e mergulhado no universo da criação positiva de conhecimento novo e socialmente útil.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. NAVARRO, V. The welfare state and its distributive effects: part of the problem or part of the solution. Intern. J. Health Serv., 17 (4), 543-66, 1987.

2. HABERMAS, J. A cultura ocidental e a perda de confiança em si mesma. Presença. Fev. 1987.

3. VILLAÇA, E. O sistema unificado e descentralizado de saúde no atual contexto de Reforma Sanitária. Set. 1987. (mimeo)

4. CAPRA, F. O ponto de mutação. Cultrix. São Paulo. 1982.

5. MS & D. História del Medicamento. Doyma, Madrid. 1984.

6. LAPORTE, JR, Tognoni G. Principios de epidemiologia del medicamento. Salvat. Barcelona. 1983.

7. MCKEOWN, T. El papel de la medicina: sueño, espejismo o nemesis? Siglo Veintiuno. México. 1982.

8. BERLINGUER, G. Reforma Sanitária: Brasil e Itália. CE-BES/HUCITEC. São Paulo. 1988.

9. COCHRANE, AL. Eficácia e eficiência. Salvat. Barcelona. 1985.

10. Para uma síntese do pensamento dos autores citados ver Cordeiro HA. A industria da saúde no Brasil. Graal. Rio de Janeiro. 1980.

11. FOUCAULT, M. Conferencias pronunciadas no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1975 (mimeo).

12. ILLICH, I. A expropriação da saúde. Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1275.

13. DUPUY, JP, Karsenty S. A invasão farmacêutica. Graal. Rio de Janeiro. 1980.

14. Ver ref. 10.

15. GIOVANI, G. A questão dos remédios. Produção e Consumo. Polis. São Paulo. 1980,

16. Se o consumo de medicamentos fosse orientado exclusivamente por necessidades técnicas, não teríamos como explicar os distintos perfis de consumo entre países com características econômicas e sociais semelhantes.

17. Vide ref. 6.

18. LAPORTE, JR et cols. La notificación voluntaria de reacciones adversas a medicamentos. Med. Clin. (Barcelona), 79 (6), 287-91, 1982.

19. POCOCK, SJ Clinical trials - a practical approach. Wiley & sons. Chichester. 1983.

20. BALDY, JLS et cols. Estudo crítico sobre os antimicrobianos comercializados no Brasil. Rev. Ass. Med. Bras., 30 (11-12), 253-60, 1984.

21. Para uma revisão das conceituações referentes à Avaliação em Saúde, deve-se ver, além de Cochrane, citado na ref. 9, a obra Evaluation of health care, editado por W. Holland, e os trabalhos de Avis Donabedian, entre os quais The Assessment of technology and quality. Int. J. of Technology, Assessment in Health Care, 4, 487-496, 1988 e La calidad de la atención médica — definición y métodos de evaluación. La Prensa Médica Mexicana. México, 1984. É importante também consultar o material distribuído no Seminário de Avaliação em Saúde produzido pelo Departamento de Administração e Planejamento da Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ, no qual estão as intervenções de Banda D, Vuori H, e Drummond, bem como a dos pesquisadores brasileiros que trabalham com o tema.

22. Ministério de Sanidad y Consumo, uso racional y financiación pública de los medicamentos en Europa. Madrid. Gráfica del Ministério de Sanidad y Consumo. 1986.

23. Essas idéias estão expostas em inúmeros informes e documentos da OMS, entre eles os Informes Técnicos 118, 127 e 615 de 1962, 63 e 77, respectivamente, e as Pautas para establecer políticas farmaceuticas nacionales, 1988.

24. Ver ref. 6.

25. TOGNONI, G. A política de medicamentos e a Reforma Sanitária na Itália. Revista Saúde em Debate. 25, 1989.

 

 

* Texto apresentado originalmente no H Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva e III Congresso Paulista de Saúde Pública — São Paulo - julho/89.

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