EDUCAÇÃO
Educação e a ética da experimentação em seres humanos
Education and the ethics of experimentation upon human beings
Fernando D. de Ávila Pires*
RESUMO
São discutidos os aspectos éticos da experimentação de métodos e técnicas a que professores de primeiro e segundo graus submetem seus alunos, sem protocolos, avaliação de possíveis efeitos nocivos futuros e sem a concordância de alunos, pais e responsáveis.
O autor compara esse procedimento ao que se exige no caso da experimentação com animais em laboratório.
ABSTRACT
The ethics of the testing of hypotheses, methods, and class room procedures using students without their knowledge and the consent of students and their parents, is discussed. A comparison is made with the legal requirements for experimentation upon laboratory animals.
A plea for the establishment of a code of ethics and special supervision of such projects, is made.
Neste número, os Cadernos de Saúde Pública inauguram uma nova seção, destinada a publicar trabalhos que tratam do tema EDUCAÇÃO-ENSINO em seus diferentes aspectos.
Pontos de vista conceituais, propostas curriculares, discussões sobre técnicas e métodos didáticos terão acolhida especial.
A questão dos programas de saúde, por si só, merece destaque.
A utilização de animais como modelos para o estudo de doenças humanas sofreu um grande incremento a partir de meados do século passado. Voluntários, escravos, prisioneiros, grupos minoritários foram usados para esse fim em todos os tempos, antes que preocupações de natureza ética levassem à adoção de normas destinadas a regulamentar a experimentação in anima nobile, e mesmo depois. Hoje, as considerações éticas estendem-se aos animais.
Recentemente, o questionamento dos aspectos morais inerentes ao uso de animais em laboratórios foi ampliado para incluir a exploração da fauna silvestre. Bertrand des Clers (Bull. Fond. Intern. Sauveg. du Gibier, 19, 1984) abordou, em editorial, esta questão particular. Em 1982, o problema da utilização de primatas em pesquisas biomédicas e no teste de novas drogas, que vinha sendo objetivo de críticas desde a década de 1960, foi abordado em interessante entre' vista publicada em Research Resources Reporter, Dec. 1982, cujo ponto central foi o questionamento da necessidade real da experimentação em animais. Em março daquele ano, outra entrevista abordava o aspecto ético do uso de animais como modelos e introduzia o conceito do "bem maior" como justificativa. No mês de novembro a questão foi retomada, quando Peter J. Gerome, diretor do Centro de Primatologia de New Orleans afirmou: "A saúde do homem constitui a prioridade máxima no que toca à realização de experimentos em animais. Não fazemos pesquisa simplesmente para testar idéias interessantes."
Em toda essa argumentação um aspecto recorrente é o de que os animais não têm escolha e que a decisão repousa somente nas mãos dos pesquisadores.
Ao participar de recente seminário sobre educação, essas questões vieram-me à mente, à vista do número de relatos feitos por professores de escolas de primeiro e segundo graus, de experimentos curriculares aos quais submetiam seus alunos. O objetivo era o de testar diferentes "métodos", como o de projetos, do ensino programado, da redescoberta, além de pesquisar o resultado de atividades destinadas a estimular a "criatividade".
Em nenhum caso e em nenhuma das sessões do seminário foi mencionada a questão da ética da experimentação em seres humanos, ou a necessidade de se criarem comissões de ética que se pronunciem sobre tais projetos, em cada escola e em cada caso.
O acompanhamento dos estudantes e a necessidade de acompanhamento dos que foram objeto dos projetos experimentais, para avaliação de seqüelas ou repercussões posteriores, não foi mencionado nenhum dos relatos. Os possíveis prejuízos ou vantagens resultantes da exposição ao experimento realizado em um período crítico do desenvolvimento fisiológico e mental do indivíduo, de sua formação intelectual, de sua integração social, não foram analisados ou mencionados.
Moreira (Melhoria do Ensino. PADES/UFGS. P. Alegre, 1982) adverte que "Muitas são as maneiras de se melhorar o ensino em uma disciplina. Pode-se, por exemplo, tentar novos métodos de ensino, novas experiências de laboratório, novos meios de comunicação e assim por diante. (...) Tais tentativas, no entanto, embora fundamentalmente objetivem a aprendizagem do aluno, muitas vezes pecam exatamente por esquecer o aluno. Isto é, procura-se melhorar o ensino sem uma maior preocupação com a aprendizagem em si, ou seja, com o aluno como indivíduo que aprende."
