EDITORIAL/SUMMARY
A IX Conferência Nacional de Saúde
Paulo Marchiori Buss
Diretor da Ensp/Fiocruz
A IX Conferência Nacional de Saúde é mais uma oportunidade democrática para o amplo debate sobre este crítico setor saúde no Brasil. Está convocada para novembro deste ano, em Brasília. E estará ocorrendo num momento particularmente difícil da vida nacional, na qual a recessão e o desemprego provavelmente agravarão, de forma dramática, a situação de saúde dos segmentos mais vulneráveis da população.
A questão da saúde no nosso país, aliás, tem historicamente contornos dramáticos. De setor marginalizado e negligenciado até, pelo menos, a década de 60, vem adquirindo importância crescente nos últimos 20-30 anos. De fato, o surto de desenvolvimento econômico do período autoritário trouxe consigo o surgimento de uma enorme Previdência Social, a assistência médica passou a ser um segmento importante de acumulação de capital e, mais recentemente, com o processo da redemocratização, a questão da saúde passa a ser pauta de reivindicação nas negociações trabalhistas e aspiração da cidadania, de maneira geral.
Simultaneamente, o mesmo desenvolvimento econômico, com seu modelo aético, concentrador e excludente, tornou dramáticas também as condições de vida e saúde. A distribuição desigual das riquezas, bens e serviços criou dois (ou muitos) brasis: um, minoritário, moderno e capaz de acessar todas as benesses do desenvolvimento, inclusive os mais sofisticados recursos tecnológicos em saúde, com índices sanitários invejáveis, ao nível da Dinamarca; e outro, o imenso Brasil da miséria, da desnutrição, da desesperança, das péssimas condições de vida e saúde, ao nível dos mais miseráveis e atrasados países do mundo.
Na média, melhoraram os indicadores de saúde. Mas permanecem as diferenças abismais nas condições de saúde e acesso a bens e serviços sanitários entre grupos sociais, regiões, segmentos populacionais.
Toda a discussão que a questão da saúde vem despertando na sociedade brasileira diz respeito tanto aos interessados (e às necessidades) dos setores dominantes da sociedade - que precisa de gente saudável produzindo e consumindo, inclusive bens e serviços, no interior do setor saúde -, quanto aos interesses (e necessidades) dos segmentos populares, relacionados com a ampliação da noção de direitos de cidadania.
Uma série de tentativas de reformas, adaptação, ajustes, vem sendo tentada no sistema de atenção à saúde do país, ao longo dos anos, como respostas a estes movimentos e aspirações. E o elenco de medidas jurídico-legais vem, também, se alterando em função do debate na sociedade.
A VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, foi, neste sentido, um acontecimento exemplar. Reunindo quase 5.000 pessoas em Brasília, num processo que, começando nos municípios, envolveu quase 50 mil pessoas, foi um coroamento de alguns anos de debate. Definiu a saúde como direito do cidadão e dever do Estado e lançou as bases políticas e técnicas para o debate sobre saúde na Constituinte. O resultado foi um texto constitucional sobre saúde moderno e abrangente, um dos mais avançados do mundo, na Constituição Brasileira de 1988. Seguiram-se as Constituições Estaduais de Saúde e as Leis Orgânicas dos Municípios, com seu componente sanitário. Os textos obtidos pela mobilização da sociedade variaram de caso a caso, conforme a configuração política das respectivas Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais. Em todos os casos, pode-se afirmar que, em geral, os produtos obtidos são bons e suficientemente abrangentes para não se constituírem em obstáculos ao desenvolvimento do setor; ao contrário, são estimulantes e, se bem utilizados, orientadores da ação.
Do ponto de vista dos movimentos de reordenamento do setor, o SUDS, iniciado em 1987, representou um movimento de nítida descentralização, todavia ainda não concluído, e a Lei do Sistema Único de Saúde, já em 1990, fixou as bases para novas relações entre os três níveis de governo, além de estabelecer as regras básicas para o setor, em diversas dimensões.
Entretanto, toda a magnitude do debate sobre saúde na sociedade, sua expressão nos parlamentos, a importância real da saúde na vida concreta das pessoas e os avanços jurídico-legais não lograram o que talvez mais interessa a todos: um sistema de saúde que efetivamente funcione, humano e equitativo, que de fato promova a saúde, previna e cure as enfermidades. Um sistema de atenção à saúde confiável, com custos compatíveis com a capacidade da sociedade brasileira.
Chegamos, assim, à conjuntura da IX Conferência Nacional de Saúde com uma série de indagações a respeito dos processos vividos e vindouros. Trata-se de um momento de inflexão de todo o processo social e político dos últimos anos, batizado de Reforma Sanitária e que terá um momento muito importante na IX Conferência. Esta Conferência tem a tarefa de tomar os parâmetros já definidos por todo o processo da Reforma - incluindo os textos legais -e apontar políticas e medidas concretas destinadas à superação das questões de saúde que fazem parte do dia-a-dia do cidadão, que hoje está saturado dos discursos e de conquistas de leis que não mudam de fato a sua qualidade de vida.
Cremos, por isso mesmo, que a Conferência deve partir de um conceito ampliado de saúde e do resgate do caráter público do Estado, qualquer que seja o nível considerado, mas principalmente o Município.
Isto significa a formulação e aplicação de verdadeiras políticas sociais saudáveis. Vale dizer, a articulação de políticas de saúde, educação e saneamento (água, esgoto e lixo), pelo menos, formuladas com participação da população organizada e aplicada sob seu controle. Somente a articulação das ações públicas desses setores será capaz de causar algum impacto e promover um incremento na qualidade de vida.
Para isto, há a necessidade do desenvolvimento institucional dos municípios, dando-lhes competência para a formulação e execução dessas políticas sociais. O planejamento estratégico é uma ferramenta poderosa à disposição desses interesses e objetivos.
No campo específico da assistência médica, algumas posições políticas precisarão ser consolidadas na Conferência que se propõe a indicar a municipalização como o caminho para a saúde:
1. A constituição do comando político e técnico único a nível municipal, inclusive com a unificação do sistema público no Município e a gestão do sistema local de saúde, inclusive a relação com hospitais e demais ações de saúde de abrangência individual ou coletiva.
2. O repasse automático de recursos financeiros federais e estaduais correspondentes e necessários às nossas responsabilidades delegadas ao município, pois sem isto não haverá descentralização efetiva do poder.
3. O claro equacionamento de políticas nacionais. Vale dizer que independem do nível municipal, mas que refletem poderosamente sobre ele: recursos humanos, fármacos e equipamentos, pelo menos.
4. A construção de políticas e planos municipais de saúde amplamente debatidos e aprovados, que se articulem com as demais políticas sociais, representando compromissos políticos claros do executivo com o legislativo municipal, o Conselho de Saúde e a população em geral.
5. A definição precisa dos papéis e compromissos de cada nível de governo.
O Município, como célula mínima de estrutura político-administrativa brasileira, é teoricamente capaz de organizar um sistema de saúde mais adequado às necessidades de seus habitantes, por encontrar-se mais próximo do espaço concreto onde vivem as pessoas e mais sensível às pressões e reivindicações da população. Trata-se, na prática, de demonstrar isto. E a IX Conferência é um espaço político da maior importância para a reafirmação de princípios e a construção de pactos capazes de contribuir para a constituição de um sistema de saúde integral único, de base municipal, eficiente e com claro compromisso social.