A experimentação em seres humanos, qualquer que seja o seu objetivo, envolve aspectos éticos que não podem ser subestimados ou ignorados. Justifica-se em função do "bem maior" e da necessidade de se testarem ou compararem métodos e teorias, mas não apenas idéias interessantes.
Assim a Declaração de Helsinque, citada por Coura ("Aspectos éticos da prática médica e da investigação clínica") em conferência realizada durante o X Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (Salvador, 1984), aplica-se também ao caso em discussão:
"Qualquer ato ou conselho que possa enfraquecer a resistência física ou mental do ser humano deve ser usado somente em seu interesse".
A concordância dos indivíduos submetidos a um experimento, ou de seus responsáveis,precisa ser obtida. Em 1914, um magistrado ao julgar a questão Schloendorff versus Sociedade Hospital de Nova Iorque declarou que "Todo ser humano tem o direito de determinar o que dever ser feito com o seu próprio corpo". Que dirá com a sua própria mente.
Um projeto educacional, por modesto que seja em termos de recursos envolvidos, deve prever a preparação de um projeto detalhado de que conste uma justificativa convincente, uma fundamentação teórica apropriada, objetivos e expectativas claramente definidos, precauções adotadas, análise de estudos prévios já realizados,além da metodologia proposta explicitada em um protocolo explícito.
A preocupação com as conseqüências do experimento deve nortear a decisão da comissão de ética responsável por sua autorização e acompanhamento, a qual precisa ser estabelecida em todos os centros de educação.
Por outro lado, não se deve chegar ao exagero de se criarem tantas restrições e normas que impeçam o aperfeiçoamento dos "métodos de ensino". Mas não se pode admitir que qualquer um, em qualquer circunstância, sem maior preparo ou precaução, submeta seus alunos a experimentos mal planejados ou improvisados, sem pensar nas conseqüências caso não se obtenham os resultados esperados.
Kagan (Dedalus, 1965:559) analisou a questão do estímulo ao raciocínio indutivo e chegou a uma interessante conclusão: "Voltamo-nos para as maneiras de usar essas idéias no sentido de resolver a questão de se o ensino pela redescoberta, isto é, o aprendizado através do raciocínio indutivo, é mais eficiente que o ensino expositivo. Deve o professor dar às crianças exemplos e deixá-las inferira regra ou deve apresentar primeiro a regra e deixar a criança explorar exemplos pertinentes?
(...) Em suma, o método da descoberta é mais apropriado para crianças mais velhas, altamente motivadas, que podem apresentar fortes conflitos de dependência e que estão inclinadas a usar uma estratégia de reflexão. O método é menos apropriado para crianças menores, especialmente abaixo dos nove anos, não muito motivadas a dominar tarefas intelectuais e que tendem a ser impulsivas."
E curioso verificar que uma série de questões levantadas em relação ao uso de animais em laboratório podem ser aplicadas aqui:
1 Seleção do modelo: no caso de animais, trata-se da escolha da espécie mais apropriada. No caso de alunos, indica a necessidade de se proceder à escolha de uma amostra representativa, de ambos os sexos, de determinada faixa de idade cronológica e de desenvolvimento intelectual (e que se disponham a participar do experimento, com o consentimento de seus pais).
2 O que é e o que não é ético? Teorias ou hipóteses pouco definidas ou apoiadas por resultados prévios ou que possam acarretar prejuízos de qualquer natureza não devem servir de base a experimentos.
3 Condições experimentais: não se deve admitir a sujeição dos alunos a situações de tensão ou conflito, que correspondam, no caso de experimentos com animais, ao que se designa por "sofrimento desnecessário."
4 Somatório de experiências: quando um mesmo animal é utilizado em distintos projetos, sucessivamente, efeitos residuais de experiências prévias podem comprometer os resultados de um teste positivo.
5 Simulação: sempre que possível, um experimento deve ser substituído por estudo simulado em computador de maneira a reduzir a exposição de alunos a testes que possam produzir seqüelas indesejáveis e não-possíveis de reparação.
AGRADECIMENTOS
À Profª Marisa Ramos Barbieri e a Adriana Mohr, pela leitura do manuscrito, comentários e incentivo para publicá-lo.
* Bolsista do CNPq